RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESUNÇÃO DE CULPA
Sumário

1- Afastar a presunção de culpa reconhecida no n.º 1 do artigo 493.º do CC, implica necessariamente ilidir aquela, mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do CC), ou seja, exige-se fazer prova da falta de culpa, ou de que os danos se teriam igualmente verificado, o que tem de resultar de factualidade concreta demonstrada nos autos.
2- No caso em apreço é de considerar que a Apelada logrou provar a falta de culpa no embate do cárter da viatura dos Apelantes no batente do portão de entrada na propriedade da Apelada.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Proc. n.º 930/19.6T8BJA.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja-Juízo Local Cível de Beja-Juiz 1
Apelantes: (…) e (…)
Apelada: (…)
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Sumário do Acórdão
(Da exclusiva responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC)
(…)
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Acordam os Juízes na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
I – RELATÓRIO
(…) e (…) moveram contra (…) a presente acção declarativa condenatória, com processo comum, de responsabilidade civil extracontratual, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia de € 7.197,95, acrescidos de IVA à taxa legal actualmente em vigor, no valor de € 1.655,53, perfazendo, assim, o total actual de € 8.853,48 (oito mil e oitocentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos), acrescidos de juros de mora à taxa legal em vigor desde a citação até efectivo e integral pagamento, necessária à reparação da sua viatura acidentada, bem como a quantia de € 2.905,00 (dois mil e novecentos e cinco euros), bem como a quantia de € 35,00 (trinta e cinco euros) por cada dia que futuramente for decorrendo até à efectiva satisfação / cumprimento pela Ré da peticionada reparação do veículo.
Para tanto, alegaram, em síntese, que a sua viatura automóvel, de marca Smart, com a matrícula (…), sofreu um embate na parte de baixo provocado pelo batente de ferro do portão de acesso às instalações da Ré, porquanto a zona envolvente do indicado batente, apresentava desgaste e abatimento, tendo o mesmo ficado anormal e inusitadamente proeminente, de tal forma que provocou diversos danos no veículo, sendo necessária substituição do motor, ficando os Autores, privados do seu uso.
Citada, veio a Ré apresentar contestação onde sustentou, em síntese, que o Autor não avisou que se deslocaria às instalações da Ré, acrescentando que apesar das características do veículo dos Autores o mesmo entraria facilmente nas instalações pela metade direita da entrada, ladeada pelos muros, ante o sentido da marcha, mais esclarecendo que o embate apenas pode ter sido causado por velocidade inadequada do Autor, não tendo o Autor tomado as devidas precauções ao aceder às instalações.
Os Autores apresentaram uma resposta à contestação
Foi proferido despacho ao abrigo do disposto no artigo 597.º do CPC.
Realizou-se posteriormente audiência final, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“IV. DECISÃO
Conforme os aludidos critérios e fundamentos normativos, julgo a acção improcedente e, em consequência, absolvo do(s) pedido(s) a Ré, (…).
Condeno em custas os Autores, (…) e (…).
Registe e Notifique.”
*
Inconformados, vieram os Autores apresentar requerimento de recurso para este Tribunal da Relação de Évora, alinhando as seguintes conclusões:
(Ver adiante as conclusões sintetizadas).
*
A Ré apresentou resposta ao requerimento de recurso, concluindo do seguinte modo:
“CONCLUSÕES:
A) Não existem factos admitidos por acordo, o que os autores até reconhecem nos artigos 6º e 7º da resposta. Em sede de alegações, porque agora lhes convém, dão o dito por não dito e invocam erro de julgamento por não terem sido dados como provados factos admitidos por acordo, factos que, afinal, expressamente impugnaram.
B) Ao contrário do que alegam os autores, quer os documentos juntos com a petição inicial quer as fotografias constantes do auto de inspecção ao local evidenciam que o batente está assente no solo num maciço de cimento, logo não há qualquer desgaste.
C) O embate com o batente só ocorreu porque o veículo conduzido pelo autor entrou pelo meio do portão e não pela metade direita entre o portão e o muro do lado direito, atento o sentido de marcha. Como evidencia a fotografia de fls. 5 do auto de inspecção ao local, o autor poderia ter entrado pela metade direita entre o batente e o muro, o que deveria ter feito já que a circulação se deve fazer o mais à direita possível e não pelo meio da via.
D) A distância entre o batente e o muro do lado direito, atento o sentido de marcha, é de 2,34 m e a largura do veículo é de 1,56 m. Se o autor tivesse entrado pela metade direita, como podia e deveria ter feito, não teria ocorrido o embate do veículo com o batente.
E) Ainda que existisse piso desgastado à volta do batente o que, sem conceder só por mera hipótese se admite, isso não contribuiria para a produção do acidente já que, se entrasse pelo meio, como aconteceu, as rodas estariam situadas nas extremidades e, por isso, não pisariam o piso desgastado (o cárter está situado a meio do veículo, na zona do motor, e foi o cárter que embateu no batente). Se as rodas do veículo pisassem o piso desgastado, sentir-se-ia desnível. Ora, o autor, em sede de depoimento de parte, afirmou não ter sentido desnível.
F) Concluir, como fazem os autores, que a altura do batente era não de 7 cm mas muito superior e, no mínimo, de 16 cm, é inventar factos, retirar da prova produzida conclusões que ela não permite.
