CONTRAORDENAÇÃO GRAVE
ADMOESTAÇÃO
NÃO APLICABILIDADE
Sumário

I - Nos casos em que o legislador procede a uma classificação das contraordenações em função da sua gravidade, o que reflete, necessariamente, o grau de ilicitude das infrações, devem considerar-se como de reduzida gravidade as que são classificadas como leves, só a estas sendo aplicável a admoestação em substituição da coima.
II - Quer a consagração da possibilidade de aplicação da admoestação às contraordenações de reduzida gravidade, nos termos previstos no artigo 51º do RGCO, quer a classificação legal das contraordenações como leves, graves e muito graves, constituem opções de política legislativa, sistematicamente interligadas, que se situam a montante da avaliação casuística que o julgador deverá realizar para determinação da concreta sanção a aplicar, escolhendo de entre as que se encontram previstas para a contraordenação em causa e visando encontrar a sua medida adequada.

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos presentes autos de recurso de contraordenação que correm termos no Juízo de Competência Genérica de … - J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o nº 173/22.1T8SLV, foi proferida decisão final que julgou parcialmente procedente o recurso de impugnação interposto pela arguida AA, Lda, com sede na EN …, … da decisão administrativa proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna, em 24 de outubro de 2021, que a condenara pela prática da contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 8.º n.º 7 e 59.º, n.ºs 2, al. b), 4, al. b) e 8 da Lei n.º 34/13, de 16 de maio e na al. c) do parágrafo 3.1., do n.º 3 do anexo I da Portaria n.º 273/2013, de 20 de Agosto, numa coima no montante de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).

Tal decisão final decidiu julgar o recurso de impugnação judicial parcialmente procedente e, em consequência, manter a condenação da recorrente pela prática de uma contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 8.º, n.º 7 e 59.º, n.ºs 2, al. c), 4, al. b) e 8 da Lei n.º 34/13, de 16 de maio e na al. c) do parágrafo 3.1., do n.º 3 do anexo I da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, substituindo, porém, a coima anteriormente aplicada, no montante de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), pela sanção de admoestação.

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Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“II - CONCLUSÕES

1. O Ministério Público não concorda com a substituição da coima aplicada à Recorrente pela sanção de admoestação, por duas linhas de razão:

a. inadmissibilidade da aplicação da admoestação em contra-ordenação considerada como grave;

b. formalidade da aplicação da admoestação (escrita).

2. Foi a Recorrente condenada por uma contra-ordenação que a própria formulação legal do preceito tipificador da conduta, classifica como muito grave (art.º 8º nº 7 e 59º nº 2 al. b), 4º al. b) e 8 da Lei nº 34/13 de 16 de Maio e na al. c) do parágrafo 3.1 do nº 3 do anexo I da Portaria nº 273/2013 de 20 de Agosto).

3. Esta classificação legal da contra-ordenação em causa afasta desde logo a possibilidade da aplicação da medida de admoestação, prevista no artigo 51º, do Regime Geral das Contra-Ordenações, pois que objectiva e expressamente, trata-se de uma contra-ordenação com gravidade (neste sentido, entre outros o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-03-2018; Processo nº 2551/17.9T8ENT.E1; Relator, Dr. Gomes de Sousa, disponível em www.dgsi.pt; Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 6/2018, publicado no D.R nº 219/2018,Série I de 14 de Novembro de 2018; o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de Setembro de 2014, Processo nº 656/13.4TBPNF.P2; Relator Dra. Elsa Paixão; disponível em www.dgsi.pt”).

4. No fundo, a admoestação trata-se de uma alternativa para os casos de pouca relevância do ilícito criminal e da culpa do agente, isto é, para contra-ordenações leves ou simples, ou seja, quando quer a gravidade do ilícito quer a culpa sejam reduzidos (cfr: PAULO PINTO de ALBUQUERQUE, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações, p. 222 e ss. e SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, 2011, p. 394).

5. Entendeu o tribunal a quo que: “(…) em nosso entendimento, que, não obstante a integração dum tipo legal de ilícito contra-ordenacional definido em abstracto como sendo grave, as circunstâncias do caso concreto podem apontar em concreto para uma diminuta ilicitude e gravidade. (…).

6. Na verdade, para a aplicação da admoestação terão de verificar-se no caso concreto, dois requisitos legais, a pouca relevância do ilícito e a diminuta culpa do agente, cumulativamente e não em alternativa um do outro. E, se neste caso concreto, resultaram provados factos relevantes relativos à menor culpa do arguido/recorrente, como sejam actuação ser qualificada como negligente e a ausência de antecedentes contra-ordenacionais, a verdade é que foi a Recorrente condenada por uma contra-ordenação que a própria formulação legal do preceito tipificador da conduta, classifica como grave.

