ACIDENTE DE TRABALHO
EVENTO NATURALÍSTICO
Sumário


I – Não é suficiente para demonstrar que se verificou um acidente caracterizável como acidente de trabalho, nomeadamente porque não permite preencher o requisito de subitaneidade do evento, provar-se que “No dia 5/2/2018, no final da sua jornada de trabalho para a R. …, S.A., o A. apresentava forte dor nas costas”.

Texto Integral


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante: T. J.
Apeladas: Seguradoras ..., S.A. e
Y – Construção Naval, S.A.

I – RELATÓRIO

T. J., residente na Rua …, nº. …, Vila Praia de Âncora; veio intentar a presente acção especial de acidente de trabalho contra:
“Seguradoras ..., S.A.”, com sede na Avenida …, nº. …, Lisboa; e
Y – Construção Naval, S.A.”, com sede no Parque …, lote …, Viana do Castelo;

Pedindo a condenação das RR. no pagamento:
- da pensão anual e vitalícia que resultar da IPP que lhe vier a ser fixada;
- da quantia de €10.238,59 a título de indemnização pelas incapacidades temporárias;
- da quantia de €30,00 de despesas de deslocação;
- da quantia de €500,00 de despesas médicas;
- juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa de 4%.

O “Centro Distrital de Viana do Castelo do ISS, IP” deduziu pedido de reembolso contra as RR., no montante global de €11.624,26, que veio a reduzir para o valor de € 11.394,24, relativo a subsídio de doença que pagou ao A.

As RR. apresentaram as respectivas contestações.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a final a proferir-se sentença com o seguinte dispositivo:
“Julgar a presente acção improcedente, por não provada, e em consequência absolver a R. dos pedidos contra si formulados.”

