ABERTURA DE INSTRUÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Sumário

I - As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar diretamente relacionadas com a acusação contra ele proferida e com o inquérito que a sustenta.
II - Sendo a finalidade da instrução, determinada no artigo 286º, nº 1, do C. P. Penal, a decisão acerca da submissão (ou não) dos arguidos a julgamento, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos não pode, obviamente, exorbitar dessa finalidade, sob pena de, fazendo-o, ser legalmente inadmissível.

III – Se, face aos próprios termos constantes do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos estes não são eximidos ao julgamento deve, logo à partida, ser rejeitado pelo juiz de instrução o requerimento para abertura da instrução assim apresentado.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos autos com o NUIPC 10/21.4GALLE, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Instrução Criminal de … – Juiz … foi proferido, aos 11/07/2022, despacho que rejeitou, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos AA e BB.

2. Os arguidos não se conformaram com esse despacho e dele interpuseram recurso, impetrando a sua revogação.

2.1 Extraíram os recorrentes da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pela Mmª Juiz de Instrução Criminal que rejeitou o requerimento para abertura de instrução formulado pelos arguidos, Recorrentes, com fundamento no nº 3 do artigo 297.º do CPP, in fine, ou seja, por inadmissibilidade legal.

2. “A rejeição por inadmissibilidade da instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura de instrução, (v.g. caso dos crimes particulares e de alguns processos especiais). (in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, Maia Gonçalves, 12.ª edição - 2001, pág. 574, Nota 3);

3. Nenhuma dessas hipóteses se verifica no caso «sub judice»;

4. «In casu» a fase instrutória era legalmente admissível, estavam reunidos todos os requisitos legalmente exigidos para a realização dessa fase processual, e o Tribunal “a quo” dispunha de todos os elementos necessários à boa decisão da causa;

5. É consabido que a ratio legis do artigo 287.º, n.º 3 é a da restrição máxima dos casos de rejeição do requerimento de abertura de instrução.;

6. O douto despacho viola, assim, o estipulado no artigo 287.º n.º 3 do CPP;

7. Igualmente o douto despacho é ilegal e inconstitucional por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva constitucionalmente imposto pelo artigo 20.º da CRP, mormente o direito a um processo justo e equitativo, também vertido no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;

8. O despacho recorrido também desrespeita o princípio ínsito no artigo 32º CRP porque não assegura todas as garantias de defesa do arguido, limitando “contra legem” o exercício do direito à instrução em processo penal;

9. O despacho em crise enferma da nulidade prevista no artigo 119.º do CPP, al. d) do CPP que aqui se convoca nos termos e para os legais efeitos.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando V. Exas. a decisão recorrida com todas as legais consequências, assim se fazendo Justiça!

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

4. Respondeu a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo à motivação de recurso, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

5. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, Editora Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. Pleno STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série –A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Inexistência de fundamento para a rejeição, por inadmissibilidade legal, do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos/recorrentes.

Nulidade da decisão recorrida, nos termos do artigo 119º, alínea d), do CPP.

2. Elementos relevantes para a decisão

2.1 Por decisão de 19 de Maio de 2022, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos/recorrentes AA e BB (e bem assim contra os arguidos CC, DD e EE, não recorrentes), imputando-lhes a prática de factos integradores, em seu entender, da prática, em autoria material e co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-B anexa, sendo o AA como reincidente.

2.2 Em 13 de Junho de 2022, os arguidos AA e BB requereram a abertura da instrução, aduzindo, em síntese, que a acusação padece da nulidade a que alude o artigo 120º, nºs 1 e 2, alínea d), do CPP, por violação do disposto nos artigos 57º, nº 1 e 283º, nº 1, do mesmo; inexistem meios de prova que sustentem a co-autoria do arguido com os demais; os pontos 1 e 2 da acusação deverão ter-se por não escritos, por conclusivos e também inexistem nos autos elementos probatórios que alicercem os factos vertidos nos pontos 92 a 105 e 126 da acusação, mormente a co-autoria com o suspeito FF.