7. Ora, por si só, esta classificação legal da contra-ordenação em causa afasta desde logo a possibilidade da aplicação da medida de admoestação, prevista no artigo 51º, do Regime Geral das Contra-Ordenações, pois que objectiva e expressamente, trata-se de uma contra-ordenação com gravidade.

8. Sempre se dirá que a circunstância de o tribunal a quo ter considerado a conduta negligente isso apenas faz cair a culpa de “muito grave” para “menos grave”, mas não é considerada por si só diminuta ou reduzida.

9. Ora, no caso em apreço, preenchidos que se encontram os elementos objectivos e subjectivos do tipo e uma vez que estamos perante uma contra-ordenação tipificada como grave, inadmissível será de aplicar a sanção de admoestação, pelo que deverá ser revogada a decisão de substituição que ora se recorre, e substituída por outra que mantenha a decisão anteriormente proferida pela autoridade administrativa.

10. Pelo exposto, violou o tribunal a quo o art.º 51º nº 1 do RGCO e (art.º 8º nº 7 e 59º nº 2 al. b), 4º al. b) e 8 da Lei nº 34/13 de 16 de Maio e na al. c) do parágrafo 3.1 do nº 3 do anexo I da Portaria nº 273/2013 de 20 de Agosto).

11. Ademais, sempre se dirá que, mesmo que se considerasse a admissibilidade da aplicação da sanção de admoestação no caso em apreço, a mesma deveria ser proferida oralmente e não por escrito.

12. De facto, resulta do artº 51º, nº 2 do RGCO que: “A admoestação é proferida por escrito (…)”, porém, tal só ocorre quando a admoestação é aplicada pela autoridade administrativa, uma vez que, quando a admoestação ocorre em fase judicial, se aplicará, a nosso ver, o disposto no artº 60º, nº 4 do C.P., por via do disposto no artº 32º da RGCO. Neste sentido, vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, in Contra-Ordenações – Anotações ao Regime Geral, 2002, pp. 316 e 317, em anotação ao referido artº 51º.

13. A decisão proferida por escrito é nula por vício de forma, devendo ser substituída por outra que preveja o cumprimento cabal da admoestação (censura solene oral).

14. Pelo exposto, o tribunal a quo violou as seguintes disposições legais: artsº 60º, nº 2 do CP, 32º do RGCO e 497 º do CPP.”

Termina pedindo a revogação da sentença recorrida.

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Na 1.ª instância, a arguida pugnou pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“I. O presente recurso está centrado na impugnação da decisão, sobre a matéria de direito, discordando, na substituição da coima aplicada pela sanção de admoestação.

II. O Ministério Público (ora recorrente) sustenta o seu recurso em dois fundamentos da discordância: A inadmissibilidade da aplicação da admoestação em contra-ordenações consideradas como graves e muito graves e a formalidade da aplicação da admoestação (escrita ou oral).

III. Quanto à aplicação da sanção de admoestação aplicada, o Tribunal a quo, aplicou corretamente o direito ao caso concreto.

IV. Estipula o artigo 51.º do Regime Geral das Contraordenações que “1 – Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação. 2 – A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação.”

V. Assim, a referida norma tem aplicação à contraordenação aplicada à recorrente, atento o disposto no artigo 62.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio.

VI. Quanto à formalidade da aplicação da admoestação (escrita ou oral) vem ainda o Ministério Público invocar a nulidade da decisão por escrito por vício de forma, devendo ser substituída por outra que preveja o cumprimento cabal da admoestação (censura solene oral).

VII. O Tribunal a quo mais uma vez, em nosso entendimento andou bem, ao ter expressado na decisão “Após trânsito em julgado da presente decisão, abra conclusão, a fim de ser proferida a admoestação por escrito, nos termos do disposto no artigo 51º, nº 2 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.

VIII. Ora, salvo o devido respeito, a decisão do tribunal a quo é integralmente acertada,

IX. Ao aplicar a título de sanção a admoestação em substituição da coima anteriormente aplicada.”

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Tendo tido vista do processo, o Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal pugnou pela procedência do recurso, defendendo que a sanção de admoestação só se encontra prevista para as contraordenações legalmente qualificadas como leves e que, tendo a arguida sido condenada nos presentes autos pela prática de uma contraordenação qualificada como grave, tal sanção não lhe poderá ser aplicada.

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Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

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O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância em processo de contraordenação encontra-se estabelecido nos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGCO). Da análise do regime legal acima referido decorre, relativamente aos processos de contraordenação, duas conclusões: - A impugnação da decisão da autoridade administrativa não assume a natureza de um verdadeiro recurso, sendo antes a causa retirada do âmbito administrativo e entregue a um órgão independente e imparcial, o tribunal; - O Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada – podendo alterar a decisão do Tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal, sempre sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC – e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito.

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Delimitado o âmbito dos recursos de contraordenação e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são duas as questões a apreciar e a decidir, a saber:

A) - Apreciação da aplicabilidade da sanção de admoestação às contraordenações legalmente qualificadas como contraordenações graves;

B) - Caso se conclua pela aplicabilidade de tal sanção à contraordenação pela qual a arguida foi condenada nos presentes autos, determinar se a mesma deverá executar-se oralmente ou por escrito.

