EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
INTEGRAÇÃO DAS LACUNAS DA LEI
Sumário

1 – O regime previsto nos artigos 876.º e seguintes do CPC está estruturado para o cumprimento da obrigação de “não fazer”, isto é, para os casos em que a obrigação exequenda (uma prestação de facto) foi incumprida por meio de uma violação positiva. Com efeito, o regime processual da execução para prestação de facto negativo constante dos artigos 876.º e seguintes do CPC destina-se tão só a remover ou a ressarcir as consequências das situações em que há violação, por banda do executado de um dever de omissão, violação que se traduz necessariamente na realização de um ato; a execução destina-se, neste caso, apenas a remover aquilo que foi indevidamente praticado ou, quando isso não seja possível, a ressarcir o credor dos prejuízos sofridos com a atuação do credor.
2 – A lei processual não prevê a execução de prestação de facto negativo para as situações em que a obrigação exequenda é uma obrigação de tolerar uma determinada atividade do credor / exequente, o que significa que existe uma lacuna jurídica, a qual deve ser integrada de acordo com o disposto no artigo 10.º do Código Civil.
3 – A pretensão do credor exequente de obter por parte do tribunal de execução uma ordem dirigida ao executado para não colocar mais obstáculos à realização do caminho a executar pelo Exequente na localização estabelecida no título executivo, acompanhada da advertência expressa de que o seu não acatamento o fará incorrer em crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal não pode proceder e nunca se poderia fundar numa alegada «interpretação teleológica» do artigo 876.º do Código de Processo Civil, o qual tem como um dos seus princípios estruturantes, o de que não pode ser usada coerção pessoal sobre o executado para o compelir a realizar o facto que é objeto da obrigação exequenda.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 1493/14.4T8SLV-E.E1
(2.ª Secção)

Relator: Cristina Dá Mesquita

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
I.1.
(…), exequente na ação executiva para entrega de coisa certa que interpôs contra (…), interpôs recurso do despacho proferido pelo Juízo de Execução de Silves, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o qual tem o seguinte teor:

«Deliberou-se na Relação de Évora que o Executado está sujeito a uma prestação de facto infungível. Mas que não era de fixar a sanção pecuniária compulsória determinada pelo Tribunal porque afinal “ainda não está executado o novo caminho”.
E diz-se que o Tribunal não se pronunciou sobre as demais pretensões do Exequente – que este reputa como necessárias ao cumprimento do “non facere”.
Também aquela condenação na sanção pecuniária compulsória foi revogada “em ordem a garantir que a sanção aplicada se dirige ao cumprimento da obrigação assumida pelo executado no título executivo”.
No estrito cumprimento do deliberado, dizemos o seguinte.
Está em causa o despacho de 30 de outubro de 2021, cujo teor é:
Da pretensão que cabe ao Tribunal atender:
Diz o exequente que pretende obter uma prestação de facto negativo, posto que a linha divisória está traçada e construído o caminho e, por isso, apenas falta assegurar que o Executado respeita o já concretizado. Pelos vistos, nada há a realizar, em termos efetivo, para cumprir o acordado, mas apenas garantir que o executado respeita o que foi feito.
E vem ao tribunal pedir:
a) Que se emita ordem ao executado para não colocar mais obstáculos à realização do caminho a executar pelo Exequente na localização estabelecida no título executivo, o qual caminho se identifica no mapa anexo;
b) Que essa ordem seja enviada com a advertência expressa de que o seu não acatamento o fará incorrer em crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal;
c) Que seja fixada sanção pecuniária compulsória em caso de violação, nos termos já requeridos no requerimento inicial, de valor de não menos de € 7.500,00 por cada dia de violação da obrigação do executado ou, sem conceder e subsidiariamente, de valor julgado equitativo pelo Distinto Tribunal suficiente para dissuadir o executado desse incumprimento, tudo sem prejuízo da indemnização a liquidar em caso de incumprimento;
d) Que se declare a permissão de execução da referida obra pelo Exequente no terreno do executado identificado nos autos, de modo a que se possa extrair certidão que possa ser exibida às entidades perante as quais tal se afigure necessário para a realização da obra.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 876.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, enquadra-se no regime legal a pretensão do Executado de fixação da sanção pecuniária compulsória por cada dia de incumprimento do acordado entre as partes.
