ACESSO AOS AUTOS
DESPACHO
FUNDAMENTOS
RECURSO
Sumário

- É irrecorrível para o Tribunal da Relação o despacho do juiz que nega, em fase de inquérito, o acesso aos autos a um interveniente.
- Não fica limitado o direito de um recorrente a impugnar um despacho que declara a excepcional complexidade pelo facto de não lhe ter sido dado possibilidade de aceder a todo o processo em fase de inquérito;
- Mister é que lhe tenha sido dado conhecimento do porquê do pedido de declaração e dos seus fundamentos para que possam ser contrapostos.
(elaborado pelo relator)

Texto Integral

Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
 
I - Relatório
Inconformados com as decisões proferidas no âmbito do processo principal de que este recurso é apenso e as quais lhe negaram acesso a elementos dos autos e declaram o processo de especial complexidade apresentou-se a recorrer perante este Tribunal da Relação os arguidos A______ e M______ , ambos com os sinais nos autos, formulando, após motivações, as seguintes conclusões:
“1. Notificados para se pronunciarem sobre o requerimento do MP, com vista à declaração da excepcional complexidade, vieram os recorrentes requerer o acesso aos elementos concretos em que o MP baseia tal pretensão;
2. Em consequência, o despacho datado de 11-08-2022, que entendeu que o acesso a tais elementos se afigurava desnecessário, e bem assim, o despacho datado de 05-09-2022, declarou a excepcional complexidade dos autos,
3. No entanto, os arguidos consideram que não podem exercer o contraditório relativamente à especial complexidade dos autos, por desconhecerem o estado dos mesmos.
4. Qualquer tentativa de argumentação por parte dos arguidos, em sentido contrário ao da promoção do MP, seria aduzida completamente às cegas. 
5. Para aduzir a argumentação que aduz, o MP teve acesso a todos os elementos dos autos, em contrapartida, os arguidos, têm somente acesso à promoção do MP. Ora, isto não é igualdade de armas.
6. Os arguidos desconhecem, designadamente: quais as diligências já efectuadas; quais as diligências em curso; quais as diligências já ordenadas; se houve, ou não, insistências para a realização em tempo útil das mesmas; se as diligências pendentes, estão assim de facto, por falta de meios disponibilizados às polícias e ao MP; se as diligências dos autos são as mais adequadas para o cumprimento do prazo máximo do inquérito
7. Não basta dar aos arguidos a possibilidade do contraditório, pois a garantia do contraditório de nada vale se não for acompanhada de acesso a informação suficiente acerca da questão pela qual a defesa se pode pronunciar, e os mesmos devem ser ouvidos.
8. Na medida em que o art.º 215º nº 4 do CPP estabelece a audição dos arguidos, devem estes conhecer alguns elementos, desde que através dos mesmos não se façam perigar as finalidades do segredo de justiça,
9. É necessário analisar o que o legislador pretende com a previsão do art.º 215, nº 4 do CPP, em confronto com o que o instituto do segredo de justiça exige, e mediante proporcional ponderação, serem fornecidos tais elementos ao arguido, que não resultem na irremediável transposição de uma dessas vertentes.
10. O entendimento de que a comunicação dos elementos dos autos, correspondentes aos fundamentos do requerimento da excepcional complexidade do processo, encontrando-se o mesmo em segredo de justiça, não é imposta como meio para garantir o contraditório colide com artigos 20º nº 1 e 4 e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5 da CRP.
11. Em questão análoga à discutida, o TC pronunciou-se decidindo que, independentemente do inquérito se encontrar sujeito ao segredo de justiça, em sede de lº interrogatório judicial, o arguido tem o direito de saber quais os fortes indícios, acedendo aos meios de prova indicados pelo MP.
12. No caso em discussão, é preciso ver que à semelhança do que acontece quando o arguido é sujeito a 1.º interrogatório judicial, também a declaração da especial complexidade dos autos, tem implicância directa com a restrição da liberdade dos arguidos,
13. Ao abrigo do disposto no artigo 215º, nº 3 do CPP, a especial complexidade aumenta os prazos de prisão preventiva, na fase do inquérito, para o dobro do prazo normal!
