ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
ADMISSIBILIDADE DE RECONVENÇÃO
Sumário

- Na ação de divisão de coisa comum é admissível o pedido reconvencional para serem apurados os pagamentos efetuados pela ré das prestações de condomínio e de empréstimo bancário para aquisição do prédio objeto de divisão, com vista à sua adjudicação ou venda.
-Apesar de os pedidos da ação e da reconvenção seguirem formas de processo diferente, há interesse relevante para a apreciação conjunta de tais pretensões, que se afigura indispensável para a composição justa do litígio.
- A ação de divisão de coisa comum comporta duas fases, a primeira declarativa destinada a apurar a natureza comum da coisa, a sua natureza divisível ou indivisível em substância, bem como a fixação das quotas e, no caso, eventuais compensações a operar (artigos 925.º e seguintes) e, uma vez definidos esses direitos, tem lugar a segunda fase, que os executa, com o preenchimento dos quinhões por acordo ou por sorteio ou, se a coisa for indivisível em substância, com a adjudicação ou venda (artigo 929.º).
- O credor hipotecário relativo ao mútuo para a aquisição do imóvel objeto de processo especial de divisão de coisa comum não tem legitimidade para intervir na fase declarativa desta ação, só sendo obrigatória a sua intervenção no eventual caso de venda do bem na fase executiva, por lhe serem aplicáveis as normas estabelecidas para o processo de execução na venda de bens nos processos especiais.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 469/21.0T8ABF.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I

Em 01/06/202, a sociedade (…), S.A., com sede na Marinha Grande, intentou a presente ação de divisão de coisa comum contra AA, residente em ....

Alegou, para tanto, serem ambas donas e legítimas comproprietárias da fração autónoma sita em ..., ..., que melhor identificou. Trata-se de um apartamento que não é suscetível de divisão. A metade da Ré está onerada com hipoteca. Não quer manter-se na indivisão.

Pede assim que, nos termos dos artigos 1412.º e 1413.º do CCiv. e 925.º e ss. do CPC e, tratando-se de um prédio indiviso e indivisível se proceda à adjudicação ou à venda do mesmo, com repartição do respetivo valor.

A Ré foi citada para contestar e o banco mutuante foi notificado para vir informar qual o valor da dívida da Ré garantida por hipoteca.

Na contestação, apresentada em 20/09/2021, a Ré excecionou, reconveio e impugnou, nesta mesma ordem.

No âmbito da defesa por exceção a Ré pôs em causa a «legitimidade substantiva» da Autora, como comproprietária, ao questionar a efetiva entrega por esta do preço de aquisição de metade da fração e o abatimento da parte correspondente à hipoteca que sobre ela pendia.

Mais contestou o valor atribuído à ação e, a regularidade do mandato judicial.

Em sede de reconvenção, alegou que desde a insolvência do anterior comproprietário, é ela Ré que faz os pagamentos respeitantes às despesas com o condomínio, no caso, trinta euros mensais e que dizem respeito a despesas das partes comuns do edifício, onde a fração se encontra inserida. O que acontece desde 01/10/2018, até à data da contestação, totalizando a quantia de € 1.050,00, sendo da responsabilidade da sociedade Autora, metade, que equivale a € 525,00 até fins de Agosto de 2021. Montante cujo pagamento a A. requer da Ré, acrescido dos juros legais.

Mais alegou que, a Ré e o anterior comproprietário BB, aquando da aquisição da fração em causa, contraíram um empréstimo junto do Banco Hipotecário o (…). E que a Ré, desde pelo menos o pedido de insolvência daquele, tem suportado sozinha com os pagamentos mensais de € 249,45. Assim, desde 01/10/2018 até à data, pagou € 4.490,28, valor esse que requer seja pago pela Autora, bem como os valores que se irão vencer até final da presente ação, acrescidos de juros legais.

A título de impugnação refere não ter a A. demonstrado a indivisibilidade da fração, que ela A. aceitou adquirir a outra metade da mesma, sua casa de morada de família, o que só poderá concretizar uma vez apurado o valor real da dívida hipotecária, que é da responsabilidade de ambos os comproprietários.