Inconformado com esta decisão, dela veio o autor interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam, mediante a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“1 - Encontra-se assente que o sinistrado estava a trabalhar no âmbito de um contrato de trabalho subordinado no dia em que ocorreu o alegado acidente.
2 - Verificada a existência de uma relação de trabalho subordinado, cabe agora averiguar-se, no decurso dessa mesma relação contratual, ocorreu um acidente de trabalho.
3 - A lei não define com precisão o conceito de acidente de trabalho, contudo o artigo 8º do diploma legal define acidente de trabalho, sob a epígrafe “conceito”, como aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou morte.
4 - Ora, tendo em conta as normas sobreditas, cabe ao autor provar que sofreu um acidente no local e tempo de trabalho ou nas circunstâncias previstas no nº 2 do artigo em referência, o que efectivamente o recorrente considera ter se provado que ocorreu.
5 - Sendo que, parece claro que se provou que o recorrente não final do dia enquanto estava a rebarbar ao elevar-se, sentiu uma pontada forte nas costas.
6 - Aliás, a própria Jurisprudência tem decidido de uma forma que vem protegendo situações idênticas à do recorrente.
7 - Citando o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/06/2015, proc. 401/09.9TTVFR.P1, in www.dgsi.pt, diríamos que “Significa isto que para que estejamos perante um acidente de trabalho têm de se verificar os seguintes requisitos:
1.º Existência de um facto ou evento em sentido naturalístico, de carácter súbito, violento e exterior à vítima, por exemplo uma queda, um golpe, uma explosão, um desabamento, uma electrocussão, etc.;
2.º Que ocorra no tempo e local de trabalho;
3.º Tal facto ou evento deve ter por consequência uma lesão, uma perturbação funcional ou uma doença no trabalhador donde resulte a morte ou redução na capacidade de trabalho ou de ganho do trabalhador;
4.º Existência de um nexo de causalidade entre o facto lesivo, as lesões e o dano para o qual o trabalhador pede a indemnização.
8 - Assim sendo, a existência de um acidente de trabalho traduz-se, antes de mais, na ocorrência de um evento de natureza naturalística; a noção de acidente de trabalho reconduz-se a um acontecimento súbito, de verificação inesperada e origem externa”.
9 - E o mesmo acórdão reza assim “Tendo-se apurado que a A. se encontrava no seu local e horário de trabalho e, ao puxar uma palete de produtos para reposição, sentiu uma dor muito intensa nas costas; que no dia 15 de março, a A. dirigiu-se às urgências do Centro Hospitalar de …, de …, onde foi assistida por um médico de serviço; no dia 17, dirigiu-se ao Hospital E…, onde lhe foi diagnosticada uma “lombalgia de esforço”; no dia 02/04/2009 foi operada à coluna; o seu estado de saúde sofreu um agravamento que resultou de recidiva daquela operação; no dia 09/11/2009 foi sujeita a nova cirurgia à coluna lombar no SNS; entre 31/03/2009 e 11/01/2010 esteve com ITA e ficou portadora de uma IPP de 13%, dúvidas não existem de que a A. sofreu um acidente de trabalho quando se encontrava ao serviço da Ré C…”.
10 - Ainda na linha do que acabámos de transcrever reza o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28/01/2008, proc. 0713872, in www.dgsi.pt, numa situação idêntica à dos autos, o seguinte: “Tendo o acidente ocorrido no local e tempo de trabalho e ficado provado que a trabalhadora “sentiu uma dor nas costas ao pegar numa pasta”, tem que se considerar verificado o pressuposto “lesão”, para efeito de acidente de trabalho”.
11 - No citado aresto lê-se ainda o seguinte: “Sendo embora certo que a dor não é uma lesão, a verdade é que aquela é uma manifestação desta, em termos tais que não pode haver dor se não houver lesão. Em realidade, dor é uma sensação penosa, que resulta de qualquer impressão (lesão ou contusão) produzida com excessiva intensidade nalguma parte do corpo.
12 - Ora, para além de se ter dado como assente que a incapacidade temporária resultou de lesão – ponto 12. – vem provado que o A. sentiu dor nas costas ao pegar numa pasta – ponto 2. – pelo que temos de considerar verificado o pressuposto lesão. É que, provada a dor, provada está a lesão, pois aquela não se verifica sem esta. Tanto mais que a lesão corporal pode ser física ou psíquica, aparente ou oculta, externa ou interna, manifestar-se imediatamente a seguir ao evento ou só mais tarde, ou muito mais tarde.
13 - Ora, no caso do sinistro dos autos, facilmente se conclui que estamos perante um evento naturalístico, encontrando-se preenchidos todos os requisitos para a caracterização do mesmo como acidente de trabalho, ou seja, o evento, o local e horário de trabalho e o nexo de causalidade entre o primeiro e a lesão e a redução na capacidade de ganho.
14 - Na douta Sentença que se recorre, conclui-se que não correu qualquer evento susceptível de ser caracterizado como acidente e por maioria de razão, como acidente de trabalho, tendo que se improceder na íntegra a acção intentada pelo autor e pelos mesmos motivos será de improceder o pedido formulado pela Segurança Social.
15 - Decisão que o recorrente não aceita nem poderá nunca aceitar.
16 - Sendo que, o autor é do entendimento que esta acção terá que ser parcialmente procedente, excluindo a procedência do pedido formulado quanto às despesas médicas no valor de 500,00 euros, por de facto não ter sido feita prova de que o recorrente teve estas despesas.
17 – Pelo que, deve a presente acção ser integralmente procedente, admitindo-se a ocorrência de evento susceptível de ser caracterizado como acidente de trabalho e na sequência condenar-se os réus a condenarem ao autor os valores peticionados à excepcção do valor de 500,00 euros relativamente a despesas médicas.”

As rés apresentaram contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.
Ambas propugnam a rejeição do recurso quanto à matéria de facto, por incumprimento dos ónus previstos no art. 640.º do CPC - e ainda, a ré seguradora, porque existem deficiências na gravação efectuada que impossibilitam a análise (cabal) dos depoimentos prestados pelo Tribunal ad quem -, e que de qualquer forma a matéria de facto, como se extrai da motivação exarada pelo Tribunal recorrido, foi correctamente julgada, defendendo também o acerto do tratamento jurídico desenvolvido na decisão recorrida.

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, sufragando também o entendimento de que a matéria de facto não pode ser alterada pois que o recorrente não cumpriu os requisitos previstos no art. 640.º do CPC, acrescendo que a gravação dos depoimentos em que o recorrente funda o invocado erro no julgamento da matéria de facto tem deficiências que inviabilizam a reapreciação da matéria de facto.