G) O que, a este respeito, foi alegado pelos autores no artigo 22º da petição inicial, de uma forma vaga e conclusiva, é que o batente tinha uma altura “inopinada e não aparente, mas anormal e inusitada, relativamente ao piso/chão circundante”. Pretender transformar conclusões em factos é algo que algo que está vedado às partes. É na petição inicial, e não em sede de alegações de recurso, que devem ser alegados os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
H) Tal como conclui a douta decisão recorrida, sendo a distância do solo ao batente de 6/7 cm, sendo tal distância muito inferior à distância do cárter ao solo (15 cm), “para se ter verificado o embate, a velocidade imprimida ao veículo não poderia estar de acordo com as características do acesso às instalações, isto por referência a critérios de lógica e experiência”.
I) Donde se conclui que não se verifica in casu a presunção do artigo 493.º, n.º 1, do Código Civil, já que a culpa na produção do acidente é da exclusiva responsabilidade do autor.
J) Relativamente ao valor do aluguer, e alegando os autores que a prova de tais factos resulta dos documentos juntos com a petição inicial, o que estão, no fundo a dizer, é que nenhuma outra prova foi produzida. E aquilo a que chamam documentos é apenas a cópia, extraída de um simulador, onde se indicam valores de aluguer para veículos de 4 lugares, quando o veículo dos autores tem 2 lugares (Smart For two). Ou seja, nem sequer de tais “documentos” se pode retirar a conclusão de que tais veículos são semelhantes.
K) Assim, para além da livre apreciação que é concedida ao julgador, as provas foram tão objectivas e claras, que jamais poderiam ter conduzido a diferente interpretação, não merecendo qualquer reparo a douta decisão que daí resultou.”
*
O recurso foi admitido na 1ª Instância como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Distribuídos os autos neste Tribunal da Relação foi proferido o seguinte despacho de relator:
“1.
I-Resulta do artigo 639.º, n.º 1, do CPC, que:
O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”.
II- Decorre, outrossim, do artigo 652.º, n.º 1, do CPC, que ao relator incumbe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente:
a) […] convidar as partes a aperfeiçoar as conclusões das respetivas alegações, nos termos do n.º 3 do artigo 639.º”.
III- Por seu turno, dispõe o referido n.º 3 do artigo 639.º do CPC, que:
Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetiza-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada“.
IV- A este propósito diz-nos o Conselheiro António Abrantes Geraldes (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, Almedina, 5ª edição, 2018, a pág. 155), que:
“As conclusões serão complexas quando não cumpram as exigências de sintetização a que se refere o n.º 1 (prolixidade) ou quando, a par das verdadeiras questões que interferem na decisão do caso, surjam outras sem qualquer interesse (inocuidade) ou que constituem mera repetição de argumentos anteriormente apresentados. Complexidade que também poderá decorrer do facto de se transferirem para o segmento que deve integrar as conclusões, argumentos, referências doutrinais ou jurisprudenciais propícias ao segmento da motivação…Nestes casos, trata-se fundamentalmente de eliminar aquilo que é excessivo, de forma a permitir que o tribunal de recurso apreenda com facilidade as verdadeiras razões nas quais o recorrente sustenta a sua pretensão de anulação ou de alteração do julgado”.
V- Ora, analisando criteriosamente o segmento das conclusões introduzidas no requerimento de recurso dos Apelantes verifica-se que as mesmas padecem notoriamente de falta da necessária sintetização percebendo-se que aqueles lograram canalizar para o segmento das conclusões recursivas uma significativa parte da argumentação que deverá constar apenas do segmento reservado à motivação.
VI- Na verdade, o segmento reservado à motivação do recurso inicia-se apenas na página 3 da peça recursiva estendendo-se até à página 28, contendo 36 pontos, enquanto as conclusões recursivas espraiam-se por 10 páginas, em 26 alíneas, algumas delas com um teor bastante extenso (cfr. alíneas G), H), J), L), S) e V)).
VII- O procedimento seguido em concreto pelos Apelantes ao apresentar um segmento de conclusões que excede um terço da extensão ocupada no recurso pelo segmento da motivação contende, assim, com a razão de ser das conclusões recursivas não contribuindo da melhor forma para que o Tribunal de recurso filtre com a desejável facilidade e rapidez as concretas razões que justificam a pretensão daqueles em ver alterado o julgado da 1ª instância.
VIII- Destarte, convido os Apelantes a no prazo de cinco dias apresentar segmento de conclusões recursivas devidamente sintetizado.
2.DN”
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Notificados do despacho os Apelantes acederam ao convite tendo apresentado novas conclusões com o teor que se passa a transcrever:
“A) Não foi provado, mas devia ter sido, como deve agora em remédio da Sentença e destes manifestos erros de julgamento da matéria de facto e violação do artigo 574.º, n.º 2, do CPC, o facto de que «As folhas do portão encontravam-se não totalmente mas parcialmente abertas», pois isso mesmo foi alegado pelo autor no artigo 20.º da petição inicial e confessado, rectior, admitido, pela contestação da ré por falta de impugnação e mesmo expressamente nos seus artigos 19.º e 21.º.
