ERRO NOTÓRIO
OMISSÃO DE VALORAÇÃO DE DOCUMENTOS
AUSÊNCIA DE PROVA
JUÍZOS INTUITIVOS
Sumário

I - A omissão de consideração e análise de documentos integrados nos autos, acompanhada da consignação na sentença de que tais documentos não existem no processo, redunda no erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP.
II - A apreciação da prova produzida no processo compete ao juiz que conduziu a audiência, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova. O que, porém, lhe não compete é, à míngua de prova produzida sobre factos relevantes, ter por provados aqueles que, quanto a ele – o mesmo é dizer, segundo a sua opinião formada com base em juízos intuitivos e segundo parâmetros não racionalmente controláveis, mas antes estabelecidos do campo das probabilidades – deverão ter acontecido. Fazendo-o, a sentença enferma de erro notório na apreciação na prova previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP.

Texto Integral

-Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de processo comum singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de … - J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o nº 75/19.9GGABT, foi o arguido AA, nascido a …/…/1987, solteiro, trabalhador agrícola, filho de … e de …, natural de … (…) residente na Rua …– … condenado pela prática de um crime prática de um crime de cultivo de estupefacientes para consumo, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2 do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, por referência à Tabela I-C a ele anexa na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00 € (seis euros), perfazendo o montante total de 360,00 € (trezentos e sessenta euros).

*

Inconformado com tal decisão, veio o arguido interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“IV – CONCLUSÕES

Tudo visto e, ponderado, pelas razões supra, desde já se peticiona a V. Exas., que, por provado, julguem procedente:

A) O arguido, aqui Recorrente, não se conforma nem com a marcha/termos em que foi realizado o seu julgamento, nem com o teor da douta decisão proferida pelo tribunal a quo, que:

• o condenou na pena de multa de 60 (sessenta) dias à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de €360,00 (trezentos e sessenta euros), pela prática de um crime do art.º 40º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 janeiro (cultivo de plantas estupefacientes), p. e p. pelo artigo 40º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, Tabela I-C do mesmo diploma;

• Declarou perdido a favor do Estado Português o produto estupefaciente apreendido nos autos, correspondente ao ponto 3) do relatório pericial do LPC, ordenando-se, desde já, a sua destruição, por incineração, após o trânsito em julgado da presente decisão.

• Declarou perdidas a favor do Estado Português as demais plantas e as sementes aprendidas nos autos, correspondentes aos pontos 1), 2) e 4) do relatório pericial do LPC, ordenando-se, desde já, a sua destruição, por incineração, após o trânsito em julgado da presente decisão.

• Declarou perdido a favor do Estado todo o demais material apreendido nos autos, relacionado com o cultivo e a rega das plantas;

• Determinou a imediata restituição ao arguido do telemóvel e do computador (Tablet) apreendidos nos autos, independentemente do trânsito em julgado desta decisão.

• Condenou o arguido no pagamento das custas e dos encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2UC’s, nos termos e para efeitos do art.º 8º, n.º 5 e tabela III do RCP,

Afigura-se evidente, que, da matéria de facto vertida na decisão, se colhe faltarem dados e elementos, (objectivos e subjectivos) que, podendo e devendo serem indagados, não o foram, apesar de serem essenciais para que se possa formular um juízo seguro da condenação (e, da medida desta).

B) Do imperfeito cumprimento do disposto no art.º 374.º n.º 2 do C.P.P.., na parte que, para aqui interessa, a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados,…” Significa o supra, que o legislador, ao fixar o conteúdo da norma, nos termos em que o fez, obrigando o decisor à “enumeração dos factos provados e não provados”, com plena consciência, de que a culpa do sujeito ou, a falta dela, bem como a sua exacta medida, (por imperativo constitucional), apenas, se terá por perfeitamente determinada, quando, com o rigor necessário, se, dominem/conheçam os concretos actos, que o sujeito haja ou não praticado. E, já não, quando, sejam conhecidas apenas, meras conclusões factuais. Ou seja,

C) O Tribunal recorrido, no que concerne à sua convicção e fundamentação da mesma quanto à dependência/consumo, por parte do arguido, extrai contra prova e, omite e não fundamenta, por completo, onde foi buscar/basear tal convicção. Afinal, tal como supra e devidamente explanado e, que por uma questão de economia processual se dá por integralmente reproduzido, somente num momento se aflora esta questão, a instâncias da MMa. Juiz, cuja resposta do arguido é a de que já não consome e, aquele Tribunal retira, sabe-se lá de onde, a conclusão/convicção de que tal afirmação não é verdade, sem qualquer prova (indícios na residência, condenações anteriores, perícias toxicológicas, etc.) ou facto que a fundamente, tanto que nem aflora a questão de hábitos de consumo! Pelo que, errou o Tribunal a quo, ao dá como provado um facto não provado, tendo por base uma convicção não fundamentada.

D) Nada há que suporte ou contradiga a versão do arguido e, nesse sentido só se poderá concluir que, errou o Tribunal recorrido ao dar como provado, sem qualquer suporte probatório ou factual, que o arguido é/era consumidor de estupefacientes, concretamente cannabis e, que desta forma, levaria à absolvição do arguido.

