MATÉRIA DE FACTO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
FACTOS TORPES
ARGUIÇÃO
Sumário

I- A arguição de nulidade do despacho que decide a matéria de facto não é o meio adequado para se impugnar a matéria de facto, com vista à alteração dessa decisão.
II- A proibição contida no artº 554º, nº 2, do CPC, visa essencialmente a protecção da parte obrigada à prestação do depoimento, e visando este essencialmente confissão, não poderia impor-lhe (dado o dever de verdade) a confissão de factos criminosos por que está a ser investigada, situação que poderia levar o depoente a negar tais factos.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. B............., com sede na Rua do ......, nº .., Vila do Conde, instaurou acção declarativa, com processo sumário, contra C............ LDA, com sede na Avenida ............, nº ..., Póvoa de Varzim, alegando que no exercício da sua actividade se obrigou a executar uma empreitada de remodelação interior e exterior de um estabelecimento comercial da Ré mediante o preço de € 32.421,86 (correspondente a Esc. 6.500.000$00), acrescido do IVA à taxa legal, então de 17%.
Mais alega que, no decorrer da obra, o gerente da ré solicitou à autora executasse determinados trabalhos extra, não acordados nem orçamentados pela A., cujo preço ascendeu a € 14.199,24, incluído IVA de 17%.
A obra acordada entre as partes, ficou concluída em Julho de 2000 e a ré apenas pagou, por conta do preço global, o montante de € 42.894,13, estando em dívida € 9.238,70.
Termina a pedir a condenação da ré a pagar à A. o montante de € 12.810,66, incluindo juros vencidos, acrescida dos juros vincendos sobre € 9.238,70, desde 20/10/2003 até integral pagamento.

A Ré contestou, aceitando ter celebrado o contrato de empreitada referente a obras de remodelação, não sendo o que deu origem a essas obras o mencionado pela autora, sendo esse contrato substituído por outro que englobou as obras previstas no contrato inicial e as que a autora agora vem apresentar como extras e por um valor superior.
A autora executou todas as obras contratadas com a ré, tendo esta pago o preço integral, de 14 566 500$00, nada devendo àquela.
Conclui a pedir a sua absolvição do pedido.

A autora respondeu mantendo a sua posição fixada na petição.
Acrescenta que o contrato invocado pela ré nada tem a ver com as obras a que se reporta o pedido, antes respeita a outro contrato efectuado a pedido da mesma à A. e para efeitos e no âmbito de um projecto para o IAPMEI.
Conclui como na petição, a que adita o pedido da condenação da ré como litigante de má fé, em multa e indemnização à autora não inferior a € 1 500,00.

Proferido despacho saneador e organizada a base instrutória, foi realizada a audiência de discussão e julgamento, com oportuna decisão sobre a matéria de facto.

II. Posteriormente veio a ré arguir a “nulidade das respostas dadas” a várias questões da base instrutória, alegando resultarem dos depoimentos sobre factos “criminosos ou torpes” do representante da autora e testemunha D........... .
Foi indeferido o requerido julgando-se improcedente a arguida nulidade.
Deste despacho agravou a ré.
Seguidamente foi proferida sentença que, julgando a acção (parcialmente) procedente, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 9.238,69, com juros de mora, à taxa legal, desde 14/06/02 até integral pagamento.
Mais condenou a ré, como litigante de má fé, no pagamento da multa de € 200 e indemnização a favor da autora, em montante fixar posteriormente.
Desta sentença, interpôs a ré recurso de apelação, assim admitido.

III. Em ambos os recursos interpostos e admitidos, a recorrente alegou.
A) Quanto ao recurso de agravo, concluiu:
“1- Versa o presente Agravo o douto despacho de fls …, que julgou improcedente a arguida nulidade das respostas dadas aos Quesitos 3º, 4º, 5º, 6º, 7, 8º, 9º, 13º e 14º da base instrutória;
2- Como resulta expressamente da motivação das respostas aos Quesitos, a Exmª Senhora Juíza “a quo”, baseou-se, essencialmente, no depoimento de parte do legal representante da A., e no depoimento de um ex-gerente da mesma;
ORA,
3- Os factos constantes dos citados Quesitos, indiciam a prática de um crime de natureza fiscal e de falsificação de documentos, praticados pela A. em seu próprio benefício;
4- Nos termos do art. 554 nº 2 do C.P.C., não são admissíveis os depoimentos de parte sobre factos criminosos ou torpes, de que o depoente seja arguido ou possa vir a ser arguido;
5- Pelo que, violando a Lei, as respostas aos Quesitos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 13º, 14º da base instrutória são nulas, por força do art. 294º do C.C.;
6- Além de que, o depoimento de parte visa, quando requerido pela parte contrária, o reconhecimento de factos desfavoráveis ao depoente, nos termos das disposições combinadas dos arts 552 e sgs do C.P.C. e 352 do C.C.;
7- E, os factos constantes dos citados Quesitos, beneficiam, unicamente, a A.;
8- O douto despacho recorrido, violou, entre outros, os arts. 552 e sgs do C.P.C., e os arts 342 e 352 do C.C.;
9- Nestes termos, deve o douto despacho recorrido ser revogado, substituindo-se o mesmo por douto Acórdão que declare a arguida nulidade, julgando não provados os Quesitos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 13º e 14º da base instrutória, por manifesta falta de prova.