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II.II - A decisão recorrida.

Pelo tribunal recorrido foi proferida sentença com o seguinte conteúdo, que se transcreve apenas nas partes relevantes para apreciação das questões que constituem objeto do recurso: “(…) II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

A – Factos Provados.

Realizada a audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 5 de Dezembro de 2018, no Posto de Combustível …, sito na EN …, Km …, em …, propriedade da Recorrente, encontrava-se em funcionamento o sistema de videovigilância, não estando o horário sincronizado com a hora legal e real, marcando no respectivo monitor 11:13h, quando eram 11:30.

2. A recorrente, enquanto proprietária do estabelecimento referido no ponto n.º 1, era conhecedora da obrigatoriedade da sincronização dos servidores do sistema de videovigilância, referido no mesmo facto, com a hora legal portuguesa, pelo que ao não promover por tal sincronização, i.e., não se certificando que o horário do referido sistema de videovigilância estava sincronizado com a hora legal e real, sem ter representado tal possibilidade, não agiu com o cuidado e diligência a que se encontrava obrigada, que lhe era exigível e de que era capaz.

3. A recorrente agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei contraordenacional.

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B- Factos não Provados.

Não ficaram por provar quaisquer factos para a decisão da causa, com relevância para a decisão a proferir. Nomeadamente não se provou que:

a)A diferença existente entre a hora real e constante no sistema de videovigilância havia sido causada por um corte de corrente durante a noite.

(…) Em face do exposto, e inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, conclui-se ter a recorrente AA, Lda praticado 1 (uma) contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 8.º, n.º 7 e 59.º, n.ºs 2, al. c), 4, al. b) e 8 da Lei n.º 34/13, de 16 de maio e na al. c) do parágrafo 3.1., do n.º 3 do anexo I da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, conforme disposto na decisão administrativa ora recorrida.

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IV- DA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA

Uma vez que foram juridicamente qualificados os factos e operada a sua subsunção ao preceito contraordenacional, e estando assente que a recorrente praticou 1 (uma) contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 8.º, n.º 7 e 59.º, n.ºs 2, al. c), 4, al. b) e 8 da Lei n.º 34/13, de 16 de maio e na al. c) do parágrafo 3.1., do n.º 3 do anexo I da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, cumpre determinar a medida concreta da coima aplicar, recorrendo aos critérios e fatores a que se alude no artigo 18.º, n.º 1 do Regime Geral das Contraordenações, o qual dispõe que «A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação.». Em harmonia com o disposto no artigo 59.º, n.ºs 2, al. c), 4, al. b) e 8 do Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, a contraordenação que a recorrente praticou é punível com coima de €7.500,00 a €37.500,00. Como é consabido, as condutas legalmente tipificadas como contraordenações são, em si mesmas, axiologicamente neutras, resultando a sua anti-juridicidade da sua proibição legal e que a coima consiste apenas numa especial advertência ou reprimenda com vista à observância de certas proibições ou imposições legais, não existindo, na verdade, nenhuma ligação entre tais condutas e a personalidade do agente. A aplicação de uma coima, enquanto instrumento sancionatório, só se legitima enquanto reação a um facto anti-jurídico censurável, visando permitir a responsabilização social do seu autor por não ter respeitado um dever que emerge das imposições legais, e só se justifica pela necessidade de proteção de bens jurídicos e de conservação e reforço da norma jurídica violada. A medida concreta da coima deve, portanto, ser determinada em função de exigências de prevenção geral, tendo como limite inultrapassável a culpa do agente. Neste âmbito é de ter, desde logo, por referência que a entidade administrativa S.G.M.A.I. fixou a coima da contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 8.º, n.º 7 e 59.º, n.ºs 2, al. c), 4, al. b) e 8 da Lei n.º 34/13, de 16 de maio e na al. c) do parágrafo 3.1., do n.º 3 do anexo I da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, praticada pela recorrente no montante de €7.500,00. Ora, preconiza o Tribunal que a medida da coima fixada pela entidade administrativa se tem como adequada às circunstâncias do caso concreto, se atendermos ao desfasamento do horário marcado no sistema de videovigilância [11h13m] e a hora legal e real [11h30m] e que não se apurou qualquer ao benefício económico ilegítimo por si retirado com prática da contraordenação em causa nos autos. Atende-se ainda à gravidade da infração, não se tendo apurado que, no caso concreto, a prática da contraordenação imputada à recorrente causou quaisquer danos patrimoniais ou não patrimoniais a terceiros ou os prejudicou de qualquer forma e ainda à sua culpa, que se afigura como negligente, na forma inconsciente [a modalidade mais leve da culpa]. A medida da coima situou-se no limite mínimo da moldura abstrata, o que permite concluir que a entidade administrativa sopesou de forma correta todos os critérios e fatores relevantes para a sua determinação em concreto. Diante do exposto, considera o Tribunal que deve a recorrente ser condenada pela prática de 1 (uma) contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 8.º, n.º 7 e 59.º, n.ºs 2, al. c), 4, al. b) e 8 da Lei n.º 34/13, de 16 de maio e na al. c) do parágrafo 3.1., do n.º 3 do anexo I da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, na coima de €7.500,00 [sete mil e quinhentos euros], conforme decidido pela entidade administrativa, sem prejuízo da referida coima ser substituída pela sanção de admoestação, caso se verifiquem os respetivos pressupostos.

