DIVÓRCIO
CONFISSÃO OU ACORDO DAS PARTES
SEPARAÇÃO DE FACTO
RECONCILIAÇÃO
Sumário

I - Dado que a reconciliação dos cônjuges, em atenção à importância social e familiar do casamento, deve ser incentivada, uma tentativa não conseguida de reconciliação não interrompe o decurso do prazo da separação dos cônjuges nem deve obstar a que qualquer deles possa continuar a invocar a separação de facto como causa de divórcio.
II - O carácter indisponível do direito potestativo extintivo de divórcio torna inadmissível a prova dos factos integrantes da respectiva causa constitutiva por confissão ou acordo das partes.

Texto Integral


Relator: Henrique Antunes
Adjuntos: Mário Rodrigues da Silva
Cristina Neves

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

 1. Relatório.

               AA propôs, no Juízo de Família e Menores ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., no dia 13 de Dezembro de 2021, contra BB, seu cônjuge, acção declarativa constitutiva de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, com processo especial, pedindo o decretamento do divórcio entre ambos.

               Fundamentou esta pretensão no facto de ter casado com o réu no dia 11 de Junho de 1994, casamento na constância do qual nasceram, nos dias .../.../1998 e 4 de Abril de 2005, CC e DD, respectivamente, tendo instalado a casa da família na Rua ..., em ..., de no dia 7 de Junho de 2020, ter sido colocada na rua, e de desde Janeiro de 2020, se encontrarem separados de facto, vivendo como se de pessoas estranhas se tratasse, não havendo, por parte de ambos o propósito de restabelecer a vida em comum.

               Na tentativa de conciliação, realizada no dia 1 de Fevereiro de 2022, os cônjuges declararam, ambos, pretender o divórcio, não tendo, porém, sido possível, a sua conversão em divórcio por mútuo consentimento, por não se entenderem quanto à atribuição da casa de morada da família; acordaram, no entanto, em prescindir, reciprocamente de alimentos, quanto ao destino de animal de companhia e quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas a DD, acordo que foi, acto continuo, homologado pela Sra. Juíza de Direito.

               O réu afirmou em contestação que não existe casa de morada da família, que a autora saiu voluntariamente de casa, sendo, no entanto, verdade que se encontram separados desde Janeiro de 2020, tendo deixado de falar um com outro, de partilhar refeições, de ter projectos de vida em comum, passando a ter economias separadas, sem qualquer contacto físico como casal, apesar de continuarem a residir na mesma habitação, mas em andares diferentes - e concluiu que a acção deve ser julgada procedente, decretando-se o divórcio entre ambos.

               A autora afirmou, em requerimento oferecido no dia 28 de Março de 2022, que a autora e o réu não estão separados desde Janeiro de 2020, pois que tiveram uma reconciliação e voltaram a partilhar cama e mesa (…) em Outubro de 2021 – e em requerimento produzido no dia 14 de Abril de 2022, que além de se ter reconciliado com o réu, na data referida, andou com o mesmo na apanha da azeitona, para em conjunto fazerem azeite.

               O réu respondeu que a autora invocou, certamente, por lapso que não está separada desde Janeiro de 2020 e que se reconciliou em Outubro de 2021, que aquela dá o dito por não dito, não se vislumbrando o que pretende com a errónea e falsa alegação.

               A autora, reafirmou em requerimento produzido no dia 14 de Abril de 2022, que o que alegou no requerimento oferecido no dia 28 de Março de 2022 é verdadeiro e que além de se ter reconciliado com o réu, na data referida, andou com o mesmo na apanha da azeitona, para em conjunto fazerem azeite.

               O réu obtemperou que o pedido de divórcio tem por fundamento a separação de facto há bem mais de um ano consecutivo, porquanto a ter alegadamente existido uma reconciliação, o que não se concebe, não tem a autora fundamento legal para intentar a acção, que a última altera a verdade dos factos, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, pelo que deve ser condenada em indemnização que se julgue mais adequada à sua conduta – e que, não obstante, mantém o propósito de se divorciar.

               Logo no despacho saneador, a Sra. Juíza de Direito, depois de observar que o estado do processo permite, sem necessidade de mais prova, apreciar a totalidade do pedido, e cumprido que está o princípio do contraditório, e que nos presentes autos está em causa o fundamento previsto na alínea a), concretamente a separação de facto por um ano consecutivo, que resulta da factualidade provada que autora e réu estavam separados há um ano consecutivo à data da petição inicial e, face à alegação da autora, também não estão separados há um ano consecutivo até à presente data, pelo que, considerando que o réu não deduziu pedido reconvencional, não poderá o divórcio ser decretado,  que sendo evidente que a autora, a 13 de dezembro de 2021, quando intentou a ação, sabia já que não estava separada do réu há um ano consecutivo, pois que se haviam reconciliado em outubro desse ano, que mesmo que se tenham reconciliado e separado nesse mês, não podiam estar separados há mais de dois meses à data da petição inicial, pelo que bem sabia não ser verdade a alegação de a separação durar desde janeiro de 2020, há mais de um ano, julgou a acção improcedente, declarou que a autora litigou de má fé e condenou-a na pena processual de multa de 4 UC e a pagar ao réu uma indemnização no valor de € 75,00.         

               É esta sentença que a autora impugna no recurso – no qual pede a revogação in totum da sentença e se ordene a baixa dos autos à 1.ª instância, onde se deve diligenciar pelo destino da casa de morada de família e após o decretamento do divórcio – tendo extraído da sua alegação estas bem – desnecessariamente - numerosas conclusões:

               1. O Tribunal deu como provado o seguinte:

2. A Autora e o réu casaram em 11 de junho de 1994, sem convenção antenupcial.

3. Por referência à data de instauração da petição inicial, autora e réu não estavam separados há um ano consecutivo.

4. A autora alegou na petição inicial, datada de 13 de dezembro de 2021, estar separada do réu desde janeiro de 2020.

5. Em requerimento de 28 de março de 2022 e de 14 de Abril de 2022 a autora alegou não estar separada do réu desde janeiro de 2020, tendo-se reconciliado em outubro de 2021.

6. Diga-se desde já que não se pode concordar com o fato provado ii), senão vejamos:

7. O ponto iii. está claramente em contradição com o ii. ou seja, a autora afirma, e o réu não o contradiz, que está separada do mesmo desde janeiro de 2020.

8. Depois mais tarde, vide fato provado ponto iv. a autora disse que se teria reconciliado com o réu em outubro a de 2021.

9. Mais ou menos até dezembro de 2021.

10. A ser assim de Janeiro de 2020 a Setembro de 2021 decorreu mais de 1 ano a que alude o disposto no artigo 1781.º al. a) do Código Civil, logo, o facto provado ii. não pode se dado como provado e dever ser substituído, atenta a posição de ambas as partes por:

 11. ii. Por referência à data de instauração da petição inicial, autora e réu estiveram separados de facto há mais de um ano consecutivo.

12. Não se nega, que mais tarde a autora veio dizer aos autos que se havia reconciliado com o réu no último trimestre de 2021, na altura da apanha da azeitona.

Tentemos então explicar melhor o sucedido,

13. A autora procurou a advogada signatária para intentar uma Ação de Divórcio contra o seu cônjuge – NOTA IMPORTANTE – ver data da Procuração junta aos autos.

14. Foi-lhe também dado margem para tentar, extrajudicialmente, uma tentativa de acórdão com o Réu, e combinados os termos de cedência.

15. Após, foram encetadas essas tentativas, que decorreram ainda durante um período considerável de tempo, com avanços e recuos de parte a parte, que culminou em novembro, infelizmente, com o fim negociações e que só a via judicial iria solucionar o caso, atenta a falta de acordo.

16. Assim a subscritora intentou a Acão de Divórcio competente, ao abrigo do artigo 1781.º al. a) do nCPC em 13/12/2021.

17. Em 01/02/2022, realizou-se a Tentativa de Conciliação, onde se fez constar na ata:

18. Iniciada a diligência, a Mmª Juiz, tentou a conciliação entre os cônjuges, sem êxito, uma vez que a autora mantém o propósito de se divorciar e o réu também se quer divorciar. Tentada a convolação do divórcio em mútuo consentimento, tal não se mostrou possível por autora e réu não se entenderem quanto à atribuição da casa de morada de família.

19. No entanto acordaram no seguinte: (tudo o que a lei obriga, exceto a a atribuição da casa de morada de família).

20. Foi notificado o réu para contestar.

21. Mais tarde, o réu contestou, a autora respondeu.

22. Depois de despacho da M.mª Juiz de Direito o Réu veio afirmar que: “Destarte, a Autora não pode fazer depender o divórcio da alegada atribuição da “casa de morada de família”.