Termos em que, com o douto suprimento, requer a Vªs Exªs se dignem admitir o presente Agravo, e, em consequência, revoguem o douto despacho recorrido, proferindo douto acórdão que declare a nulidade arguida, com todas as consequências legais.
Assim decidindo, farão Vªs Exªs, aliás, como sempre
JUSTIÇA.”

B) Quanto ao recurso de apelação, concluiu:
1- Quer a decisão sobre a matéria de facto, quer a sentença recorrida, violaram os critérios de valoração d aprova;
EFECTIVAMENTE,
2- A Sra Juíza “a quo” deu como válidos”escritos” apócrifos, sem qualquer identificação e sem qualquer assinatura da A. ou da Ré;
3- E rejeitou o valor probatório resultante dos “Documentos” emitidos pela A. com a sua identificação, a identificação da Ré, relativos a facturas e recibos comprovativos da facturação e valor das obras executadas pela A. para a Ré e pagos por esta, no valor de 14 566 500$00;
4- Tal como rejeitou a prova resultante dos documentos, cheques de pagamento que a Ré preencheu, assinou e entregou á A. e que esta recebeu como resulta provado pelos recibos que emitiu;
5- Das facturas emitidas pela A., consta a identificação de novos orçamentos que a A. elaborou para a Ré, em substituição do orçamento inicial que serviu de base ao contrato inicialmente previsto;
6- Mas que foi dado sem efeito e substituído por um novo contrato verbal com base nos novos orçamentos identificados naquelas facturas, face á substancial alteração das obras inicialmente previstas;
7- Tudo por na obra inicial se ter verificado que todo o interior teria de ser demolido, como foi;
8- A factura junta na p.i pela A. relativa à “E............., Lda”, é uma factura “proforma”, que não corresponde a qualquer fornecimento/venda ou prestação de serviços e a sua falsidade resulta provada do documento factura daquela firma passada à A. e junta na audiência de julgamento;
9- Os “escritos” que a Sra Juíza “a quo” deu como válidos foram impugnados, e arguida a sua falsidade, pelo que nunca poderiam ter sido qualificados como “documentos” para efeitos probatórios;
10- Muito menos com base no depoimento de parte relativo a factos de natureza criminal resultantes das declarações prestadas em audiência de julgamento do legal representante da A. ou do seu ex-legal representante, que depôs como testemunha.
11- A confirmação, que pelo legal representante da A. e da testemunha do ex-legal representante, da autenticidade das facturas, recibos e das respectivas assinaturas, bem como do recebimento dos cheques, validam aqueles documentos para efeitos de prova plena;
12- Ao contrário dos “escritos” apócrifos sem qualquer autoria e assinatura e de contas bancárias e cheques particulares que nada têm a ver com a A. e a Ré;
13- A admissão, como válido, de declarações sobre factos criminosos pelos seus próprios autores em benefício da A. é inadmissível;
14- Ao contrário da conclusão da Sra Juiz “a quo” na decisão, o alegado elevado valor das obras extra, demonstra à evidência que houve uma alteração substancial das obras inicialmente previstas e prova que, efectivamente, o orçamento e contrato iniciais ficaram sem efeito e foram substituídos pelo orçamento constante das facturas, que serviram de base à execução de todas as obras que foram facturadas, conforme facturas emitidas pela A. pagas pela Ré pelos cheques juntos, por cuja execução e recebimento a A. passou os recibos;
15- A decisão recorrida violou os arts. 362 e sgs e 373 e sgs, todos do C.C.;
16- E violou ainda o disposto nos arts. 515, 516, 544 e nº 2 do art. 554 todos do C.P.C..

Termos em que, com o douto suprimento de Vªs Exªs, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que dê a acção por não provada e improcedente, com as demais consequências legais.

Assim decidindo, farão Vªs Exªs, aliás como sempre,
JUSTIÇA.”