Impetram, a final: “face a essa ausência de provas – testemunhal, documental ou pericial – conjugada com a acima assacada nulidade, impõe-se que tais pontos sejam extirpados da acusação. Nesta confluência, é nula a acusação por violação do disposto no artigo 283º, nºs 1 e 3, alíneas a) e b), do C.P.P.”

2.3 A decisão recorrida tem o seguinte teor, na parte que releva (transcrição):

Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos arguidos AA e BB – fls. 3380

O art. 286.º do CPP clarifica que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.». É esta uma fase facultativa, em que há intervenção do juiz de instrução criminal de forma a controlar a decisão que encerrou o inquérito, determinando a submissão ou não da causa a julgamento.

No âmbito desta fase processual, o juiz de instrução criminal leva a cabo os atos instrutórios que entenda pertinentes e necessários à descoberta da verdade, limitado pelas finalidades da instrução, cf. art. 290.º, n.º 1 do CPP, e realiza-se um debate instrutório de cariz obrigatório, art. 297.º do CPP.

Findos os mesmos, cabe proferir decisão instrutória que será balançada pela ponderação dos indícios recolhidos, indagando se dos mesmos se recolhem os pressupostos necessários à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança ou não, proferindo o juiz, respetivamente, uma decisão de pronuncia ou não pronuncia, em conformidade com o disposto no art. 308.º do CPP. Por remissão deste preceito normativo, atende-se ao teor do art. 283.º, n.º 2 do CPP, o qual tem a seguinte redação: «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança».

Através da instrução permite-se que a decisão do Ministério Público de proferir despacho de acusação ou despacho de arquivamento seja objeto de controlo jurisdicional, sendo-o admissível a requerimento do arguido, no que concerne a factos pelos quais foi deduzida acusação contra si – cf. art. 287.º, n.º 1, do CPP – enquanto corolário do seu direito a intervir nessa qualidade – art. 69.º, n.º 1, al. g), do CPP – e das suas garantias de defesa plasmadas no direito constitucional – cf. art. 32.º, n.º 1, da CRP.

Analisando o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos arguidos, depreende-se, em primeiro lugar, que sustentam a nulidade do inquérito, subsumindo a mesma no art. 120.º, n.ºs 1 e 2, al. d), do CPP, porquanto entendem que FF devia ter sido constituído arguido e acusado nos presentes autos.

Quanto a tal, afigura-se, desde logo, ilegitimidade dos arguidos para se insurgirem quanto a tal, uma vez que concerne a um suspeito que não os mesmos, avançando que os direitos de defesa daquele ficam precludidos, com a omissão do Ministério Público.

No que concerne verdadeiramente ao requerimento de abertura de instrução, os arguidos arrogam tão-somente o seguinte: «7. Compulsados os autos, constata-se inexistirem quaisquer meios de prova que sustentem a imputada coautoria do arguido com os demais arguidos nos autos, mormente com o aludido suspeito FF. 8. Na verdade, e no que se reporta aos pontos 1 e 2 da acusação, decorre da sua simples leitura conterem matéria conclusiva, logo, por não serem passíveis de um efetivo contraditório, direito de defesa constitucionalmente consagrado, devem ter-se como não escritos. 9. Ademais, também inexistem nos autos elementos probatórios suscetíveis de sustentar o vertido nos pontos 92 a 105 e 126 da acusação, mormente, a imputada coautoria do arguido com o suspeito FF. 10. Destarte, face a essa ausência de provas - testemunhal, documental ou pericial - conjugada com acima assacada nulidade, impõe-se que tais pontos sejam extirpados da acusação. 11. Nesta confluência, é nula a acusação por violação do disposto no artigo 283.9, nºs 1 e 3 alíneas a) e b) do C.P.P.».

Em primeiro lugar, afigura-se a ilegitimidade de BB, porquanto os factos cuja expurgação é pugnada não é factualidade imputada ao mesmo, mas tão-somente a AA.