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Da aplicação da admoestação

A recorrente termina pugnando, na sua impugnação judicial, pela aplicação da sanção de admoestação, vejamos se se verifica o circunstancialismo necessário para tal. Estipula o artigo 51.º do Regime Geral das Contraordenações que «1 - Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação. 2 - A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contra-ordenação.». A referida norma tem aplicação à contraordenação aplicada à recorrente, atento o disposto no artigo 62.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio.

Apesar do artigo 51.º do Regime Geral das Contra-Ordenações referir «entidade competente», a jurisprudência tem entendido que é possível a aplicação da admoestação já em fase jurisdicional, funcionando como verdadeira pena de substituição da coima aplicada, da mesma forma que a admoestação penal (cf. artigo 60.º do Código Penal) é uma pena de substituição da multa [neste sentido, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/02/2013, relator:José Eduardo Martins; de 27/06/2012, relator: Paulo Guerra; e de 10/03/2010, relator: Mouraz Lopes, todos disponíveis em www.dgsi.pt]. Por sua vez, a expressão «culpa reduzida», utilizada igualmente no artigo 51.º do Regime Geral das Contraordenações., tem levado os tribunais superiores a entender, em determinados diplomas legislativos que preveem contraordenações específicas, que a admoestação não terá aplicação em caso de contraordenações classificadas como graves ou muito graves, mas apenas para as que a lei classifique como leves [veja-se a título exemplificativo o A.U.J. do S.T.J. n.º 6/2018, publicado em Diário da República n.º 219/2018, Série I de 14 de novembro de 2018], sendo de lembrar que, no caso concreto, a contraordenação praticada pela recorrente se tem como grave. Assim, e como se disse, alguns tribunais superiores têm entendido que a referência à «gravidade da infração» que é feita pelo artigo 51.º do Regime Geral das Contraordenações limita a aplicação da admoestação, no máximo, às contraordenações graves, e mesmo aqui só a título excecional – ao passo que alguma jurisprudência, mais restritiva, até limita a admoestação apenas às contraordenações leves. A gravidade da contraordenação mede-se pela sua ilicitude: e os graus de ilicitude seriam neste entendimento concedidos pela lei, quando classifica as contraordenações como leves, graves, e muito graves [neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08/03/2018, relator: Gomes de Sousa e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2019, relatora: Rita Romeira, ambos disponíveis em www.dgsi.pt]. Outra orientação jurisprudencial tem entendido, porém, que a pena de admoestação é sempre aplicável, independentemente da classificação da contraordenação como leve, grave, ou muito grave, desde que se verifiquem circunstâncias que reduzam significativamente a culpa ou a ilicitude do facto [neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/12/2017, relator: João Pedro Nunes Maldonado, e os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo datados de 19/06/2019 [relatora: Dulce Neto] e de 10/10/2018 [relator: Francisco Rothes], todos disponíveis em www.dgsi.pt]. Esta jurisprudência, preconiza que se a intenção legislativa fosse a de excluir as contraordenações graves ou muito graves do âmbito de aplicação da admoestação, o texto legal seria necessariamente mais específico nesse sentido. Por outro lado, a jurisprudência contrária, também supracitada, entende que se o legislador optou por classificar a contraordenação como grave, ou muito grave, não pode ser o julgador a substituir-se ao legislador.