23. Requer a litigância de má-fé da autora.

24. Como amplamente explanado acima, estatui a lei, que a atribuição da casa de morada de família é de decisão obrigatória antes do decretamento do divórcio convolado, como é alimentos aos cônjuges, o exercício das responsabilidades parentais, etc.

25. E que a casa de morada de família, é onde a família viveu, seja emprestada, arrendada, ou, o que quer que seja…

26. A subscritora chamou a sua cliente ao seu escritório para fazerem a resposta ao convite do Tribunal, e aí, e só aí, sublinha-se só aí, é que a subscritora é confrontada com o facto de A. e R. terem tido uma tentativa de reconciliação que terá durado durante o quarto trimestre daquele ano, sendo certo que, anteriormente a essa tentativa de reconciliação já tinha decorrido mais de um ano separação entre o casal a que alude o artigo 1781.º al. a).

27. Ora na posse de tal informação, entendeu a subscritora responder ao Tribunal e informar o Tribunal de tal facto, em abono da verdade, ou seja, de boa-fé processual (quando teve conhecimento de tal) de harmonia com o princípio da cooperação, do dever de boa-fé processual e de recíproca correção com o Tribunal.

28. Era uma verdade, que não constava dos autos e, como tal, transmitiu-se aos mesmos.

29. Assim somos levados a dizer, salvo sempre o devido respeito por opinião contrária que dos autos resulta, pelo mesmo que:

30. Dispõe o artigo 931.º n.ºs 3 e 4 do CPC (que disciplina a tentativa de conciliação no âmbito do processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge), que na tentativa de conciliação o juiz procura obter o acordo dos cônjuges quanto aos alimentos e quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos, procurando ainda obter o acordo dos cônjuges quanto à utilização da casa de morada de família durante o período de pendência do processo, se for caso disso, sendo que em qualquer altura do processo, as partes podem acordar no divórcio por mútuo consentimento,  quando verificados os necessários pressupostos e que, realizado tal acordo, seguem-se no próprio processo, com as necessárias adaptações, os termos dos artigos 994º e seguintes. Ora daqui resulta que:

31. Autora e réu pretendem-se divorciar.

32. Acordaram em na Ata de Tentativa de conciliação, todos os acordos, supra aludidos, COM A EXCEPÇÃO DA CASA DE MORADA de FAMÍLIA

33. Do exposto, resulta que, quando, na tentativa de conciliação realizada no processo de divórcio se verificar a convolação para mútuo consentimento, o juiz procura obter o acordo dos cônjuges quanto aos alimentos e quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos, procurando ainda obter o acordo dos cônjuges quanto à utilização da casa de morada de família durante o período de pendência do processo, se for caso disso (art. 931º nº 2 do CPC), sendo que, nesse caso de convolação, o nº 4 deste artigo determina que sejam observados os artigos 994º e seguintes, ou seja, as normas inerentes à tramitação do processo de divórcio por mútuo consentimento, logo impondo a al. b) do nº 1 deste dispositivo legal, como pressuposto deste processo, que os cônjuges juntem aos autos a relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respetivos valores.

34. Contudo, já a lei civil substantiva, nos artigo 1775.º e seguintes do Código Civil, não exige, para o decretamento do divórcio por mútuo consentimento que os cônjuges acordem quanto ao acervo dos bens comuns a partilhar e respetivos valores, exigindo sim que esses acordos se verifiquem quanto à prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça, o exercício do poder paternal relativamente a filhos menores e o destino da casa de morada de família (artigo 1775º n.º 2 e artigo 1778.º ambos do Código Civil), condicionando o deferimento do pedido de divórcio por mútuo consentimento à homologação dos acordos dos cônjuges sobre algumas das mais importantes sequelas dos divórcios (a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça, exercício do poder paternal relativamente a filhos menores e destino da casa de morada de família).

35. Isto tudo para dizer, e em síntese que, “todo está feito”, exceto dar destino à casa de morada de família.

36. Diga-se a talhe de foice que, relativamente às casas que estão em nome das filhas, foram partilhadas diretamente dos pais da autora para as suas netas, “saltando” a herdeira autora, por dividas que tinha o réu (relativamente às dívidas é matéria sujeita a prova), mas resulta claro, que a casa era dos pais da autora, e que é lá que o réu mora, é lá que recebe as notificações dos autos, portanto, tem lugar onde residir, sendo certo que existem duas casas, mas o réu vive numa e arrendou a outra, as casas das filhas…

37. Os princípios gerais estruturantes do processo civil, em qualquer das suas fases, deverão essencialmente representar um desenvolvimento, concretização e densificação do princípio constitucional do acesso à justiça.

38. O direito de acesso aos tribunais envolverá identicamente a eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição do litígio, privilegiando-se assim claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma.

39. No mesmo sentido de privilegiar a decisão de fundo, importa consagrar, como regra, que a falta de pressupostos processuais é sanável.

40. Assim, para além de expressamente se consagrar, como princípio geral, que incumbe ao juiz providenciar oficiosamente pelo suprimento das exceções dilatórias suscetíveis de sanação, praticando os atos necessários à regularização da instância.

41. Por outro lado, obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efetivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio.

42. Assim, estabelece-se como princípio geral do processo o princípio da adequação, facultando ao juiz, obtido o acordo das partes, e sempre que a tramitação processual prevista na lei não se adeque perfeitamente às exigências da acção proposta, a possibilidade de adaptar o processado à especificidade da causa, através da prática dos atos que melhor se adequem ao apuramento da verdade e acerto da decisão, prescindindo dos que se revelem inidóneos para o fim do processo.

43. O incremento da tutela do direito de defesa implicará, por outro lado, a atenuação da excessiva rigidez de certos efeitos cominatórios ou preclusivos, sem prejuízo de se manter vigente o princípio da autorresponsabilidade das partes e sem que as soluções introduzidas venham contribuir, de modo significativo, para a quebra da celeridade processual.

44. Consagra-se o princípio da cooperação, como princípio angular e exponencial do processo civil, de forma a propiciar que juízes e mandatários cooperem entre si, de modo a alcançar-se, de uma feição expedita e eficaz, a justiça do caso concreto.

45. Na verdade, sem a formação desta nova cultura judiciária facilmente se poderá pôr em causa um dos aspetos mais significativos desta revisão, que se traduz numa visão participada do processo, e não numa visão individualista, numa visão cooperante, e não numa visão autoritária.

46. Procede-se a uma ponderação entre os princípios do dispositivo e da oficiosidade, em termos que se consideram razoáveis e adequados.

47. A reforma do Código de Processo Civil (CPC), feita em 2013, visou tornar os litígios menos demorados, de forma a que mais rapidamente se chegue à justa composição do litígio, cumprindo-se assim a função do Processo de realizar a justiça e de se chegar ao resultado final, ao saber-se se o autor tem ou não razão, como aponta a regente.

48. Nestas mudanças legislativas consagrou-se, nomeadamente no artigo 6.º do C.P.C., um poder-dever de gestão processual para o juiz, que promove a celeridade do processo tendo poderes inquisitórios e de direção processual mais reforçados.

49. O primado da substância sobre a forma implica que, desde 2013, se obedece à ideia de que todos os impedimentos da decisão de mérito devem ser removidos, se tal for possível.

50. Aliás, como estatui o Artigo 590.º do nCPC.

51. A este respeito tenha-se em consideração a opinião de José António de França Pitão/Gustavo França Pitão citados por Valter Ferreira in “Convite ao aperfeiçoamento: o momento processual e a consequência da omissão”, Revista Julgar online, janeiro de 2020: «[e]ste despacho não é uma mera faculdade do juiz, sendo antes um poder-dever que lhe é imposto pelo princípio da cooperação, não estando na sua livre disponibilidade de apreciação, pelo que a omissão de tal despacho de aperfeiçoamento constitui uma nulidade processual secundária, nos termos do artigo 195.ᵒ, n.ᵒ 1, do NCPC, quando tal preterição puder influir no exame ou na decisão da causa.”

52. No mesmo sentido, José Lebre de Freitas citado por Valter Ferreira, na obra acima mencionada.

53. Ora, o entendimento acima referido reforça a convicção de que a sentença recorrida, para além de estar insuficientemente fundamentada, ainda viola o poder-dever que lhe é imposto pelo princípio da cooperação, devendo, portanto, considerar-se nulo, nulidade esta que se invoca para os devidos e legais efeitos.