Também
B) Em erro de julgamento da matéria de facto incorreu a Sentença ao:
B1) dar por provado a 1.ª parte do ponto 8 da matéria de facto – «aquando da realização da manobra, o Autor imprimiu ao veículo velocidade inadequada às condições do caminho»;
B2) não dar por provados os factos de que:
- «O piso / chão do início do caminho de terra batida das instalações da ré, à volta do batente, estava desgastado e abatido relativamente ao piso / chão normal do caminho, fazendo com que o batente tivesse uma altura, inesperada e anormal, relativamente ao piso / chão circundante»;
- «Essa altura do batente (relativamente ao piso / chão circundante) era de pelo menos mais 9 cm e ao todo (relativamente ao plano inferior do piso /chão desgastado e abatido em volta) de pelo menos mais de 16 cm». Efectivamente,
C) As declarações de parte do autor, na audiência de 14-10-2021, entre as 10h29m05s e as 11h08m05s, mormente as passagens referidas nas alegações, com respaldo nos documentos juntos com a petição inicial, mormente nos docs. 11 e 12, o depoimento da testemunha (…), na audiência de 14-10-2021, entre as 11h08m40s e as 11h29m24s, mormente as passagens referidas nas alegações, todos gravados no sistema integrado de gravação digital da aplicação informática em uso no Tribunal, bem como os documentos juntos aos autos com a petição inicial sob docs. 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12, e o auto de inspecção ao local e as fotografias que dele constam, são os meios de prova que, conjugados e concatenados entre si, pelas razões e motivos explicitados nas alegações, impunham, como impõem agora, para remédio de tais erros de julgamento de facto da Sentença, que fosse dado como não provado o facto referido em B1 e como provados os factos referidos em B2. Na verdade,
D) Nenhures existe uma prova que indicie (sequer como possibilidade) quanto mais dar por provado (em termos que passem o critério more likely than not) o Ponto 8 - 1.ª parte - «Aquando da realização da manobra, o Autor imprimiu ao veículo velocidade inadequada às condições do caminho». Aliás,
E) Entre o facto do autor circular e manobrar a viatura e o facto de esta ter embatido no batente do portão existem várias possibilidades de acontecimentos – todos os referidos em B2 e também todos os demais evidenciados nas alegações – que justificam o embate e que são estranhas à velocidade excessiva – cuja não ocorrência até se demonstra – e que não permitem fazer decorrer e concluir, por meros critérios de lógica e experiência comum, essa velocidade inadequada. Por conseguinte,
F) Ajuizando desse modo, à revelia da falta de prova pela ré, incorreu a Sentença em clamoroso erro de julgamento da matéria de facto e violação da norma legal do artigo 349.º do CC. Ademais,
G) A Sentença violou as normas do artigo 570.º do CC e do artigo 576.º/3, do CPC, pois tal matéria, de velocidade excessiva e inadequada do veículo do autor, constitui excepção de culpa do lesado impeditiva da responsabilidade civil indemnizatória e tem o ónus da sua prova acometido à ré a quem aproveita com a consequência da sua falta ser contra si resolvida, dando-se por não provada, nos termos do artigo 342.º/2, do CC e do artigo 414.º do CPC, contrariamente ao que em violação de tais normas legais foi decidido.
H) Isto, se acaso o Ponto 8 - 1.ª parte – dos factos provados – «Aquando da realização da manobra, o Autor imprimiu ao veículo velocidade inadequada às condições do caminho» se tratar de matéria de facto, que não trata, pois se está perante um juízo conclusivo e valorativo sem qualquer concretude fáctica, que, como tal, sempre deve ser expurgada da decisão. Por outro lado,
I) Mesmo que não comprovados os factos referidos em B2, integrando presunção legal do artigo 493.º, n.º 1, e nos termos do artigo 350.º, n.º 1, do CC, tal matéria tem que ser, em remédio da Sentença e da violação destas normas legais acabada de referir em que incorreu, dada como provada. Ainda
J) O facto de que «o valor de aluguer de um veículo semelhante ao veículo dos autores é de pelo menos € 34,00 por dia», se de facto público e notório se não tratar, encontra-se verificado pelos documentos 28 e 29 como tal referidos na petição inicial e juntos aos autos com o requerimento dos autores de 19-06-2019, pelo que deve o mesmo ser agora dado como provado, contrariamente ao que em erro de julgamento não fez a Sentença recorrida. Assim,
K) À luz dos artigos 483.º, n.º 1, 492.º, n.º 1, 493.º, n.º 1 e 562.º e ss. do CC, perante a factualidade dos factos provados da Sentença e da que resulta de I, II e III das alegações e A e B das presentes conclusões, verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil indemnizatória: facto (o acidente) ilícito (violação do direito patrimonial e propriedade dos autores sobre a viatura e sua integridade e utilidades) e culposo (desgaste e abatimento do solo à entrada/portão/ junto ao batente em desconformidade das instalações imóveis da ré com deveres de vigilância e manutenção e conservação das mesmas e suas condições de segurança e funcionamento a fim de evitar danos em pessoas e bens) gerador de danos para os autores. Aliás,
L) A ré responde acrescidamente nos termos dos artigos 492.º, n.º 1 e 493.º, n.º 1, do CC, presumindo-se a culpa da ré traduzida no desgaste e abatimento do solo (à entrada/portão/ junto ao batente) em desconformidade das instalações imóveis da ré com deveres de vigilância e manutenção e conservação das mesmas e suas condições de segurança e funcionamento a fim de evitar danos em pessoas e bens.