14. Face a todo o exposto, entendemos que, com vista a exercer plenamente o seu direito ao contraditório, os arguidos necessitam de ter acesso aos elementos, que servem de base à pretensão do MP de declarar a especial complexidade dos presentes autos e que foram detalhadamente mencionados no corpo da peça processual.
15. Não sendo facultado algum destes elementos aos arguidos, deverá, pelo menos, fundamentar-se de que modo a obtenção destes pode colocar em causa as finalidades pretendidas pelo segredo de justiça, não bastando para tal que esse instituto seja chamado à colação! 
16. O segredo de justiça não pode ser um "saco sem fundo" que alberga e protege tudo o que possa, ou não, prejudicar as suas finalidades, em detrimento das garantias de defesa dos arguidos.
Violaram-se as seguintes disposições legais:
* Artigos 20º n.º 1 e 4 e 32.º n.ºs 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
* Artigo 215º, n.º 4 do Código de Processo Penal
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso, fornecendo-se aos arguidos o acesso a todos os concretos elementos em que o Ministério Público baseia a pretensão da declaração da especial complexidade dos autos, a fim dos mesmos poderem exercer o contraditório.”
Ao assim recorrido respondeu o Ministério Público sustentando que:
“1. Os arguidos A___ e M______  vieram interpor recurso quer do despacho que não lhes permitiu o acesso a determinados elementos dos autos na sequência de terem sido notificados da promoção do Ministério Público pedindo a declaração de excepcional complexidade do processo, quer da decisão que declarou esta excepcional complexidade;
2. Contudo, não obstante os recorrentes tenham referido vir recorrer daquelas duas decisões, certo é que no texto da motivação do recurso não são aduzidos quaisquer fundamentos ou argumentos dos quais se extraia as razões da sua discordância com a decisão que declarou a excepcional complexidade do processo; 
3. De igual modo, nas conclusões do recurso tão-pouco foi sumariada qualquer questão relativa a essa decisão;
4. Assim, não havendo qualquer juízo de censura crítica ou indicação, ainda que concisos, dos fundamentos para a discordância dos recorrentes com a decisão que declarou a excepcional complexidade do processo, quer nas alegações, quer nas conclusões, deverá o recurso ser rejeitado, nesta parte, por manifesta ausência de objecto;
5. Por outro lado, de igual modo deverá ser rejeitado o recurso, na parte relativa ao despacho que, secundando a oposição do Ministério Público, não permitiu o acesso do recorrente A___ a determinados elementos dos autos, porquanto tal decisão judicial é irrecorrível, conforme expressamente previsto no artigo 89º, nº 2 do Código de Processo Penal;
6. Os presentes autos estão sujeitos a segredo de justiça, sendo que, nestes casos, o direito de audição prévia dos arguidos, previsto no artigo 215º, nº 4 do Código de Processo Penal, terá de ser conformado pelo interesse superior da investigação, que enforma o regime da excepcional complexidade;
7. Assim, contrariamente ao invocado pelos recorrentes, para contornarem a irrecorribilidade da decisão que lhes vedou o acesso a determinados elementos dos autos, não foi violado o seu direito de audição e ao contraditório, nem foi realizada uma interpretação do artigo 215º, nº 4 do Código de Processo Penal que padece de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa; 
8. O direito do arguido ao contraditório não se encontra, no que à declaração da excepcional complexidade do processo concerne, significativamente afectado pela limitação do acesso aos elementos adquiridos para o processo após a decisão de imposição da medida coactiva de prisão preventiva, uma vez que o que releva para aquela declaração não se prende com os pressupostos desta medida - embora a decisão de reconhecimento da excepcional complexidade nela produza efeitos, ao permitir a elevação do seu prazo -, mas sim com os pressupostos elencados, a título meramente exemplificativo, no n.º 3 do artigo 215.º do Código de Processo Penal;
9. Assim, a recusa do acesso aos elementos peticionados no requerimento do arguido A___  não impedia este, nem os demais, de contestar, fundamentada e esclarecidamente, a pretensão da declaração de excepcional complexidade do processo manifestada pelo Ministério Público, tanto mais que os dados relevantes para tal exercício, resultavam da promoção do Ministério Público, cuja cópia lhes foi entregue, a qual enunciava, sinteticamente, o número de crimes em investigação, a quantidade e qualidade das diligências probatórias já realizadas e, especialmente, as diligências que ainda se encontravam por ultimar e aquelas que importava efectuar;