E) Convenhamos, se o cultivo de sementes de cannabis apreendido ao arguido, bem como o que ainda se encontrava em sementes por cultivar não se destinasse à produção têxtil, fosse para seu consumo, o mesmo teria, numa só sementeira, produto até ao fim da vida e, para mais 2 ou 3 se as tivesse!!!!

F) Da manifesta, por evidente violação do princípio da livre apreciação da prova, apreciou a prova de forma arbitrária, pois, as ilações que extraiu, por objectivamente divergentes, das que os meios de prova juntos impõem e foram pelo tribunal a quo extraídas, contra a prova, designadamente no que concerne à falta de identificação de qualquer adquirente ou correspondência trocada com eventuais empresas com vista a adquirirem a sua produção final de canábis para fins têxteis. Ora,

G) Por uma questão de economia processual, não se reproduz as motivações supra mas que aqui se dão por integralmente reproduzidas, que resumidamente e com a base documental identificada (referência CITIUS …), o arguido juntou aos autos prova, através de e-mails, de contactos com duas empresas, “BB” e “CC”, às quais pedia informações e parceria ou colaboração das mesmas para a sua produção/cultivo da cannabis sativa – cânhamo - para fins têxteis.

H) Se não fosse este o fim da aquisição das sementes e seu cultivo, porque razão se daria o arguido ao trabalho de as contactar? E assim, uma vez mais, mal andou o Tribunal recorrido ao se decidir como decidiu, porque se atentasse a esta prova, a avaliasse e apreciasse, decidiria pela absolvição.

I) No mesmo sentido, ainda que a ele não lhe coubesse, o arguido juntou e-mails nos quais demonstra que diligenciou junto de entidades como DGADR – Direcção Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural; GPP – Gabinete de Planeamento, Politicas e Administração Geral; DGAV – Direcção – Geral de Alimentação e Veterinária; DRAPC – Direcção-Regional de Agricultura e Pescas do Centro, a fim de procurar informação quanto ao cultivo de sementes cannabis sativa para fins têxteis (cânhamo), no sentido de poder legalizar a sua actividade (referência CITIUS …)onde demonstra que preencheu e remeteu à respectiva identidade a notificação do cultivo de cânhamo para fins industriais (têxteis).

Ora,

J) A tratar-se de um cultivo para seu consumo, jamais, o arguido, ou qualquer pessoa, dentro das suas faculdades mentais ou consciente de cometimento de acto ilicito, o faria, uma vez que nesses e-mails se identifica, junta fotografias dos pacotes de sementes encomendadas e adquiridas junto de uma empresa certificada pela OECD, identificação do próprio, local da plantação, etc., tudo o que conforme se supra descreveu e se dá por integralmente reproduzido.

K) Pelo que, em consequência, uma vez mais, foi omisso aquele Tribunal na apreciação, NÃO DE UMA MAS DE VÁRIAS provas que, devidamente analisadas e apreciadas seriam dadas como matéria de facto provada e, levariam à absolvição do arguido.

Mas, se tanto não bastasse,

L) Bastava para tanto que, o Tribunal recorrido, tivesse “olhado” com “olhos de ver” o relatório pericial remetido pelo LPC, junto e com referência CITIUS …, para alcançar que, conforme exposição introdutória que que “O Decreto-Lei nº 15/95 de 22 de Janeiro não refere as sementes de Cannabis sativa L como estando incluídas na Tabela I-C desse mesmo decreto. Tal facto dever-se-à porventura à circunstância de as referidas sementes não conterem, naturalmente, qualquer substância com actividade psicotrópica. Poderão eventualmente dar origem, mais tarde, a uma planta que contenha substâncias psicotrópicas” (negrito nosso).

M) Concluindo-se assim que o arguido não incorreu na prática de um crime de cultivo de plantas estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, Tabela I-C do mesmo diploma.

N) Não obstante, e caso assim não se entendesse, sempre deveria prevalecer, face a toda a prova apresentada pelo arguido, bem como à sua versão, em nada contraposta pelo Ministério público, o principio do in dúbio pro reo.

O) Face a todo o supra exposto, mais não pode este Ilustre Tribunal concluir que, não existe por parte do arguido qualquer culpa, dolo ou cometimento de ilícito criminal, pronunciando-se, como o deveria ter sido feito em 1ª Instância, pela absolvição do arguido, revogando assim a sentença recorrida e substituindo-a por outra que declare:

1. Absolver o arguido AA pela prática de um crime do art.º 40º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 janeiro (cultivo de plantas estupefacientes), p. e p. pelo artigo 40º, n.º 2 do Decreto-Leinº15/93,de 22dejaneiro,TabelaI-C do mesmo diploma.

2. Restituir ao arguido todas as sementes e apreendidas nos autos, correspondente ao ponto 3) do relatório pericial do LPC.

3. Restituir todo o demais material apreendido nos autos, relacionado com o cultivo e a rega das plantas;

4. Restituir ao arguido do telemóvel e do computador (Tablet) apreendidos nos autos, independentemente do trânsito em julgado desta decisão.