Em segundo lugar, tal argumentação não se integra nas finalidades da instrução, porquanto em momento algum é reclamada uma decisão de não pronúncia dos arguidos, mas sim que sejam retirados factos da acusação pública, concretamente, os factos n.ºs 1, 2, 92 a 105 e 126, ora por conclusivos, ora por inexistência de prova.

Fazendo-se o exercício de eliminar tais factos da acusação pública, sempre será proferido despacho de pronúncia quanto a ambos os arguidos, porquanto sempre subsistem muitos outros factos imputados aos arguidos de venda de produto estupefaciente, assim como subsistem factos que integram o elemento subjetivo do crime imputado.

Neste conspecto, a fase de instrução giza comprovar a decisão de acusação em ordem a submeter a causa a julgamento ou não. Minudencie-se que abrir a presente instrução nos termos proclamados culminaria sempre na submissão dos arguidos a julgamento pelo crime concretamente imputado na acusação pública. Nada impedirá que esses mesmos factos caiam em julgamento, mas sendo somente esses apreciados na fase de instrução, tratam-se de uma minoria da factualidade imputada ao arguido AA, que o conduzirá à submissão a julgamento pelos remanescentes e grosso das condutas imputadas. Aliás, depreende-se que esta mesma defesa se desenvolve, ainda, no entendimento dos arguidos de que o suspeito FF deveria ter sido acusado e como tal geraria a nulidade invocada, tanto que é somente isso que pugnam, designadamente que os factos da coautoria de AA com FF sejam retirados e decidida a nulidade arguida e como já se disse e aqui se volta a enfatizar nunca pugnam pela prolação de um despacho de não pronúncia. Seria, pois, um ato inútil a abertura da fase de instrução.

Numa situação em que a abertura da instrução também não reconduziria à não submissão do arguido a julgamento, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-12-2016, relator João Amaro, disponível em www.dgsi.pt, explicitando que «Em suma: com a instrução requerida, nos termos em que o foi, os arguidos nunca podem evitar a pronúncia, ou, por outras palavras, não conseguem eximir-se ao julgamento. Assim sendo, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos é inócuo do ponto de vista da finalidade central da instrução: decidir da sujeição, ou não, dos arguidos a julgamento. (…) A instrução requerida pelos arguidos é, pois, insuscetível de contribuir, ainda que indiretamente, para que os arguidos não venham a ser submetidos a julgamento. Por conseguinte, e face ao disposto no citado artigo 286º, nº 1, do C. P. Penal, não se justifica a abertura da instrução, sendo de manter, nesta estrita medida, o decidido no despacho revidendo. (…) Ora, e a nosso ver, se a finalidade da instrução, determinada no artigo 286º, nº 1, do C. P. Penal, é a decisão acerca da submissão (ou não) dos arguidos a julgamento, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos não pode, obviamente, exorbitar dessa finalidade, sob pena de, fazendo-o, ser legalmente inadmissível. A esta luz, não sendo os arguidos eximidos ao julgamento, face aos próprios termos constantes do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos mesmos, deve, logo à partida, ser rejeitado pelo juiz de instrução o requerimento para abertura da instrução assim apresentado. (…) Depois, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos sempre teria de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, porquanto a lei proíbe a prática de atos inúteis (e meramente dilatórios). Na verdade, e como se escreve no Ac. do S.T.J. de 12-03-2009 (relator Arménio Sottomayor, in www.dgsi.pt), “a instrução é uma fase processual destinada a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento. A inadmissibilidade legal constitui uma das três formas legalmente previstas de rejeição do requerimento para abertura de instrução. Um dos princípios que presidem às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de atos inúteis, conforme estabelece o art. 137º do CPC, aplicável ao processo penal nos termos do art. 4º do CPP, por o princípio que lhe serve de substrato se harmonizar em absoluto com o processo penal. Há afloramentos deste princípio em diversas normas do CPP, nomeadamente no art. 311º, ao permitir ao juiz rejeitar a acusação manifestamente infundada, e no art. 420º, que prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência”».