O Tribunal considera que é de acolher o segundo entendimento jurisprudencial apontado – ou seja, de que é irrelevante a classificação da contraordenação como leve, grave ou muito grave para fins do artigo 51.º do Regime Geral das ContraOrdenações, devendo a respetiva ponderação ser feita caso a caso, avaliando-se do grau de ilicitude concreto e atendendo à culpa do arguido, às suas circunstâncias concretas, às consequências do ilícito e ao eventual benefício económico que este tenha obtido. O texto legal necessitaria de ser mais específico, prevendo expressamente a exclusão das contraordenações graves e muito graves do âmbito da pena de admoestação; a classificação da contraordenação como grave ou muito grave tem já encerrada em si um juízo de ilicitude, que, no entanto, se reporta à abstração – à importância dos bens jurídicos tutelados e à seriedade em abstrato da prática da infração. E ficaria por analisar as circunstâncias concretas do caso – sendo que a pena de admoestação nunca é de aplicação automática e depende sempre da avaliação casuística do comportamento do agente e da gravidade da infração; mesmo numa contraordenação grave, não são sempre as mesmas as circunstâncias do agente, nem as consequências do ilícito. Por outro lado, certos diplomas legais fazem de imediato esta distinção, afastando a possibilidade de admoestação a contraordenações graves e muito graves – veja-se por exemplo o artigo 48.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, o qual limita a possibilidade de admoestação às contraordenações punidas naquele diploma como leves. O próprio Código Penal, quando prevê a possibilidade de admoestação, estabelece um limite de dias de multa (240 dias – cf. artigo 60.º, n.º 1 do Código Penal), o que não sucede com o Regime Geral das Contraordenações; de resto, a pena de admoestação pode ser sempre aplicada desde que tenha existido reparação e as exigências de prevenção se encontrem salvaguardadas (cf. artigo 60.º, n.º 2 do Código Penal), independentemente da gravidade em abstrato do ilícito – ou seja, a aplicação da admoestação deve partir sempre de uma análise concreta do caso, independentemente da moldura abstrata do crime, desde que a pena concreta não exceda 240 dias de multa. A classificação das contraordenações em graus de gravidade relaciona-se, muitas vezes, apenas com o regime de eventuais sanções acessórias ou então com a ordenação ou classificação mais eficiente das coimas aplicáveis a contraordenações consoante sejam leves, graves ou muito graves – não podendo servir para afastar a análise casuística da gravidade da infração e da culpa do agente – sendo que, com um entendimento contrário, perder-se-ia a noção de proporcionalidade e de adequação da sanção à conduta do agente. Ademais, não descura o Tribunal a jurisprudência fixada, na medida em que o A.U.J. supracitado tem a sua aplicação limitada às contraordenações previstas no Decreto-Lei n.º 78/2004 de 03 de abril, e não a todas as contraordenações em geral.

Aliás, é de citar o voto de vencido do conselheiro Santos Cabral proferido naquela decisão, segundo o qual «é a qualificação de uma conduta concreta como penalmente ilícita que significa que ela é, de uma perspectiva tanto objectiva, como subjectiva, desconforme com o ordenamento jurídico-penal e que este lhe liga, por conseguinte, um juízo negativo de valor (de desvalor). A função que a categoria da ilicitude cumpre no sistema do facto punível é, em suma, definir - não em abstracto, mas em concreto, isto é, relativamente a singulares comportamentos - o âmbito do penalmente proibido e dá-lo a conhecer aos destinatários potenciais das suas normas, motivando por esta forma tais destinatários a comportamentos de acordo com o ordenamento jurídico-penal. Só a partir daqui ganha o tipo o seu verdadeiro significado e a ilicitude se apresenta como o verdadeiro fundamento do tipo. (…) Significa o exposto, em nosso entendimento, que, não obstante a integração dum tipo legal de ilícito contra-ordenacional definido em abstracto como sendo grave, as circunstâncias do caso concreto podem apontar em concreto para uma diminuta ilicitude e gravidade. A integração dum tipo de ilícito contra-ordenacional, reputado como grave em abstracto pela norma, assume uma natureza indiciária dessa mesma gravidade a qual não é necessariamente coincidente com as concretas circunstâncias sujeitas a julgamento.». Diante do supra exposto, e mesmo tendo a recorrente praticado uma contraordenação grave prevista na Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, considera o Tribunal que, no caso concreto, e tendo por referência a factualidade dada como provada, pode ser aqui aplicada à recorrente a sanção de admoestação, senão vejamos. Atendendo ao lapso de tempo já decorrido desde a prática dos factos (quase quatro anos) e ponderando todas as circunstâncias fácticas que, numa imagem global, diminuem consideravelmente a ilicitude dos factos, nomeadamente não há notícia de que depois da prática dos factos em causa nos autos a Recorrente tenha praticado quaisquer outros de igual natureza [ou similar], o que demonstra que a mesma vem pautando a sua «vida comercial» em conformidade com o direito e as regras legalmente impostas no que a este respeito concerne. Por outro lado, é ainda de atender que não se provou a obtenção de qualquer benefício económico da recorrente com a prática da contraordenação em causa nos autos. Por fim, e a este propósito, é ainda de frisar que a culpa da recorrente é reduzida, pois que atuou com a modalidade menos grave da negligência – i.e. com negligência inconsciente, e a infração, ainda que classificada pela lei como grave, não teve quaisquer consequências para terceiros [pois que, apesar da censurabilidade da conduta, a mesma não acarretou quaisquer danos para terceiros de natureza patrimonial ou não patrimonial, nem se provou que prejudicou qualquer pessoa], sendo que não se provou que existiram quaisquer captações de imagens que importasse salvaguardar ou prestar. Desta forma, se por um lado estariam reunidos todos os pressupostos para a aplicação de uma coima, como aplicou o S.G.M.A.I., por outro lado, como apela a recorrente torna-se plausível ponderar a aplicação de uma admoestação, nos termos do artigo 51.º do Regime Geral das Contraordenações, pois que as necessidades de prevenção especial, no caso concreto, são baixas, atenta a ausência de registo de antecedentes contraordenacionais por parte da recorrente e que a mesma atuou com uma culpa leve. A isto acresce que aplicação da admoestação não coloca em causa as necessidades de prevenção geral que se fazem sentir no caso [que são médias], pois que, como se disse, da atuação da recorrente não resultaram quaisquer consequências para terceiros – sendo que a admoestação representa uma censura suficiente do facto e é uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada. Neste circunstancialismo globalmente ponderado, o Tribunal formula um juízo de adequação e suficiência pela aplicação da admoestação em substituição da coima. Com tal advertência e perante a conduta adotada até então, vislumbra-se poder ser suficiente, a que a recorrente não volte a prevaricar, sabendo, desde já, que incorrendo novamente na prática desta contraordenação não beneficiará, com certeza, de tal sanção substitutiva da coima. Neste sentido, procedem, aqui, as alegações da recorrente, aplicando-se a sanção substitutiva de admoestação, em conformidade com o disposto no artigo 51.º do Regime Geral das Contraordenações aplicável ex vi do artigo 62.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio. Em face do exposto, julga-se a impugnação judicial deduzida pela recorrente parcialmente procedente e, em consequência, substitui-se a coima, no montante de €7.500,00, a que foi condenada por decisão administrativa proferida pela Secretaria Geral do Ministério da Administração Interna em 24 de Outubro de 2021, pela prática de 1 (uma) contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 8.º, n.º 7 e 59.º, n.ºs 2, al. c), 4, al. b) e 8 da Lei n.º 34/13, de 16 de maio e na al. c) do parágrafo 3.1., do n.º 3 do anexo I da Portaria n.º 273/2013, de 20 de agosto, pela sanção de admoestação.”.