Tal parecer não mereceu qualquer resposta.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:

a) Impugnação da matéria de facto;
b) Saber se a matéria de facto provada permite concluir que o autor foi vítima de acidente qualificável como acidente de trabalho.

III - FUNDAMENTAÇÃO

- Da impugnação da matéria de facto:
Considerando, desde logo, a posição expressa pelas recorridas assim como pelo Ministério Público acerca da (in)admissibilidade do recurso quanto à matéria de facto por incumprimento do disposto no art. 640.º do CPC, cumpre começar por aí a nossa análise.

Estabelece o artigo 662.º n.º 1 do CPC (1), sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Dispõe, por seu lado, o artigo 640.º do CPC, cuja epígrafe é Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.” (sublinhamos)

Decorre com clareza das normas citadas que ao recorrente cumpre discriminar os pontos de facto que a seu ver foram incorrectamente julgados, especificar os meios probatórios que impunham, relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados, decisão diversa da recorrida, sendo que se se tratar de declarações/depoimentos gravados, incumbe ao recorrente indicar com precisão as passagens da gravação em que funda o recurso - sem prejuízo de poder, aí querendo, proceder à transcrição dos excertos das gravações que considere relevantes -, impondo-se-lhe ainda que explicite a decisão que, no seu entender, deveria ter sido dada a cada um dos pontos de facto por si impugnados.

Note-se que quanto ao dever de o recorrente indicar em concreto as passagens da gravação das declarações e/ou depoimentos em que se funda a impugnação e que no juízo do recorrente impõem decisão diversa da recorrida, a lei comina tal ónus sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte.
E, “Um tal ónus não pode considerar-se satisfeito se, por exemplo, o impugnante se limita a indicar o início e o fim do depoimento dos participantes processuais ouvidos na audiência final, nas quais funda a impugnação.” (2), que é o que a recorrente fez exactamente na situação em análise pois, pretendendo valer-se dos depoimentos das testemunhas B. A. e P. C., para os ditos efeitos de demonstrar que foram produzidas provas que impõem decisão de facto diversa – relativamente aos pontos da matéria de facto a) a l), que impugna -, limita-se a indicar, em ambos os casos, a hora do início e do final do respectivo depoimento.

Acresce que sempre que impugne a decisão da matéria de facto deve o recorrente procurar demonstrar o erro de julgamento dessa matéria (art. 640.º/1 b) do CPC), donde, obrigatoriamente, indicar as razões que, no seu entendimento, evidenciam tal erro.

Ademais, “As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.” (3), não obstante não se deva exponenciar os requisitos formais a um ponto que sejam violados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. (4)

Ora, no caso presente afigura-se que, não obstante o tenha feito de forma pouco rigorosa, o recorrente cumpriu minimamente os ónus em questão, pois que se percebe o ponto da matéria de facto que entende ter sido incorrectamente decidido, e que quer ver aditado ao acervo dos factos provados, tendo especificado os meios probatórios que a seu ver impunham decisão diversa da tomada pelo Tribunal recorrido.

Com efeito, na conclusão 5.ª do recurso diz expressamente o recorrente “Sendo que, parece claro que se provou que o recorrente não final do dia enquanto estava a rebarbar ao elevar-se, sentiu uma pontada forte nas costas.”, e matéria que tem o seu sustentáculo, em termos de alegação, em 9.º e 10.º da petição inicial (sendo que nos parece evidente ocorrer um lapso de redacção, e onde se diz “não” quer-se dizer “no”).
Resulta, pois, claro que o recorrente pretende que se dê como provado que “no final do dia enquanto estava a rebarbar, ao elevar-se sentiu uma pontada forte nas costas”.
E decorre igualmente da motivação do recurso as razões porque o recorrente entende que tal matéria, que o Tribunal recorrido não deu como provada, deve considerar-se provada, estribando-se o recorrente nos depoimentos das testemunhas A. S. e A. N., e indicando concretamente as passagens da gravação de tais depoimentos que no seu entender impõem decisão diversa daquela tomada pelo Tribunal a quo.
Ante o exposto, e tendo particularmente em conta os aludidos princípios de proporcionalidade e razoabilidade, consideram-se suficientemente observados os requisitos previstos no art. 640.º n.ºs 1 e 2 do CPC.
Passemos então à vertente da questão que contende com a alegada deficiência da gravação dos depoimentos das testemunhas.