A fixação de € 7.500,00 por cada dia de incumprimento é manifestamente desproporcionada.
Assim sendo, considera-se justo e adequado a fixação de uma sanção pecuniária compulsória de € 1.000,00 (mil euros) por cada dia em que se verificar o incumprimento, pelo executado, da obrigação de respeitar a obra entretanto já realizada pelo Exequente, em cumprimento da transação judicial homologada.
Notifique-se.»
“Tolerar a abertura de nova serventia” diz-se ser a obrigação do executado.
Salvaguarda-se mais uma vez o valor de 7.500,00€ que se mostra desproporcionado e excessivo e se reduz para € 1.000,00 “por cada dia de violação da obrigação pelo executado” (usando a precisa expressão da Relação).
Quanto ao mais:
Esta Primeira Instância não omitiu nenhuma pronúncia sobre as demais pretensões do Exequente. Quando determinou que:
de acordo com o disposto no artigo 876.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, enquadra-se no regime legal a pretensão do Executado de fixação da sanção pecuniária compulsória por cada dia de incumprimento do acordado entre as partes”.
Quis dizer que as demais pretensões não se enquadram no citado artigo.
Não terá feito entender-se. Nem sequer depois de se pronunciar sobre as nulidades invocadas em sede de despacho de admissão de recurso, de 25 de fevereiro de 2022, onde até se aludiu à “criatividade” do Exequente para deduzir pretensões desnecessárias ao cumprimento coercivo da obrigação.
Então, repete-se:
Esta Primeira Instância entende que as demais pretensões não têm fundamento legal, à luz do citado artigo – e resumem-se ao que veio a designar depois (no despacho de 25 de fevereiro de 2022) de alimento para “chicana vicinal e processual”.
Daí resulta a lógica conclusão do seu indeferimento.
Indeferimento que mantemos talqualmente se havia aqui decidido».

I.2.
O recorrente formula alegações que culminam com as seguintes conclusões:
«I. Está em causa uma execução para prestação de facto negativo, na sub-modalidade de permissão (pelo executado) de uma obra por terceiro (exequente), mais concretamente consistente em que o Executado se abstenha de obstar à definição de uma determinada linha divisória num seu terreno (aspeto já alcançado nos autos) e que se abstenha de obstar à realização pelo exequente de um novo caminho numa parte desse terreno definida por essa linha – obrigação exequenda, ainda por atingir nos autos e que corresponde ao que falta da obrigação exequenda objeto desta execução.
II. No seu requerimento de 20.01.2020 (ref.ª Citius 34597147), o Exequente peticionou o que se afigura estritamente necessário para que se cumpra o objeto desta execução, a saber:
a) Que se emita ordem ao executado para não colocar mais obstáculos à realização do caminho a executar pelo Exequente na localização estabelecida no título executivo, o qual caminho se identifica no mapa anexo;
b) Que essa ordem seja enviada com a advertência expressa de que o seu não acatamento o fará incorrer em crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal;
c) Que seja fixada sanção pecuniária compulsória em causa de violação, nos termos já requeridos no requerimento inicial, de valor de não menos de € 7.500,00 por cada dia de violação da obrigação do executado ou, sem conceder e subsidiariamente, de valor julgado equitativo pelo Distinto Tribunal suficiente para dissuadir o executado desse incumprimento; tudo sem prejuízo da indemnização a liquidar em caso de incumprimento;
d) Que se declare a permissão de execução da referida obra pelo exequente no terreno do executado identificado nos autos, de modo a que se possa extrair certidão que possa ser exibida às entidades perante as quais tal se afigure necessário para a realização da obra.
III. A pronúncia do Distinto Tribunal recorrido constante do despacho sob recurso, que indeferiu todas as ditas pretensões, exceto a fixação de sanção pecuniária compulsória (alínea c)), não se afigura correta face à lei processual mormente por ser um entendimento radicado unicamente na ideia de uma execução para prestação de facto negativo na sub-modalidade de simples abstenção de realização de uma obra, não se afigurando adequada à sub-modalidade aqui em causa que é a de obrigação de tolerar uma obra feita por terceiro em terreno de um executado.