De igual modo, também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 30-06-2021, relatora Elisa Sales, disponível em www.dgsi.pt, «A instrução deve ser admitida, quer relativamente a factos, quer a questões jurídicas, mas, sempre dentro da finalidade da instrução, ou seja, sempre com a finalidade de se obter uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia. – cfr. ac. RP de 4-6-2014, proc. n.º 1584/13.9JAPRT-A.P1. Concordamos, assim, com o ac. da RE de 8-5-2012, proc. n.º 226/09.1PBEVR.E1, também citado pela decisão recorrida, quando considera que “o critério da submissão, ou não, da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito (art. 286º, n.º 1) impõe, a um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. (…) Contrariamente ao que defende o recorrente, a decisão recorrida não pôs em causa as garantias de defesa do arguido, violando o disposto no artigo 32º da CRP, porquanto, o arguido pode apresentar contestação à acusação pública alegando todo o circunstancialismo de facto e de direito que entende pertinente, nomeadamente, com os mesmos fundamentos que motivaram o RAI, a fim de serem apreciados em sede de audiência de discussão e julgamento. (…) No caso em apreciação, verifica-se pela análise do RAI apresentado pelo arguido, que este não deixaria de ser submetido a julgamento; e, assim sendo, estamos perante uma fase instrutória inútil, por redundar, necessariamente, numa ida do arguido a julgamento, com vista à discussão dos factos que lhe foram imputados na acusação pelo MP. Neste sentido, acs. RE de 6-12-2016, proc. n.º 169/14.7GBSLV-A.E1 e, de 8-10-2019, proc. 1003/17.1GBABF-A.C1, disponíveis em www.dgsi.pt.».

Neste enquadramento, a lei não fornece uma definição de inadmissibilidade legal da instrução, para efeitos da sua rejeição, não obstante tal caminho tem vindo a ser trilhado pela doutrina e pela jurisprudência.

A este respeito, Simas Santos e Leal-Henriques in Código de Processo Penal anotado, vol. II, Rei dos Livros, 2000, pág.163, alinhavam que os casos de inadmissibilidade legal da instrução concernem aos casos de instrução formulada no âmbito de um processo especial ou por quem não tenha legitimidade para tanto.

Por outro lado, a jurisprudência tem indicado outros fundamentos de rejeição que extravasam os requisitos formais, ancorando-se no próprio conteúdo do requerimento de abertura de instrução, como por exemplo, o requerimento ser inadequado à realização das finalidades da instrução, como o assinalado supra, de apurar a submissão a julgamento do arguido. Tal alicerça-se, desde logo, em razões de utilidade da instrução.

Deste modo, e seguindo idêntico raciocínio, como já se salvaguardou, salvo melhor entendimento, o requerimento de abertura de instrução formulado pelos arguidos não é idóneo a satisfazer as finalidades desta fase processual, não evitando a submissão dos arguidos requerentes a julgamento, nem tendo qualquer implicação, por mínima que fosse, relativamente ao arguido BB. A admitir-se a instrução nestas circunstâncias seria admitir que a instrução servisse finalidades não englobadas pela sua definição.

Por força da fundamentação escrutinada, ao abrigo do disposto nos arts. 286.º e 287.º, n.º 3, do CPP, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos arguidos AA e BB, por inadmissibilidade legal da instrução para os efeitos pretendidos por aquele.

Tendo o requerimento de abertura de instrução sido apresentado pelos arguidos, as custas serão fixadas a final, sendo considerada, em caso de condenação, a presente rejeição, nos termos do disposto no artigo 513.º do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à correspondente tabela III.

No que concerne ao conhecimento da nulidade do inquérito arguida, caso se considerasse que os arguidos possuíam legitimidade para invocar a mesma, em sede de instrução, tal apreciação depende da própria abertura da instrução, o que não sucede em virtude do despacho ora proferido, não sendo, portanto, admissível legalmente a abertura de instrução para apreciar a nulidade em crise.

Em verdade, a competência do Juiz de Instrução relativamente à fase de inquérito está delineada nos arts. 268.º e 269.º, do CPP, não se encontrando nesse elenco a apreciação de nulidades do inquérito, incumbindo ao Ministério Público tal apreciação.