54. Na Jurisprudência, as posições encontradas não diferem muito da Doutrina, tal como se percebe, a título meramente exemplificativo do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2019, Processo n.ᵒ 945/14.0T2SNT- G.L1.S1 (Rosa Ribeiro Coelho).

55. Estatui também o Código de Processo Civil no seu artigo 987.º que: nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.

56. E ainda regulamenta e determina o artigo 615.º do nCPC – as causas de nulidade da sentença. Logo, a nosso ver 57. O tribunal (artigo 615º nCPC) deve conhecer de todas as questões de mérito suscitadas pelas partes, ou que sejam de conhecimento oficioso, salvo se as considerar prejudicadas pela solução dada a outras. A violação desse dever de pronúncia importa a nulidade da sentença, o que aqui se deixa invocado para os devidos e legais efeitos.

58. E também, não tendo o juiz "a quo" tomado a iniciativa de suprir a insuficiência de factos e não constando do processo todos os elementos de prova que permitam a (re)apreciação da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 662.°. n.º 2, aIínea c) do nCPC, deve a Relação, mesmo

oficiosamente, anular a decisão proferida pela 1.ª instância, devendo o Tribunal "a quo" ordenar, oficiosamente, a realização das diligências necessárias, com vista a alcançar a verdade material, também no âmbito do poder-dever de direção do processo, produzindo decisão de conformidade.

59. Atenta a nulidade da decisão, como acima exposto.

60. O dever de adequação tem por fundamento a necessidade de adotar a tramitação que se ajusta mais à causa, com as especificidades que esta apresenta, tendo em consideração o fim dos atos a praticar e a circunstância de os mesmos terem de ser úteis, ou seja, terem de servir para uma qualquer finalidade, sendo, no fundo, uma clara concretização das regras legalmente previstas para a prática de atos processuais, apresentando potencialidades para garantir a efetividade das soluções legais que incentivam a economia processual e, sobretudo, a resolução global do litígio.

61. Ora, a autora, casada, veio intentar a presente ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra o réu, casado, alegando a mesma, em apertada síntese, que ambos contraíram entre si casamento civil em 11 de Junho de 1994, tendo-se verificado o nascimento de duas filhas do casal, CC (maior) e DD (menor), verificando-se que os cônjuges estiveram separados mais de um ano, desde Janeiro de 2020, sem que tenha havido comunhão de vida entre ambos.

62. Não dormiam juntos, não comiam juntos, nem vivem na mesma casa, não havendo da parte de qualquer deles a intenção de restabelecer a relação matrimonial.

63. Entende a autora que estão verificados os pressupostos para ser decretado o divórcio entre ela e o réu, nos termos dos art.os 1773.º, n.º 1 e 1781.º, a), do Código Civil, porquanto estão separados de facto por um ano consecutivo, concluindo pelo pedido de decretação do divórcio com fundamento em separação de facto dos cônjuges.

64. Foi elaborada Ata de Tentativa de Conciliação, onde tudo ficou resolvido, com   exceção de que a autora não concordava com o divórcio, sem que, fosse dado destino, aliás, como estatuído na lei, também à casa de morada de família.

65. Parece-nos que, a modalidade em que se reside nas casas das filhas, seja por empréstimo das mesmas, por pagamento de renda às mesmas, ou outros, não deixa de tal casa ser a casa de morada de família.

66. Seguidamente a M.MA Juiz de Direito proferiu a sentença de que se recorre.

67. Entendemos que O/A juiz não está limitado pelas alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do nCPC).

68. A autora acabou por pedir o divórcio com base em separação de facto, a qual efetivamente existiu e diga-se subsiste…

69. O Réu admite-o em sede de contestação, que existe rutura e impossibilidade de reatamento, já tentado e não conseguido.

70. O Tribunal ao dar como provada a impossibilidade de vida em comum, “impossibilidade definitiva de continuação da vida matrimonial, encontrando-se os cônjuges separados de facto, devido a um progressivo afastamento entre eles que desembocou numa separação de facto, sem que a autora e o réu pretendam o reatamento da relação matrimonial, como está previsto no art.º 1782.º do Código Civil, logo a nosso ver a presente decisão merece censura, e não poderá subsistir.

71. Ou seja, o Tribunal ao decidir como decidiu, violou o estatuído no novo Código de Processo Civil – cfr. Preâmbulo, artigo 3.º a 9.º do nCPC, designadamente 5.º, n.º 3 e 1781.º, al. d) e 1782.º do Código Civil.

72. Nestes termos e nos melhores de direito deverá ser revogada a Decisão ora recorrida, porquanto a mesma ferida dos vícios acima apontados e em desconformidade com a lei.

73. Entendemos que atenta as posições das partes expressas nas peças processuais pertinentes e sequenciais que a MATÉRIA DE FACTO ASSENTE NA 1ª INSTÂNCIA DEVERIA SER:

1.º - Autora e Ré casaram em 11 de junho de 1994 no regime de comunhão de adquiridos conforme Assento de Casamento n.º ...15 do ano de 2014 da Conservatória do Registo Civil ... - Doc. 1 junto com a p.i. (prova documental e ainda declarado pela A. e aceite pelo Réu – cfr. Art.º 1 da p.i. e artigo 1.º da contestação);

2.º - Têm duas filhas:

- CC, nascida a .../.../1998 (maior);

- DD, nascida a .../.../2005 - Doc. 2 junto com a p.i. (prova documental e ainda declarado pela A. e aceite pelo Réu – cfr. Art.º 2 da p.i. e artigo 1.º da contestação).

3.º Têm sim, desde essa data, janeiro de 2020, vivido separados de facto como se de pessoas estranhas se tratasse, com a exceção do período entre setembro e novembro de 2021, que tentaram reatar a relação, revelando-se, no entanto, totalmente infrutífera. (declarado pela A. e aceite pelo Réu – cfr. Art.º 18.º da p.i. e artigo 1.º da contestação)

4.º - Mostrando a rutura definitiva do casamento, e sendo impossível a reconciliação da vida em comum. (declarado pela A. e aceite pelo Réu – cfr. Art.º 19.º da p.i. e artigo 1.º da contestação)

5.º - Vivem pois A. e R. separados de facto há mais de 12 meses, separação essa que compromete a possibilidade da vida em comum, vida essa que se torna impossível refazer, não havendo por parte do R. e da A. qualquer propósito de a restabelecer. (declarado pela A. e aceite pelo Réu – cfr. Art.º 20.º da p.i. e artigo 1.º da contestação)

6.º - Pelo que, a separação de facto existente, que subsiste há bem mais que um ano consecutivo, é fundamento suficiente para que seja decretado o divórcio nos termos do artigo 1781.º al. a) do C. Civil. (declarado pela A. e aceite pelo Réu – cfr. Art.º 21.º da p.i. e artigo 1.º da contestação).

74. Em apertada síntese:

d) O casal está separado.

e) Autora e réu não tem intenção reatar a relação.

f) A autora alegou factos tendentes à demonstração da rutura definitiva do casamento.               Causa para fundamentar o divórcio, na p.i. a separação de facto de casal por mais de um ano, contudo os factos alegados pela autora subsumem-se à demonstração da rutura do casamento subsumível à al. d) do n.º 1 do artigo 1782.º do Código Civil e bem assim da irreversibilidade do rompimento da comunhão própria da vida conjugal, o que se verificou no caso sub judice e aceite por ambas as partes.

75. A primeira questão que se coloca é saber, no nosso modesto entendimento, e salvo sempre melhor opinião, é se a rutura definitiva do casamento pode ser demonstrada através da prova de quaisquer factos ou, antes, se os factos passíveis de integrar as previsões das alíneas a) a c), não podem ser considerados para esse efeito, que é, parece-nos, a visão o Tribunal “A Quo”, agora recorrido, mas, que entendemos esse Venerando Tribunal “Ad Quem” não assentirá.

76. Isto porque entendemos que numa visão formalista podíamos ser tentados a considerar que tendo os factos sido alegados para integrarem a previsão da alínea a) do artigo 1781.º – separação de facto há mais de um ano –, e não se provando integralmente essa factualidade, designadamente por se ter demonstrado a separação com essa duração, estava afastada a possibilidade dessa factualidade ser considerada para integrar a previsão da al. d) do mesmo artigo.

77. Não há fundamento legal que impeça que uma situação de separação de facto, por período não apurado, possa ser valorada, para se aferir se existe ou não uma rutura do casamento.

78. Quando essa separação tem a duração de um (1) ano consecutivo, o legislador presume iruis et de iure que a rutura definitiva do casamento se consumou, não sendo necessário provar outros factos; mas da não prova do decurso desse prazo não se pode tirar a ilação oposta, ou seja, que não há rutura definitiva.