IV. Nestes casos, conforme bem já talhado pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 19/11/2003, no processo n.º 1897/03-1, disponível em www.dgsi.pt, impõe-se um entendimento especial, que parte da consciência da dificuldade na execução das obrigações de tolerância ou de deixar fazer, particularmente frequentes nas servidões para cujo exercício se requeira a realização de obras novas ou reparações e do facto de o legislador ter estruturado o regime legal da execução de facto negativo tão só para a obrigação de não fazer – cfr. artigos 876.º e 877.º do Código de Processo Civil.
V. Tal entendimento baseado numa interpretação teleológica do artigo 876.º do CPC e, bem assim, no princípio da tutela jurisdicional efetiva constante do artigo 20.º/1 da CRP e consagrado jus-processualmente no artigo 2.º/2 do CPC, leva a que o juiz de execução deva ordenar, precedendo requerimento, como foi o caso, medidas tendentes a assegurar a efetiva prestação de facto negativo pelo executado, as quais, in casu, são aquelas peticionadas no requerimento de 20.01.2020 (ref.ª Citius 34597147).
VI. Bem assim, ao contrário do sustentado na decisão recorrida, as mesmas não configuram qualquer veleidade diletante ou de “chicana” por parte do Exequente, antes correspondendo a necessidades práticas para se atingir aquele fim, mormente porque só as mesmas assegurarão a efetiva prestação negativa pelo Executado (alíneas a) e b)) e asseguram a possibilidade legal de o Exequente edificar o caminho novo porque sujeito a licenciamento camarário (alínea c)).
VII. O despacho recorrido fez, assim, errada interpretação dos artigos 876.º e 877.º do Código de Processo Civil e preteriu, na forma acima indicada, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, constante do artigo 20.º/1 da CRP e consagrado jus-processualmente no artigo 2.º/2 do CPC.
VIII. Deve, em consequência, revogar-se o despacho recorrido e proferir-se decisão que, preservando, a decisão já tomada sob a alínea c) do requerimento de 20.01.2020 (ref.ª Citius 34597147) defira e ordene o demais peticionado nas restantes alíneas a), b) e d) desse requerimento.
Termos em que:
Deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e proferindo-se decisão que, preservando a decisão já tomada sob a alínea c) do Requerimento de 20.01.2020 (ref.ª Citius 23597147), defira e ordene o demais peticionado nas restantes alíneas a), b) e d) desse requerimento».
I.3.
Não houve resposta às alegações de recurso.
O recurso foi recebido pelo tribunal a quo.
Corridos os vistos em conformidade com o disposto no artigo 657.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1.
As conclusões das alegações de recurso (cfr. supra I.2) delimitam o respetivo objeto de acordo com o disposto nas disposições conjugadas dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2 e artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC), não havendo lugar à apreciação de questões cuja análise se torne irrelevante por força do tratamento empreendido no acórdão (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
II.2.
A única questão suscitada consiste em saber se o despacho recorrido fez uma errada interpretação dos artigos 876.º e 877.º do Código de Processo Civil.
II.3.
FACTOS
A factualidade a ter em linha de conta é aquela que consta do relatório supra (cfr. I.1).
II.4.
Apreciação do objeto do recurso
Está em causa no presente recurso a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que indeferiu as seguintes pretensões do apelante: 1) Que se emita ordem ao executado para não colocar mais obstáculos à realização do caminho a executar pelo Exequente na localização estabelecida no título executivo, o qual caminho se identifica no mapa anexo; 2) Que essa ordem seja enviada com a advertência expressa de que o seu não acatamento o fará incorrer em crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal; 3) Que se declare a permissão de execução da referida obra pelo exequente no terreno do executado identificado nos autos, de modo a que se possa extrair certidão que possa ser exibida às entidades perante as quais tal se afigure necessário para a realização da obra.
Defende o apelante, em síntese, que:
1) Está em causa na presente execução para prestação de facto negativo, uma obrigação do executado que consiste em se abster de obstaculizar: (i) à definição de uma linha divisória em determinado prédio do executado (aspecto já alcançado); e (ii) à realização pelo exequente, ou a suas expensas, de um novo caminho numa parte daquele prédio do executado a partir da referida linha divisória e com as características definidas no título executivo;
2) O legislador estruturou o regime legal da execução para prestação de facto negativo, previsto nos artigos 876.º e 877.º do CPC, tão só para a “obrigação de não fazer”;
3) Pelo que uma interpretação teleológica do artigo 876.º do CPC e do princípio da tutela jurisdicional efetiva – o qual tem consagração constitucional (artigo 20.º da CRP) e no artigo 2.º/2 do CPC – leva a que o juiz de execução deva ordenar as medidas que foram peticionadas nos autos pelo exequente e que constituem a única forma de assegurar a efetiva prestação do facto negativo pelo executado.