Vejamos.
O próprio recorrente admite que só assumem relevância para a dilucidação da questão do erro de julgamento da matéria de facto os depoimentos das testemunhas A. S. (que vive em união de facto com o autor/recorrente) e A. N. (colega de trabalho do autor), referindo expressamente que “De facto só estas duas testemunhas têm conhecimento da factualidade relativa ao sinistro, contudo, o conhecimento de ambas não é tão limitativo como é apontado na Douta Sentença.”.

Sucede que, tendo-se procedido à audição (através do sistema citius) de tais depoimentos, temos efectivamente de concluir que as gravações efectuadas não são audíveis na sua totalidade havendo partes quer de um quer de outro depoimento em que é de todo imperceptível o que dizem as testemunhas.

E, em particular, tais depoimentos são imperceptíveis em partes em que, atenta a alegação recursória do recorrente, seriam manifestamente relevantes, mormente porque supostamente versariam declarações que directamente contenderiam com a existência de factos que, no entendimento do recorrente, configuram um acidente, caracterizável como acidente de trabalho.

Assim:

Relativamente à testemunha A. S. (como se disse, companheira do recorrente), alega o recorrente que no âmbito do seu depoimento foi dito o seguinte:
«Questionou a mandatária M. R. aos 00:35 “A. S. recorda-se do seu companheiro ter chegado a casa após o trabalho e ter apresentado queixas de dor?”
Ao que a testemunha prontamente respondeu aos 00:42 “Sim recordo-me perfeitamente de no dia 5/02/1018 quando o T. J. chegou do trabalho de me ter dito que quase no final do trabalho encontrava-se a rebarbar em plano inclinado elevar-se sentiu uma forte pontada nas costas”»

Quanto à testemunha A. N.:
«Questionou a mandatária M. R. aos 02:22 “Encontravamos quase ao final do dia a fazer uma montagem de tubagem da casa de banho e o T. J. estava a rebarbar, em plano inclinado e ao levantar-se queixou-se de uma dor forte nas costas”» (afigura-se-nos evidente ocorrer também aqui um lapso pois quando se diz “Questionou a mandatária M. R. aos 02:22” é manifesto que se quer dizer que “a testemunha A. N. respondeu” até porque mais adiante se refere na alegação do recurso “O Meretíssimo Juiz a quo indica que esta testemunha não logrou indicar qualquer causa concreta que indicasse o aparecimento daquela dor. Ora, discorda-se porque no âmbito das declarações de A. N. é possível aferir que, o autor se encontrava a rebarbar em plano inclinado e a voltar à posição normal sentiu uma dor forte nas costas.”).

Acontece que, tendo nós, como já consignado, procedido à audição dos mencionados depoimentos, e assim e nomeadamente quanto às passagens/minutos da gravação identificados, não são audíveis (também, nomeadamente) aquelas assinaladas e (supostamente) transcritas declarações.

Donde, como se refere no douto parecer do Ministério Público, “não tendo o recorrente invocado a deficiência da gravação, a qual impede a apreciação desses depoimentos, a matéria de facto não pode ser reapreciada.”

Efectivamente, e como também se dá nota no mesmo parecer, nos termos do art. 155.º n.º 4 do CPC a deficiência da gravação deve ser invocada no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada, e não o sendo e decorrido tal prazo, o vício fica sanado impedindo a reapreciação da matéria de facto (5).

Acresce, no caso em apreço, que o Mm.º Juiz a quo na motivação da matéria de facto a propósito consignou:

“- quanto ao ponto 6) – a resposta restritiva a esta matéria resultou da conjugação do depoimento de A. S. (companheira do A.) e de A. N. (colega do A. e que se encontrava a trabalhar juntamente com ele na data em causa), pois que as restantes testemunhas ouvidas em audiência nada sabiam de concreto quanto a esta factualidade; de realçar que a testemunha A. S. se limitou a relatar o que lhe havia sido dito pelo A. (que teria tido forte dor ao voltar à posição erecta, sem qualquer referência a esforço para levantar um objecto, nomeadamente um tubo de cobre) e que a testemunha A. N. referiu tão só que o A. se queixou de dor nas costas ao final do dia (não logrou indicar qualquer causa concreta para o aparecimento daquela dor, nomeadamente a alegada pelo sinistrado, chegando até a aventar a hipótese de resultar do esforço prolongado realizado nos dias anteriores com o carregamento de alguns móveis); assim sendo, apenas se pode afirmar com segurança que o A., naquele final de dia, apresentava fortes dores nas costas;”.