Assim,
M) Julgando como julgou, a Sentença ignorou incorrendo em violação dos regimes jurídicos e normas legais acabados de referir em K e L. Ademais,
N) A Sentença não aplicou e assim violou o regime jurídico atinente ao dano incorrido e correspondente obrigação de indemnizar e sua medida previsto nos artigos 562.º e ss. do CC, pois, perante a factualidade provada 9 a 16 da Sentença e a que resulta de III das alegações e J das presentes conclusões, encontram-se verificados prejuízos dos autores no valor de € 8.853,48 (com juros desde a citação até pagamento) e no valor diário de € 34,00 desde 28-03-2019 até à sua liquidação em decisão que reconheça tal montante (com juros sobre a quantia assim apurada desde essa decisão até pagamento), e deles os autores devem ser indemnizados pela ré.
O) Que é o que no presente recurso deverá decidir-se, revogando a Sentença recorrida e julgando em seu remédio e ao invés a acção procedente”.
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A Apelada não respondeu à peça processual de aperfeiçoamento das conclusões apresentada pelos Apelantes.
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Dispõe o artigo 639.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC), que:
“3- Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada”.
Os Recorrentes foram convidados a aperfeiçoar as respectivas conclusões recursivas no sentido de as sintetizar e apresentaram em prazo nova peça recursiva, a qual não mereceu resposta.
Apreciando:
Cotejando o teor das conclusões inicialmente apresentadas com o das conclusões constantes da peça processual enviada aos autos em resposta ao convite ao aperfeiçoamento verifica-se que houve algum esforço da parte dos Apelantes no sentido de as tornar menos extensas em prol do cumprimento legal do dever de sintetização sendo certo que se mostram perceptíveis os fundamentos pelos quais se pede a alteração do julgado.
Por outro lado, não se olvida o sentido jurisprudencial emanado do Supremo Tribunal de Justiça que vem sustentando a necessidade de parcimónia e cautela na apreciação das conclusões aperfeiçoadas, com vista a determinar a rejeição do recurso apenas em situações limitadas.
Neste sentido, entre outros, destacamos o Acórdão, relatado pela Conselheira Rosa Ribeiro Coelho, proferido em 19/10/2017 (Proc. 1577/14.9T8STR.E1.S1), de que nos permitimos reproduzir o seguinte trecho, constante da respectiva nota sumativa:
“II-Vem, desde há muito, sendo sedimentado na jurisprudência deste STJ o entendimento segundo o qual só em casos extremos a deficiente reformulação das conclusões, após convite dirigido pelo relator à parte deve dar lugar ao não conhecimento do recurso.
III-Introduzindo o recorrente, após convite formulado para o efeito, uma significativa redução do número e conteúdo das conclusões e sendo facilmente apreensível, embora ainda longe da perfeição, a linha de raciocínio, não há motivo para deixar de conhecer o recurso”.
Dito isto, sem embargo de no caso concreto os Recorrentes em apreço poderem certamente ter ido ainda um pouco mais longe em sede de redução do conteúdo das conclusões recursivas, não olvidando, porém, que lograram reduzi-las em oito alíneas, o que no caso concreto significa cerca de 1/3 das conclusões iniciais, a tal acrescendo o terem reduzido igualmente a extensão de várias alíneas, entendemos ser de conhecer do objecto do recurso.
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O recurso é o próprio e foi adequadamente recebido quanto ao modo de subida e ao efeito fixado.
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Colheram-se os Vistos.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do CPC, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que as questões a apreciar e decidir traduzem-se objectivamente no seguinte:
1- Impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
2- Reapreciação de mérito, centrada na verificação dos pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, mormente culpa da Apelada.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Decorre da sentença recorrida o seguinte quanto a matéria de facto:
“Com relevo para o presente juízo jurisdicional resultaram provados os seguintes factos:
1. O Autor, (…), casado com (…), sob o regime de comunhão de adquiridos, adquiriu, em 05-02-2013, à Sociedade Comercial (…), Lda. o veículo Smart For Two Coupé CDI 40, a gasóleo, com 799 cm3 de cilindrada e 40 kw (54cv) de potência, de matrícula (…).
2. O indicado veículo não tem chapa protectora para a parte inferior do motor (cárter), a zona do motor, localizada na retaguarda do veículo não tem resguardo de protecção; o veículo tem chapa plástica na parte inferior dianteira, ou seja, tem um resguardo de protecção na zona inferior dianteira; a largura do veículo é 1,56m; a distância do cárter ao solo é de, aproximadamente, 15 cm.
3. O Autor (…) é coordenador do Centro de Acolhimento e Protecção a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos da Instituição de Utilidade Pública e Solidariedade Social Saúde em Português – Associação Profissional de Cuidados de Saúde dos Países de Língua Portuguesa, exercendo as respectivas funções em isenção de horário de trabalho, deslocando-se por todo o País na sua actividade.
4. Nessa actividade, em 28 de Março de 2019, (…) deslocou-se no referido veículo à Comunidade Terapêutica (…), sito no Monte da (…), (…), instalações pertencentes à Ré para ir buscar o utente, (…), com vista a levá-lo ao Tribunal Judicial de Évora para prestar depoimento.
5. O Autor para aceder às indicações instalações, vindo da Rua (…), tinha que circular por um caminho em terra batida, com piso irregular, até ao portão de acesso.
6. À entrada das instalações existe um portão, apoiado nos muros, constituído por duas folhas e apoiado ao centro num batente.
7. A largura de entrada é de aproximadamente 4,80metros; o batente encontra-se situado ao meio e entre o batente e o muro do lado direito, no sentido de quem entra nas instalações, a distância é de aproximadamente 2,34 metros; a distância do solo ao batente é de aproximadamente 6 a 7 cm.