Em 22/10 /2021 a Autora veio deduzir réplica, pretendendo que a reconvenção não seja admitida por carecer de fundamento legal, nomeadamente porque os factos alegados na reconvenção não emergem do facto jurídico que serve de fundamento ao pedido ou à defesa, e em nada afetam a proporção da titularidade de cada uma das partes.

Em 25/05/2022 foi proferido despacho no qual se fixou o valor da ação, se reconheceu a competência do juízo local cível, se julgou a Autora parte legítima face à presunção derivada do registo predial, se considerou suprida a irregularidade de mandato face à nova procuração entretanto entregue e, se decidiu pela não admissibilidade da Reconvenção.

Sobre esta questão lê-se no despacho:

«O artigo 1412.º do C.Civil atribui a cada comproprietário o direito de exigir a divisão. Trata-se de um direito potestativo destinado a dissolver a relação de compropriedade, objetivado nos artigos 925.º a 929.º do Cód. Proc. Civil.

A cessação da situação de compropriedade implica, como é manifesto, o termo do concurso de vários direitos de propriedade pertencentes a pessoas diferentes, tendo por objeto a mesma coisa; tem lugar a constituição de situações de propriedade singular sobre cada uma das parcelas da coisa dividida (se for divisível), cfr. Luís A. Carvalho Fernandes, in “Lições de Direitos Reais”, pág. 335. No caso de indivisibilidade material da coisa, essa cessação da situação de compropriedade será realizada por acordo na sua adjudicação a algum dos titulares do direito de compropriedade e preenchimento dos quinhões dos outros com dinheiro, ou na falta de acordo, pela venda executiva e subsequente repartição do seu produto na proporção das quotas de cada um, cfr. artigo 929.º.

A ação de divisão de coisa comum é assim uma ação de natureza real e constitutiva, na medida em que implica uma modificação subjetiva e objetiva do direito real que incide sobre a coisa, pois, caso se verifique a divisibilidade da coisa, o direito de compropriedade será fragmentado, quer quanto aos sujeitos, quer quanto ao objeto e, nos casos de indivisibilidade, o direito de compropriedade transforma-se em direito de propriedade singular, passando a ser seu titular outro ou outros sujeitos.

Ora, preceitua o artigo 925.º do C.P.Civil, a respeito da petição do processo especial de divisão de coisa comum, que “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requererá, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respetivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respetivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.

A ação de divisão de coisa comum, como ação especial, comporta processualmente duas fases distintas, uma declarativa a que se reportam os artigos 925.º a 928.º do CPC, outra executiva, nos termos do artigo 929.º do C.P.Civil.

A fase declarativa processa-se de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, como determina o n.º 2 do artigo 926.º C.P.Civil, e só assim não será se o Juiz verificar que a questão não pode ser sumariamente decidida, caso em que os autos deverão seguir os termos do processo comum, cfr. artigo 926.º, n.º 3, do CPC.

Como já se referiu acima, trata-se de uma ação real, sujeita a registo, e cuja causa de pedir é a situação de compropriedade e cujo pedido é a cessação dessa compropriedade, pela divisão material se a coisa for divisível, não o sendo pela adjudicação a uma das partes ou pela venda a terceiro, preenchendo-se assim em dinheiro as quotas de cada um dos comproprietários.

Por isso mesmo, dado o seu desiderato, a mesma não comporta de todo uma tramitação legal que é manifestamente incompatível com a tramitação do processo comum adequado à apreciação de um pedido reconvencional de um alegado direito de crédito que pela ré tenha sido atravessado na sua contestação e, portanto, não se admite o pedido de reconvencional deduzido, nos termos do artigo 266.º, n.º 3, do CPC. Notifique.»

Quanto à indivisibilidade do bem, tomou o tribunal a seguinte decisão:

«Da indivisibilidade do bem

Atendendo na natureza do bem a dividir – fração autónoma designada pela letra ... correspondendo ao ... andar, com duas assoalhadas e destinada a habitação, integrada em prédio constituído em propriedade horizontal –, evidenciada pelo teor da certidão de registo predial junta a fls. 44 a 46 e seguintes e cujo teor se dá por integral e fielmente reproduzido, é manifesta a indivisibilidade material do imóvel inscrito na matriz urbana sob o artigo ...22 e descrito sob a letra ... da descrição predial ...04 da freguesia ..., CRP ..., o que se declara nos termos do disposto no artigo 926.º, n.º 4, do CPC.

Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 929.º do Código do Processo Civil, atento ao teor da certidão do registo predial, juntas aos autos, fixa-se em 50% a quota de cada um dos interessados.

Para a realização da conferência de interessados, designo o próximo dia 27 de Junho de 2022, pelas 10:00 horas, neste Tribunal.»

Inconformada com tal decisão, na parte em que não admitiu a reconvenção, veio a Ré recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:

A- Ao contrário do que a senhora Juíza do Tribunal a quo refere na sentença ora em recurso, a doutrina e jurisprudência alicerçada na Lei Processual Civil permite, na fase declarativa da ação de divisão da coisa comum, que se possa processar uma Reconvenção, em termos sumários ou sob a forma de processo comum, após a contestação, conforme decorre do artigo 926.º, n.º 3, do CPC.

B- Não existe uma manifesta incompatibilidade entre a tramitação do pedido de divisão de coisa comum e a tramitação de um pedido reconvencional, o qual exigirá o contraditório e, eventualmente a produção de meios de prova.

C- Verificando–se algum dos elementos de conexão entre o pedido do autor e o pedido reconvencional da ré, ora recorrente, previstos no artigo 266.º, n.º 2, do CPC, a reconvenção na ação de divisão de coisa comum será admissível se houver interesse na apreciação conjunta do pedido do autor e do pedido do réu, ou se a apreciação conjunta das pretensões se mostrar indispensável para a justa composição do litigio, como é o caso.

D- A resolução da compensação invocada em sede de reconvenção importará para se fixar o valor das tornas que o comproprietário que adjudicar terá de pagar ao outro, pois uma justa composição de litígio implicará que as tornas devidas sejam calculadas não com base no valor das quotas de cada uma das partes, mas tendo em linha de conta a contribuição efetiva de cada uma das partes, para a aquisição do dito imóvel objeto dos autos, através da compensação de créditos.

E- Esta questão tem entendimento pacífico na jurisprudência do Tribunal da Relação de Évora, vide entre outros o Acórdão datado de 17/01/2019, processo n.º 764/18.5T8STB.E1., aprovado por unanimidade e que pode ser consultado em www.dgsi.pt .

F- Seguindo a decisão ora em recurso, resultaria que, na conferência de interessados, caso exista adjudicação a um dos comproprietários, o valor a entregar de tornas ao outro, não teria em conta o verdadeiro cerne do litígio, tudo se passando como se ambos tivessem contribuído / beneficiado igualmente na proporção da quota respetiva, o que reclamam não ter acontecido, sendo que se o que verdadeiramente divide as partes for o encontro entre a contribuição de cada um para o valor da quota, não fará qualquer sentido as mesmas terem de recorrer a outro processo para dirimir o litigio.

G- Por conseguinte ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, julgando inadmissível a reconvenção apresentada pela R. Reconvinte, ora Recorrente, violou o disposto no artigo 266.º, n.º 3 e artigo 37.º, n.º 2 e 3, bem como o artigo 926.º, n.º 3, todos do CPC.

H- Nos presentes autos, tendo a Ré invocado um contrato de mútuo com hipoteca, contraído junto do Banco credor hipotecário, conforme conta da certidão junta aos autos, a senhora Juíza do Tribunal a quo deveria, antes de mais, ter elaborado um despacho no sentido de convidar a autora a sanar a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio passivo, mediante a dedução do adequado incidente, por forma a fazer intervir na ação o dito credor hipotecário, mas não o fez.

I- O credor hipotecário terá de se pronunciar sobre a invocada compropriedade, sobre a indivisibilidade do bem e reclamar o seu crédito, podendo até, se for caso, as partes impugnarem.

J- Devendo também nesta parte a decisão/ sentença ser revogada e, o Tribunal convidar a autora a sanar a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio passivo, mediante a dedução do adequado incidente, por forma a aquele intervir na presente ação.