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II.III - Apreciação do mérito do recurso.

A) Da aplicabilidade da sanção de admoestação às contraordenações graves

Nos presentes autos foi a arguida condenada pela prática de uma contraordenação legalmente qualificada como grave, sendo que o que está em causa no presente recurso é saber se a admoestação é aplicável como sanção pela prática de uma contraordenação com tal natureza.

Vejamos.

No direito contraordenacional, a admoestação encontra-se prevista no artigo 51º do RGCO que dispõe nos seguintes termos:

“Artigo 51.º

Admoestação

1 - Quando a reduzida gravidade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade competente limitar-se a proferir uma admoestação.

2 - A admoestação é proferida por escrito, não podendo o facto voltar a ser apreciado como contraordenação.”

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Da análise do preceito transcrito, resulta que os pressupostos cumulativos estabelecidos para a aplicação de tal sanção são os seguintes:

- A contraordenação ter gravidade reduzida;

- A culpa do agente ser reduzida;

- A adequação e suficiência da sanção de admoestação para a realização das finalidades punitivas associadas ao ilícito contraordenacional em causa.

A questão que constitui o cerne da nossa análise restringe-se à dilucidação do que pretende significar-se com a previsão na norma transcrita do primeiro pressuposto enunciado, ou seja, com a previsão da reduzida gravidade da infração. Deverá a gravidade reduzida da infração aferir-se fazendo apelo à classificação legal das contraordenações, que as distingue entre leves, graves e muito graves, entendendo-se que apenas as contraordenações leves têm gravidade reduzida, pelo que apenas pela prática das mesmas poderá ser aplicada a sanção de amoestação, conforme propugna o recorrente? Ou, de outra sorte, a gravidade da contraordenação deverá aferir-se em concreto, atendendo à ilicitude mais ou menos intensa associada aos factos praticados pelo agente, independentemente de a contraordenação pelo mesmo praticada ser legalmente qualificada como leve, como grave ou como muito grave, conforme decidiu o tribunal “a quo”?

Conforme se consignou na decisão recorrida, perfilam-se na doutrina e na jurisprudência nacionais, a respeito da matéria em análise, duas posições distintas, correspondendo cada uma delas à resposta positiva a cada uma das questões acima enunciadas, sendo certo, porém, que a primeira, ou seja, a que limita a possibilidade de aplicação da admoestação à contraordenações legalmente qualificadas como leves, corresponde à posição maioritariamente defendida.