Em reforço da sua posição, o apelante invoca um acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.11.2003, proferido no processo n.º 1897/03-1.
Apreciando.
Resulta do título dado à execução – que é uma sentença homologatória, já transitada em julgado, de um acordo firmado no âmbito de uma ação declarativa que correu termos sob o n.º 1047/07.1TBLGS no 1.º Juízo do Tribunal de Lagos, entre exequente (ali co-autor) e executado (ali réu) – que as partes se obrigaram a concorrer, através da nomeação conjunta de um topógrafo, para a delimitação de uma linha de partilha/divisória entre um prédio propriedade do réu e uma parcela de 4,3 hectares daquele mesmo prédio (a qual seria a destacar do prédio do réu, parcela que o réu prometeu vender aos autores) e que a partir dessa linha seria construído, a expensas dos autores, um novo caminho na parcela prometida vender pelo réu aos autores com a finalidade de constituir, por alteração, uma servidão de passagem a favor do prédio dos segundos.
No requerimento inicial executivo o exequente alegou que adjudicou a um topógrafo a realização do trabalho de definição da linha de partilha prevista no acordo acima referido e que essa linha se mostra já definida, mas que o executado tem impedido a construção do caminho previsto no acordo, quer através da remoção dos elementos de demarcação da linha que haviam sido colocados pelo topógrafo, quer impedindo fisicamente a realização de qualquer trabalho e tem deixado claro, por declarações verbais, que não vai permitir a construção do novo acesso. Terminou, requerendo a «implementação dos direitos que para ele resultam do acordo firmado», quais sejam, o direito a uma prestação de facto – erigir o novo caminho de acesso nos termos previstos nas cláusulas da transação – e um direito à entrega de coisa certa – o novo caminho, de modo a dele poder usufruir no âmbito de uma servidão e que fosse fixada uma sanção pecuniária compulsória ao executado por cada dia de incumprimento, em valor não inferior a € 7.500,00/dia.
Posteriormente, através de requerimento que deu origem à decisão sob recurso, o exequente solicitou ao tribunal que ordenasse ao executado que se abstivesse de obstaculizar a construção do novo caminho com a advertência de que, o não acatamento de tal ordem, o faria incorrer em responsabilidade criminal e, ainda, que declarasse a permissão de execução da referida obra pelo exequente no terreno do executado identificado nos autos de modo a que se possa extrair certidão que possa ser exibida às entidades perante as quais tal se afigure necessário para a realização da obra.
Pretende, agora, o apelante que o tribunal de segunda instância revogue a decisão recorrida e profira decisão deferindo aquele seu requerimento quanto aos pedidos descritos no parágrafo antecedente.
Não é controvertido que a obrigação exequenda – obrigação de não criar obstáculos à construção pelo exequente, ou a expensas deste último, de um novo caminho em imóvel propriedade do executado – se traduz numa prestação de facto negativo.
O facto negativo tanto pode ser de non facere stricto sensu, quando tenha por objeto uma omissão de atuação do executado, ou de pati, se implicar a tolerância de uma atividade a realizar pelo credor[1].
Resulta assim do exposto supra que está em causa na presente ação executiva (ou seja, o que pretende o exequente) é a realização coerciva de uma prestação de facto negativo na modalidade de «tolerância de uma atividade do credor», à qual corresponde uma permissão de atuação do exequente, concretamente a de construir/erigir, em prédio do executado, um caminho com as características que constam do título dado à execução. Com efeito, em face do título dado à execução o executado obrigou-se não só a concorrer para a definição da linha divisória acima referida mas também a tolerar a abertura de um novo caminho/serventia no seu prédio, o que implica, naturalmente, uma obrigação de abster-se de condutas que impeçam a construção do novo caminho e impeçam ou perturbem o uso do mesmo depois de construído. E é apenas esta obrigação de tolerar a abertura de um novo caminho que está em causa na presente ação executiva.
No caso a prestação devida pelo executado é também uma prestação de facto infungível na medida em que aquela não pode, pela sua natureza, ser realizada por outra pessoa e o seu cumprimento depende necessariamente da vontade e de um determinado comportamento do executado.