79. Ora, era ou será, suficiente para concluir que se estava perante uma situação de rutura definitiva do casamento e não perante um pedido de divórcio por vontade unilateral discricionária da autora, sendo certo que tal não aconteceu, uma vez que ambos, reitera-se, Autora e Réu, concordam que existe rutura definitiva e, impossibilidade de reatamento.

80. Evidencia-se, sem sombra de dúvidas - tal como vem referenciado em decisório, que «Não obstante a separação de facto dos cônjuges tenha cerca de sido interrompida, o cônjuge mulher e o cônjuge marido têm o propósito de não restabelecer a comunhão de vida, sendo irreversível a rutura do matrimónio.

81. Do que entendemos de factual que deverá ser considerado assente nos autos, necessariamente, provado, é, nessa configuração, revelador de que a separação entre a autora e o réu se mostra consolidada, existindo, da parte de ambos, uma vontade irreversível de pôr termo ao casamento.

82. Assim, tendo em conta, não obstante, o lapso de tempo decorrido, desde o início daquela situação até à instauração da presente ação, haverá de se concluir pelo perfil de uma situação de rutura definitiva do casamento.

83. Tem-se, por isso, e com este perfil, também, por demonstrado o fundamento de divórcio previsto no artigo 1781.º, al. d) do C.C., devendo ser decretado o divórcio entre a autora e o réu.

84. Logo do todo o ante exposto, entendemos que a douta sentença, deve ser revogada, in totum, o que se requer.

85. Que tudo isto dizer, que não deve o Tribunal “matar” um processo, quando sabe que o mesmo vai ter de ser voltado a ser intentado, dado que as partes se pretendem manifestamente e inequivocamente divorciar, tendo de voltar a ligar a máquina, com novos pedidos de apoio judiciário, um novo processo, uma nova tentativa de conciliação, uma nova contestação… Ora é exatamente isto que o novo código de Processo Civil veio alterar.

86. Em suma, relativamente ao divórcio está tudo dito e esclarecido, pelo que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por despacho que suprima qualquer irregularidade pendente, mande corrigir o que haja a corrigir e siga para audiência de discussão e julgamento para decidir sobre a atribuição da casa de morada de família, esta parece-nos não suscetível ainda de possível decisão sem produção de prova, a após que haja decisão sobre o divórcio e sobre a casa de morada de família, porque os restantes acordos já se encontra realizados na tentativa de conciliação.

87. Vamos agora debruçar-nos sobre a condenação em litigante de má-fé, 88. Com a revogação da sentença, como defendemos acima, por nulidade da mesma, dado a nosso ver a incorreta aplicação da lei, que culminará na revogação da in totum sentença, a condenação em litigância de má-fé não tem qualquer razão de ser de existir, pelo que deve ser revogada, o que se requer.

89. Como amplamente explanado acima, estatui a lei, que a atribuição da casa de morada de família é de decisão obrigatória antes do decretamento do divórcio convolado, como é alimentos aos cônjuges, o exercício das responsabilidades parentais, etc.

90. E que a casa de morada de família, é onde a família viveu, seja emprestada, arrendada, ou, o que quer que seja…

91. Logo, a posição da autora é absolutamente inatacável…

92. Ora entendeu a subscritora responder ao Tribunal e informar o Tribunal de tal facto, em abono da verdade, ou seja, de boa-fé processual (quando teve conhecimento de tal) de harmonia com o princípio da cooperação, do dever de boa-fé processual e de recíproca correção com o Tribunal.

93. Era uma verdade, que não constava dos autos e como tal transmitiu-se aos mesmos.

94. Resulta a nosso ver claro, que a autora não agiu com má fé, diremos mais, muito pelo contrário, foi verdadeira, assumiu perante o Tribunal, revelando boa-fé processual (quando teve conhecimento de tal) de harmonia com o princípio da cooperação, do dever de boa-fé processual e de recíproca correção com o Tribunal.

95. Não utilizou de qualquer expediente para contornar a verdade, desculpas, subterfúgios, nada, nada, nada…

96. Foi séria e carreou para os autos a verdade, sem tibiezas.

97. Diz também a sentença que desconhece a situação económica da autora…. Diga-se, desde já que, conforme consta dos autos, a autora litiga a coberto de proteção jurídica, por não ter meios suficientes para arcar com as despesas do processo.

98. Na tentativa de conciliação, foram ouvidas as partes e essa audiência está gravada e pode ser consultada na aplicação informática Media Studio.

99. Ou seja, a autora não tem meios económicos.

100. A condenação como litigante de má fé assenta, pois, num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito.

101. Feitas estas breves considerações, é patente pelo acima referenciado que, a recorrente não violou os mais elementares deveres de cooperação e de boa-fé que devem pautar a atuação das partes, entendemos mais, muito pelo contrário.

102. A recorrente/autora foi honesta e, de harmonia com o princípio da boa-fé e da cooperação com o Tribunal, transmitiu tal ao Tribunal o sucedido, logo não agiu de todo em todo de má fé. 103. Assim, entendemos que a decisão, ora recorrida é nula, a como tal não pode subsistir, devendo ser revogada, e bem assim, como corolário será também a condenação como litigante de má-fé.

104. Ora, o entendimento acima referido reforça a convicção de que a sentença recorrida, para além de estar insuficientemente fundamentada, ainda viola o poder-dever que lhe é imposto pelo princípio da cooperação, devendo, portanto, considerar-se nulo, nulidade esta que se invoca para os devidos e legais efeitos.

105. Também entendemos que a decisão deve ser revogada porque viola o Principio da Prevalência da Substância sobre a forma, e portanto, a decisão, não pode subsistir e tem de ser substituída por outra, por demonstrado o fundamento de divórcio previsto no artigo 1781.º, al. d) do C.C., devendo ser decretado o divórcio entre a autora e o réu, e assim, também não se mostra a subsistir tal condenação em litigância de má-fé, isto claro está, depois de ser dado destino à casa de morada de família

106. Por fim como ante alegado, também não se mostra, a nosso ver, salvo sempre o devido respeito por opinião contraria, os requisitos acima mencionados da má-fé, entendemos mesmo, que o que aconteceu foi o seu contrário, a autora não agiu com má fé, foi verdadeira, assumiu perante o Tribunal tal informação, sem rodeios ou tibiezas nada tentando ocultar, revelando boa-fé processual (quando teve conhecimento de tal) de harmonia com o princípio da cooperação, do dever de boa-fé processual e de recíproca correção com o Tribunal.

107. Pelo que também nesta parte a douta sentença não tem onde se escorar na lei, pelo não pode subsistir e, consequentemente, deve ser revogada.

108. Mostra-se a nosso ver VIOLADO o princípio da garantia da prevalência do fundo sobre a forma, bem como as linhas orientadoras da nova legislação processual civil, a ainda o direito do de acesso aos tribunais porque o mesmo implica no pode-dever do Juiz a eliminação de todos os obstáculos injustificados à obtenção de uma decisão de mérito, que opere a justa e definitiva composição do litígio, privilegiando-se assim claramente a decisão de fundo sobre a mera decisão de forma, e ainda privilegiar a decisão de fundo, importa consagrar, como regra, que a falta de pressupostos processuais é sanável, mostrando-se também violado o princípio da adequação, mostram-se a nosso ver violado o princípio do dispositivo.

109. Mostram-se violadas a normas ínsitas nos artigos 5.º e 6.º, 146.º, 193.º, n.º 3, 195.º, n.º 1, 411.º, 542.º 547.º, 590.º, n.º 4, 615.º todos do Código de Processo Civil e artigos 1672.º 1773.º, n.º 1, 1781.º al. a) e d) 1782.º do Código Civil.

               Não foi oferecida resposta.

               2. Factos provados.

               2.1. O Tribunal de que provém o recurso decidiu a matéria de facto nos termos seguintes:

O Tribunal considera provados por documento e por acordo, e com interesse para a boa decisão da causa, os seguintes factos:

1. Autora e réu casaram a 11 de junho de 1994, sem convenção antenupcial.

2. Por referência à data de instauração da petição inicial, autora e réu não estavam separados há um ano consecutivo.

3. A autora alegou na petição inicial, datada de 13 de dezembro de 2021, estar separada do réu desde janeiro de 2020.

4. Em requerimentos de 28 de março de 2022 e de 14 de abril de 2022 a autora alegou não estar separada do réu desde janeiro de 2020, tendo-se reconciliado em outubro de 2021.