8. Aquando da realização da manobra, o Autor imprimiu ao veículo velocidade inadequada às condições do caminho, tendo, na passagem pelo portão, que se encontrava parcialmente aberto, o veículo embatido no batente de ferro ali localizado [no meio do portão].
9. Ao embater no indicado batente, o motor foi perfurado e rasgado, tendo subsequentemente o veículo ficado imobilizado e sem trabalhar, deixando uma poça de óleo do motor no chão.
10. Subsequentemente, o veículo foi retirado do local por reboque e deu entrada nas oficinas da Concessionária da marca Smart em (…) – (…) – em 2 de Abril de 2019.
11. A reparação do veículo [do respectivo motor] foi estimada no montante de € 7.197,95 acrescidos de IVA.
12. Os Autores utilizavam o aludido veículo nas suas deslocações pessoais e familiares, sendo que o Autor, também, a usava em deslocações de cariz profissional, por o mesmo, no âmbito das suas funções, se ter que deslocar por todo o País.
13. A Autora exerce actividade profissional e laboral de médica no IPO de (…), sendo o seu horário de trabalho de segunda a sexta-feira das 9 às 17 horas.
14. Os autores têm dois filhos, sendo que o filho frequentava no ano lectivo de 2018/2019 o 1.º Ano do Ensino Básico na Escola Básica da (…), em (…), e depois das aulas, às terças e sextas-feiras, entre as 18h15m e as 19h30m, a Escola de Futebol de (…) do Benfica, no Campo do Clube Desportivo (…), Rua (…), na (…), em (...) e às segundas-feiras, entre as 17h30m e as 19h, na Escola Básica (…), em (…), aulas de teatro, e a filha frequentava no ano lectivo de 2018/2019 a creche (24-36meses) da Fundação (…), em (…), (…).
15. Os Autores utilizavam ainda outro veículo para, de forma autónoma, proceder às suas deslocações.
16. O preço de um veículo semelhante ao indicado no ponto 1 da matéria de facto é de aproximadamente € 13.402,01.
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Não se lograram provar quaisquer outras circunstâncias fácticas, não foram consideradas as circunstâncias conclusivas alegadas, as alegações de direito, e as circunstâncias fácticas irrelevantes para o presente juízo jurisdicional”.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Iniciemos este segmento com a análise da primeira questão definida no objecto do recurso em 1.
Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que:
A relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Refere sobre este normativo o Conselheiro António Abrantes Geraldes (“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, Almedina, pág. 287), o seguinte:
“O actual artigo 662.º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava …através dos nºs 1 e 2 , alíneas a ) e b ), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do principio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.
Em sede de formação da convicção do julgador e por remissão expressa feita a partir do artigo 663.º, n.º 2, última parte, do CPC, mostra-se aplicável o artigo 607.º, do mesmo diploma legal, que, na parte que ora releva, estatui o seguinte:
[…]
“4. Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
5.O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Resulta do artigo 640.º do CPC, que se debruça sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, o seguinte:
“1-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
[…] “
A este propósito sustenta o Conselheiro António Abrantes Geraldes (obra acima citada, a págs. 168-169), que a rejeição total ou parcial respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve ser feita nas seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (artigo 640.º, n.º 1, a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, esclarecendo, ainda, que a apreciação do cumprimento de qualquer uma das exigências legais quanto ao ónus de prova prevenidas nos mencionados nºs 1 e 2, a ), do artigo 640.º, do CPC, deve ser feita “à luz de um critério de rigor”.
Isto dito baixemos ao caso concreto.
Pretendem os Apelantes que se considere como provado o seguinte:
-“As folhas do portão encontravam-se não totalmente, mas parcialmente abertas»;
-«O piso/chão do início do caminho de terra batida das instalações da ré, à volta do batente, estava desgastado e abatido relativamente ao piso/chão normal do caminho, fazendo com que o batente tivesse uma altura, inesperada e anormal, relativamente ao piso / chão circundante»;
-«Essa altura do batente (relativamente ao piso / chão circundante) era de pelo menos mais 9 cm e ao todo (relativamente ao plano inferior do piso/chão desgastado e abatido em volta) de pelo menos mais de 16 cm»;
-“O valor de aluguer de um veículo semelhante ao veículo dos Autores é de pelo menos € 34,00 por dia”.
Desde logo no que concerne ao primeiro ponto destacado correspondente a “As folhas do portão encontravam-se não totalmente, mas parcialmente abertas», verifica-se que o essencial desse facto resultou provado tendo sido vertido precisamente no ponto 8 da matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida, que passamos a transcrever:
“8. Aquando da realização da manobra, o Autor imprimiu ao veículo velocidade inadequada às condições do caminho, tendo, na passagem pelo portão, que se encontrava parcialmente aberto, o veículo embatido no batente de ferro ali localizado [no meio do portão] (realce a itálico nosso).
Pelo que improcede desde logo a impugnação apresentada quanto ao facto em apreço, pois consta como provado na sentença recorrida que o portão se encontrava parcialmente aberto, sendo essa a essência do facto que os Apelantes pretenderam relevar.
No tocante à pretendida inserção no segmento dos factos considerados como provados dum ponto com o teor «O piso/chão do início do caminho de terra batida das instalações da ré, à volta do batente, estava desgastado e abatido relativamente ao piso/chão normal do caminho, fazendo com que o batente tivesse uma altura, inesperada e anormal, relativamente ao piso / chão circundante», verifica-se que corresponde grosso modo ao que foi alegado no ponto 22.º da petição inicial, percebendo-se ainda que a formulação pretendida comporta em si não uma descrição de factos naturalísticos, mas sim uma outra eivada de conceitos vagos, imprecisos, traduzida em juízos conclusivos sobre factos (“fazendo com que o batente tivesse uma altura inesperada e anormal”).