Aqui chegados, chegamos ao âmago do recurso: em face de um alegado incumprimento do executado da obrigação de tolerar a construção do novo caminho que constitui servidão de passagem a favor do prédio do exequente, o exequente apenas pode pedir na execução o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória (como decidiu o tribunal recorrido) ou, pelo contrário, pode também pedir e obter do tribunal uma ordem dirigida ao executado para não colocar mais obstáculos à realização do caminho a executar pelo Exequente na localização estabelecida no título executivo, acompanhada de uma advertência expressa de que o não acatamento de tal ordem o fará incorrer em crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (como sustenta e pretende o apelante)?
O regime processual da execução para prestação de facto negativo consta dos artigos 876.º e 877.º do Código de Processo Civil.
Dispõe o primeiro daqueles normativos legais, sob a epígrafe Violação da obrigação, quando esta tenha por objeto um facto negativo, o seguinte:
«1 – Quando a obrigação do devedor consista em não praticar algum facto, o credor pode requerer, no caso de violação, que esta seja verificada por meio de perícia e que o juiz ordene:
a) A demolição da obra que eventualmente tenha sido feita;
b) A indemnização do exequente pelo prejuízo sofrido; e
c) O pagamento da quantia exequenda devida a título de sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter na execução.
2 – O executado é citado para, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução, mediante embargos, nos termos dos artigos 729.º e seguintes; a oposição ao pedido de demolição pode fundar-se no facto de esta representar para o executado prejuízo consideravelmente superior ao sofrido pelo exequente.
3 – (…)
4 – (…)».
Regime processual que está em articulação com o regime substantivo previsto no artigo 829.º/1 do Código Civil que, sob a epígrafe Prestação de facto negativo, dispõe o seguinte:
«Se o devedor estiver obrigado a não praticar algum ato e vier a praticá-lo, tem o credor o direito de exigir que a obra, se obra feita houver, seja demolida à custa do que se obrigou a não a fazer».
Como bem refere o apelante, o regime previsto nos artigos 876.º e seguintes do CPC está estruturado para o cumprimento da obrigação de “não fazer”, isto é, para os casos em que a obrigação exequenda (uma prestação de facto) foi incumprida por meio de uma violação positiva. Com efeito, o regime processual da execução para prestação de facto negativo constante dos artigos 876.º e seguintes do CPC destina-se tão só a remover ou a ressarcir as consequências das situações em que há violação, por banda dos executados de um dever de omissão, violação que se traduz necessariamente na realização de um ato; a execução destina-se, neste caso, apenas a remover aquilo que foi indevidamente praticado ou, quando isso não seja possível, a ressarcir o credor dos prejuízos sofridos com a atuação do credor.
Como refere Lebre de Freitas[2] «o objeto da execução não é um facto negativo mas sim o facto positivo da reparação, embora esta possa (e deva, sempre que possível) consistir na reconstituição natural da situação anterior à violação. Trata-se, pois, de uma execução para prestação de facto positivo, embora baseada na violação duma obrigação negativa» (negrito nosso). Também João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 521, dizem que «ao contrário de todas as demais, a execução para prestação de facto negativo não se destina a obter aquilo que devia ter sido prestado, mas antes a remover aquilo que foi feito em violação de uma obrigação de non facere. O objeto desta execução não coincide, por isso, com a obrigação de non facere, isto é, a obrigação que consta do título executivo é diferente do objeto da execução: aquela impõe uma omissão; este refere-se às consequências da violação dessa omissão» (negritos nossos).
Na execução para prestação de facto negativo prevista no artigo 876.º do CPC vigora o princípio da repristinação à custa do executado: se a situação for repristinável o credor pode requerer a demolição da obra, que será executada após verificação da violação através de perícia e a reposição da situação anterior será feita à custa do executado; cumulativamente, o credor pode também pedir o pagamento de uma indemnização pelo dano sofrido que não haja sido reparado pela reposição do estado inicial e uma sanção pecuniária compulsória, em que o devedor tenha sido já condenado ou cuja fixação o credor pretenda obter no processo executivo; se não for possível a reparação natural, isto é, se a situação ex ante não for repristinável, ou se não houver obra feita, então o credor pode pedir somente a indemnização do dano sofrido, ao abrigo do disposto no artigo 566.º/1 do CC, e o pagamento da quantia devida a título de sanção pecuniária compulsória, quer esta tenha sido fixada na ação declarativa, quer se pretenda no âmbito da execução a respetiva fixação.