O Tribunal não se pronuncia quanto à demais factualidade alegada por se tratar de juízos conclusivos, matéria de direito ou não ser relevante para a boa decisão da causa, face à factualidade alegada pela autora tendo em vista o fundamento do divórcio que entendeu apresentar, a saber, a separação de facto por um ano consecutivo.

               2.2. A Sra. Juíza de Direito exteriorizou, para fundamentar a decisão referida em 2.1., esta motivação:

O Tribunal deu como provado o facto 1 com base na cópia do assento de casamento e o facto 2 com base da alegação confessória da autora.

Os factos 3 e 4 decorrem do conteúdo dos articulados.

               3. Fundamentos.

               3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

O âmbito objetivo do recurso é delimitado pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados na instância de que provém, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação (art.º 635.º nºs 2, 1ª parte, e 3.º a 5.º, do CPC).

A decisão impugnada julgou improcedente, logo no despacho saneador, o pedido de divórcio da autora, com fundamento na circunstância de a separação de facto dos cônjuges, invocada como causa petendi, ter uma duração inferior a um ano, por referência à data da propositura da acção, e estigmatizou aquela com o ferrete da má fé substancial, condenando-a em multa processual e em indemnização a favor do demandado, seu cônjuge. Aquela decisão assentou, no plano de facto, relativamente ao enunciado da separação de facto dos cônjuges, e à sua duração, na declaração confessória da autora – apesar de, em momento anterior, ter declarado como fonte da prova dos factos que teve por provados, no acordo das partes. A sentença contestada declarou também provados os requerimentos produzidos pela autora em 28 de Março e em 14 de Abril de 2022, nos quais se contém a alegação do facto da reconciliação dos cônjuges. Mas vê-se com clareza dos seus fundamentos, maxime, dos relativos à litigância de má fé da autora, que também considerou mesmo provados os enunciados de facto, contidos nesses mesmos requerimentos. Quer dizer: a sentença impugnada embora, na decisão da matéria de facto, se limite a dar como provado o conteúdo daqueles requerimentos, nos fundamentos foi bem mais longe, dado que considerou demonstrados os factos neles alegados.

E embora não o declare, o meio de prova utilizado para julgar provadas as afirmações de facto contidas naqueles requerimentos foi, decerto, a confissão, dado que com aqueles enunciados a apelante contra se pronuntiatio, i.e., o reconhece a realidade de um facto que a desfavorece e que favorece o apelado – embora o contraditório desenvolvido pelas partes relativamente ao facto da reconciliação, mostre que o réu impugnou, sempre, a sua veracidade (art.º 352.º do Código Civil).

De resto, a decisão impugnada coloca um problema delicado de coerência intrínseca, dado que, depois de julgar provado que por referência à data de instauração da petição inicial, autora e réu não estavam separados há um ano consecutivo, logo declara que resulta da factualidade provada que autora e réu estavam separados há um ano consecutivo à data da petição inicial. A única explicação razoável para esta lívida colisão é, decerto, a existência de erro material de escrita (art.ºs 249.º e 295.º do Código Civil).

A apelante sustenta no recurso que a sentença impugnada, além de padecer do valor negativo da nulidade substancial, desde logo, por omissão de pronúncia, incorreu, no tocante à decisão da matéria de facto num error in iudicando, por erro na aferição ou avalização das provas, já que, no seu ver deve julgar-se provado – por virtude do acordo das partes - que os cônjuges se encontram separados de facto há mais de um ano – embora, no seu ver,  mesmo uma separação de facto de duração inferior é susceptível de demonstrar a ruptura irreversível da convivência conjugal - pelo que se deve declarar o divórcio entre ambos, restando, como único objecto da causa a controvérsia relativa à atribuição da casa de morada da família.

 Maneira que considerados os parâmetros da competência decisória desta Relação assim delimitados, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se a decisão impugnada se encontra ferida com o desvalor da nulidade substancial e com um erro de julgamento em matéria de provas, por erro na sua avaliação ou aferição. A resolução destas questões vincula, desde logo, ao exame ainda, que breve, dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto e das causas de nulidade substancial da decisão.

 Entre a matéria de direito e a matéria de facto existe uma interdependência que se verifica na sua delimitação recíproca, em especial na sua confluência para a obtenção da decisão de um caso concreto. Dado que a delimitação da matéria de facto é feita em função da matéria de direito – visto que os factos são recortados e escolhidos segundo a sua relevância jurídica, i.e., segundo a sua importância para cada uma das soluções plausíveis da questão de direito - justifica-se, metodologicamente, que a exposição subsequente se abra com a análise da causa de divórcio alegada como causa de pedir - a separação de facto dos cônjuges – e com a relevância de uma reconciliação não conseguida dos cônjuges

               3.2. A causa objectiva de divórcio representada pela separação de facto dos cônjuges e a relevância da reconciliação não conseguida daqueles.

Uma característica saliente das modernas legislações sobre o divórcio, é a relevância que é concedida, como causa de divórcio, à ruptura da vida conjugal, considerada objectivamente, quer dizer, independentemente da averiguação da culpa que possa atribuída a algum dos cônjuges – ou a ambos – nessa ruptura. Relevância que mostra a perda pelo divórcio da sua função tradicional de meio de reacção contra a violação culposa de deveres conjugais – função característica do chamado divórcio-sanção – e o acentuar da sua função como meio de certificação de uma situação objectiva de ruptura da relação conjugal – função típica do denominado divórcio-remédio ou divórcio-constatação. Diferenciação de funções a que correspondem causas igualmente distintas: enquanto a causa do divórcio sanção é uma violação de deveres conjugais, a causa do divórcio-remédio é uma situação de ruptura das relações conjugais que, pela sua gravidade, constitua fundamento suficiente para extinguir, por divórcio, o casamento.

Até à Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, o divórcio era perspectivado, entre nós, numa dupla função de divórcio-remédio e de divórcio-sanção - conforme claramente se inferia dos artigos 1779.º e 1781º do Código Civil, na redacção imediatamente àquela que lhe foi impressa por aquele diploma legal - em que, portanto, se dava à culpa um lugar apreciável.  Não assim, actualmente, em que, assumidamente, se admite um princípio geral de dissolução do casamento, com fundamento na ruptura definitiva da vida em comum[1] e, portanto, a adopção clara do modelo do divórcio-remédio, ou divórcio constatação da ruptura.

Decididamente, o legislador terá sido sensível à consideração de que a recondução da causa de divórcio a uma situação objectiva de ruptura da vida conjugal tem a vantagem de favorecer o divórcio por mútuo consentimento, de evitar que os cônjuges tenham que, no processo, expor a sua intimidade, alegar e ver discutidos, com acrimónia, factos por vezes penosos, e sejam forçados a recriminações recíprocas sobre a censurabilidade imputável à contraparte – o que facilita a obtenção de consensos entre os cônjuges sobre alguns dos efeitos do divórcio – como por exemplo, a regulação das responsabilidades parentais ou o destino da casa que foi morada da família – e permite que os cônjuges – e o tribunal – se concentrem, com evidente vantagem, mais sobre as consequências do divórcio e menos sobre as suas causas.

Assim, constitui desde logo causa objectiva de divórcio, i.e., uma circunstância constitutiva do direito potestativa extintivo de divórcio, a separação de facto dos cônjuges, que se reconduz a uma situação de cessação da convivência ou comunhão conjugal, não reconhecida nem determinada judicialmente.

Para que a separação de facto possa constituir uma causa de divórcio, exige-se a falta da comunhão de vida durante um ano consecutivo, o que significa que, decorrido esse prazo a lei considera que a ruptura da vida conjugal alcançou a irreversibilidade necessária para fundamentar o divórcio (art.º 1781.º, a), do Código Civil).

A inexistência de comunhão de vida só constitui causa objectiva de divórcio se os cônjuges, ou, pelo menos um deles, manifestarem a intenção de não restabelecer a vida em comum (art.º 1782.º, n.º 1, 2.ª parte). Esta causa de divórcio pressupõe, pois, a conjugação de um elemento objectivo – a inexistência de comunhão entre os cônjuges durante certo e consecutivo lapso de tempo – com um elemento subjectivo: o propósito manifestado por um ou ambos os cônjuges de não restabelecer essa comunhão[2]. No tocante ao autor, aquele propósito extrai-se, indubitavelmente, do pedido de divórcio:  este pedido constitui res ipsa loquitur de que realmente, aquele cônjuge não tem a vontade de reatar o relacionamento conjugal[3].