10. Permitir-se, nesta fase processual, o acesso dos arguidos ao resultado de algumas diligências realizadas, para além de nada acrescentar de relevante à sua posição processual no inquérito, poderia revelar-se fatal para os interesses da investigação e do inquérito e, reflexamente, para a descoberta da verdade material e para a realização da justiça;
11. Acresce que o Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre questão idêntica, no seu Acórdão nº 689/2019, 1.ª Secção, proferido no âmbito do Processo nº 946/2019, na sequência de recurso interposto para o Tribunal Constitucional por causídicos do escritório dos I. Defensores que asseguram a defesa dos arguidos; 
12. Decidindo “Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 215.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, na interpretação de que promovendo o Ministério Público a excepcional complexidade do processo sujeito a segredo de justiça, o arguido não tem direito de aceder aos elementos de prova em que se funda a pretensão do Ministério Público mesmo que o requeira afim de emitir pronúncia
13. Em conformidade, não assiste qualquer razão aos recorrentes quando pugnam que o despacho judicial que lhes vedou o acesso aos autos violou os princípios da igualdade de armas, do contraditório e do direito a um processo equitativo,
Razões pelas quais se entende que os recursos não deverão ser conhecidos, devendo ser rejeitados, quer devido à irrecorribilidade da primeira decisão recorrida, quer devido à manifesta ausência de objecto do recurso na parte atinente à segunda decisão recorrida.
Vossas Excelências, porém, com mais elevado critério farão, como sempre, JUSTIÇA!”
Os autos subiram a este Tribunal e no mesmo o Ministério Público lavrou parecer onde fez constar que “Sufragamos o teor da resposta ao recurso apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância, por concordarmos integralmente com o seu teor. Aditamos, no entanto, o seguinte: a rejeição do recurso, quanto aos dois despachos, deve dar lugar à condenação dos recorrentes ao pagamento de uma quantia entre 3 UC e 10 UC, de acordo com o disposto nos art.ºs 414.º, n.º 2 e 420.º, n.ºs 1, al. b) e 3, do CPP.  Em face do exposto, Somos de parecer que o recurso deve ser rejeitado e os recorrentes condenados em conformidade.”
Os autos foram a vistos é à conferência.
*
II – Do fundamento do recurso, do despacho recorrido e da fundamentação de facto
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que os recorrentes extraem das motivações apresentadas, em que sintetizam as razões do pedido (art.º 412º nº 1 do Código do Processo Penal), que se delimita o objecto dos recursos e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Da leitura da peça recursal depreende-se que as questões a tratar neste recurso são:
- A questão da acessibilidade dos recorrentes ao conteúdo do inquérito na parte em que este conteúdo sustenta a declaração de especial complexidade;
- A questão da falta de fundamentação do decidido (conclusão 15);
- A conformidade constitucional da negação do acesso.
Previamente, contudo, terá de ser conhecida a questão prévia suscitada pelo Ministério Público de admissibilidade dos recursos.
Ante tal façamos, para melhor compreensão, uma resenha do devir processual a fim de compreendermos o que está em causa.
Assim:
1) Por promoção datada de 14 de Julho de 2022, constante de fls. 2616/2623, referiu o Ministério Público que: “Os presentes autos iniciaram-se por reporte à informação policial que dava nota que, em função da similitude do modus operandi de alguns furtos em residência participados às autoridades policiais, existia a forte probabilidade de que um grupo de indivíduos de nacionalidade Albanesa tivesse regressado e/ou permanecesse em Portugal com o fito de concretizar ilícitos criminais, sendo os furtos em residência o principal ilícito praticado.
Na verdade, os furtos participados tinham em comum o facto de terem sido cometidos por equipas compostas por dois a cinco indivíduos, que ocultavam o rosto e mãos com luvas, gorros, golas, bonés e/ou camisolas com capuz, fazendo uso de pés de cabra, marretas, walkie-talkies e auriculares, deslocando-se em viaturas furtadas ou com matrículas falsas ou utilizando viaturas limpas, por norma alugadas por curto período de tempo.