5. Absolver o arguido no pagamento das custas e dos encargos do processo.”

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O recurso foi admitido.

Na 1.ª instância, o Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnado pela sua improcedência e pela consequente manutenção da decisão recorrida, face à inexistência de erro de julgamento quanto à matéria de facto, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1. O arguido AA, não se conformando com a douta Sentença proferida no processo supra identificado (cfr. ref.ª citius …), que o condenou pena de multa de 60 (sessenta) dias à taxa diária de €6,00 (seis euros), perfazendo o montante global de €360,00 (trezentos e sessenta euros), pela prática de um crime do art.º 40º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 Janeiro (cultivo de plantas estupefacientes), p. e p. pelo artigo 40º, n.º 2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, Tabela I-C do mesmo diploma, veio dela interpor recurso.

2. Da análise das alegações de recurso e, mais concretamente, das suas conclusões, constata-se que, em síntese, se reconduz ao erro notório na apreciação da prova e à violação do princípio in dubio pro reo.

3. Ao invés do que pretende o Recorrente, não se verifica qualquer erro ou contradição na matéria de facto, nem na fundamentação da decisão, afigurando-se conforme com as regras da experiência comum.

4. As declarações prestadas pelo arguido e o depoimento prestado pela testemunha militar da GNR, DD, bem como os documentos juntos aos autos, nomeadamente o relatório pericial, permitiram alcançar as conclusões a que o Tribunal a quo chegou.

5. Da análise conjugada da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, resulta, na nossa perspectiva, que a matéria de facto dada como assente e não assente, não merecem qualquer censura, inexistindo qualquer contradição entre a fundamentação da matéria de facto e a decisão.

6. O que o Recorrente pretende é impor a sua interpretação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

7. Afigura-se-nos, pois, que tribunal a quo ponderou todos os elementos de prova disponíveis, com observância do direito probatório, seguindo critérios de lógica do homem médio e as regras de normalidade, ou seja, no pleno uso do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código Processo Penal.

8. A matéria aqui dada como provada (e não provada) é a que resulta da análise da prova produzida, temperada com os princípios de processo penal convergentes na área, com destaque – inevitável e desejável sob o ponto de vista da captação psicológica – para o da imediação.

9. Pelo exposto, impõe-se concluir que a sentença recorrida não enferma do apontado vício de erro notório na apreciação da prova, pelo que não houve violação do disposto no artigo 410.º, n.ºs 1 e 2, alínea c) do Código de Processo Penal.

10. Ao contrário do Recorrente, consideramos que da factualidade dada como provada e da fundamentação de facto explanada na Sentença não se alcança que se haja instalado na convicção do julgador qualquer dúvida quanto à forma como os factos ocorreram quanto aos factos provados.

11. Pelo que se impõe concluir que a sentença recorrida não viola o princípio in dúbio pro reo.”

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A Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso e ela absolvição do arguido por razões diversas das invocadas na motivação de recurso.

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95 de 19.10.95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) Determinar se a sentença enferma do vício de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP;

B) Ou de erro de julgamento da matéria de facto por violação do princípio do in dúbio pro reo.

C) Ou ainda de erro de subsunção nos termos propugnados pelo Ministério Público junto desta Relação.

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II.II - A decisão recorrida.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que, deu por provados e não provados os seguintes factos:

“1) - O arguido é consumidor de canábis, pelo que, em data não concretamente apurada, decidiu semear, plantar e cuidar do crescimento de plantas daquela natureza.

2) - Assim, no dia 16/08/2019, cerca das 16:00 horas, num terreno junto à sua residência, sita, na Rua …, em …, o arguido possuía 6101 plantas de canábis em crescimento e em fase de secagem, com o peso total de 151,500 g de peso líquido.

3) - As referidas plantas foram semeadas e cuidadas pelo arguido.

4) - Para o efeito, o arguido montou um sistema de rega, gota a gota, abastecido por dois depósitos de água, cada um com capacidade para mil litros, tendo aí instalado um temporizador por forma a certificar-se de que as plantas eram devidamente regadas.

5) - De igual modo, o arguido tinha na sua posse adubos que utilizava para fertilizar as plantas de modo a assegurar o seu desenvolvimento e crescimento.

6) - O arguido sabia que parte das plantas que semeava e cuidava eram canábis e, ainda assim, quis plantá-las e fazê-las crescer, como sucedeu, para depois as consumir.

7) - Na mesma ocasião e circunstâncias o arguido tinha na sua posse um saco contendo sementes de canábis com o peso total de 2734,100 g, sem que tivesse qualquer licença ou autorização para detenção de tais produtos.

8) - As plantas em causa foram todas sujeitas a sujeitas a exame pericial pelo LPC, tendo-se constatado que em parte delas, com o peso líquido de 43,600g, foi apurado um grau de pureza de 0,8% (THC), sendo adequadas a confecionar seis doses para consumo.

9) - Em qualquer caso, o arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, semeando as plantas de canábis em causa, cuidando do seu crescimento, regando e tratando das mesmas, que destinava ao seu consumo, estando ciente de quais eram as suas características, natureza e efeitos.