Note-se que, apesar de os cônjuges habitarem numa mesma casa, pode também não haver qualquer comunhão de vida entre ambos, se se tiverem rompido todas as relações características da convivência conjugal, o que sucede, indubitavelmente, v.g., quando cada um dos cônjuges cria em partes separadas da mesma casa o seu próprio ambiente de intimidade e privacidade, que é imposto por cada um dos cônjuges ao outro, e é respeitado por ambos.

Esta causa típica de divórcio impõe um regime: em face do dado objectivo representado pela separação conjugal de facto com duração não inferior a um ano – conjugado com a falta de propósito de, pelo menos um dos cônjuges, de não retomar a comunhão de vida suposta pelo casamento – o decretamento do divórcio é uma inevitabilidade, dado que não se reconhece ao juiz a mínima liberdade para ponderar se, naquelas condições, se se verifica ou não uma ruptura irreversível da relação de conjugalidade. A lei impõe-lhe inexoravelmente o reconhecimento dessa ruptura.

               É controverso se o prazo de um ano da cessação da comunhão de vida dos cônjuges deve estar ou não completamente decorrido à data da propositura da acção ou se é suficiente, para relevar como causa de divórcio, que mostre completado no momento da decisão[4]. Neste momento não se impõe, a opção por uma das opiniões alternativas em torno das quais gravita aquela controvérsia, sendo suficiente, para a economia do recurso, assinalar que qualquer delas constitui um enquadramento jurídico possível do problema.

               Todavia, a ruptura da vida conjugal, como fundamento do divórcio não é relevante apenas quando se mostre constituída uma causa tipificada na lei, podendo ainda ser demonstrada através da prova de quaisquer outros factos (art.º 1781.º, d), do Código Civil). Ponto é que esses outros factos mostrem, sem equívoco, que os laços conjugais se romperam – e se romperam irrefragável e definitivamente.

Por força desta cláusula geral, a actividade decisória do juiz é claramente flexibilizada[5], sendo-lhe, assim, reconhecida a liberdade indispensável para valorar quando é que certos factos – não expressamente previstos – mostram a ruptura irrecuperável e definitiva do casamento. Maneira que certos factos, desde que dotados de gravidade, são suficientes para inculcar a ruptura dos laços conjugais, sem que seja necessário que tenham de ser repetidos ou que se tenham de prolongar no tempo, portanto, relativamente aos quais não será exigível ao cônjuge que tenha de se separar e de esperar um ano, para tornar indiscutível o rompimento do matrimónio. Do mesmo modo, outros factos – ainda que menos graves, mas reiterados – podem convencer da ruptura da vida conjugal comum, desde que, por exemplo, forneçam uma prova tão clara, concludente ou peremptória da fractura do vínculo matrimonial como a que resulta da separação de facto por um ano[6].

               Servem estas considerações para mostrar que, por exemplo, uma cessação da convivência conjugal de duração inferior a um ano – seja qual for o momento do completamente deste prazo que se deva ter por relevante - e que, portanto, não integre a causa típica de divórcio correspondente, pode, todavia, fundamentar a conclusão de que a ruptura dos laços matrimoniais é, ainda assim, irremissível e, consequentemente, constituir causa de dissolução do casamento. Dito doutro modo: o grau de irreversibilidade da ruptura da vida conjugal não se verifica – ou pode não se verificar - apenas no caso de ter decorrido o prazo de um ano; uma separação de facto de duração inferior pode, igualmente, demostrar aquele grau de irreversibilidade, necessário para fundamentar o divórcio[7]. O que, em última extremidade, releva é, sempre, a existência de uma ruptura irrecuperável do casamento que o divórcio deve, pura e simplesmente, constatar.

               E aqui há, sem dúvida, que considerar admissível, como momento relevante para a aferição do tempo ou da duração do facto da separação conjugal, o da decisão, já que o decurso do prazo de um ano não desempenha, neste caso, a função de facto constitutivo do direito ao divórcio – mas de elemento de prova da cessação irreversível da comunhão conjugal, podendo – devendo - os factos correspondentes, dada a sua natureza de factos meramente instrumentais, que resultam da instrução da causa, serem considerados pelo juiz  (art.º 5.º, n.º 2, a), do CPC)[8].

               A reconciliação resolve-se no acordo dos cônjuges, através do qual decidem restabelecer a vida em comum, embora não se lhe deva atribuir natureza negocial, porque os seus efeitos se produzem independentemente do propósito dos cônjuges quanto à continuação ou restabelecimento da convivência conjugal.

               A reconciliação é, pois, o acordo pelo qual os cônjuges decidem retomar a convivência conjugal. Mas como a experiência demonstra, os cônjuges raramente aceitam reatar incondicionalmente a vida conjugal, após uma situação de crise matrimonial, preferindo testar o estado das suas relações antes de acordarem numa reconciliação definitiva. Se os cônjuges tentaram a reconciliação, mas não a alcançaram, essa tentativa não deve produzir um efeito extintivo da causa de divórcio considerada, que pode continuar a ser invocada qua tale.

               Deve, assim, entender-se que o decurso do prazo de separação dos cônjuges não é interrompido por uma coabitação temporária, durante uma tentativa de reconciliação. Se essa coabitação interrompesse o prazo necessário para a separação de facto se constituir como fundamento do divórcio, poderia suceder que os cônjuges, temendo perder o prazo já decorrido, receassem encetar qualquer tentativa de reaproximação ou reconciliação. Dado que a lei não deve impedir – mas pelo contrário, deve estimular – a reconciliação dos cônjuges, o prazo da separação só é interrompido por uma efectiva reconciliação dos cônjuges – e pelo restabelecimento da convivência conjugal. Daqui vem que ao exigir que a separação de facto perdure, por um ano consecutivo, a lei exclui que um prazo de separação anterior a uma reconciliação se possa somar ao novo prazo de separação, decorrido depois dessa reconciliação[9] (art.º 1781.º, a), do Código Civil).

               Como a reconciliação dos cônjuges, em atenção à importância social e familiar do casamento, deve ser incentivada, uma tentativa não conseguida de reconciliação não interrompe o decurso do prazo da separação dos cônjuges nem deve obstar a que qualquer deles possa continuar a invocar a separação de facto como causa de divórcio.

               3.3. Poderes de controlo da decisão da matéria de facto desta Relação.

               Independentemente da reapreciação dos actos de prova realizados na 1.ª instância – e mesmo da renovação dessas provas ou da produção, na instância de recurso, de novas provas – a Relação pode censurar o erro do Tribunal 1.ª instância na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa sempre que, por exemplo, aquele Tribunal tenha julgado não carecido de prova um facto controvertido por, erroneamente, o considerar confessado ou admitido por acordo (art.º 661.º, n.º 1, do CPC).

               Neste caso, o exercício pela Relação das suas atribuições de controlo da decisão da matéria de facto do Tribunal de 1.ª instância não está na dependência da reponderação das provas nessa instância, o que se explica por ser o simples resultado da aplicação de regras injuntivas de direito probatório material ou de regras processuais de inadmissibilidade de certo meio de prova, que constitui matéria de direito (art.º 607.º, n.º 4, ex-vi art.º 663.º, n.º 2, do CPC). Do que decorre esta consequência: a actuação pela Relação, no caso apontado, não tem sequer de ser integrado por um pedido da parte.

               O erro em matéria de provas pode, desde logo, decorrer de um erro sobre o objecto da prova, designadamente da não inclusão de um facto naquele objecto da prova, portanto, da consideração de que esse facto não necessita de prova porque, por exemplo, foi admitido por acordo ou já se mostra provado por confissão da parte. Assim, se o decisor de 1.ª instância considerar que um facto se mostra admitido por acordo ou confessado – e, portanto, provado e como tal desnecessitado de prova – e se aquela admissão ou esta confissão não forem admissíveis, este erro resolve-se num error in iudicando por erro sobre a apreciação da prova.

               Neste caso, concluindo-se que o facto ou factos não devem considerar-se provados, em razão da inadmissibilidade da sua admissão por acordo ou da sua confissão e, portanto, que o facto carece de prova e, consequentemente, que a decisão da matéria de facto é deficiente e que essa deficiência não pode ser ultrapassada pelos elementos constantes do processo – v.g. porque não foram produzidas sobre o facto outras provas, designadamente as propostas pelas partes, embora possam vir a sê-lo -  a Relação deve actuar os seus poderes de cassação ou de anulação da decisão da matéria de facto, e devolver o processo à 1.ª instância para que proceda ao  julgamento do facto ou factos relevantes controvertidos julgados provados em erro (art.º 662.º, n.º 2, c), do CPC).

               O direito ao divórcio é um direito potestativo extintivo, dado que provoca a dissolução do casamento (art.º 1788.º do Código Civil). Além disso, é um direito típico, pessoal e irrenunciável – e indisponível.