Mais, a nova vaga de furtos caracterizava-se, ainda, por ocorrer entre os meses de Outubro e Março, sendo os ilícitos perpetrados ao fim da tarde, início da noite, a coberto da ausência de luz solar.
Mercê do conhecimento adquirido com as investigações realizadas no passado, percebeu-se que o tipo de fenómeno criminal que aparentava ter ressurgido caracterizava-se por uma actuação sazonal, pela rápida substituição dos elementos do grupo detidos e sujeitos a medidas privativas da liberdade e pela subida do nível de alerta dos novos elementos chamados a ocupar o lugar dos indivíduos detidos, circunstância que dificultou o curso daquelas investigações, retardando e obstaculizando a cabal percepção da actividade delituosa.
Assim, aproveitando-se o conhecimento adquirido com o passado, foi aberta a presente investigação, com o objectivo de identificar cabalmente os contornos da estrutura criminosa responsável pelos furtos participados, mediante a vigilância e constante monitorização quer do fenómeno, quer dos indivíduos de nacionalidade albanesa que tinham sido identificados no passado e que permaneciam em Portugal.
Pese embora a investigação se tenha iniciado em Dezembro de 2020, só a partir de Outubro de 2021 se assistiu ao ressurgir em pleno do fenómeno criminal, sendo em Novembro de 2021 feita a detenção, em flagrante delito, de um primeiro indivíduo de nacionalidade albanesa (cfr. Apenso 10), que acabaria por conduzir a investigação à identificação dos arguidos J_____, M______  e A___, os dois últimos também de nacionalidade albanesa, e ao mapeamento das presenças destes últimos arguidos em Portugal.
Assim, através das consultas aos respectivos movimentos de fronteira, percebeu-se que, pelo menos, desde 2012 o arguido M______ permaneceu em Portugal por curtos períodos intermitentes, nalguns dos quais se alojou em unidades hoteleiras, onde também se encontravam alojados terceiros indivíduos de nacionalidade albanesa.
Também através da monitorização dos movimentos de fronteira do arguido M______  foi possível proceder à sua vigilância, bem como à do arguido A___ , ligando-os, assim, aos ilícitos criminais pelos quais foram fortemente indiciados em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido - um crime de furto, p. e p pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal, três crimes de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º, nº 2, alíneas a), e) e g) do Código Penal, dois crimes de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º e 204º, nº 2, alíneas a), e) e g) do Código Penal, e um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nºs 1, alínea d) e 3 do Código Penal.
Desde aquele interrogatório judicial, ocorrido em 30 de Março de 2022, momento em que foi aplicada a medida de coacção privativa de liberdade aos arguidos M______  e A___, a investigação prosseguiu, no sentido de ouvir os ofendidos identificados até ao momento e de estes procederem ao reconhecimento dos artigos apreendidos quer àqueles dois arguidos, quer ao arguido J_____ .
Encontram-se, também, a decorrer diligências com vista à identificação dos proprietários de alguns objectos encontrados na posse dos arguidos, com vista à sua inquirição e apuramento das exactas circunstâncias que rodearam o desapossamento daqueles, com a consequente e eventual apensação de terceiros processos organizados.
Igualmente no sentido de esclarecer todos os contornos da actividade participada nos autos, está em curso a cabal identificação de todos os indivíduos de nacionalidade albanesa que estiveram em Portugal em períodos coincidentes com os dos arguidos M______  e A___, maxime os indivíduos de nacionalidade albanesa que estiveram alojados nas mesmas unidades hoteleiras que aqueles, bem como a sinalização e correlacionação dos furtos com modus operandi coincidente participados naqueles períodos, actividade esta ainda interligada com a daqueles arguidos privados de liberdade.
De igual modo foi possível relacionar o arguido M______  com a prática de outros crimes de furto em residência ocorridos recentemente nas zonas de Mafra, Alcácer do Sal e Grândola, ligação que será reforçada com a realização da comparação dos vestígios de ADN e lofoscópicos recolhidos nos locais dos factos e/ou dos objectos recuperados utilizados nesses factos, perícias essas só passíveis de execução após concretização da recolha de ADN aos arguidos M______  e A___ , determinada por despacho judicial datado de 14 de Junho último - fls. 2521.