Assim, Requer-se a V. Exas, que sendo admitido o ora Recurso, seja:

a) A decisão/sentença alterada no sentido de admissão da reconvenção deduzida seguindo-se os demais termos do processo comum, com vista a ser reconhecido o crédito sobre a Recorrida, passando-se só então ao objeto da Ação Especial de divisão da coisa comum;

b) A decisão/sentença revogada na parte da falta de notificação do credor hipotecário e o Tribunal convidar a autora a sanar a ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio passivo, mediante a dedução do adequado incidente, por forma a intervir na presente ação o credor hipotecário.

Em contra-alegações a Recorrida (…), S.A. concluiu:

1. Pelo exposto no ponto I da presente resposta deve a recorrente ser condenada como litigante de má fé.

2. A presente ação não admite reconvenção uma vez que, no caso concreto, não se seguem os termos do processo comum e os factos alegados pela recorrente na contestação também, por si, não admitem reconvenção, uma vez que não emergem do facto jurídico que serve de fundamento ao pedido e em nada afetam a proporção da titularidade da quota de cada uma das partes.

3. A recorrida é alheia ao crédito contraído pela recorrente e pelo antigo comproprietário, pelo que as prestações por esta pagas em nada afetam a proporção das suas quotas partes no imóvel.

4. O credor hipotecário é mero credor e não sendo proprietário não tem interferência na fase declarativa desta ação, devendo ser chamado para reclamar créditos na fase executiva, quanto à parte em que é credor, ou seja, a da recorrente.

5. Face às características do imóvel, constantes do registo predial, a sua indivisibilidade torna-se facto notório, logo, fica dispensado de qualquer prova.

Por fim, pede que o recurso seja julgado improcedente.


II

A factualidade a considerar consta do relatório supra.


III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), são as seguintes as questões a decidir:

- Se não existe manifesta incompatibilidade entre a tramitação do pedido de divisão de coisa comum e a tramitação de um pedido reconvencional, sendo, ambos, no caso, compatíveis. Devendo a ação prosseguir para conhecer, também, do pedido reconvencional.

- Se a decisão recorrida devia ter-se pronunciado pela ilegitimidade passiva da Ré, por preterição de litisconsórcio passivo, convidando a Autora a saná-la mediante a dedução do adequado incidente, por forma a intervir na presente ação o credor hipotecário.

- Se a Ré litiga de má-fé.

Quanto à primeira questão suscitada, importa uma breve passagem pelo regime legal.

A ação de divisão de coisa comum está regulada nos artigos 925.º e seguintes do CPC, sob o título VI do Livro V destinada aos “processos especiais”.

Tendo o seu regime duas fases e uma dupla natureza.

Numa primeira fase importa se decidam todas as questões suscitadas pelo pedido de divisão, nomeadamente as que respeitam à possibilidade de divisão/indivisão em substância e à definição das quotas dos consortes. Decisão esta que será sumária a menos que o juiz verifique tal não ser possível, mandando seguir os termos, subsequentes à contestação, do processo comum.

Para a definição da in/divisibilidade pode o juiz a pedido ou oficiosamente, recorrer a prova pericial que, em caso de indivisibilidade deve pronunciar-se quanto aos quinhões (artigos 926.º e 927.º do CPC).

Esta fase tem natureza declarativa.

Resolvidas estas questões entra-se na fase executiva. Nesta, realiza-se uma conferência de interessados destinada, no essencial, a decidir quanto a eventual adjudicação do bem a um ou mais interessados (por acordo ou por sorteio), preenchendo-se em dinheiro as quotas dos restantes. Na falta de acordo sobre a adjudicação, é a coisa vendida, podendo os consortes concorrer à venda (artigo 929.º do CPC).

Tendo a Ré deduzido um pedido reconvencional importa atender às normas do CPC, para o processo em geral, que dispõem sobre a admissibilidade da reconvenção.

No caso, o artigo 266.º do CPC que dispõe:

“Admissibilidade da reconvenção

1 - O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.

2 - A reconvenção é admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;

b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;

d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

3 - Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.

(…)»

O artigo 37.º do CPC para o qual aquele remete, previsto para resolver obstáculos à coligação, estabelece:

«Obstáculos à coligação

1 - A coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.

2 - Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.

3 - Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar o processado à cumulação autorizada.