10) - E sabendo que o cultivo e detenção para consumo daqueles produtos são punidos e proibidos por lei.

11) - O arguido adquiriu as sementes a um fornecedor de …, por encomenda efetuada via internet.

12) - O saco de sementes em causa não indica na embalagem a percentagem de THC.

13) - O arguido dedica-se exclusivamente a agricultura de subsistência para o seu agregado familiar.

14) - O arguido reside com a sua mãe, em casa própria da mesma, não sendo suportado qualquer empréstimo pela sua aquisição.

15) - A mãe do arguido, com o valor da sua reforma, assegura o pagamento das outras despesas do agregado familiar que integra com o filho.

16) - O arguido não tem averbada ao seu certificado de registo criminal condenação pela prática de qualquer crime.

Matéria de Facto Não Provada

Da audiência de discussão e julgamento não resultou provado que todas as plantas de canábis plantadas pelo arguido tivessem um grau de pureza de 0,8% (THC).”

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II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Do invocado erro notório na apreciação da prova

Invoca o recorrente na sua motivação e nas conclusões que da mesma extraiu a existência do vício consagrado na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP (embora não o identifique expressamente, é o que materialmente resulta da leitura integral da referida peça processual).

Os poderes de cognição dos Tribunais da Relação encontram-se expressamente consignados no artigo 428.º do CPP, dispondo o mesmo que “As Relações conhecem de facto e de direito”.

Importa ter presente que a impugnação da matéria de facto em sentido amplo, ou a invocação de um erro de julgamento – com observância dos ónus impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 – não se confunde com a invocação dos vícios consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, que denominamos de impugnação restrita. Na impugnação restrita, diferentemente do que sucede na impugnação da matéria de facto em sentido amplo, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

Conforme decorre do disposto no artigo 412.º, nº 3.º do CPP, o erro de julgamento, ocorre quando o tribunal considera provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova bastante, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. (1)

Na situação dos autos, não nos encontramos perante uma impugnação ampla da matéria de facto, realizada com respeito pelo disposto no artigo 412.º do CPP. Para a arguição de um erro de julgamento não é suficiente a invocação de mera divergência de entendimento do recorrente relativamente à convicção formada pelo julgador, uma vez que é a este que a lei atribui o poder de apreciar livremente as provas, o que deverá fazer de acordo com o disposto no artigo 127.º CPP, ou seja, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, mas segundo parâmetros racionais controláveis.

Assim, sempre que seja impugnada a matéria de facto, por se entender que determinado aspeto da mesma foi incorretamente julgado, o recorrente deverá indicar expressamente: tal aspeto; a prova em que apoia o seu entendimento; e, tratando-se de depoimento gravado, o segmento do suporte técnico em que se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida. Tais indicações constarão, pois, da motivação do recurso, que deverá ser elaborada de forma a permitir apontar ao Tribunal ad quem o que, na perspetiva do recorrente, foi mal julgado, oferecendo uma proposta de correção que possa ser avaliada pelo tribunal de recurso.

Tal claramente não sucede nos presentes autos, pese embora, em alguns passos da sua motivação de recurso, o recorrente pareça confundir o erro notório na apreciação da prova – que implicitamente invoca como fundamento do seu recurso – com a impugnação da matéria de facto propriamente dita a que se reporta o artigo 412.º, nºs 3 e 4 do CPP – a que o recorrente não fez qualquer alusão na sua motivação de recurso – como se aquele fosse uma espécie do mesmo género desta. Do conjunto das alegações resulta implícita a pretensão do recorrente de ver alterada a decisão sobre a matéria de facto relativamente a vários pontos – que não concretizou – que parece pretender que passem a constar do elenco dos factos não provados. Porém, a pretensão que descortinamos no excerto transcrito não se encontra formulada com invocação do erro na apreciação da prova sustentado no artigo 412º do CPP, não tendo, consequentemente, sido dado cabal cumprimento a tal preceito. Efetivamente, pese embora o recorrente refira na sua motivação de recurso, no excerto acima transcrito, a existência de factos incorretamente tidos por provados, tal referência é feita de acordo com a lógica que enforma o recurso, ou seja, visando demonstrar que a sentença recorrida se encontra inquinada pelo vício a que alude o artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP. Por isso, embora faça referência genérica e implícita a factos erradamente tidos por provados, e, portanto, sustentados em prova, na perspetiva do recorrente, incorretamente valorada, não cuidou aquele de elaborar a sua motivação de recurso e as respetivas conclusões de forma a indicar expressamente “os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados”, indicando as provas que conduziriam a decisão diversa, as passagens concretas dos depoimentos que a sustentariam e oferecendo uma proposta de correção que pudesse ser avaliada pelo tribunal de recurso.

Ora, reiterando o que acima explicitámos, os vícios da decisão, consagrados no n.º 2 do art.º 410.º do CPP e invocados no recuso, deverão resultar do próprio texto da decisão recorrida e a sua verificação pelo tribunal de recurso prescinde da análise da prova concretamente produzida e atém-se à conexão lógica do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum. Assentemos, pois, em que, “in casu” nos encontramos perante uma impugnação restrita da matéria de facto que passaremos a apreciar.