Em curso continua a perícia aos equipamentos telefónicos apreendidos aos arguidos, que, espera-se, permitirá, além do mais, perceber e aprofundar as correlações entre os elementos do grupo em investigação.
Mercê da investigação realizada até ao momento foram já apensados aos autos trinta inquéritos relativos a furtos, em seis dos quais os arguidos M______  e A___  se encontram fortemente indiciados, aguardando-se o resultado da realização de diligências - designadamente os indicados exames lofoscópicos, de ADN e informáticos - só possíveis de realizar após a detenção daqueles arguidos, para os ligar, de modo sustentado, aos factos objecto dos demais inquéritos.
Atente-se que o apuramento de toda a actividade desenvolvida pelos arguidos e suspeitos já referenciados tem sido especialmente dificultada pela volatilidade e complexidade subjectiva da sua actuação, com ramificações a terceiros países, estando em curso, igualmente, a recolha de adicional informação através dos canais de cooperação policial internacional.
Assim, temos que nos presentes autos encontra-se indiciada factualidade susceptível de integrar a prática de crimes de furto qualificado (p. e p. pelo art.º 204º, nº 2, alíneas a), e) e g) do Código Penal), de associação criminosa (p. e p. pelo art.º 299º, nº 2 do Código Penal), de falsificação de documento (p. e p. pelo art.º 256º, nºs I, alínea d) e 3 do Código Penal), de receptação (p. e p. pelo art.º 231º, n.ºs 1 e 4 do Código Penal) e de detenção de arma proibida (p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, alínea c) da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro), estando os arguidos M______  e A___  fortemente indiciados pela prática de crimes de furto qualificado e de falsificação de documento.
Como referido atrás, em 30 de Março de 2022 foi aplicada aos arguidos M______ e A___ a medida de coacção de prisão preventiva.
Compulsados os autos, e conforme decorre do acima referido, as diligências ainda em curso encontram-se longe de estarem terminadas, revestindo-se de morosidade, mercê da complexidade e extensão das mesmas e, também, da sua deslocalização.
E só após a recolha e análise de toda a informação a que atrás se aludiu se poderá compreender em toda a sua dimensão, designadamente a humana e a patrimonial, a actividade dos arguidos e suspeitos, sendo esse resultado igualmente importante para orientar outras diligências futuras, designadamente possíveis futuros esclarecimentos a recolher junto de terceiros países europeus, com a eventual expedição de pedidos de cooperação judiciária internacional.
E se todas estas diligências ainda não se mostram concluídas, tal não se deve a qualquer desleixo da investigação, mas sim à extensão e morosidade das mesmas, decorrente do indicado modus operandi dos arguidos e suspeitos, da deslocalização dos seus actos e do, também, elevado número de ofendidos.
Existe, portanto, como bem resulta de uma breve análise dos autos, neste momento com dez volumes e, pelo menos, trinta apensos, uma efectiva dificuldade em concretizar e ultimar a investigação de forma célere, ocorrendo a necessidade de apurar os factos através de um elevado número de diligências de prova ainda a decorrer, e bem assim a necessidade de realizar outras, dependentes do resultado destas ainda a realizar, com vista a que o Ministério Público possa ficar habilitado a cumprir os objectivos da investigação, de descoberta da verdade material, em ordem à formulação de uma decisão final fundamentada.
A extensão e deslocalização destas diligências, realizadas e a realizar, determina uma maior dilação na decisão final do inquérito, estando presentes no caso as razões subjacentes à norma do art.º 215º, nº3 do Código de Processo Penal - atente-se que o prazo da prisão preventiva dos arguidos M______  e A___  findará em 30 de Setembro de 2022.
Na verdade, como se decidiu no Acórdão do STJ de 26 de Janeiro de 2005, Processo 05P3114, Relator Henriques Gaspar, "... A noção de excepcional complexidade do art.º 215, nº3 do CPP está, em larga medida, referida a espaços de indeterminação, pressupondo uma integração densificada pela análise e ponderação de todos os elementos do respectivo procedimento; a integração da noção exige uma exclusiva ponderação sobre todos os elementos da configuração processual concreta, que se traduz, no essencial, em avaliação prudencial dos factos (...); O Juízo sobre a especial complexidade constitui um juízo de razoabilidade e da justa medida na apreciação das dificuldades do procedimento, tendo em conta nomeadamente, as dificuldades de investigação, o número de intervenientes processuais, a deslocalização de actos, as contigências procedimentais provenientes das intervenções dos sujeitos processuais, ou a intensidade de utilização dos meios...".