Em face do exposto, diremos, então, que a lei processual não previu a execução de prestação de facto negativo para as situações em que a obrigação exequenda é uma obrigação de tolerar uma determinada atividade do credor/exequente. Logo, há uma lacuna.
De acordo com o ensinamento de Batista Machado[3], a lacuna jurídica consiste «numa incompletude contrária ao plano do Direito vigente, determinada segundo critérios eliciáveis da ordem jurídica global. Existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global, ou melhor, não contêm a resposta a uma questão jurídica».
As lacunas hão-de ser integradas de acordo com os processos de integração das leis.
Face ao disposto no artigo 10.º do Código Civil, sempre que seja possível o recurso à analogia com uma norma existente no sistema normativo, aplicar-se-á ao caso omisso essa norma (artigo 10.º/1 e 2, do CC); na falta de norma que regule um caso análogo, haverá que proceder nos termos do disposto do n.º 3 do artigo 10.º ou seja, o julgador criará uma norma ad hoc a partir dos princípios gerais constituintes do sistema.
De acordo com o n.º 2 do artigo 10.º do Código Civil há analogia «sempre que no caso omisso procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei, ou seja, confrontado com um conflito de interesses não previsto no sistema de normas, o julgador deve procurar no mesmo sistema uma norma que, embora num contexto necessariamente diferente, responda a um conflito de interesses semelhante ou paralelo “de modo a que o critério valorativo adotado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos, seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro”. Nestes termos, o recurso à analogia pressupõe que o julgador tenha previamente identificado no caso omisso os interesses materialmente relevantes para a decisão»[4].
Não sendo possível o recurso à analogia, o julgador deve decidir segundo a norma que ele próprio criaria dentro do espírito do sistema, ou seja, o julgador deve procurar uma solução coerente com o conjunto de princípios que constituem o fundamento do sistema normativo, que lhe conferem sentido e unidade. Note-se que não se trata de encontrar uma solução com recurso à equidade, ou seja, para a justiça do caso concreto, bem pelo contrário, trata-se de elaborar uma norma geral e abstrata que contemple o tipo de casos em que se integra o caso omisso[5].
No caso vertente o apelante/exequente parece reconhecer a existência de uma lacuna e defende que a solução para o caso concreto é a emissão, pelo tribunal de execução, de uma ordem dirigida ao executado para que este se abstenha de colocar obstáculos à realização de um novo caminho e que essa ordem seja acompanhada da advertência de que o não acatamento da mesma poderá fazer o executado incorrer em responsabilidade criminal. E se bem entendemos as alegações de recurso do apelante, este defende que tais medidas se fundam numa «interpretação teleológica» do artigo 876.º do CPC.
Ora, na sentença homologatória do acordo firmado no processo declarativo acima referido o juiz do processo já declarou a existência do direito do credor (a de construir/erigir, em prédio do executado, um caminho com as características que constam do título dado à execução) e o correlativo dever jurídico de cumprir do devedor que é o de abster-se de colocar quaisquer obstáculos à construção daquele caminho. Ou seja, naquela sentença que foi dada à execução já está ínsita a ordem dirigida ao executado de se abster de qualquer conduta que obstaculize a realização do novo caminho pelo exequente, ou a suas expensas.
Acresce que o não acatamento de uma sentença civil de condenação – e, note-se, o título dado à execução é uma sentença homologatória que condena as partes a cumprirem o acordo que firmaram – não é considerado um ilícito penal. Por conseguinte, o seu não acatamento por parte dos devedores não é considerado um crime de desobediência. A propósito, João Calvão da Silva[6] escreveu o seguinte: «podemos dizer que a preocupação da tutela da liberdade e da dignidade da pessoa humana prevaleceu na opção feita pelo legislador de consagrar apenas a coerção patrimonial, sem revivescência da coerção pessoal, em harmonia aliás, com a nossa tradição, com o figurino latino de que é modelo a astriente – na evolução histórica do direito francês, contrariamente à do direito germano-anglo-saxónico, a tutela da dignidade do homem livre prevaleceu sobre a ideia da tutela da autoridade – e mesmo com a ideia de que quem responde pela dívida é o património e não a pessoa do devedor, traduzido, aliás, na sanção do ressarcimento do dano resultante do incumprimento da obrigação inexequível in natura – ressarcimento do dano que incide, portanto sobre o património e não sobre a pessoa do devedor» (negritos nossos).