Neste ensejo, só há competência do Juiz de Instrução para apreciar nulidades se houver lugar à instrução, que não é o caso, pelo que fica prejudicado o conhecimento da nulidade de inquérito.

O ora deslindado desvenda-se, desde logo, da leitura do art. 120.º, n.º 3, al. c), do CPP, o qual estipula que não havendo lugar à instrução, as nulidades devem ser arguidas até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.

A este respeito veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18-02-2020, relator Alberto Borges, disponível em www.dgsi.pt, «Decidindo a rejeição da abertura da instrução – bem ou mal é questão que abaixo se decidirá – e não havendo lugar à mesma, com aquela decisão prejudicado ficou o conhecimento das invocadas nulidades do inquérito, por aquelas apenas poderem ser conhecidas pelo Juiz de instrução caso haja lugar à mesma.».

Notifique.

Apreciemos.

Inexistência de fundamento para a rejeição, por inadmissibilidade legal, do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos/recorrentes

Consideram os recorrentes que inexiste fundamento para a rejeição do requerimento para abertura da instrução que apresentaram, atempadamente, por inadmissibilidade legal.

O tribunal a quo entendeu que se verificava a ilegitimidade de BB, em virtude de a factualidade que os recorrentes almejam seja extirpada da acusação apenas dizer respeito ao arguido AA e não também ao primeiro e, por outro lado, a sua pretensão não se integra nas finalidades da instrução, porquanto não é impetrada uma decisão de não pronúncia dos arguidos, mas que sejam retirados factos da acusação pública, concretamente, os factos nºs 1, 2, 92 a 105 e 126, seja por se apresentarem conclusivos, seja por inexistência de prova, o que conduziria a que sempre fosse proferido despacho de pronúncia quanto a ambos., por se manterem os demais factos integradores do crime imputado na acusação.

Pois bem.

Conforme estabelecido no artigo 286º, nºs 1 e 2, do CPP, a instrução, que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A abertura da instrução pode ser requerida, quanto ao que nos interessa, pelo arguido relativamente a factos, entre o mais, pelos quais o Ministério Público tiver deduzido acusação – artigo 287º, nº 1, alínea a), do CPP – sendo que, o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar – nº 2.

De onde, as razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do arguido, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar directamente relacionadas com a acusação contra ele proferida e com o inquérito que a sustenta.

E, nos termos do nº 3, do artigo 287º, do mesmo Código, o requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Só que, já no Ac. deste Tribunal da Relação de 08/05/2012, Proc. nº 226/09.1PBEVR.E1, consultável em www.dgsi.pt, se reconhecia que “a concepção legal da instrução repousa numa perspectiva processual utilitarista, ou seja, trata-se de uma fase processual que se justifica quando existe a possibilidade de extinguir o processo, evitando o julgamento; caso contrário, ou seja, quando o objecto da discussão não é susceptível de produzir esse resultado, apenas se reflectindo em qualquer modo específico do seu prosseguimento, a mesma não é admissível, dada a sua inutilidade e eventual redundância face ao julgamento subsequente”, acrescentando-se no mesmo aresto que “não procede o argumento de que a admissibilidade alargada da instrução (como pugnada pelo recorrente) poderá ter outras eventuais consequências favoráveis ao arguido, pois estas são absolutamente alheias à justificação legal do instituto (…) O critério para avaliar da admissibilidade da instrução é, com efeito, sempre o mesmo e encontra-se alternatividade recortada pela lei: arquivar os autos ou submeter a causa a julgamento”, sendo que “o critério da submissão ou não da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito impõe, um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo”.

Entendimento que se mostra seguido nos Acs. R. de Évora de 06/12/2016, Proc. nº 169/14.7GBSLV-A.E1 e da R. de Coimbra de 30/06/2021, Proc. nº 169/14.7GBSLV-A.E1, que o despacho recorrido chama à colação e parcialmente transcreve, como retro se enuncia, mas também, entre outros, no Ac. R. de Évora de 08/10/2019, Proc. nº 1003/17.1GBABF-A.E1 e Ac. R. do Porto de 04/06/2014, Proc. nº 1584/13.9JAPRT-A.P1, todos disponíveis no referenciado sítio.