Em conformidade, em face dos factos e dos critérios que devem nortear a aplicação do citado nº 3 do art.º 215º, é nosso entendimento que se verifica uma situação de excepcional complexidade do inquérito, sendo que o prolongamento do referido prazo de prisão preventiva não contraria nenhum direito dos arguidos reconhecido em Tratado ou Convenção Internacional ou na própria Constituição da República Portuguesa, porquanto é justificado, na perspectiva da lei, pelas especiais dificuldades que a investigação, num caso concreto, possa encontrar.
Em tais casos, é uma ponderação entre os valores da Justiça prosseguidos pela investigação e os direitos do arguido sujeito à prisão preventiva que justificará um aumento proporcionado dos prazos da prisão preventiva (vd. neste sentido Acórdão do Tribunal Constitucional nº 287/2005).
Acresce, por outro lado, que ainda se verificam e densificam os intensos perigos de continuação da actividade criminosa e de fuga.
Com os fundamentos acima constantes, promove-se seja declarada a excepcional complexidade do inquérito, nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 215º do Código de Processo Penal, e se notifiquem previamente todos os arguidos constituídos até ao momento - (Defensor a fls. 15 e 43 do Apenso 10), A___  (procuração a fls. 2533), M______  (procuração a fls. 2162) e J_____  (procuração a fls. 1997) -, bem como o assistente admitido a fls. 78 (cfr. ainda fls. 34 e 35 do Apenso 7) para, querendo e em dez dias, se pronunciarem sobre o promovido.”
2) Esta promoção foi notificada na íntegra aos arguidos e assistente, sendo que, por requerimento de fls. 2705/2707, o recorrente A___ veio alegar não estar em condições de exercer verdadeiramente o seu direito ao contraditório relativamente à excepcional complexidade promovida pelo Ministério Público, por desconhecer o estado dos autos no que respeita aos argumentos deduzidos pelo Ministério Público. Por tal razão, a fim de exercer o contraditório, veio requerer o acesso a todos os concretos elementos em que o Ministério Público baseou a sua pretensão.
3) O Ministério Público opôs-se a este acesso, sendo, em 11 de Agosto de 2022, proferida pelo Tribunal a quo a primeira decisão recorrida cujo teor, na parte que relava é o seguinte: “(...) Os presentes autos estão em segredo de justiça, Pronunciou-se o M.P. defendendo o indeferimento da pretensão do arguido.
Da leitura da promoção em apreço parecem-nos cristalinos os fundamentos e objectivos do M.P., não podendo deixar de se concordar com o mesmo quando refere a suficiência do alegado para que o arguido se possa pronunciar, exercendo de forma cabal o contraditório quanto a esta questão, entendendo-se desnecessário o acesso do arguido aos elementos que identifica para o efeito, com eventual desvirtualização dos propósitos do segredo de justiça (...)"
4) Decorrido o prazo judicialmente fixado para os arguidos e assistente se pronunciarem sobre o promovido pelo Ministério Público, foi, em 1 de Setembro de 2022, proferida decisão agora sob recurso, declarando a excepcional complexidade do procedimento, por se entender que se verificavam os respectivos pressupostos legais, maxime os inúmeros crimes em investigação, os quais, atenta a profusa e volátil factualidade subjacente, com ramificações a outros países, têm demandado aturado e persistente esforço da investigação, com diligências assentes sobretudo em prova pericial a produzir e, também, dependentes da cooperação de autoridades de jurisdições estrangeiras.
É das decisões referidas em 3) e 4) que os recorrentes se apresentam a recorrer perante este Tribunal.
*
III – Do mérito do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos art.º 368º e 369º ex-vi art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no art.º 410º n.º 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente.
A primeira questão é, pois, a da admissibilidade do recurso.
O Ministério Público sustenta, em sede de resposta, a inadmissibilidade do recurso:
- Quanto ao recurso do despacho que não permitiu o acesso do recorrente A___ a determinados elementos dos autos, porquanto tal decisão judicial é irrecorrível, conforme expressamente previsto no artigo 89º, nº 2 do Código de Processo Penal.