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Alega o recorrente que a sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova. Trata-se de um vício da decisão em si mesma e a sua verificação demanda a presença dos seguintes requisitos:

- A notoriedade do erro;

- Que este resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Notório, significa ostensivo, patente, percetível e identificável pela generalidade das pessoas e ocorre:

- Quando as provas revelem claramente um sentido contrário ao que se firmou na decisão recorrida;

- Em virtude de o sentido firmado na decisão recorrida ser logicamente impossível;

- Por se ter incluído ou excluído da matéria de facto provada algum facto essencial; - Ou quando determinado facto provado se mostra incompatível com outro também provado. A jurisprudência dos tribunais superiores tem vindo a caracterizar de forma convergente o vício em análise, no sentido que vimos de expor. (2).

Importa em primeiro lugar atentar na forma como o tribunal a quo justificou a sua decisão sobre a matéria de facto:

“(…)Fundamentação da Matéria de Facto

O Tribunal, para formar a sua convicção quanto à matéria dada como provada, baseou-se numa análise crítica e global de toda a prova produzida em audiência de julgamento.

O arguido, nas suas declarações, veio apresentar uma versão dos factos no sentido do desconhecimento da natureza das plantas, no que concerne à concentração do teor de THC superior ao legalmente permitido, porquanto, segundo o mesmo, as sementes que usou para a plantação provieram única e exclusivamente do saco de sementes que foi apreendido nos autos, o qual mandou vir de …, por encomenda através da internet, sendo que pediu sementes de plantas não proibidas quanto à sua composição.

O arguido juntou documentos comprovativos da aquisição do saco de sementes em causa, que encomendou, via internet a um fornecedor de ….

Saliente-se que o saco das sementes não contém a indicação do teor de THC das sementes.

Logo, e como explicitado no relatório pericial do LPC, junto a fls. 188 a 191 (referência citius …, de 23.07.2020), não é possível certificar laboratorialmente o teor de THC das sementes.

Consequentemente, só é permitida a aquisição de sementes de plantas proibidas em Portugal a um importador autorizado a vender essas sementes em Portugal, pois só assim se tem a certeza de que as sementes em causa estão devidamente alteradas em termos de se tornar lícito o cultivo das plantas advenientes dessas sementes.

Tendo o arguido importado as sementes em causa diretamente da …, por sua iniciativa e sem intervenção de qualquer outra entidade, não se assegurou, de forma legalmente válida e admissível, que as sementes em causa tinham poder germinativo nulo ou inferior a 10% ou que sempre dariam plantas com THC não superior a 0,2%, como legalmente imposto.

O Tribunal não apurou especificamente que o arguido tivesse semeado com essas sementes que obteve de… outras sementes não alteradas, as quais teriam dado lugar a plantas de canábis não modificadas.

Todavia, também é certo que, caso as sementes fossem efetivamente alteradas, como alega o arguido, as plantas nunca teriam um THC de 0,8%, como constatado em exame laboratorial pelo LPC.

O arguido não se certificou de que a aquisição das sementes fosse efetuada com respeito pela legislação portuguesa, adquirindo, portanto, as sementes a um importador certificado para atuar/vender em Portugal.

Casso fizesse a aquisição desta forma, e alguma(s) das sementes desse lugar a planta de THC superior ao legalmente permitido, não lhe poderia, naturalmente, ser assacada qualquer responsabilidade criminal por esses factos.

No caso, porém, tendo o arguido adquirido as sementes diretamente a um fornecedor de …, cuja certificação das sementes, pela sua especificidade, não é válida em Portugal, sempre será da sua responsabilidade o facto de alguma(s) dessas sementes dar lugar a planta(s) com teor de THC superior ao legalmente previsto, como é o caso dos autos.

Mais se saliente que, e tendo em atenção as informações prestadas nos autos pelo próprio arguido, considerando o valor de aquisição das sementes, o valor investido em todo o sistema de rega, bastante elaborado, note-se, e, ainda, o custo da água para a rega das plantas, quando confrontado com o valor de aquisição do produto final pelo cliente final, não nos mereceu credibilidades a versão das declarações do arguido quando refere que as plantas em causa se destinavam a fins têxteis.

Tais plantas, quanto a nós, destinavam-se a consumo do próprio arguido, na melhor das hipóteses, ou à cedência a terceiros, numa outra hipótese, mas que não resultou indiciada, admitindo, até, que o arguido ponderasse consumir todas as plantas misturadas entre si, assim reduzindo o teor do THC do produto que consumia, “suavizando”, deste modo, a concentração da canábis nos seus consumos.

Efetivamente, salienta-se que o arguido não identificou qualquer adquirente ou correspondência trocada com eventuais empresas com vista a adquirirem a sua produção final de canábis para fins têxteis.

A isto acresce que as plantas tinham diferentes estádios de crescimento, ou seja, os lotes de plantas foram semeados de forma espaçada no tempo, de modo a que ficassem na fase de colheita também em períodos espaçados no tempo.