A recorrida contra-alegou apenas no recurso de apelação, pugnando pela manutenção do sentenciado.
A Senhora Juíza sustentou o despacho recorrido.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

IV. Vem provada na sentença recorrida a seguinte factualidade:
1) A autora dedica-se à actividade de decoração e comércio de mobiliário.(a)
2) A autora e a ré celebraram em 3 de Maio de 2000 um contrato de empreitada relativo à remodelação do interior e exterior do estabelecimento que a segunda possui na Rua ........., nº ..-..., Viana do Castelo.(b)
3) O preço do contrato referido no facto anterior foi de € 32.421,86 (Esc. 6.500.000$), acrescido de IVA à taxa legal de 17%.(1)
4) Tal preço devia ser pago da seguinte forma: 30% aquando da adjudicação da obra, 40% no meio da obra e s restantes 30% no fim da obra.(2)
5) No decorrer da empreitada, o sócio gerente da ré – F.......... – solicitou à autora que executasse outros trabalhos que não se encontravam acordados, nem orçamentados, a saber: estrutura metálica do piso, placas de MDF para piso, piso flutuante, alteração de duas janelas para janelas de aço, arranjo das grades das varandas, duas colunas de som, projecto de arquitectura, aplicação de estores no 1ºandar, carpintaria e vidraceiro.(3)
6) O preço correspondente aos trabalhos referidos no facto anterior foi de € 14.199,24 (Esc. 2 846 692$), incluindo a taxa de 17% de IVA e mereceu o acordo da ré.(4)
7) A obra referida no facto provado em 1) ficou concluída em Julho de 2000.(5)
8) Por conta do débito total aqui em causa, a ré pagou a quantia global de € 42 894,13 (Esc. 8 599 500$).(6)
9) O contrato de empreitada a que se referem os documentos juntos aos autos de fls. 16 a 21 não se relacionam com o aqui em causa, antes respeitando a um outro efectuado no âmbito dum projecto para o IAPMEI.(9)
10) O contrato referido no faço provado em 1) foi cumprido pela autora e pago pela ré, a qual pagou ainda parte dos trabalhos extras do seguinte modo: em 25/05/00, Esc. 2 500 000$ (€ 12 465,95), em 16/06/00, Esc. 2 000 000$00 (€ 9 975,96), em 01/08/00, Esc. 3 249 500$ (€ 16 208,44) e, em 21/12/00, Esc. 850 0004 (€ 4 239,78).(10)
11) O documento que se encontra junto a fls. 10 dos presentes autos respeita a vidros e serviços de vidraceiro (executados no âmbito dos trabalhos referidos em 5), os quais ficaram ressalvados do orçamento inicial mas que a ré acordou em pagar.(13,14)
12) A autora interpelou a ré, por carta com aviso de recepção datada de 14/07/02, para pagar os serviços descritos no facto provado em 5), carta essa da qual aquela nunca reclamou.(15,16)