Assim, argumentando em defesa da aplicação da admoestação a todas as contraordenações independentemente da sua qualificação legal como leves, graves ou muito graves, defende alguma jurisprudência que a ponderação relativa à sua aplicabilidade deve ser feita caso a caso, avaliando-se em cada situação quer o grau de ilicitude concreto, quer a culpa do arguido. Segundo esta posição, defendida na decisão recorrida, para que as contraordenações graves e muito graves se considerassem excluídas do âmbito de aplicação da sanção de admoestação, a letra da lei deveria ser mais específica, prevendo-o expressamente, sendo certo que o juízo de ilicitude que a classificação das contraordenações como leves, graves ou muito graves encerra é abstrato, reportando-se à importância dos bens jurídicos tutelados, pelo que, fazer depender a aplicabilidade da admoestação de tal juízo abstrato, deixaria por analisar as circunstâncias concretas do caso, preterindo a avaliação casuística do comportamento do agente e da gravidade dos factos. (1)

No sentido da restrição da aplicação da admoestação à contraordenações leves posiciona-se a esmagadora maioria da jurisprudência portuguesa, argumentando que, nos casos em que o legislador procede a uma classificação das contraordenações em função da sua gravidade, devem considerar-se como de reduzida gravidade as que são classificadas como leves, só a estas sendo aplicável a admoestação em substituição da coima. (2)

E cremos que argumentam tais arestos com razão. É esta, a nosso ver, a linha argumentativa que se nos afigura mais sustentada e a que melhor se coaduna com a sistematização do direito contraordenacional, que, como sabemos, optou por classificar as contraordenações abstratamente previstas, como leves, graves e muito graves, fazendo-o de acordo com a maior ou menor gravidade das mesmas, o que reflete, necessariamente, o grau de ilicitude das infrações.

No que diz respeito à natureza dogmática da sanção de admoestação no domínio contraordenacional, prevalece, no seio do debate jurisprudencial, o entendimento de que a mesma assume natureza sancionatória. Porém, como refere Pinto de Albuquerque, “(…) trata-se de uma medida para os casos de pouca relevância do ilícito contraordenacional e da culpa do agente, isto é, para contraordenações leves ou simples (concordam Simas Santos e Lopes de Sousa, 2011, 394, anotação 2ª ao artigo 51º e Sérgio Passos, 2009, 370, anotação 2ª ao artigo 51º). Portanto, quer a gravidade do ilícito quer o grau de culpa devem ser reduzidos”. (3)

A “gravidade da infração” a que alude o artigo 51º do RGCO, afere-se pela respetiva ilicitude, sendo que nas contraordenações a graduação da ilicitude se encontra feita pelo legislador, em três graus distintos. Trata-se de uma classificação ope legis da gravidade do ilícito contraordenacional, que está presente no diploma que regula a contraordenação em causa nos presentes autos, a Lei n.º 34/2013 de 16 de maio, que, concretamente no seu artigo 59º, classifica as contraordenações em leves, graves e muito graves. Ora, constituindo a admoestação a menos grave das sanções previstas no nosso ordenamento jurídico, quer penal, quer contraordenacional, parece-nos evidente que a possibilidade da sua aplicação esteja reservada às contraordenações leves.

Na verdade, a gravidade da contraordenação dependerá do bem jurídico tutelado, do benefício do agente ou do prejuízo causado, pressupondo-se, porém, que todos esses fatores foram sopesados na classificação que o legislador entendeu fazer dos ilícitos contraordenacionais. O artigo 51.° do RGCO prevê, assim, a aplicabilidade da sanção de admoestação aos ilícitos contraordenacionais, que consubstanciem “casos de pouca relevância do Direito contraordenacional e da culpa do agente, isto é, para contraordenações qualificadas como leves ou simples, designadamente naquelas em que há atuação negligente e naquelas em que circunstâncias externas tenham constituído um incentivo para a prática dos factos” (4)

Registamos, finalmente que, a nosso ver, não impressiona o argumento constante da sentença recorrida no sentido de que fazer depender a aplicabilidade da admoestação do juízo abstrato que a classificação legal das contraordenações encerra implicaria preterir a avaliação casuística do comportamento do agente e da gravidade dos factos, conquanto, como sabemos, tal avaliação das circunstâncias particulares de cada caso deverá sempre ser feita na determinação da medida concreta da sanção aplicável. O que não podemos é confundir os planos: o da previsão legal das sanções aplicáveis e o da determinação da sua medida concreta. O primeiro, naturalmente abstrato, compete ao legislador e o segundo, necessariamente concreto, compete ao julgador. O legislador qualificou desde logo a infração em causa no presente recurso como grave. Podem existir outras infrações graves, com uma maior ilicitude, é certo. Mas para essa diferença de situações, existe a possibilidade de graduação da coima, dentro da sua moldura abstrata.

Quer a consagração da possibilidade de aplicação da admoestação às contraordenações de reduzida gravidade, nos termos previstos no artigo 51º do RGCO, quer a classificação legal das contraordenações como leves, graves e muito graves, constituem opções de política legislativa, sistematicamente interligadas, que se situam a montante da avaliação casuística que o julgador deverá realizar para determinação da concreta sanção a aplicar, escolhendo de entre as que se encontram previstas para a contraordenação em causa e visando encontrar a sua medida adequada.