Tal não é, como decorre das regas da experiência comum, comportável com o cultivo de uma plantação para um determinado fim económico, porquanto o habitual é proceder à sementeira toda no mesmo dia e à posterior colheita toda no mesmo dia, assim se diminuindo os custos, rentabilizando, consequentemente, a produção, fim visado pelo cultivo.

No que concerne às quantidades de plantas apreendidas e às suas características e composição, o Tribunal valorou os autos de apreensão juntos aos autos e o relatório pericial do LPC, já supra indicado.

No que respeita ao consumo, o arguido admitiu que já foi em tempos consumidor de produtos estupefacientes, negando que seja atualmente consumidor, no que as suas declarações não nos mereceram credibilidade, pois que não nos mereceu credibilidade a sua versão de que as plantas se destinavam a produção têxtil.

As declarações do arguido relativamente à sua situação pessoal, familiar, económica e profissional afiguraram-se-nos coerentes e credíveis e, como tal, suficientes no que concerne a tal matéria.

O depoimento prestado pela testemunha DD, Agente da GNR que detetou a plantação e procedeu à apreensão das plantas que a integravam, foi prestado de forma coerente e muito esclarecedor, e, como tal, credível, descrevendo a forma como foi detetada a plantação do arguido, bem com a quantidade e o estado de crescimento/desenvolvimento das plantas e, ainda, o sistema de rega instalado pelo arguido no local, confirmando, consequentemente, o teor dos autos de apreensão no que concerne a tudo quanto foi objeto de apreensão naquela data.

O Tribunal considerou, por fim, o teor do certificado do registo criminal do arguido junto aos autos. (...)”

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Analisado o texto da decisão recorrida nos segmentos transcritos, constata-se que a conexão lógica existente entre os factos que o tribunal recorrido julgou provados, os meios de prova existentes nos autos e a valoração que fez dos mesmos revelam, efetivamente, o alegado erro na apreciação da prova, não só na medida em que o tribunal tem por provados factos – concretamente os relativos ao consumo de estupefacientes pelo arguido e ao conhecimento e vontade do mesmo de os cultivar para seu consumo – sem indicar os meios de prova nos quais fez assentar a sua convicção probatória, mas também porquanto sustenta, para motivar tal convicção, a inexistência nos autos de meios probatórios que, na verdade, o processo contém. Precisemos melhor. Teve o tribunal recorrido por provado que: - “1) - O arguido é consumidor de canábis, pelo que, em data não concretamente apurada, decidiu semear, plantar e cuidar do crescimento de plantas daquela natureza.” (…) - “6) - O arguido sabia que parte das plantas que semeava e cuidava eram canábis e, ainda assim, quis plantá-las e fazê-las crescer, como sucedeu, para depois as consumir” (…) - “9) - Em qualquer caso, o arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, semeando as plantas de canábis em causa, cuidando do seu crescimento, regando e tratando das mesmas, que destinava ao seu consumo, estando ciente de quais eram as suas características, natureza e efeitos.” E para fundamentar a sua convicção probatória relativamente a tais factos, consignou que: “(…) tendo em atenção as informações prestadas nos autos pelo próprio arguido, considerando o valor de aquisição das sementes, o valor investido em todo o sistema de rega, bastante elaborado, note-se, e, ainda, o custo da água para a rega das plantas, quando confrontado com o valor de aquisição do produto final pelo cliente final, não nos mereceu credibilidades a versão das declarações do arguido quando refere que as plantas em causa se destinavam a fins têxteis. Tais plantas, quanto a nós, destinavam-se a consumo do próprio arguido, na melhor das hipóteses, ou à cedência a terceiros, numa outra hipótese, mas que não resultou indiciada, admitindo, até, que o arguido ponderasse consumir todas as plantas misturadas entre si, assim reduzindo o teor do THC do produto que consumia, “suavizando”, deste modo, a concentração da canábis nos seus consumos. Efetivamente, salienta-se que o arguido não identificou qualquer adquirente ou correspondência trocada com eventuais empresas com vista a adquirirem a sua produção final de canábis para fins têxteis. A isto acresce que as plantas tinham diferentes estádios de crescimento, ou seja, os lotes de plantas foram semeados de forma espaçada no tempo, de modo a que ficassem na fase de colheita também em períodos espaçados no tempo. Tal não é, como decorre das regas da experiência comum, comportável com o cultivo de uma plantação para um determinado fim económico, porquanto o habitual é proceder à sementeira toda no mesmo dia e à posterior colheita toda no mesmo dia, assim se diminuindo os custos, rentabilizando, consequentemente, a produção, fim visado pelo cultivo. (…) No que respeita ao consumo, o arguido admitiu que já foi em tempos consumidor de produtos estupefacientes, negando que seja atualmente consumidor, no que as suas declarações não nos mereceram credibilidade, pois que não nos mereceu credibilidade a sua versão de que as plantas se destinavam a produção têxtil (…).”

A leitura do excerto da motivação que acabámos de transcrever permite-nos concluir que os factos atinentes ao consumo de estupefacientes pelo arguido e ao cultivo das plantas apreendidas para seu consumo assentou na ausência absoluta de prova – segundo o julgador – de que as plantas cultivadas pelo arguido se destinavam a qualquer outro fim, designadamente a fins industriais têxteis e na descredibilização das declarações do arguido a tal respeito.