V. Conhecendo dos recursos haverá de começar-se pelo agravo.
1. Tal como é colocada a questão pela recorrente importa decidir se as respostas aos pontos 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 13º, 14º da base instrutória são nulas, por força do art. 294º do C.C., ou seja, por as mesmas se basearem nos depoimentos prestados depoimentos do representante da autora e ex.representante, sobre a “factos criminosos e torpes”, em violação do disposto no artigo 554º, nº 2 do C.P.C., além de que os factos dos citados “quesitos” só beneficiam a autora, em violação do disposto nos arts. 342º e 352º do CC.
2. Como se verifica pela pretensão final (conclusão 9ª), neste recurso, a recorrente o que pretende é que se atribuam respostas “não provado” às questões formuladas nesses pontos da base instrutória (o que levaria à procedência da acção).
Para esse efeito, não é adequado o recurso interposto, antes a impugnação da decisão sobre matéria de facto, no local e recurso próprios. Da decisão da matéria de facto reclama-se, nos termos do artigo 653º, nº 4, do CPC, se essa decisão for deficiente, obscura, houver contradição da decisão ou falta de fundamentação. Ora, analisada a acta da audiência em que foi publicada a decisão quanto à matéria de facto, as partes nem compareceram na dará designada para o efeito, e era nessa altura, em actuação diligente, que a ré deveria tomar posição, mas não o fez. Nenhuma reclamação foi apresentada.
Sucede que a pretensão da ré, verdadeiramente, não tem que ver com os motivos de possíveis reclamações, ao abrigo do normativo citado. Incomodada está com possíveis consequências de eventual conduta adoptada na obtenção de fundos junto do IAPMEI, no que os autos poderão eventualmente indiciar.
A discordância quanto às respostas às questões de facto, fora do âmbito do disposto no artigo 653º citado, por haver erro de julgamento dessa matéria, afirma-se na impugnação da decisão da matéria de facto, no recurso que tiver lugar quanto à sentença, nos termos do artigo 690º-A do CPC e não em recurso autónomo.
A arguição de nulidade do despacho que decide a matéria de facto não é o meio adequado para se impugnar a matéria de facto, com vista à alteração dessa decisão, como é claramente a única pretensão da recorrente.
Aliás, a posição assumida no recurso nem quadra bem com a lealdade que as partes devem adoptar no contexto da sua actuação processual, não devendo, nesse âmbito, assumir pretensão contraditória com conduta anteriormente assumida, como também demanda a boa fé.
Como se verifica de fls. 55, a ré requereu o depoimento de parte “dos legais representantes da A. aos quesitos 1º a 16º da base instrutória” (a toda a matéria da base instrutória), entre os quais se encontram os quesitos” 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 13º e 14º, depoimento que foi admitido e do qual a ré não prescindiu em audiência – fls. 89. O depoimento é “provocado” por requerimento da ré. Nessa altura, não terá ponderado e cuidado de saber ou preocupar-se com possíveis respostas dos representantes da autora, das quais se pudesse indiciar eventual infracção criminal (o que a ré deveria saber, face às posições já assumidas nos articulados). Vir, agora, querer anular um despacho (sejamos claros, a ré não quer ver anulada a decisão que decidiu a matéria de facto, quer antes que as respostas às questões de facto que menciona lhe sejam favoráveis), quando foi a ré que requereu o depoimento dos gerentes da autora às ditas questões da base instrutória, porque o depoimento não lhe foi favorável, isto é, não houve a confissão da autora favorável à ré, ou dele se pode indiciar ilícito criminal (em matéria fiscal - diz a recorrente - e não só) que também a pode envolver (e daí a sua preocupação), não é a forma mais correcta de actuar no processo, que exige verdade e leal cooperação (arts. 266º e 266º-A do CPC). Em sede de nulidades, faltaria legitimidade à ré para arguir uma tal nulidade (artigo 203º, nº 2, do CPC).