Revertendo ao caso concreto, mesmo admitindo a legitimidade do arguido BB (pois coloca em causa também os factos constantes dos pontos 1 e 2 da acusação e bem assim a actuação em co-autoria que lhe é imputada), certo é que os recorrentes não pretendem com o RAI a prolação de uma decisão de não pronúncia, mas apenas a retirada de alguns dos factos constantes do libelo acusatório .

Ora, ainda que merecesse acolhimento esta sua pretensão, sempre teriam de ser submetidos a julgamento e exactamento pelo mesmo tipo de crime (o p. e p. pelo artigo 21º, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01).

Com efeito, o arguido AA, para além dos indiciados factos depositados nos pontos 92 a 105 e 126 (que referem vendas de cocaína efectuadas em 02/08/2021, 07/10/2021, 13/10/2021, 22/10/2021, 27/10/2021, 28/10/2021, 03/11/2021, 05/11/2021 e outras entre Maio de 2021 e 22/11/2021), ainda está acusado pelos factos dos pontos 77 a 91 (vendas em 04/06/2021, 11/06/2021, 14/06/2021, 16/06/2021, 17/06/2021, 30/06/2021, 02/07/2021, 03/07/2021, 09/07/2021 e 02/08/2021) e 106 a 125 (vendas de cocaína em 22/11/2021 e em outros períodos temporais a indivíduos de identidade concretizada) da peça acusatória.

E, o recorrente BB acusado se mostra nos pontos 127 a 153 de venda de cocaína a diversos indivíduos.

De onde, mesmo que fosse acolhida a pretensão dos recorrentes quanto à factualidade (tida por indiciada pelo Ministério Público) colocada em causa, a decisão instrutória seria sempre de pronúncia e pelo mesmo tipo criminal, tendo eles de ser submetidos a julgamento, do que resulta a inutilidade da fase de instrução no caso em apreço.

Elucida cabalmente o supra referenciado Ac. R. de Évora de 06/12/2016, que “como bem esclarece José Souto de Moura (in “Jornadas de Direito Processual Penal - o Novo Código de Processo Penal”, CEJ, 1988, págs. 119 e 120), a “inadmissibilidade legal da instrução” tem a ver com as situações em que a lei não quer que haja instrução. Desde logo, nos processos especiais. No processo comum, a lei não quis que se procedesse a instrução a requerimento do Ministério Público, em primeiro lugar. Depois, pretendeu que não houvesse instrução, se requerida pelo arguido, quando exorbitasse dos factos da acusação. (….) As limitações impostas ao requerimento (…) prendem-se, diretamente, com a própria finalidade da instrução, tal como o artigo 286º, nº 1, do CPP a determina.

Ora, e a nosso ver, se a finalidade da instrução, determinada no artigo 286º, nº 1, do C. P. Penal, é a decisão acerca da submissão (ou não) dos arguidos a julgamento, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelos arguidos não pode, obviamente, exorbitar dessa finalidade, sob pena de, fazendo-o, ser legalmente inadmissível.

A esta luz, não sendo os arguidos eximidos ao julgamento, face aos próprios termos constantes do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos mesmos, deve, logo à partida, ser rejeitado pelo juiz de instrução o requerimento para abertura da instrução assim apresentado” – fim de citação.

Porque perfilhamos este entendimento, atento o estabelecido no artigo 287º, nº 3, do CPP, cumpria, efectivamente, a rejeição do requerimento para abertura da instrução, por inadmissibilidade legal.

Consideram também os recorrentes que despacho recorrido viola o direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa; não assegura todas as garantias de defesa do arguido, porquanto limita o exercício do direito à instrução, contrariando o estabelecido no artigo 32º, da Lei Fundamental e também oblitera o direito a um processo justo e equitativo reconhecido no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Mas, sem razão.