- Quanto ao recurso da decisão que declarou a excepcional complexidade refere que, quer na motivação, quer nas conclusões, não são aduzidos quaisquer fundamentos ou argumentos dos quais se extraia as razões da sua discordância com a decisão que declarou a excepcional complexidade do processo pelo que deverá o recurso ser rejeitado, nesta parte, por manifesta ausência de objecto.
Vamos por partes.
Dispõe o art.º 89º nº 1 e 2 do C.P.P. que “1 - Durante o inquérito, o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil podem, mediante requerimento, consultar o processo ou elementos dele constantes, obter, em formato de papel ou digital, os correspondentes extractos, cópias ou certidões e aceder ou obter cópia das gravações áudio ou audiovisual de todas as declarações prestadas, salvo quando, tratando-se de processo que se encontre em segredo de justiça, o Ministério Público a isso se opuser por considerar, fundamentadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas. 2 - Se o Ministério Público se opuser à consulta ou à obtenção dos elementos previstos no número anterior, o requerimento é presente ao juiz, que decide por despacho irrecorrível.”
Não existem dúvidas que o processo está em fase de inquérito e, como decorre do preceito, em fase de inquérito é o Ministério Público quem, em primeira linha, decide sobre a admissibilidade da consulta dos autos. Em caso de recusa a questão pode ser colocada ao juiz que decide por despacho irrecorrível.
Ora, no caso concreto, tal foi o que aconteceu e o juiz negou a consulta pretendida.
Este despacho é irrecorrível como resulta da Lei e como tal o recurso terá de ser rejeitado.
É verdade que este despacho se vai ligar ao despacho seguinte que é aquele em que é declarada a especial complexidade do processo, o qual, em abstracto, é recorrível. Acontece que este não depende daquele no sentido que não é por causa do não acesso às provas que o recorrente se vê impedido de recorrer do despacho que declarou a especial complexidade.
Quanto muito ver-se-á impedido de recorrer de forma eficaz mas tal impedimento justificaria o recurso da decisão, fosse ela possível.
E não se diga que os direitos do arguido foram negados de forma constitucionalmente inadmissível. O arguido pode exercer o seu direito a ver uma decisão reapreciada. Na verdade, o Ministério Público pronunciou-se e esta decisão foi reapreciada por um juiz.
É bom não esquecer que nem todas as decisões são recorríveis ad infinitum e que, por muito que se diga, na fase de inquérito, não existe uma igualdade de armas. Esta só existe, em pleno, na fase de julgamento.
Assim, é de rejeitar o recurso do despacho de 11.08.2022.
No que tange ao despacho que declarou a especial complexidade não poderemos deixar de concordar com o Ministério Público quando refere que, nem na motivação, nem nas conclusões, o recorrente põe em causa a bondade do despacho pelo que o recurso, nesta parte, carece de objecto.
É verdade – e tal é compreensível – que o recorrente contende que não tendo tido acesso aos autos não pode estruturar uma defesa condigna e, por este motivo, o despacho não deverá subsistir.
Ora, acontece que tal crítica não é ao despacho per se mas sim à negação de acesso aos autos, decisão essa irrecorrível e estabilizada.
Assim sendo, e como referido, é de rejeitar o recurso.
Quanto às demais questões, nomeadamente a de incidência constitucional, mostram-se prejudicadas nesta instância por este Tribunal da Relação não haver conhecido, por inadmissibilidade legal, dos recursos interpostos.
*
IV - Dispositivo
Termos em que, ao abrigo do disposto nos art.ºs 420º nº 1 al. b), 414º nº 2, 89º nº 2 e 420º nº 1 al. a), todos do C.P.P., se rejeitam os recursos de ambas as decisões aqui em causa.
Nos termos do art.º 420º nº 3 do C.P.P. vão cada um dos recorrentes condenados em quantia equivalente a 5 (cinco) U.C..
Notifique.
 
Acórdão elaborado pelo 1.º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pelos Venerandos Juízes Adjuntos.
 
Lisboa e Tribunal da Relação, 9 de Novembro de 2022

Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Alfredo Gameiro Costa
Rosa Vasconcelos