Acresce que, colocando a questão nos termos em que a recorrente a coloca, enquanto argui uma pretensa nulidade que ela mesma, em parte, provoca, a arguição é extemporânea e a ré nem teria legitimidade para a arguir, atento o disposto no artigo 203º, nº 2, do CPC). Como se verifica da acta, na audiência em que o gerente da autora presta depoimento, e face ao que a Senhora Juíza ordenou constasse da acta – isto é, de que foram processadas e emitidas facturas em nome da ré de valor superior ao devido para efeitos de um acordo com o IAPMEI (o que, no restrito desses factos, nada revela em sede criminal) -, a ré ainda requereu a ampliação da matéria nesse âmbito a constar da acta, para dela se dar notícia ao MP. Vir posteriormente pôr em crise o depoimento por lesão da norma do nº 2 do artº 554º do CPC, não abona em favor da sua conduta no processo. E, suposta a ocorrência da afirmada nulidade – que residiria na ofensa ao disposto no nº 2 do artigo 554º do CPC (depoimentos sobre factos torpes ou criminosos) – teve ela lugar na audiência de 18 de Outubro de 2004 (cfr. fls. 118 do processo) em que a ré esteve presente (pelo seu Exmo mandatário). Foi nesta audiência que depôs o gerente da autora, e, consoante despacho proferido nela proferido, apenas às questões 7ª e 8ª da base instrutória. A praticar-se nulidade, porque a parte esteve presente, e porque devia a Ré tê-la arguido nesse momento (artigo 205º, nº 1, do CPC), o que não se verificou, a sua arguição posterior, nos termos em que o foi, é extemporânea, dela não havendo que conhecer-se.
Acresce que não se mostra violado o disposto no citado normativo.
Prescreve-se que “o depoimento só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento” (1) e “não é, porém, admissível o depoimento sobre factos criminosos ou torpes, de que a parte seja arguida” (2).
Não vemos como considerar os factos vertidos nos pontos 7 e 8 da base instrutória - que têm a redacção “o contrato referido em A) foi substituído por novo contrato, que englobou as obras previstas em A) mais as obras previstas no quesito 3º?” (7) e “a autora executou para a R. todas as obras pelo valor global de 14 566 500$00 que recebeu da R?” (8) - como torpes (no sentido de ignóbeis, infames ou humilhantes) ou criminosos (e isto, quer o gerente da ré confessasse ou não esses factos). Não lesam os bons costumes nem se vê que tais factos integrem em si qualquer ilícito criminal.
O depoimento de parte, nos termos dos arts. 552º do CPC, é essencialmente um meio processual destinado a provocar a confissão judicial (arts. 352º e 355º, nº 2, do CC); visa-se conseguir da parte o reconhecimento de facto que lhe é desfavorável e só nessa media, se o facto lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, se pode falar em confissão. A proibição contida no artº 554º, nº 2, do CPC, visa essencialmente a protecção da parte obrigada à prestação do depoimento, e visando este essencialmente confissão, não poderia impor-lhe (dado o dever de verdade) a confissão de factos criminosos por que está a ser investigada, situação que poderia levar o depoente a negar tais factos.
Nenhum indício fornece o processo que a autora ou o representante da autora que prestou depoimento, G........... (fls. 120 do processo), seja arguido em qualquer processo relacionado com os factos em referência neste processo ou em qualquer outro que com os factos a que depôs esteja relacionado, pelo que não tendo a norma aplicação ao caso.
E tratando-se de uma norma de protecção do depoente, justificada com a finalidade de não expor o depoente à necessidade de se pronunciar sobre certos factos ilícitos pessoais, cuja realidade se sentirá inclinado a negar, não deve ser requerido e ordenado o depoimento quanto a esses factos, não afectando o que espontaneamente o depoente confesse (confissão que não se verificou) ou sobre eles se pronuncie. O recurso de agravo não merece provimento.