(…)»

Importa assim apurar se o pedido reconvencional com vista ao pagamento de encargos suportados com a coisa comum (prestações de condomínio e prestações de mútuo hipotecário), não obstante ter sido deduzido em processo especial estando o mesmo previsto no Código de Processo Civil apenas para o processo comum, não segue, no caso, uma tramitação manifestamente incompatível e, obedece a um interesse relevante ou se mostra indispensável para a justa composição do litígio, desse modo se legitimando a sua interposição.

Ou seja, importa apurar se a reconvenção da Ré tem cabimento processual na ação de divisão de coisa comum em causa.

Desde já se antecipa que a apreciação conjunta das pretensões a pôr fim à compropriedade (da Autora) e, a efetivar uma compensação entre eventuais créditos e débitos de que as partes sejam responsáveis entre si (da Ré), mostra-se indispensável para que a Ré, que manifestou já o seu interesse em adquirir a parte da Autora, assente a sua proposta ou a sua aceitação de proposta da Autora, em bases seguras e justas quanto ao valor a negociar e obedece a um interesse relevante de resolução ampla da situação em litígio, prevenindo a necessidade de interposição pela Ré de uma ação autónoma com vista a efetivar o seu eventual crédito contra a Autora.

Está, assim, verificado o segundo pressuposto previsto no artigo 37.º, n.º 2, do CPC.

Fazendo notar que esta ação mantém a sua individualidade originária, não tendo sido determinado pelo tribunal que passasse a seguir os termos do processo comum (hipótese prevista no n.º 3 do artigo 926.º do CPC), impõe-se por fim apurar se as formas de processo em confronto seguem ou não uma tramitação manifestamente incompatível.

A decisão recorrida entendeu que sim, pois que, sendo a ação de divisão de coisa comum uma ação de natureza real e constitutiva, implicando uma modificação subjetiva e objetiva do direito real que incide sobre a coisa, esse seu desiderato não comporta de todo uma tramitação legal que é manifestamente incompatível com a tramitação do processo comum, adequado à apreciação de um pedido reconvencional de um alegado direito de crédito que pela Ré tenha sido atravessado na sua contestação e, por isso, não admitiu o pedido de reconvencional, nos termos do n.º 3, primeira parte, do artigo 266.º do CPC.

Nesse sentido restritivo se pronunciaram entre outros os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 03/11/2020, P. n.º 1761/19.9T8PBL.C1, e do Tribunal da Relação do Porto, datado de 26/01/2021, P. n.º 1509/19.8T8GDM.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Temos, com todo o respeito, posição divergente da ora assinalada, subscrevendo o entendimento que cremos atualmente maioritário, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2019, P. n.º 385/18.2T8LMG-A.C1.S2, no mesmo site, assim sumariado:

«I - Tramitação “manifestamente incompatível”, nos termos e para os efeitos dos artigos 266.º, n.º 3 e 37.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, só existirá naqueles casos em que se imporia (ou, pelo menos, em que houvesse o risco disso suceder) praticar atos processuais contraditórios ou inconciliáveis. Não basta que se esteja perante tramitações desajustadas umas das outras, pois que isso sempre acontece, em maior ou menor grau, em formas processuais diferentes.

II - Na ação de divisão de coisa comum, se for deduzida reconvenção tendente a obter indemnização por benfeitorias feitas no prédio dividendo, deverá a reconvenção ser autorizada, ao abrigo do disposto nos artigos 266.º, n.º 3 e 37.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil, ordenando-se, em consequência, que o processo siga os termos do processo comum.”

E que corresponde, entre outros, ao entendimento dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 25/09/2014, no âmbito do P. n.º 260/12.4TBMNC-A.Gl e em 25/05/2017, no âmbito do P. n.º 1242/09.9TJVNF-B.Gl; dos Acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 24/09/2015, no âmbito do P. n.º 2510/14.3T80ER-A.LI-2 e em 15/03/2018, no âmbito do P. n.º 2886/15.5T8CSC.Ll.LI-8, bem como dos Acórdãos proferidos por esta Relação de Évora, em 22/03/2018, no âmbito do P. n.º 151/17.2T8ODM.E1 e, em 17/01/2019, no âmbito do P. n.º 764/18.5T8STB.E1, todos, igualmente publicados em www.dgsi.pt.