Com efeito, “as garantias de processo criminal que, no artigo 32.º, a CRP consagra, são essencialmente as garantias da defesa. E como é em torno da tutela destas últimas que o legislador ordinário organiza as regras de processo – procurando a realização do equilíbrio entre as necessidades emergentes dessa tutela e as exigências decorrentes do imperativo de realização da justiça penal –, nelas, o estatuto do assistente não poderá nunca ser equiparável ao estatuto do arguido. Por assim ser, diz o nº 7 do artigo 32.º que o direito do ofendido a intervir no processo será reconhecido nos termos da lei. Semelhante formulação não é usada pelo texto constitucional quanto ao reconhecimento das garantias de defesa do arguido (…)

Há que ter em conta que as normas ordinárias relativas a pressupostos processuais se incluem, por via de regra, no âmbito dessa margem de livre conformação. As regras legais que definem estes pressupostos, enquanto condições de admissibilidade, por parte do tribunal, dos actos praticados pelos sujeitos processuais, não podem à partida ser consideradas como agressões ao direito de acesso ao direito (artigo 20.º) e às garantias de processo (artigo 32.º). Pelo contrário: na exacta medida em que visam isso mesmo – a regulação, por parte do legislador ordinário, dos termos em que o tribunal admite os actos praticados pelos sujeitos intervenientes no processo – constituem as referidas regras mecanismos de funcionalização do sistema judiciário no seu conjunto, fazendo parte dele enquanto meios necessários para a realização do direito a uma tutela jurisdicional efectiva e a um processo (penal) côngruo. Ponto é que o conteúdo dessas regras se inscreva ainda nas exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, não transformando os pressupostos processuais em encargos excessivos ou desrazoáveis para aqueles a que se destinam.”, como elucida o Ac. do Tribunal Constitucional nº 636/2011, disponível no sítio respectivo.

Ora, a exigência que o RAI apresentado pelos arguidos tem de ter utilidade atento a finalidade para que foi legalmente prevista a fase de instrução, como sustenta o tribunal recorrido, configura um pressuposto processual de admissibilidade, não se mostrando excessiva ou desproporcionada, sendo certo que é expressamente proibida a prática de actos inúteis no processo – cfr. artigo 130º, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do CPP.

Por outro lado, foi conferido aos recorrentes a possibilidade de interporem recurso do despacho que rejeitou o requerimento para abertura da instrução, direito que exerceram, como é manifesto.

Não se verifica, por isso, violação dos princípios ou preceitos a que fazem apelo.

Face ao exposto, improcede o recurso neste segmento.

Nulidade da decisão recorrida, nos termos do artigo 119º, alínea d), do CPP

Consideram também os recorrentes que o despacho recorrido enferma da nulidade prevista no artigo 119º, alínea d), do CPP, por não ter sido declarada aberta a instrução.

Integra nulidade insanável, de acordo com o artigo 119º, alínea d), do CPP, “a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade”.

A propósito da configuração desta nulidade, diz-nos Souto Moura, Jornadas de Direito Processual Penal – O Novo Código de Processo Penal, Livraria Almedina, Coimbra 1988, pág. 118, que deverá a disposição legal ser interpretada no sentido de que “falará da respectiva obrigatoriedade, supondo que ela (a instrução, entenda-se) foi convenientemente requerida e inexistindo motivo de rejeição do requerimento”.

Ou seja, como se diz Ac. do STJ de 11/02/016, Proc. nº 15/14.1UGLSB.S2. consultável em www.dgsi.pt, “só em situações em que se verifiquem estes dois pressupostos é que existirá uma nulidade insanável por falta de realização da instrução”.

Ora, no caso subjudice existe fundamento para o RAI ter sido rejeitado, pelo que não se verifica a assinalada nulidade

Cumpre, pois, negar provimento ao recurso.

III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos AA e BB e confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC, para cada um.

Évora, 8 de Novembro de 2022

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP).

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(Artur Vargues)

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(Nuno Garcia)

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(António Condesso