VI. Quanto ao recurso de apelação interposto pela ré.
O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, não podendo tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que se trate de questões do conhecimento oficioso (arts. 684º, nº 3, e 690º, ns. 1 e 3, do C.P.C.). Por outro lado, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu objecto delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
1. Se não expressamente afirmado, o que está em causa no recurso respeita à decisão da matéria de facto, questionando a ré que o tribunal haja considerado provados factos com base em documentos que não reúnem valor probatório ou os requisitos legais para serem considerados documentos e que foram apresentados pela autora e não ter atendido nos juntos pela ré, além de motivados em depoimentos que não deviam ser atendidos em violação do artigo 554º, nº do CPC.
Sucede que a recorrente nem especifica os pontos da base instrutória que deveriam ter decisão diferente da atribuída em 1ª instância, ou seja, sobre que houve erro de julgamento ou errada apreciação das provas, nem os elementos concretos de prova que, em relação a cada um desses factos, impunham decisão diversa.
Essa omissão levaria a que não se conhecesse do recurso, sendo certo que não questionará, como se verifica mesma da questão colocada no agravo, toda a decisão da matéria de facto.
Porém, para o caso de assim não se entender, procede-se à apreciação.
As questões a resolver são essencialmente:
-se foram desconsiderados documentos relevantes e decisivos para a decisão e considerados outros sem valor probatório ou sem os requisitos para valerem como documentos,
-se os depoimentos prestados pelo representante da autora e testemunha ex.representante da autora foram indevidamente atendidos para a decisão da matéria de facto,
2. Quanto á primeira questão – os documentos (conclusões 2 a 9, 11 e 12).
Sem controvérsia, as partes celebraram o contrato referido em 2, 3 e 4 da matéria de facto. Também aceita a ré que a autora executou, a solicitação daquela, os trabalhos extra, não contemplados no contrato mencionado no ponto 2 da matéria de facto (embora afirme que o foram ao abrigo de contrato verbal posterior que substituíra aquele), como sem dúvidas se extrai do artigo 4º da contestação. Isto é, as obras foram executadas (todas) e a solicitação da ré, não pondo esta em causa a obrigação do pagamento do preço (mas que o pagou - afirma).
O contrato alegado pela autora foi reduzido a escrito (e assinado por ambas as partes) e é com base nele e nos trabalhos suplementares (que não estavam contemplados naquele contrato inicial e respectivo orçamento) executados que a autora peticiona. Pela empreitada acordada inicialmente foi convencionado um preço determinado.
Admitido se mostra que todos os trabalhos acordados com a ré, foram prestados pela autora (ver artigo 5º da matéria da contestação).
Veio a ré, em versão diferente da afirmada pela autora, dizer que esse contrato foi substituído por posterior contrato verbal, que englobava todas as obras, as inicialmente orçamentadas e adjudicadas e os trabalhos suplementares alegados pela autora como fundamento da acção e como contrapartida um preço bem superior (não completamente justificado, pois que se não alegam trabalhos executados além dos mencionados pela autora e só nas alegações fala a recorrente em profunda remodelação do estabelecimento, alegação que, se relevante, não poderia ser atendida, por extemporânea).
Tendo sido celebrado o contrato alegado pela autora, e nas condições por esta invocadas (como consta do documentos 1 e 2 juntos com a petição), cabia à ré demonstrar que as partes substituíram esse contrato invocado pela autora, confirmado pela ré nos vários aspectos da convenção, por outro posterior mais amplo. E foi essa sua versão que, cabendo-lhe demonstrar, não provou (arts. 342º, nº 2, do CC e 516º do CPC) na decisão da 1ª instância, como consta da resposta aos pontos 7 e 8 da base instrutória.
Só a modificação da decisão sobre a matéria de facto poderia conduzir à satisfação da pretensão da recorrente.
Constata-se da decisão sobre a matéria de facto, a fls. 127, que foram atendidos todos os documentos juntos, não apenas os apresentados pela autora.
A modificação da decisão da matéria de facto só pode ter lugar nas situações previstas no artigo 712º do CPC, ou seja:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos de matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690ºA, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Na espécie em análise, nenhum documento novo superveniente (al. c) mencionada) é junto que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão se baseou. E também não concorre o motivo da al. a), pois que nenhuma referência se faz a qualquer depoimento para, com base nele, se considerar provada ou não provada determinada questão. Como não se verifica a situação prevista na al. b), dado que não constam do processo elementos que imponham decisão diversa, insusceptíveis de ser destruída por quaisquer outras provas. Este fundamento está relacionado com o valor legal das provas, exigindo-se que o valor dos elementos coligidos no processo não pudessem ser afastados por outra prova produzida em julgamento. Isto é, se do processo consta um meio de prova plena (documento, confissão ou acordo das partes) afectado a determinado facto a averiguar, a sua prova há-de ter em atenção, necessariamente, esse meio de prova por insusceptível de ser afastada por outras provas.
Todos os documentos juntos pelas partes são documentos (como objectos elaborados pelo homem com o fim de reproduzir um facto – artigo 362º do CC) particulares (art. 363º do CC), estejam ou não assinados pelo seu autor.
O facto dos documentos não revestirem todos os requisitos exigidos por lei, não significa que fiquem desprovidos de qualquer valor probatório. Deixam de ter o valor probatório legalmente fixado para os documentos assinados pelo seu autor, ficando sujeitos à livre apreciação do tribunal (artigo 366º do CC).