Ora, estando-se no capo da livre apreciação da prova segundo a prudente convicção do julgador (art. 607.º/5do CPC), tal motivação para além de se afigurar clara e congruente, afigura-se racional e lógica.
E, diga-se ainda, e por reporte à parte em que se mostra perceptível o respectivo depoimento, efectivamente sustentada nas declarações da testemunha A. N.:
Com efeito, e a propósito das dores das costas de que o autor se queixou, teve (cf. minuto 11:00 e ss) expressões tais como: “foi o acumular de várias semanas na mesma posição”; “ele durante a tarde já se vinha a queixar”; “não me disse nada em concreto nem uma pessoa adivinha”.

Tais declarações da única testemunha que se encontrava com o autor aquando do alegado acidente não corroboram que a factualidade que o autor reclama seja incluída na matéria de facto realmente se verificou.

Pelo exposto, a matéria de facto não pode ser alterada e os factos provados são os que como tal constam da sentença.

- Da verificação de um acidente de trabalho:

Os factos provados relevantes para a decisão da causa são, então, os que assim resultam da decisão recorrida:
“1 – O A. nasceu no dia -/4/1987.
2 – Desempenhava a sua actividade profissional sob as ordens, direcção e fiscalização da R. “Y”.
3 – Auferia a retribuição anual ilíquida de €10.833,34.
4 – A R. “Y” empregadora havia transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho para a R. seguradora, mediante contrato de seguro, na modalidade de prémio fixo com nomes, no qual constava o A. com a retribuição mensal de €700,00.
5 – A S. Social pagou ao A. a quantia de €11.394,24, a título de subsídio de doença e relativo ao período de 6/12/2018 a 20/12/2019.
6 – No dia 5/2/2018, no final da sua jornada de trabalho para a R. “Y”, o A. apresentava forte dor nas costas.
7 – A A. teve despesas com deslocações ao GML e a este tribunal.
8 – O A. tem uma IPP de 3%, tendo tido as seguintes incapacidades temporárias:
- ITA de 6/2/2018 a 5/3/2018;
- ITP de 25% de 6/3/2018 a 10/2/2019;
- ITA de 11/2/2019 a 20/12/2019 (data da alta).”

Na decisão recorrida, depois de se consignar “que cabe ao trabalhador alegar e provar a existência de um evento que possa ser caracterizado como acidente de trabalho, por reunir os requisitos constantes desse normativo”, escreveu-se que “desde já terá que se constatar que a presente acção não poderá proceder, pois que não se provou que tenha ocorrido qualquer evento externo, passível de ser definido como acidente, mas tão só que, no final da sua jornada de trabalho, o A. apresentava fortes dores nas costas.”.

Concordamos.

Sempre teria o autor de provar os factos em que assentou o seu pedido, de acordo com a repartição do ónus da prova, e desde logo os factos respeitantes à verificação do acidente (o autor não beneficia de qualquer presunção – sendo certo que também a nenhuma aludiu - no sentido de que o acidente se verificou) – cf. art. 342.º n.º 1 do CC.
E efectivamente não provou.

Os factos provados – v.g. o que se provou sob o n.º 6: No dia 5/2/2018, no final da sua jornada de trabalho para a R. “Y”, o A. apresentava forte dor nas costas - são manifestamente insuficientes para que se possa neles basear a conclusão de que o autor sofreu um acidente, e consequentemente de sofreu um acidente qualificável como acidente de trabalho – cf. art.s 8.º e 9.º da Lei 98/2009, de 4/9 (LAT).

Em particular o art. 8.º, n.º 1, da Lei 98/2009 estabelece:
“É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.”
Mas ao referir-se “aquele” acidente acaba a lei por não nos dizer qual o conceito de acidente de trabalho.