Ora, ressalvado o devido respeito, tal juízo probatório revela-se manifestamente errado, quer porque, ao contrário do que se refere na decisão, os autos contêm prova relativa aos contactos efetuados pelo arguido com industrias têxteis, quer porque, a descredibilização das declarações do arguido, só por si, não poderão ter a virtualidade de sustentar a convicção probatória relativamente aos factos em causa sem que a tal respeito tenha sido produzida qualquer outra prova no sentido que se teve por provado.

Analisemos um pouco mais de perto cada uma das questões assinaladas.

No que diz respeito à ausência de prova nos autos relativa à destinação das plantas à indústria têxtil, é manifesto que a sentença recorrida enferma de um erro cuja existência resulta ostensiva da simples consulta do processo. Efetivamente, como bem faz notar o recorrente na sua motivação de recurso, no dia 20.01.2022, com a referência nº … (referência consignada na ata da sessão da audiência realizada em tal data) o arguido juntou aos autos documentação relativa à correspondência trocada com indústrias têxteis com vista à comercialização das plantas por si cultivadas e que vieram a ser apreendidas neste processo. Tal documentação foi, aliás, expressamente admitida pelo despacho proferido no decurso da audiência de julgamento e que se encontra exarado na respetiva ata com o seguinte teor “Considerando que a documentação que o arguido pretende juntar aos autos neste momento se refere a diligências encetadas pelo mesmo, no sentido de cultivo das plantas tendo em vista a sua rentabilidade em sede de produção têxtil, e sendo certo que a Digna Magistrada do Ministério Público nada opôs à sua junção, atendendo a que os mesmos são relevantes para a descoberta da verdade material, admite-se a sua junção aos autos, pelo que vão rubricados, num total de 9 (nove) documentos”.

Não se compreende, pois que, na motivação da convicção da convicção probatória o tribunal recorrido tenha consignado que “Efetivamente, salienta-se que o arguido não identificou qualquer adquirente ou correspondência trocada com eventuais empresas com vista a adquirirem a sua produção final de canábis para fins têxteis.” Tal afirmação encerra uma falsidade e consubstancia um erro ostensivo na valoração da prova produzida no processo, erro que só podemos atribuir à circunstância de o julgador não ter atentado na inclusão nos autos da mencionada documentação. Repare-se que não se trata de ter desvalorizado tais documentos no legítimo exercício da livre apreciação da prova que lhe compete fazer. O que sucedeu foi, isso sim, uma omissão de consideração e análise dos documentos que anteriormente havia autorizado se integrassem nos autos deferindo o requerimento nesse sentido apresentado pelo arguido, o que redunda, em última análise, a nosso ver, num erro notório na apreciação da prova.

No que diz respeito à invocação da descredibilização das declarações do arguido – no sentido de que havia cultivado as plantas com vista à sua comercialização para fins da indústria têxtil – para fundamentar a prova de que o cultivo das plantas se destinava ao seu consumo, afigura-se-nos manifesta a insuficiência de tal linha argumentativa para sustentar a convicção probatória do julgador. Efetivamente, parece-nos evidente que a circunstância de o juiz a quo ter decidido não conceder credibilidade às declarações do arguido quanto à matéria em análise não legitima a formação de convicção probatória num outro sentido, sem que este se encontre suportado por qualquer prova produzida nos autos. É o próprio tribunal recorrido que, na sua motivação, espelha tal raciocínio, que reputamos manifestamente, errado, ao afirmar “Mais se saliente que, e tendo em atenção as informações prestadas nos autos pelo próprio arguido, considerando o valor de aquisição das sementes, o valor investido em todo o sistema de rega, bastante elaborado, note-se, e, ainda, o custo da água para a rega das plantas, quando confrontado com o valor de aquisição do produto final pelo cliente final, não nos mereceu credibilidades a versão das declarações do arguido quando refere que as plantas em causa se destinavam a fins têxteis.

Tais plantas, quanto a nós, destinavam-se a consumo do próprio arguido, na melhor das hipóteses, ou à cedência a terceiros, numa outra hipótese, mas que não resultou indiciada (3), admitindo, até, que o arguido ponderasse consumir todas as plantas misturadas entre si, assim reduzindo o teor do THC do produto que consumia, “suavizando”, deste modo, a concentração da canábis nos seus consumos. Efetivamente, salienta-se que o arguido não identificou qualquer adquirente ou correspondência trocada com eventuais empresas com vista a adquirirem a sua produção final de canábis para fins têxteis.(…) No que respeita ao consumo, o arguido admitiu que já foi em tempos consumidor de produtos estupefacientes, negando que seja atualmente consumidor, no que as suas declarações não nos mereceram credibilidade, pois que não nos mereceu credibilidade a sua versão de que as plantas se destinavam a produção têxtil(…)” Revelar-se-á legítima a afirmação feita pelo tribunal recorrido, no sentido de que “quanto a nós, destinavam-se a consumo do próprio arguido, na melhor das hipóteses, ou à cedência a terceiros, numa outra hipótese, mas que não resultou indiciada”? Certamente que não. Consabidamente, a apreciação da prova produzida no processo compete ao juiz que conduziu a audiência, com respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, que encontra consagração legal no artigo 127.º CPP. O que, porém, lhe não compete é, à míngua de prova produzida sobre factos relevantes, ter por provados aqueles que, quanto a ele – o mesmo é dizer, segundo a sua opinião formada com base em juízos intuitivos e segundo parâmetros não racionalmente controláveis, mas antes estabelecidos do campo das probabilidades – deverão ter acontecido.