Como se sumariou neste último acórdão:

«- Sendo as diversas formas de processo - especial e comum -, o único obstáculo formal à admissibilidade da reconvenção, mas não seguindo as mesmas uma tramitação manifestamente incompatível, tanto mais que é expressamente admissível a transmutação do processo especial de divisão de coisa comum em processo comum, de acordo com o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do indicado artigo 37.º, pode o juiz autorizar a reconvenção, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa-composição do litígio.

II - Quando a indivisibilidade do bem comum é aceite entre as partes e o único litígio verdadeiramente existente se prende com as questões relativas à aquisição da fração autónoma em comum e na mesma proporção por ambos os comproprietários, com recurso a pedido de empréstimo bancário, que um alega ter suportado em quantia superior ao outro, o poder/dever de gestão processual permite a admissibilidade da reconvenção, em circunstâncias como as da presente lide.

III – Esta é a única interpretação que se harmoniza com os princípios que regem a lei processual civil, cada vez mais arredados de visões de pendor marcadamente formalista em detrimento da busca da garantia de uma efetiva composição do litígio que reponha a paz social quebrada com as visões antagónicas que as partes têm do caso que as divide e que são o único fundamento da demanda.»

Nesse sentido também o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 04/02/2021, P. n.º 11259/18.7T8SNT.L1-6, publicado no mesmo site, onde a propósito se escreveu:

« (…)

2– Na ação de divisão de coisa comum é admissível o pedido reconvencional para serem tidos em conta os pagamentos das prestações do empréstimo bancário para aquisição do prédio objeto de divisão efetuados pelo réu, com vista à sua adjudicação, tendo em atenção que, apesar de os pedidos da ação e da reconvenção seguirem formas de processo diferente, há interesse relevante para a apreciação conjunta das pretensões, que se afigura indispensável para a composição justa do litígio, devendo ser determinado que os autos sigam os termos do processo comum ao abrigo dos artigos 37.º, nºs 2 e 3 e 926.º, n.º 3, do CPC.»

Este o entendimento que temos como adequado e que se ajusta no essencial ao caso em apreço.

Embora esteja assente a não divisibilidade, e aparentemente resolvida a fase declarativa própria desta ação especial, ainda assim a reconvenção deve ser admitida e conhecida, para apurar se a Autora é responsável pelo pagamento de despesas de condomínio e prestações bancárias pagas exclusivamente pela Ré e, por que valor, antes de transitarem os autos para a fase de natureza executiva, encabeçada pela conferencia de interessados, a qual poderá até mostrar-se dispensada ou simplificada pelo interesse da Ré na aquisição da parte da Autora, uma vez conhecidos os valores em jogo.

Com refere o Ac. STJ atrás citado “na perspetiva da lei, o inconveniente inerente à perturbação processual que é introduzida com esta admissão do pedido reconvencional resolve-se através da adaptação do processado aos fins da reconvenção (n.º 3 do artigo 37.º do CPCivil).”

Procede, pois, quanto a tal questão, o recurso interposto.

Importa ora apurar a segunda questão suscitada, ou seja, se a decisão recorrida deveria ter-se pronunciado pela ilegitimidade passiva da Ré, por preterição de litisconsórcio passivo, convidando a Autora a saná-la mediante a dedução do adequado incidente, por forma a intervir na ação o credor hipotecário.

A ilegitimidade passiva da Ré surge como questão nova nas suas alegações de recurso, nunca tendo sido antes suscitada. Só teria de haver pronúncia se a mesma tivesse sido pedida por uma das partes, o que não aconteceu, ou se a intervenção de terceiro se impusesse oficiosamente, respeitado que fosse o contraditório, nos termos do artigo 3.º do CPC.

O credor hipotecário, será, no caso, a entidade bancária titular do crédito hipotecário sobre o imóvel, devido pelo empréstimo concedido à Ré e anterior contitular para a respetiva aquisição.

Dissemos já que a ação de divisão de coisa comum comporta duas fases, a primeira declarativa destinada a apurar a natureza comum da coisa, a sua natureza divisível ou indivisível em substância, bem como a fixação das quotas e, no caso, eventuais compensações a operar (artigos 925.º e seguintes) e, uma vez definidos esses direitos, tem lugar a segunda fase, que os executa, com o preenchimento dos quinhões por acordo ou por sorteio ou, se a coisa for indivisível em substância, com a adjudicação ou venda (artigo 929.º).