Os documentos juntos a fls. 9, 30, 31 e 32) – meros apontamentos escritos dos valores que, por via da empreitada executada pela autora, seriam devidos pela ré - não estão assinados pelo seu autor, embora sejam pela autora apresentados como sejam da sua autoria e relativos aos valores do preço da empreitada encomendada pela ré e aos alegados trabalhos suplementares. Estes, como outros (fls. 10 – factura pró-forma - 114/114 – referente a extractos bancários, talões de cheques e título de depósito – e fls. 117 – factura correspondente à factura pró-forma, embora não inteiramente coincidente) é evidente que não fazem prova legal dos factos a que se referem, mas conjugados com outras provas, são valorados livremente pelo tribunal no conjunto das provas produzidas. O facto de não estarem assinados significa apenas que, por não reunirem esse requisito, não valem como documento para prova de facto ou declaração para que a lei exige documento escrito, nos termos do artigo 364º do CC, e não que sejam completamente desprovidos de valor (cfr. P. Lima/A. Varela, CCAnotado, I, 3ª ED/323). Não estão revestidos da força probatória que lhes atribui os arts. 373º e 376º do CC, mas não ficam completamente desprovidos de valor que o tribunal, nos poderes de livre apreciação das provas, lhes confira.
O tribunal não extraiu desses documentos outra força probatória que a consentida pelo artigo 366º do CC, não os teve como bastantes para contrariar a prova resultante de outros documentos reconhecidos pelas partes, nem lhes atribuiu a força probatória própria desses documentos quando assinados pelo seu autor e com declaração desfavorável; em parte alguma se imputam tais documentos à ré, e só nessa situação fariam prova contra esta. Nem é pelo mero facto da ré impugnar esses documentos ou os arguir de falsos (com o sentido que tal arguição possa ter quando, por um lado, não se aceitam tais documentos com o sentido que autora lhe atribui, e, por outro, é a parte/autora a aceitar a autoria dos documentos, que em nada vinculam a ré ou fazem prova contra si) que tais documentos não serão considerados se, na livre apreciação do tribunal e em conjugação com outras provas, merecerem alguma ponderação para prova dos factos levados á base instrutória. E é o que sucede no caso, em que se atendeu a tais documentos analisados em conjunto com os depoimentos de testemunhas que os reconheceram quanto á sua proveniência e ao seu significado, significado que a ré não logrou abalar. Nem os factos provados/não provados se basearam nesses documentos ou essencialmente nesses documentos, mas antes no conjunto dos depoimentos prestados e com eles analisados e valorados os documentos.
Sucede que foram juntos pela ré documentos que a autora reconhece como seus, ou sendo-lhes imputados não os impugna, estando, por isso, reconhecida a sua autoria (artigo 374º, nº 1, do CC), sendo o que acontece com os docs./recibos 3 e 5, com a contestação. Como a autora também reconhece ter recebido os cheques - docs. 2, 4 e 6, talão e fotocópia de cheques emitidos pela ré – e o doc. 1/factura – todos juntos com a contestação.
Atenta a posição da autora (artigo 4º da resposta) e o artigo 376º do CC, reconhecida a letra e assinatura, o documento particular faz prova plena da declaração atribuída ao seu autor, considerando-se provado o facto compreendido na declaração, na medida em que seja contrário aos interesses do declarante. O documento nesta situação faz prova plena da declaração, nas relações entre declarante e declaratário. Cumpre-se, assim, a função dos documentos particulares, cuja letra e assinatura é reconhecida pelo declarante.
Sucede que a autora aceitou os documentos e conteúdo dos mesmos. Deles se conclui que a ré pagou e a autora facturou e recebeu os valores constantes desses documentos. É apenas o que os documentos documentam e comprovam. E não se extrai da decisão que hajam sido desconsiderados.
Diverge a autora que esses documentos estejam relacionados com o contrato de empreitada que funciona como causa de pedir. E não juntou a ré (aliás, diz tê-lo celebrado verbalmente) documento que titule o contrato por si alegado em substituição do invocado pela autora. E os documentos por si juntos, e aceites pela autora, não comprovam a celebração do contrato de empreitada que alega e não logrou provar essa convenção (resposta ao ponto 7 da base instrutória) para afastar a convenção invocada pela autora e comprovada plenamente por documento (que a ré aceitou, apesar de dizê-la substituída).
Como facto modificativo do direito invocado pela autora, cabia-lhe provar a celebração desse outro contrato em substituição do documentado a fls. 06 (documento que também faz prova plena contra a ré) ou, a não ser assim, que os pagamentos que fez e a que reporta os documentos por si juntos, se destinaram ao pagamento da empreitada e trabalhos extra alegados pela autora. Porém, não demonstrou essa outra convenção a substituir a alegada pela autora e situa esses pagamentos reportados ao contrato verbal que diz ter substituído o invocado pela autora, mas que não provou, daí que os documentos juntos não bastam (não fazem prova plena) para provar os pagamentos feitos dos valores pretendidos pela autora, pois reportam-se a outro contrato. O devedor está onerado com o encargo da prova do pagamento mas também a que título efectuou o pagamento, ou sejam a dívida que visou extinguir ou extinguiu com o pagamento.
Não foram postergadas as provas fornecidas pelos documentos citados nem desconsiderado o valor probatório que a lei aos mesmos fixa. Mas não bastam para, por si, afastar a resposta atribuída a qualquer “quesito”, e impor decisão diversa a qualquer ponto da matéria de facto, pois não está demonstrada conexão desses documentos com os trabalhos executados pela autora para a ré e por esta encomendados, ou seja, que tais documentos se reportem ao contrato invocado e, segundo a decisão de facto, provado.