A liberdade de apreciação da prova assenta em pressupostos valorativos e obedece aos critérios da razão, da lógica, da experiência comum e dos conhecimentos científicos disponíveis, tendo por referência a pessoa média suposta pela ordem jurídica, pelo que, de forma alguma, poderá confundir-se com arbítrio. Encontra-se a referenciada liberdade orientada para a objetividade, com vista a lograr obter a verdade validamente adquirida. A formação da convicção do julgador só será válida se for fundamentada e, desse modo, se tiver a capacidade de se impor aos seus destinatários através da demonstração do processo intelectual e lógico seguido para a afirmação da verdade dos factos, para além de dúvida razoável. O princípio da livre apreciação da prova não representa, pois, a possibilidade de uma apreciação puramente subjetiva, arbitrária, baseada em meras impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, antes pressupõe uma cuidada valoração objetiva e crítica e, em boa medida, objetivamente motivável.

Simplificando, na situação dos autos, a decisão recorrida não refere rigorosamente nenhuma prova que tenha sido produzida no que tange aos factos de o arguido ser consumidor de estupefacientes e de ter cultivado as plantas apreendias com vista ao seu consumo. O arguido negou tais factos, nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência contrariou a sua versão e o Ministério Público não carreou para o processo qualquer prova documental, direta ou indireta, no sentido da sua prova. Registamos, ademais, que não compreendemos o raciocínio expendido pelo tribunal recorrido segundo o qual o caráter dispendioso do sistema de cultivo e de rega implementados pelo arguido tornam inverosímil a versão pelo mesmo apresentada. Parece-nos, de outra sorte, que se o investimento realizado não se justificasse para fins de comercialização das plantas na indústria têxtil, muito menos se justificaria caso o destino das plantas fosse apenas o consumo do recorrente.

A inferência relativamente à verificação de factos não poderá consubstanciar-se num juízo conclusivo e insustentado de culpabilidade. A prova deverá valorar-se no seu exato contexto, estabelecendo-se entre os vários elementos probatórios as conexões lógicas e razoáveis que a sua conjugação permite, sem desprezar as presunções simples ou naturais, mas sem extrapolar de tais conexões factos ou acontecimentos não suportados pelas regras da lógica ou da razoabilidade.

Nesta conformidade e pelas razões expostas, somos a concluir que a conexão entre a factualidade que o tribunal recorrido julgou provada e análise dos meios de prova constantes dos autos se apresenta manifestamente errada e logicamente inaceitável, pelo que a sentença recorrida enferma do apontado erro notório na apreciação da prova a que se reporta o artigo 410.º, nº 2.º, alínea c) do CPP, o que determina o reenvio dos autos ao tribunal recorrido para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426º, nº 1 do CPP e com respeito das regras de competência constantes do artigo 426º-A do CPP, com vista à subsequente elaboração de nova sentença com sanação do aludido vício.

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A verificação do vício acabado de enunciar prejudica a análise da questão de direito suscitada pela Exmª. Procuradora Geral Adjunta neste Tribunal da Relação. (4)

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III – Decisão

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- Declarar a existência do vício de erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410.º, nº 2.º, al. c) do CPP.

- Determinar o reenvio dos autos ao tribunal recorrido para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 426º, nº 1 do CPP, com respeito das regras de competência constantes do artigo 426º-A do CPP.

Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 8 de novembro de 2022.

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

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1 A este propósito, preceitua o art.º 412.º do CPP, com referência à motivação e às conclusões do recurso:

“(…) 3 – Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b ) e c ) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 364.º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

2 Entre outros, citamos o acórdão deste Tribunal da Relação de Évora, de 21/5/2019, relatado pelo Desembargador Proença da Costa no proc. 61/15.8EAEVR.E1, no qual podemos ler relativamente ao o erro notório na apreciação da prova, que o mesmo ocorre quando «… as provas revelam claramente num sentido e a decisão recorrida extrai ilações contrárias, logicamente impossível, incluindo na matéria de facto ou excluindo dela algum elemento. Trata-se, assim, de uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, percetível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se passou, provou ou não provou. Existe um tal erro quando um homem médio, perante o que consta da decisão recorrida, por si ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram as regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis..»

3 Sublinhado acrescentado.

4 Sempre diremos, porém, que, ressalvada melhor opinião, as considerações expendidas no Parecer se adequam ao consumo de estupefacientes e não ao cultivo de estupefacientes para consumo pelo qual o arguido foi condenado.