Em todo o caso e ainda que assim não se entendesse sempre o resultado da inspeção judicial que foi efectuada ao local, consignada em Auto, devidamente documentada com registo fotográfico, nos permitiria chegar a convicção contrária à dos Apelantes.
Improcede, pois, também quanto a este ponto, a impugnação apresentada pelos Apelantes.
Já quanto ao outro ponto, cuja inserção nos factos provados se pretende, correspondente a «Essa altura do batente (relativamente ao piso / chão circundante) era de pelo menos mais 9 cm e ao todo (relativamente ao plano inferior do piso/chão desgastado e abatido em volta) de pelo menos mais de 16 cm», impõe-se deixar claro que nem em sede de petição inicial, nem da resposta que apresentaram à contestação, os Autores, ora Apelantes, lograram alegar um ponto de facto com tal conteúdo, (menos ainda o tendo alegado a Ré, ora Apelada), o que basta para considerar também como improcedente a impugnação apresentada no tocante ao ponto em apreço, sem embargo de se acrescentar que o resultado da inspecção judicial efectuada ao local, acima salientada, sempre contrariaria flagrantemente as medidas invocadas pelos Apelantes.
O mesmo sucede, aliás, relativamente ao ponto de facto que se pretende integre o segmento dos factos provados da sentença recorrida com a seguinte fórmula:
“O valor de aluguer de um veículo semelhante ao veículo dos autores é de pelo menos € 34,00 por dia”.
Na verdade, compulsando mais uma vez os articulados e designadamente a petição inicial e resposta apresentada à contestação percebemos que os Apelantes não alegaram propriamente tal facto (e tão pouco a Apelada o fez), tendo no artigo 63.º da petição inicial os primeiros alegado concretamente que: “Ora, o aluguer de um veículo de caraterísticas semelhantes (mesmo até de marca inferior e sem a singularidade do veículo dos Autores) ao da danificada viatura dos Autores, como um Fiat 500 de 2 portas ou Volkswagen Up de 2 portas, orça na quantia diária de € 35,00 – cfr. docs. 28 e 29 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos”.
De todo o modo, ainda que assim não se entendesse, a verdade é que da análise dos identificados documentos n.ºs 28 e 29 apresentados pelos ora Apelantes, a 19/06/2019, em complemento da petição inicial, não resulta demonstrado o pretendido por aqueles, visto que além dos ditos documentos apenas reproduzirem meras simulações estas respeitam a automóveis de marca diferente (que não “inferior” como o rotulam os Apelantes), do veículo sinistrado dos Apelantes não sendo de todo líquido que possamos enquadrar este último em viatura ”similar” a qualquer uma das outras duas consideradas pelo simulador.
Com efeito, como é sabido, a viatura Smart For Two, Coupé, do ano de 2013, apresenta características muito específicas designadamente a nível de dimensões, de espaço útil para ocupantes (apenas 2), assim como para bagagem (disponível num pequeníssimo compartimento situado entre o encosto dos únicos dois bancos e o portão traseiro), o que não sucede nem como o Fiat 500 de 2 portas, nem como o Volkswagen Up, (modelo que apenas tem duas portas), ambas viaturas que, não obstante possuírem reduzidas dimensões e as ditas duas portas atenta a função de citadinos, são notoriamente mais compridos que o Smart, além de cada uma delas disponibilizar quatro definidos lugares para passageiros.
Do exposto resulta ainda quanto ao ponto de facto em análise igualmente improcedente a impugnação apresentada pelos Apelantes.
Prosseguindo na apreciação da impugnação apresentada pelos Apelantes contra a decisão relativa à matéria de facto plasmada na sentença recorrida verificamos que os Apelantes pretendem a modificação parcial da redacção conferida ao facto vertido sob o ponto 8 dos factos considerados como provados sustentando não ter resultado provada a parte inicial do mencionado ponto de facto, concretamente que:
“Aquando da realização da manobra, o Autor imprimiu ao veículo velocidade inadequada às condições do caminho”.
Na reação contra a comprovação da parte impugnada do ponto em apreço os Apelantes invocam ainda que o mesmo consubstancia “um juízo conclusivo e valorativo sem qualquer concretude fáctica, que, como tal, deve ser expurgada da decisão.”
Pensamos que no tocante a este último argumento os Apelantes têm razão.
Na verdade, a questão da velocidade imprimida ao veículo por parte do Co-Apelante (…) no momento da travessia do portão de acesso às instalações da Apelada foi suscitada por esta na respectiva contestação em sede de defesa por excepção sendo certo, porém, que a formulação abraçada pelo Tribunal recorrido não ilustra um facto naturalístico e concreto passível de quantificar devidamente a velocidade a que a viatura seguiria naquele momento.
Com efeito e em rigor descrever a velocidade como “inadequada às condições do caminho” nem sequer permite concluir inequivocamente no sentido de a viatura ter sido impulsionada em velocidade excessiva para as condições do local e piso.
Tal não significa que o juízo exposto pelo Tribunal recorrido no segmento da sentença recorrida destinado à motivação/convicção do julgador apontando, ai sim, para a circulação do veículo dos Apelantes em velocidade excessiva para as características do local no momento do embate no batente não possa estar correcto de acordo com a lógica e experiência comum.