               O direito ao divórcio é um direito típico quanto às condições do seu exercício, às causas da sua constituição, aos efeitos do exercício e às causas da sus extinção, aspectos relativamente aos quais a vontade dos cônjuges é, de todo irrelevante. É também, além de pessoal, um direito irrenunciável - tanto antes como depois do casamento, quer no tocante a um determinado fundamento ou a todas as causas admissíveis – e como tal indisponível, embora esta indisponibilidade não impeça, a admissibilidade da desistência do pedido da acção de divórcio, solução que se explica, por um lado, pelo reconhecimento pelo cônjuge da falta de fundamento do pedido e, por outro, pela ideia de  favorecimento da manutenção do casamento, dada a sua relevância social e familiar (art.º 289.º n.º 2, do CPC).

               E sendo o direito ao divórcio um direito indisponível segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que é inadmissível, para a prova dos factos que integram as causas constitutivas desse direito, tanto a confissão como o acordo, expresso ou tácito, das partes (art.ºs 352.º e 354.º, b), do Código Civil, e 574.º. n.º 2, do CPC). Efectivamente, a admissão por acordo – que será tácita quando resulte da falta de impugnação – não se verifica se não for admissível confissão sobre os factos, o que sucede, como se apontou, quando a prova recaia sobre relativos a direito indisponível, como é o direito potestativo extintivo de divórcio[10].

               Este viaticum habilita, com suficiência, à decisão da questão concreta controversa objecto do recurso.

               3.4. Concretização

               A primeira condição da relevância da separação conjugal de facto – seja qual for a sua duração – enquanto causa puramente objectiva do divórcio é, evidentemente, a prova dos factos que a integram. O mesmo sucede, também, com a litigância de má fé: para que se conclua que a parte actuou no processo em violação do princípio da boa fé é também axiomático que se mostrem adquiridos para a causa os factos que demonstrem a infracção do dever de actuação de boa fé, designadamente do dever de verdade -  e da correlativa proibição da mentira (art.ºs 8.º, 542.º e 543.º do CPC).

               No caso, a decisão impugnada, como dela expressamente resulta, utilizou como prova dos factos relativos à causa objectiva de divórcio invocada como causa de pedir pela apelante e à ofensa, por esta, do dever de actuar de boa fé, a confissão da apelante e o acordo das partes. Já se adquiriu, porém, à certeza, que por força do carácter indisponível do direito potestativo extintivo de divórcio, qualquer daquelas provas se deve ter, para a demonstração dos factos integrantes daquela causa de divórcio – e mesmo de qualquer outra - por inadmissíveis. Nestas condições é patente o error in iudicando, por erro em matéria de provas, em que lavrou a decisão impugnada.

               Dado que o erro radica na inadmissibilidade dos meios de prova utilizados para ter os factos integradores da causa objectiva de divórcio alegada como provados, a sua correcção implica, logicamente, decisão de sentido inverso, consequência de que decorre – ao contrário do que sustenta a apelante – que os únicos factos que, no momento processual em que foi proferida a decisão impugnada, se devem ter por demonstrados são os que constam de documento autêntico: o casamento e a filiação e a caderneta predial (artºs 362.º, 363.º, n.ºs 1 e 2, e 369.º do Código Civil). E como esses factos são patentemente insuficientes para o julgamento, quer do pedido material de divórcio, quer da violação pela apelante do princípio da boa fé, é meramente consequencial a deficiência da matéria de facto para se julgar os vários objectos, substantivos e processuais da causa.

               Nestas condições, como a apontada deficiência é insusceptível de suprimento por esta Relação, a única saída é a cassação ou a anulação da decisão impugnada e a devolução do processo à 1.ª instância para, com observância do processo comum, se proceda à selecção dos temas da prova, de modo a que a questão de facto, i.e., a dúvida sobre os factos controvertidos, seja resolvida, mediante uma actividade de carácter instrutório e, depois, através da produção de prova na audiência final  (art.ºs 410.º, 596.º, n.º 1 e 604.º, n.º 3, a) a d), ex-vi art.º 932.º, do CPC).

               Esta decisão prejudica, evidentemente, o conhecimento dos demais objectos do recurso (art.º 608.º, n.º 2, do CPC, ex-vi art.º 663º, n.º 2, do CPC).

               Mais algumas palavras – a título de obiter dicta – para dizer que o valor da indemnização e da multa processual encontrado pela sentença apelada para reprimir a litigância de má fé da autora, mais do que pouco consciencioso é mesmo arbitrário.

               Depois de assentar que a apelante actuou com dolo, a sentença impugnada observou que no que toca à situação económica da autora nada se apurou e – relativamente à indemnização – que não tendo sido alegados – pelo apelado – prejuízos não poderão ser objecto de reparação, que apenas se provou a deslocação de ... a ... para a tentativa de conciliação, fixou, ao abrigo do princípio da equidade, a indemnização de € 75,00, a título de reembolso das despesas sofridas em consequência da litigância.

O processo civil encontra-se submetido ao princípio da boa fé, do qual decorre a proibição da litigância de má fé (art.º 8.º do CPC). A litigância de má fé pressupõe que a parte actua com dolo ou negligência grave, em violação dos deveres de lealdade e de probidade, do dever de honeste procedere.

A parte actua de má fé quando, de modo doloso ou gravemente negligente, altera a verdade dos factos – violando, assim, o dever de verdade – ou omite factos relevantes para a decisão da causa – infringindo, deste modo, o dever de completude – deduz pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não pode ignorar, pratica omissão grave do dever de cooperação ou abusa de faculdades processuais (art.º 542.º, n.º 2, a) a d), do CPC).

               A infracção do dever de honeste procedere pode, pois, resultar de uma má fé subjectiva, se é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objectiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigível.

               Sobre as partes recai um dever de verdade, não como mero dever moral - mas como verdadeiro dever jurídico. Insiste-se neste ponto, uma vez que a observação da realidade judiciária, mostra que as partes parecem, às vezes, comportar-se como se lhes fosse inexigível o cumprimento do dever de verdade ou mesmo como se lhes assistisse um direito de mentir, que servisse como causa justificativa da falsidade. O dever de boa de boa fé implica, irrecusavelmente, a proibição da mentira.

               Note-se, no entanto, quanto ao dever de verdade, que ele apenas implica a obrigação para a parte de apresentar os factos tal como, em sua opinião, eles ocorreram, de modo que, para aferir a boa fé da parte o que releva é, portanto, uma verdade subjectiva, dado que só litiga de má fé a parte que alega o que não conhece ou que omite o que conhece.

               A litigância de má fé apresenta especificidades quer quanto à conduta sancionada, quer quanto à culpa e quanto às consequências.

               A má fé processual tanto pode ser substancial como instrumental. É substancial se a parte infringir o dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou alterar a verdade dos factos ou omitir factos relevantes para a decisão da causa (art.º 542.º, n.º 2, a) e b), do CPC); é instrumental nos casos restantes (artº 542 nºs 1 e 2 ,c) e d), do CPC ).

               O dano não é pressuposto da má fé: castiga-se a litigância de má fé independentemente do resultado; apenas releva o próprio comportamento mesmo que, pelo prisma do prevaricador, ele não tenha conduzido a nada[11].

Só se penaliza a conduta cometida com dolo ou com negligência grave[12]; a negligência comum não releva. Além disso, o alargamento da relevância da negligência grave ou grosseira restringe-se às infracções substanciais (art.º 542.º,  n.º 2, d), do CPC); nas processuais apenas releva o dolo[13].  

               A litigância de má fé opera oficiosamente; apenas a indemnização – que está sujeita a regras mais restritivas de que o princípio geral do direito das obrigações – exige um pedido da parte[14] (art.ºs 542.º, n.º 1, e 543.º do CPC, e 562.º e ss. do CC)[15]. A multa processual devida pela litigância de má-fé é fixada entre 2 e 100 UC (art.º 27.º, n.º 3, do RC Processuais).

A indemnização deve ser fixada na própria acção, não podendo a sua liquidação se relegada para momento ulterior e pode ser simples ou agravada (art.º 453.º, n.º 1 b), 2ª parte, in fine, do CPC). É simples quando consiste apenas no reembolso das despesas a que a má fé obrigou a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos (art.º 453.º, n.º 1 a) do CPC); é agravada quando consiste no reembolso daquelas despesas e na satisfação dos demais prejuízos sofridos pela parte contrária (artº 453.º. n.º 1, b) do CPC). A opção pela indemnização limitada ou plena cabe ao tribunal que deve, na escolha, ter em conta, por exemplo, a intensidade do dolo do litigante de má fé (art.º 453.º n.º 1, b), 2ª parte, do CPC).