Tendo a coisa comum dois comproprietários e, estando estes na ação, a legitimidade ativa e passiva mostra-se assegurada na fase declarativa.

Apenas os comproprietários extraem utilidade da procedência ou improcedência do pedido na fase declarativa da ação, só eles tendo legitimidade para demandar ou ser demandadas à luz do artigo 30.º do Código Civil.

Nesta fase, o credor hipotecário, face ao objeto da ação não tem interesse igual ou paralelo ao da Autora ou da Ré, e não sendo sujeito passivo da relação material controvertida o pedido nunca lhe poderia ser dirigido.

Não tinha assim o tribunal que ter convidado a Autora a sanar qualquer preterição de litisconsórcio passivo por forma a fazer intervir na ação o credor hipotecário.

Outra poderá ser, contudo, a situação se se chegar à fase executiva e se nesta se proceder à venda do bem.

Dispõe o artigo 549.º do CPC destinado às “disposições reguladoras do processo especial”, no seu n.º 2 que:

«1. (…)

2. Quando haja lugar a venda de bens, esta é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução e precedida das citações ordenadas no artigo 786.º, observando-se quanto à reclamação e verificação dos créditos as disposições dos artigos 788.º e seguintes, com as necessárias adaptações, incumbindo ao oficial de justiça a prática dos atos que, no âmbito do processo executivo, são da competência do agente de execução.»

Ora, entre as citações ordenadas no artigo 786.º encontram-se os credores que sejam titulares de direito real de garantia e, só o credor que goze de garantia real sobre os bens em venda pode reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respetivos créditos, nos termos do artigo 788.º, n.º 1, numa interpretação adaptada ao processo especial em causa.

Assim, o credor hipotecário será chamado oficiosamente se na presente ação se vier a verificar a venda da fração.

No mesmo sentido o anterior Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/02/2021:

«1– O credor hipotecário relativo ao mútuo para a aquisição do imóvel objeto de processo especial de divisão de coisa comum não tem legitimidade para intervir na fase declarativa desta ação, só sendo obrigatória a sua intervenção no eventual caso de venda do bem na fase executiva, por serem aplicáveis as normas estabelecidas para o processo de execução na venda de bens nos processos especiais

Improcede, assim, a exceção de ilegitimidade passiva por preterição do litisconsórcio necessário.

- Importa por fim apurar se a Ré litiga de má-fé, como requerido pela Recorrida.

Embora nas contra-alegações a Ré peça a condenação da Recorrente como litigante de má fé, nas conclusões que delimitam o objeto do recurso, reitera esse pedido sem qualquer sustentação factual.

De acordo com o n.º 2 do artigo 542.º do CPC, o litigante de má-fé deve agir com “dolo ou com negligência grave” na prática do facto ilícito.

A norma do n.º 2 do artigo 542.º do CPC tipifica ainda as situações em que a parte incorre em litigância de má-fé.

Será, assim, litigante de má-fé quem:

“a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”

A condenação como litigante de má-fé importa a obrigação de ressarcir, por via indemnizatória a parte contrária, caso esta o requeira, bem como o pagamento de uma multa (n.º 1 do artigo 542.º do CPC).

A litigância de má-fé constitui, assim, um tipo especial de ilícito em que a parte, com dolo ou negligência, agiu processualmente de forma inequivocamente reprovável, violando deveres de legalidade, boa-fé, probidade, lealdade e cooperação de forma a causar prejuízo à parte contrária e obstar à realização da justiça.

Não se vislumbra do comportamento da Ré tal ilícito.

Improcede, por consequência, tal questão do recurso suscitado pela Autora recorrida.

Síntese conclusiva:

(…)


IV

Termos em que acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré, revogando-se parcialmente o despacho recorrido, no sentido de se admitir o pedido reconvencional.

Custas por Recorrente e Recorrida na proporção de 2/5 e 3/5, respetivamente.

Évora, 10 de novembro de 2022

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)

Jaime Pestana (2º Adjunto)