Defendendo igualmente a não aplicabilidade da admoestação à contraordenação grave pela qual o recorrente foi condenado se pronunciou o Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal, no parecer junto aos autos, em termos que, pela sua pertinência, passamos a transcrever:

“(…) A decisão recorrida desatende à opção legislativa pela gravidade da contraordenação, ou se a refere (…) concluiu, a nosso ver de modo desadequado, ao considerar que a gravidade abstrata da infração impossibilitaria a análise das circunstâncias concretas do caso (…).

Tal conclusão tem, a nosso ver, o risco de redundar na violação do princípio da legalidade das penas ou sanções e assume uma “licença” imprópria para alterar judicialmente as legitimas opções legislativas quanto à natureza e moldura abstrata das sanções contraordenacionais.

Parece, assim, ignorar a justificação subjacente à consagração da própria contraordenação como grave e não leve, o que não é irrelevante, segundo os critérios político–legislativos para a consecução das metas ou objetivos pretendidos com a proibição da conduta e com o sancionamento da ação proibida (…).

(…) subjacente a estas considerações, deve estar o consenso de que a definição do que é substantivamente uma contraordenação grave, muito grave ou leve cabe ao legislador, por ter essa responsabilidade pública e política (…)”.

Tal como já preconizava Figueiredo Dias em relação ao direito criminal (5), a admoestação é a sanção mais leve que o nosso ordenamento jurídico criminal e contraordenacional comporta, encontrando o seu campo de aplicação apenas nas denominadas bagatelas penais ou contraordenacionais, nas quais a ilicitude e a culpa são reduzidas, subsistindo, pois, no caso dos ilícitos contraordenacionais, apenas como sanção de substituição de coimas aplicadas pela prática de contraordenações de muito pequena gravidade, ou seja, de contraordenações leves.

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Volvendo ao caso dos autos, mostra-se incontroverso que a contraordenação pela qual a arguida recorrente foi condenada é legalmente qualificada como contraordenação grave, o que, como vimos, inviabiliza a aplicação da sanção de admoestação. Assim, não se encontrando verificado o primeiro pressuposto previsto para a aplicação da sanção de admoestação, mostra-se afastada a possibilidade de substituir a coima aplicada pela autoridade administrativa por tal sanção, nos termos realizados pelo tribunal “a quo”.

Nesta conformidade, o recurso procederá, cumprindo revogar a sentença recorrida e manter integralmente a decisão administrativa impugnada, o que se decidirá. Tal decisão prejudica, obviamente, o conhecimento da segunda questão acima enunciada, relativa ao modo de execução da admoestação.

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Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida e manter integralmente a decisão administrativa impugnada.

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Sem custas.

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)

Évora, 8 de novembro de 2022

Maria Clara Figueiredo

Fernanda Palma

Maria Margarida Bacelar

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1 Defendendo tal posição encontramos o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.12.2017, relatado pelo Desembargador João Pedro Nunes Maldonado e os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo datados de 19.06.019 [relatora:] e de 10.10.2018, relatados, respetivamente, por Dulce Neto e Francisco Rothes, todos disponíveis em www.dgsi.pt e citados na decisão recorrida e ainda o voto de vencido do Conselheiro Santos Cabral no A.U.J. do S.T.J. n.º 6/2018, publicado em Diário da República n.º 219/2018, Série I de 14 de novembro de 2018, também citado na decisão recorrida.

2 Neste sentido, decidiram, entre outros, os seguintes acórdãos: acórdãos da Relação de Coimbra, de 28.01.2015 relatado pelo Desembargador Fernando Chaves e de 23.11.2016, relatado pelo Desembargador Luís Teixeira; acórdãos da Relação do Porto de 17.11.2014, relatado pela Desembargadora Elsa Paixão e de 08.01.2020, relatado pela Desembargadora Liliana de Páris Dias; acórdãos da Relação de Lisboa, de 09.01.2018 relatado pelo Desembargador João Carrola e de 23.01.2019, relatado pelo Desembargador Vasco Freitas; acórdãos da Relação de Évora, de 06.02.2018 relatado pelo Desembargador João Amaro e de 08.03.2018, relatado pelo Desembargador Gomes de Sousa e ainda o A.U.J. do S.T.J. n.º 6/2018, publicado em Diário da República n.º 219/2018, Série I de 14 de novembro de 2018, que – pese embora tenha o seu âmbito de aplicação restringido às contraordenações previstas no regime relativo à prevenção, proteção e controlo do ambiente atmosférico, regulado, até 01.07.2018, pelo Decreto-Lei n.º 78/2004, de 03.04 – serve o propósito argumentativo da tese sufragada.

3 Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Regime Geral das Contraordenações à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, fls. 222/223.

4 Simas Santos e Lopes de Sousa, Contraordenações, Anotações ao Regime Geral, 5a Edição, janeiro 2006, Vislis Editores, pág. 394.

5 Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas-1993, pág. 385, §602.