Sem prejuízo de se reconhecer que as alterações ocorridas em termos económicos, sociais e comportamentais, ligadas às novas metodologias e técnicas do trabalho, implicam, porém, que o dito conceito se encontre em permanente actualização (6) e, portanto, a ser reiteradamente questionado, principalmente quanto ao que deva entender-se por facto «exterior à pessoa», tem-se todavia entendido de forma se não absolutamente pacífica com amplo consenso, com nuances mais de terminologia do que de substância, que se trata de um evento que tem a sua causa num facto naturalístico, violento (no sentido de violar o estado anterior da pessoa), exterior ao sujeito, e súbito (no sentido de que tem de existir um facto causal perfeitamente situado no tempo).

Como se sintetizou em Ac. da RL de 24.10.2018, e fazendo apelo ao respectivo sumário, “Estamos perante um acidente de trabalho desde logo quando ocorre um acontecimento ou evento súbito, violento, inesperado e de ordem exterior ao próprio lesado.” (7)

Ora, os factos provados não permitem concluir que o autor sofreu um acidente em tais termos.
Nomeadamente não permitem afirmar que as fortes dores nas costas que sentiu no final do dia de trabalho em causa radicaram num evento súbito/imprevisto, designadamente que tiveram a sua origem na situação que alegou em 10.º da petição inicial.
Mesmo que se adira ao entendimento, que temos por correcto, sufragado no já citado acórdão da RL de 24.10.2018, de que “Esta subitaneidade, porém, deve ser entendida não em sentido absoluto, mas sim em sentido de evento de “duração curta e limitada”, o certo é que a matéria de facto provada não nos permite de forma alguma concluir que foi isso que aconteceu.

Por isso que nos parece também que não calham com a situação fáctica apurada nos autos os doutos arestos jurisprudenciais trazidos à colação pelo recorrente, em que se deram como provados factos que consubstanciavam um evento em que se verificavam os apontados requisitos, nomeadamente da subitaneidade (“ao puxar uma palete de produtos para reposição, sentiu uma dor muito intensa nas costas”; “sentiu uma dor nas costas ao pegar numa pasta”).

Não se nega que o autor padece de lesões/sequelas em consequência das quais esteve com incapacidade temporária absoluta e parcial e ficou portador de uma incapacidade permanente parcial.
Porém, a primeira questão que importa resolver – e sendo negativa a resposta a dar à mesma, ficam prejudicadas as restantes, v.g. o âmbito da eventual reparação – é se o autor sofreu o invocado acidente (alegadamente de trabalho) -, sendo certo que se concluirmos que não, é óbvio que nunca se poderá afirmar que em consequência do acidente, o autor seja portador de quaisquer lesões/sequelas.

Ora, e concluindo, o autor não fez prova de que sofreu o invocado acidente.

Assim, o recurso não pode proceder.

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo do recorrente (sem prejuízo do eventual apoio judiciário).
Notifique.

Guimarães, 03 de Novembro de 2022

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor



1. Artigo este, como os restantes do CPC que vão mencionar-se, aplicáveis por força do disposto no n.º 1 do artigo 87.º do CPT.
2. Cf. https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2015/07/painel3_recursos_henriqueantunes.pdf, pág.s 22/23, onde também se lê: “Com a Reforma dos recursos, aquele ónus – que transitou, qua tale, para o Código de Processo Civil vigente - tornou-se mais exigente: não basta a localização dos depoimentos no registo, pela simples indicação do seu início e do seu fim: reclama-se a indicação, precisa, exacta, das passagens da gravação – o mesmo é dizer dos depoimentos – que, no ver do recorrente, inculcam, para os pontos de facto que reputa mal julgados, uma decisão diferente da que foi achada pelo decisor de facto da 1ª instância.”.
3. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4.ª Ed., pág. 159.
4. Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Ob. Citada pág. 160, e, a título de ex. (e para além do já citado), Ac. do STJ de 06.7.2022, Proc. 3683/20.1T8VNG.P1.S1, Mário Belo Morgado, também em www.dgsi.pt.
5. Cf. neste sentido e a título de exemplo, Ac. TRE de 12-04-2018, Proc. 1004/16.7T8STR.E1, Albertina Pedroso, www.dgsi.pt e António Santos Abrantes Geraldes, Ob. Citada pág. 167.
6. Cf. Ac. RL de 12.10.2011, Proc. 282/09.2TTSNT.L1-4, Albertina Pereira, www.dgsi.pt
7. Proc. 2200/14.7TTLSB-4, Paula Santos, www.dgsi.pt