No concernente aos documentos, carece a ré de razão para, com base neles, se modificar a decisão da matéria de facto.
3. No que respeita à 2ª questão – se há obstáculo legal aos depoimentos (do representante da autora e das testemunhas D............, que havia sido também gerente da autora, e H..............).
Quanto ao depoimento de parte – e apenas o prestou o representante da autora G............. (fls. 120) – já se afirmou atrás não ter sido violado o disposto no artigo 554º, nº 2, do CPC. Os factos a que depôs não são torpes nem criminosos nem o depoente confessou sequer os factos a que depôs (como decorre da acta de audiência e da motivação da matéria de facto). Não valendo como confissão que, nesse caso, tem o valor probatório fixado na lei (arts. 352º e 358º, nº 1, do CC), o depoimento é apreciado livremente pelo tribunal (art. 655º, nº 1, do CPC).
O juiz pode em qualquer altura ouvir as partes para prestarem esclarecimentos sobre a matéria de facto, estando aquelas oneradas com o dever de colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado (arts. 265º, 266º e 519º do CPC). E sempre que haja ouvido as partes sobre os factos que interessam á decisão da causa, nos termos do artigo 552º, nº 1, do CPC, o juiz não fica impedido de valorar livremente as declarações das partes que não sejam confessórias (pois estas têm o valor probatório fixado na lei). No depoimento poderá não se obter uma declaração confessória (e na situação concreta, não se obteve), mas mesmo assim permitir ao tribunal a obtenção de informação complementares que apreciará segundo o princípio da livre apreciação da prova. “Não é ilícito o depoimento de parte invocado pelo colectivo para fundamentar as respostas a quesitos sobre factos pessoais e de que o depoente deva ter conhecimento, pois, prestado o depoimento, ou este conduz a confissão devendo ser-lhe atribuído o valor probatório declarado no artigo 358 n. 1 do CCiv66, ou não conduz a confissão sendo o seu valor probatório apreciado livremente pelo tribunal nos termos do artigo 655 do CPC67” (Ac. STJ, de 13/03/97, sumariado em ITIJ/net, proc. 96B386). Tal depoimento não confessório, como quaisquer declarações prestadas pela parte, serão apreciados segundo o prudente arbítrio do julgador, mesmo que verse sobre factos favoráveis à parte que prestou as declarações (cfr. Ac. STJ, de 02/11/04, em ITIJ/net, proc. 04A3457), tendo em consideração precisamente a circunstância de se tratar de parte e do interesse que tem na causa, daí a prudente ponderação a ter na valoração do depoimento. No mesmo sentido, Acs, STJ, de 24/4/02 e de 21/10/93, em ITIJ/net, procs. 02B825 e 083335, e da RP, de 18/10/01, em ITIJ, proc. 0131287, e da RE, de 18/10/1984, BMJ 342/454). Foi essa livre apreciação que o julgador fez do depoimento ou dos esclarecimentos do representante da autora, não estando inibido de o fazer.
Não revela a recorrente qualquer circunstância que obstasse ao depoimento das testemunhas D..........., independentemente da natureza dos factos a que haja deposto, não estando abrangido pela proibição prevista no artigo 554º, nº 2, do CPC, pois nem é parte nem tem que confessar o que quer que seja. O facto de ter sido gerente da autora, não o sendo quando presta depoimento, não constitui impedimento ou o torna inábil para depor como testemunha, uma vez que nem é parte nem seu representante (arts 616º e 617º do CPC). Essa circunstância releva apenas na apreciação que seja feita do depoimento, apreciação que, além de outros factores, não deixará de ter em atenção essa circunstância. Por outro lado, nem a recorrente o diz nem se vislumbra qualquer obstáculo legal ou limitação, pela natureza dos factos a que depôs, do depoimento da testemunha H........... A prova testemunhal é apreciada livremente pelo tribunal (artº 396º do CC). Não há que fazer nem deve fazer-se censura sobre a convicção adquirida pelo julgador na apreciação das provas, demonstrado que está que não foi postergado o valor legal das mesmas e só esta questão estava verdadeiramente em causa no recurso.
Como se verifica do despacho que decidiu a matéria de facto (fls. 124/127) está a decisão abundantemente motivada, na confissão do representante da ré (items 1, 2, 3, 5 e 15), no depoimento do representante da autora, com as limitações atrás referidas, nos depoimentos das testemunhas, como se esclarece nessa fundamentação, e nos documentos juntos pelas partes. Nessa análise e ponderação global da prova assentou a decisão de facto.
Sem prejuízo do que se afirmou quanto à não concretização dos pontos de facto que a recorrente entendia erradamente julgados, não tendo sido afastado a força probatória legalmente fixada para alguma das provas oferecidas e produzidas ou consideradas provas inadmissíveis, nenhuma razão concorre a justificar modificação da decisão da matéria de facto.
4. Apesar da recorrente, na sua alegação, se referir à condenação como litigante de má fé, só “possível graças a inversão que a Sra Juiz “a quo” fez, quer das regras do ónus da prova, quer das normas relativas ao valor probatório dos documentos juntos aos autos”, nas conclusões nenhuma referência faz a essa condenação, pelo que, sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões, de nada cumpre conhecer em sede de má fé.
5. Imodificada que fica a decisão da matéria de facto julgada provada no tribunal “a quo”, a condenação da ré, nos termos constantes da sentença recorrida, mantém-se, por não haver fundamento para a sua revogação ou alteração.

VII. Pelo exposto, acorda-se nesta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em - negar provimento ao agravo e manter o despacho recorrido;
- julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
Custas do agravo e da apelação pela recorrente.
Porto, 9 de Junho de 2005
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataíde das Neves
António do Amaral Ferreira