A situação económica do litigante de má fé deve ser considerada na determinação do valor da multa, mas nenhuma influência deve exercer sobre a questão da indemnização: quando a esta releva apenas a conduta do litigante. É claro, todavia, que o valor da multa deve ocorrer sob o signo estrito do princípio estrito da proibição de excesso, na sua composição tripartida de exigência de adequação, necessidade e de proporcionalidade ou de justa medida[16].

No caso, no valor da multa fixado para sancionar a litigância de má fé não foi considerado  um parâmetro particularmente relevante para a sua determinação – a situação económica da apelante - por a este propósito nada se ter apurado; relativamente à indemnização, depois de se declarar que não foram alegados prejuízos, pelo que não há lugar à reparação, afirma-se que como despesa apenas se apurou a deslocação de ... a ..., e fixa-se, invocando a equidade, em € 75,00 a indemnização para o reembolso das despesas sofridas com a litigância de má fé. Abstraindo da patente falta de coerência da argumentação, a verdade é que o processo não fornecia todos indispensáveis elementos para uma fixação conscienciosa tanto do valor da multa como da indemnização – nem se procurou suprir essa falta através, v.g., da audição das partes sobre o ponto, designadamente sobre a situação económico-financeira da autora ou da despesa com a deslocação que se julgou provada. O valor fixado da indemnização fixado sentença impugnada não resulta de um juízo valorativo de equidade, antes exprime um julgamento inteiramente arbitrário.

É importante que a litigância de má fé seja reprimida de modo enérgico. Mas não o é menos que o seja de forma justa, o que exige a aquisição de todos os factos que permitam uma decisão conscienciosa sobre as suas consequências jurídicas.

               Todas as contas feitas, conclui-se, em síntese apertada, que:

               - Dado que a reconciliação dos cônjuges, em atenção à importância social e familiar do casamento, deve ser incentivada, uma tentativa não conseguida de reconciliação não interrompe o decurso do prazo da separação dos cônjuges nem deve obstar a que qualquer deles possa continuar a invocar a separação de facto como causa de divórcio;

               - O carácter indisponível do direito potestativo extintivo de divórcio torna inadmissível a prova dos factos integrantes da respectiva causa constitutiva por confissão ou acordo das partes;

               - A utilização, para prova dos factos integradores da causa constitutiva do divórcio, da confissão ou do acordo das partes, resolve-se num erro na apreciação da prova.

               - Se em consequência desse erro, a matéria de facto for deficiente e não por possível à Relação proceder ao suprimento da deficiência, por não dispor dos indispensáveis elementos de prova, a Relação deve actuar os seus poderes de cassação e, consequentemente, anular a decisão impugnada e reenviar o processo à 1.ª instância para que proceda ao julgamento dos factos controvertidos relevantes.

               O recurso deve, nestes termos, proceder. As respectivas custas serão suportadas pela parte sucumbente: o apelado (art.º 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

               4. Decisão.

               Pelos fundamentos expostos: 

a) Anula-se a decisão da matéria de facto contida na sentença impugnada e, consequentemente, revoga-se aquela sentença e, consequentemente, determina-se a devolução do processo à 1.ª instância para que, com observância dos termos do processo comum, proceda, designadamente, à selecção dos temas da prova;

               b) Declara-se prejudicado o conhecimento dos demais objectos do recurso.

               Custas pelo apelado.

                                                                                                                                                    2022.10.25



[1] Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2021, pág. 276,
[2] A dissolução do vínculo conjugal, com base em causas puramente objectivas de divórcio, assentes na ruptura da vida em comum, não é contrária ao princípio regulativo primário da ordem jurídica, fundamento e pressuposto das respectivas normas, representado pela dignidade da pessoa humana, consagrado no art.º 1.º da Constituição da República. A salvaguarda da dignidade do cônjuge, não exige que o outro fique para sempre - e enquanto aquele quiser - amarrado a um casamento já desfeito na ordem dos factos. Cfr. Ac. do TC n.º 105/90, de 29.3.90, BMJ n.º 395, pág. 188.
[3] Ac. da RP 24.01.2022 (7033/0T8VNG.P1).
[4] Em sentido afirmativo, v.g., o Ac. da RC de 18.01.2022 (373/20.9T8ACB.C1), do STJ de 23.02.2021 (3069/19.0T8VNG.P1.S1),  e da RE de 27.02.20 (1055/19.0T8STR.E1.); diferentemente, v.g., Ac. da RL de 21.02.2019 (3/18.9T8SXL.L1.2), da RE de 07.12.17 (1042/17.2T8FAR.E1.), e Miguel Teixeira de Sousa, blogippc.blogspot.com, jurisprudência 2022(29)
[5] Rita Lobo Xavier, Recentes Alterações ao Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, Almedina, Coimbra, pág. 25.
[6] Guilherme de Oliveira, Manual, cit., pág. 280.
[7] Ac. do STJ de 03.03.21 ( 11661/18.4T8PRT.P1-A.S1).
[8] Ac. do STJ de 03.10.2013 (2610/10.9TMPRT.P1.S1).
[9] Miguel Teixeira de Sousa, O Regime Jurídico do Divórcio, Almedina, Coimbra, 1991, págs. 84 e 85.
[10] Acs. da RC de 13.06.2006 (1461/06), da RL 16.01.2019 (41/18. 1T8CSC-B.L1.6) e de 31.05.2011 (2030/09.8TBCLD-B.L1-1)
[11] Ac. da RE de 21.3.00, BMJ nº 495, pág. 381.
[12] Que é entendida como a imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um. Cfr. v.g., o Ac. do STJ de 06.12.01, www.dgsi.pt., portanto, em termos muito restritivos.
[13] Ac. da RL de 04.05.00, BMJ n.º 497, pág. 433. Comparativamente com o regime anterior – art.ºs 456.º, nº 3 e 457.º n.º 1, b) do CPC de 1961 – e à corrente maioritária da jurisprudência – v.g. Acs. da RP de 26.02.90, BMJ n.º 394, pág. 528, do STJ de 16.4.91, ActJ, 18 (1992), pág. 17, e da RP de 14.11.94, CJ, 94, V, pág. 264 – alargou-se justificadamente o âmbito da má fé processual aos casos de negligência grave. Basta assim, uma falta grave de diligência para justificar a má fé da parte.
[14] É, porém, duvidoso, se esse pedido só pode ser feito no processo em que a litigância de má fé tem lugar. Neste sentido, Acs. da RC de 22.04.94 e 27.5.97, BMJ n.ºs 434, pág. 701, e 467, pág. 637, respectivamente; contra, porém, sustentando a possibilidade de a parte de boa fé poder intentar acção autónoma - onde é possível apreciar, ou não, a existência de responsabilidade civil da parte deduziu pretensão infundada ou litigou incorrectamente, causando com isso danos – cujo objecto seja a apreciação da má fé da contraparte em processo com decisão passada em julgado, Cfr. Pedro de Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina, Coimbra, 2006, págs. 65 e 66 e Ac. do STJ de 26.02.35, RLJ, Ano 67, pág. 360.
[15] Por tudo isto, a má fé surge, assim, como um instituto processual, de feição pública e que visa o imediato policiamento do processo. Não se trata de uma manifestação de responsabilidade civil que pretenda suprimir danos ilícita e culposamente causados a outrem, através de actuações processuais. Esta razão explica a parca aplicação jurisdicional do instituto. Preocupados com uma pax processual imediata e confrontados com a estrita configuração legal do instituto, os tribunais só em casos absolutamente gritantes aceitam sancionar a litigância de má fé. Cfr. António Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa in Agendo, 2006, pág. 29.
[16] Este princípio da proporcionalidade possui um claro fundamento constitucional. A faculdade impor uma multa processual, estabelecida no art.º 542.º, n.º 1, do CPC, às partes representa, evidentemente, uma agressão a um património alheio e, portanto, ao direito de propriedade constitucionalmente consagrado, pelo que uma interpretação conforme à constituição daquele preceito, impõe o respeito da proporcionalidade consagrada no artº 18.º, n.º 2, da CRP quanto às restrições aos direitos, liberdades e garantias (art.º 62.º, n.º 1 da CRP). Além disso, a actividade dos tribunais – particularmente àquela que possui carácter sancionatório – é aplicável, pelo menos por analogia, o princípio da proporcionalidade imposto pelo art.º 266.º, n.º 2, da CRP aos órgãos e agentes da administração.