Simplesmente, resultando essa ilação de um juízo presuntivo feito a partir de outros factos naturalísticos e concretos considerados assentes, constitutivos de excepções invocadas e/ou complementares dos mesmos (os quais devem, esses sim, integrar a fundamentação de facto de acordo com o disposto no artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, b), do CPC), não deve o mesmo integrar a descrição da matéria que fundamenta de facto a sentença, sem embargo de tal juízo/ilação poder e dever ser explanado aquando da construção da motivação do julgador e em sede de fundamentação de direito.
A este propósito atente-se designadamente na parte final do n.º 4 do artigo 607.º do CPC quando refere (“[…] e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”).
Destarte, afigura-se ser de suprimir a parte inicial do facto vertido sob o ponto 8 da matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida, procedendo nesta parte a impugnação apresentada pelos Apelantes, passando o dito facto a ter a seguinte redacção (mantendo-se quanto ao demais inalterada a descrição da matéria de facto efectuada pelo Tribunal a quo na sentença recorrida, pelo que nos abstemos agora de a reproduzir):
8. Na passagem pelo portão, que se encontrava parcialmente aberto, o veículo embateu no batente de ferro ali localizado [no meio do portão].
Por todo o exposto, resulta parcialmente procedente a impugnação dirigida contra a matéria de facto apresentada pelos Apelantes.

2-Reapreciação de mérito
Segue-se a abordagem da segunda e última questão objecto do recurso atinente à reapreciação de mérito.
Sustentam os Apelantes a sua pretensão indemnizatória com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito invocando, em suma, o seguinte argumentário, que traduziram nas conclusões recursivas aperfeiçoadas:
“K) À luz dos artigos 483.º, n.º 1, 492.º, n.º 1, 493.º, n.º 1 e 562.º e ss. do CC, perante a factualidade dos factos provados da Sentença e da que resulta de I, II e III das alegações e A e B das presentes conclusões, verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil indemnizatória: facto (o acidente) ilícito (violação do direito patrimonial e propriedade dos autores sobre a viatura e sua integridade e utilidades) e culposo (desgaste e abatimento do solo à entrada/portão/ junto ao batente em desconformidade das instalações imóveis da ré com deveres de vigilância e manutenção e conservação das mesmas e suas condições de segurança e funcionamento a fim de evitar danos em pessoas e bens) gerador de danos para os autores. Aliás,
L) A ré responde acrescidamente nos termos dos artigos 492.º, n.º 1 e 493.º, n.º 1, do CC, presumindo-se a culpa da ré traduzida no desgaste e abatimento do solo (à entrada/portão/ junto ao batente) em desconformidade das instalações imóveis da ré com deveres de vigilância e manutenção e conservação das mesmas e suas condições de segurança e funcionamento a fim de evitar danos em pessoas e bens.
Assim,
M) Julgando como julgou, a Sentença ignorou incorrendo em violação dos regimes jurídicos e normas legais acabados de referir em K e L.”
Vejamos:
Resulta do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil (doravante apenas CC), o seguinte:
“1. Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelo danos resultantes da violação.”
Estatui o artigo 487.º, n.º1, do mesmo diploma legal, que:
“É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.”
Já o artigo 492.º, n.º 1, do CC dispõe que:
O proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.”
Por seu turno resulta da previsão do artigo 493.º, n.º 1, sempre do CC, que:
Quem tiver em seu poder coisa móvel, ou imóvel, com o dever de a vigiar e bem assim quem tiver assumido o encargo de vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
Os Apelantes pretendem a responsabilização da Apelada pelo pagamento do montante correspondente à reparação dos danos causados no seu veículo e bem assim pela privação do uso do mesmo.
Conforme se depreende dos normativos acima transcritos a responsabilidade extracontratual por facto ilícito pressupõe a verificação de um facto, (por acção ou omissão), a ilicitude do mesmo, ou seja a contrariedade a normas destinadas a proteger direitos de terceiros, ou interesses alheios, a culpa do agente no sentido do facto ilícito lhe ser censurável, ou seja imputável à sua conduta, a produção de danos no lesado ou em bens de sua pertença e o nexo de causalidade entre o facto ou omissão e a produção desses danos na esfera do lesado.
Compete ao lesado provar os mencionados requisitos ou pressupostos, inclusive, como regra, o da culpa. Porém, quanto a esta há excepções, precisamente nos casos em que se presume a culpa do lesante, competindo nessas situações a este último ilidir essa presunção legal.
Revertendo aos contornos específicos do caso concreto e analisando conjugadamente entre si os factos considerados como definitivamente provados na sentença recorrida sob os pontos 1 a 9 deveremos desde logo afastar a previsão constante do artigo 492.º, n.º 1, do CC, uma vez que os danos produzidos na viatura dos Apelantes não resultaram da ruína total, ou parcial, de qualquer edifício, ou obra pertença da Apelada.
Também poderemos afastar a aplicabilidade do normativo que define o regime geral da responsabilidade civil, também acima transcrito, visto que o mesmo pressupõe que o facto danoso foi praticado pelo próprio lesante, ainda que com recurso a coisas ou animais e não por uma coisa pertença do mesmo.
Ponderando, então, a aplicabilidade ao caso vertente da previsão constante do n.º 1 do artigo 493.º do CC, vejamos, desde já, o que sobre ela refere Mário Júlio de Almeida Costa (“Direito da Obrigações”, Almedina, 12ª edição revista e actualizada, 2018, págs. 586-587).