Também João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 513, afirmam que «a execução para prestação de facto é dominada pelo princípio de que o devedor remisso não pode ser compelido a cumprir a sua obrigação (nemo potest praecise cogi ad factum). Assim, para além da eventual sujeição do devedor remisso a uma sanção pecuniária compulsória, está excluída a possibilidade da imposição de quaisquer outras medidas compulsórias sobre o devedor» (negritos nossos).
Resulta assim do exposto que a pretensão do credor exequente de obter por parte do tribunal de execução uma ordem dirigida ao executado para não colocar mais obstáculos à realização do caminho a executar pelo Exequente na localização estabelecida no título executivo, acompanhada da advertência expressa de que o seu não acatamento o fará incorrer em crime de desobediência, nos termos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal não pode proceder e nunca se poderia fundar numa alegada «interpretação teleológica» do artigo 876.º do Código de Processo Civil, que tem como um dos seus princípios estruturantes o de que não pode ser usada coerção pessoal sobre o executado para o compelir a realizar o facto que é objeto da obrigação exequenda.
Tão pouco pode proceder a pretensão do exequente/apelante concretizada na alínea d) do seu requerimento – que o tribunal declare a permissão de execução da referida obra pelo exequente no terreno do executado identificado nos autos, de modo a que se possa extrair certidão que possa ser exibida às entidades perante as quais tal se afigure necessário para a realização da obra – pois que também essa permissão, como se assinalou supra, está também ela ínsita do título dado à execução e, como dissemos, a execução para prestação de facto negativo não se destina a obter aquilo que deve ser prestado, mas apenas a remover as consequências da violação da obrigação devida pelo executado.
Em suma, as pretensões formuladas pelo exequente sob as alíneas a), b) e d) não poderão proceder. O que não implica, como pretende o exequente, uma violação do direito à tutela jurisdicional efetiva que bem sabemos ter consagração constitucional (cfr. artigo 20.º da CR) e expressão no direito processual civil, concretamente no artigo 2.º, n.º 2, do CPC, uma vez que o legislador previu uma forma de vencer a resistência do devedor ao cumprimento da sua obrigação declarada judicialmente, mas com salvaguarda da liberdade da pessoal do devedor. Com efeito, consciente de que a tutela indemnizatória pode constituir uma tutela imperfeita do direito do credor ao cumprimento, o legislador não deixa de facultar um meio de compelir o devedor ao cumprimento na medida em que, se provado o incumprimento, pode ser aplicado ao devedor relapso uma sanção pecuniária de valor que vai crescendo à medida que o incumprimento se prolonga no tempo, como decorre do disposto nas disposições conjugadas do artigo 829.º-A do Código Civil[7] e dos artigos 876.º e seguintes do CPC, estes últimos aplicáveis por analogia, e com as necessárias adaptações, à prestação de facto negativo na modalidade de obrigação de tolerância de certas obras ou factos a realizar pelo credor.
Por todo o exposto, improcede a apelação.


Sumário: (…)


III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
As custas na presente instância recursiva são da responsabilidade do apelante.
Notifique.
DN.
Évora, 10 de novembro de 2022
Cristina Dá Mesquita (Relatora)
Maria Emília Ramos Costa (1.ª Adjunta)
Rui Machado Moura (2.º Adjunto)


_______________________________________________
[1] Vd. Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume II, AAFDL Editora, Lisboa, 2022, página 524 e Rui Pinto, A Ação Executiva, 2019, Reimpressão, AAFDL Editora, página 1010.
[2] A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª Edição, GestLegal, página 464.
[3] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 25.ª Reimpressão, Almedina, página 194.
[4] António Agostinho Guedes, in Comentário ao Código Civil Parte Geral, Universidade Católica Portuguesa, 2014, página 53.
[5] Batista Machado, ob. cit., página 203.
[6] Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Coimbra, 1997, páginas 390-391.
[7] Nos termos do artigo 829.º-A do Código Civil, a sanção pecuniária compulsória é fixada por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infração, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.