“Também existe presunção de culpa em relação à responsabilidade de quem detenha coisa móvel ou imóvel com dever de vigiá-la […] pelos danos causados por essas coisas.
[…]
De novo se afasta a responsabilidade através da prova da falta de culpa ou de que os danos se teriam igualmente verificado […]”
Assim, afastar a presunção de culpa reconhecida no transcrito n.º 1 do artigo 493.º do CC, implica necessariamente ilidir aquela, mediante prova em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do CC), ou seja, exige-se fazer prova da falta de culpa, ou de que os danos se teriam igualmente verificado, o que tem de resultar de factualidade considerada concretamente como demonstrada nos autos.
Sublinhe-se que o facto danoso no caso concreto assenta indiscutivelmente no embate da parte inferior do motor do veículo dos Apelantes, localizado à retaguarda do mesmo, onde se situa o cárter, (a qual carece de qualquer protecção ao contrário do que sucede no tocante à zona inferior dianteira da dita viatura que possui uma chapa plástica de protecção), no batente do portão que permite o acesso à propriedade da Apelada, o qual provocou a perfuração do cárter com a consequente sangria imediata do óleo do motor da viatura e imobilização do mesmo.
Do exposto na sentença recorrida percebe-se que o Tribunal a quo entendeu que a presunção de culpa da Apelada resultou desde logo afastada por ser de concluir, em face dos factos apurados e por recurso aos ditames da lógica e experiência comum, que no momento do embate do veiculo dos Apelantes no batente do portão aquele veículo seguiria em velocidade excessiva para as condições do local em apreço, considerando como tal o Co-Apelante (…) culpado pelo embate, o que (acrescentamos agora), permitiria reconduzir a situação ao disposto no n.º 2 do artigo 570.º do CC, que estatui precisamente o seguinte:
2-Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.”
Relembrando, agora, o que supra sustentamos em sede de apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto suscitada pelos Apelantes o juízo assente em velocidade inadequada, entenda-se excessiva, imprimida ao veículo pelo Co-Apelante (…) aquando da travessia do portão sobre o respectivo batente afigura-se admissível para a fundamentação de mérito mesmo sem o incluir , precisamente por se tratar de um juízo conclusivo e não descrever um facto concreto e naturalístico, no segmento dos factos provados, visto ser viável extrai-lo conjugando o que resultou provado relativamente à altura do batente, bem como às características da viatura dos Apelantes, mormente a distância do cárter da mesma ao solo, sem esquecer alguma irregularidade deste último própria da terra batida, permitindo assim concluir que a velocidade que animava a viatura no momento da travessia do portão terá, com alto grau de probabilidade, causado alguma oscilação nos amortecedores do veículo apta a provocar o rebaixamento do chassis do veículo causando o assentamento da parte inferior situada à retaguarda da viatura onde se encontra o motor e o cárter do mesmo no batente tornando inevitável o embate no mesmo.
Sem embargo, julgamos que no caso em apreço a fundamentação mais acertada passa desde logo por considerar ilidida pela Apelada a presunção de culpa que sobre si recaia resultante dum dever de vigilância incidente sobre as condições do portão de entrada na sua propriedade e mormente da zona especifica de fecho do portão onde se localiza o batente.
Na verdade, tendo resultado provado, designadamente através de inspecção judicial realizada ao local, que a distância do solo ao batente de ferro localizado no meio do portão é de apenas 6 a 7 cm, que, por outro lado, a distância do cárter ao solo na viatura dos Apelantes é de aproximadamente 15 cm, o que permitiria que o mesmo passasse em condições de absoluta normalidade sobre o batente em causa sem que o cárter da viatura nele tocasse, que o portão encontrava-se parcialmente aberto (sem que tivesse resultado demonstrado que tal abertura impedia a circulação da viatura designadamente pela metade direita no sentido de quem entra nas instalações da Apelada) e nada mais tendo resultado provado compatível com falta de adequada vigilância, manutenção e conservação do portão e zona envolvente ao mesmo por parte da Apelada, concretamente desgaste e abatimento do solo à entrada do portão junto ao batente susceptível de provocar uma distância do solo ao batente igual ou superior à provada distância entre o cárter do veículo sinistrado e o solo, cremos poder sustentar que a Apelada ilidiu devidamente a presunção decorrente da parte final do artigo 493.º, n.º 1, do CC, pois provou que nenhuma culpa teve no embate ocorrido entre o batente do portão da sua propriedade e o cárter da viatura dos Apelantes.
Não havendo culpa falta um dos requisitos essenciais da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, não podendo, consequentemente, condenar-se a Apelada ao pagamento das quantias peticionadas na acção a título indemnizatório pelos Apelantes.
Conclui-se, assim, pela improcedência das conclusões recursivas igualmente quanto a esta última questão abordada, de que resulta improceder na totalidade o presente recurso, mantendo-se a sentença recorrida ainda que com fundamentação não exactamente coincidente com a exposta naquela.
*
V- Decisão
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em negar provimento ao presente recurso de Apelação interposto por (…) e (…) e, em consequência, decidem o seguinte:
1-Confirmar a sentença recorrida;
2-Fixar as custas a cargo dos Apelantes (artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
*
Évora, 27 de Outubro de 2022
José António Moita (Relator)
Mata Ribeiro (1º Adjunto)
Maria da Graça Araújo (2ª Adjunta)