AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário

I - Havendo acordo das partes, o pedido pode ser alterado ou ampliado em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, desde que a alteração ou ampliação não perturbe inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito; na ausência de acordo, a ampliação do pedido tem como limite temporal, para ser exercida, o encerramento da discussão em primeira instância, exigindo-se ainda que a ampliação seja “o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”.
II - A ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo quando o pedido formulado esteja virtualmente contido no pedido inicial e na causa de pedir da acção, pressupondo-se, para tanto, que dentro da mesma causa de pedir o pedido primitivo se modifique para mais.
III - Com a ampliação do pedido inicial não se confunde a cumulação de pedidos, que ao contrário da primeira, se funda em acto ou facto diverso.
IV - Após a citação do réu, a modificação dos elementos subjectivos ou objectivos da instância só pode operar nos estritos limites consentidos pelos artigos 261.º a 265.º do Código de Processo Civil, que não contemplam de possibilidade de formulação de novos pedidos.
V- A incumbência, agora vinculada, dirigida ao juiz de formular convite ao aperfeiçoamento de articulado apenas se justifica como forma de suprimento de deficiente exposição ou concretização da matéria de facto alegada, por insuficiência ou imprecisão da mesma.

Texto Integral

Processo n.º 1218/21.8T8AMT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível de Amarante


Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
AA, solteira, maior, ajudante de cozinha, contribuinte fiscal número ..., residente na ... Amarante, propôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, contribuinte fiscal número ..., residente no ..., ..., ..., ... Amarante e CC, contribuinte fiscal número ..., residente no ..., ..., ..., ... Amarante.
Pelos factos descritos na petição inicial, pede a autora que sejam os réus condenados a:
a) Reconhecerem que a autora é dona e legítima proprietária dos prédios urbano e rústico identificados nos artigos 3º, 4º, 5º e 6º, 10º e 11º da presente peça processual;
b) Reconhecerem que o prédio rústico da autora identificado em 3º b) desta peça não tem acesso direto à via pública, designadamente às belgas fundeiras situadas a nascente do prédio urbano identificado em 3º a) desta peça;
c) Reconhecerem que o seu prédio rústico, identificado nos artigos 15º e 16º desta peça processual, se encontra onerado com uma servidão de passagem, constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio rústico da autora identificado em 3º b), com as características e extensão indicadas em 19º (depois, já no rústico ...) e artigos 27º, 28º, 29º e 30º desta peça processual;
d) Restituírem definitivamente à autora o direito de servidão de passagem descrita precedentemente, desobstruindo ambas as entradas do mesmo, retirando os cadeados colocados nos portões, ou fornecendo uma chave dos mesmos à autora, e retirando ainda todos os objetos e materiais por si colocados, de forma a tornar o caminho transitável em toda a sua extensão e largura, isto é, sem qualquer tipo de obstáculo;
e) Absterem-se, no futuro, de praticar actos que impeçam ou dificultem o direito de passagem;
f) A pagarem, solidariamente, à autora a indemnização/compensação a título de danos patrimoniais e morais que lhes têm causado e continuam a causar, até cessar a perturbação da sua posse e direito de passagem, a liquidar em incidente de liquidação, nunca inferior a €5.000,00 (cinco mil euros).
g) Em sanção pecuniária compulsória de €100,00 (cem euros), por cada dia de atraso no cumprimento das obrigações determinadas através da sentença que venha a ser proferida nos presentes autos”.
Citados, contestaram os réus, excepcionando a ilegitimidade passiva do réu CC e invocando o instituto do abuso de direito. Impugnaram ainda parte dos factos alegados pela autora, negando uns e referindo desconhecer, sem obrigação de conhecer, outros.
Deduziram ainda reconvenção, pedindo, caso venha a ser reconhecida:
- “a existência da servidão sobre o prédio rústico do 1.º réu a favor do prédio rústico da autora, constituída por destinação do pai de família, deve a mesma ser declarada extinta, pelo facto de a autora atuar com abuso do direito e por a sua manutenção se revelar incompatível com o direito de tapagem do dono do prédio onerado com a mesma, designadamente por tal direito se revelar incompatível ou dificultar sobremaneira aquele exercício, sem que daí advenha um prejuízo assinalável para o prédio serviente, com as legais consequências; ou
- a existência de servidão de passagem por usucapião - deve a mesma ser declarada extinta por desnecessidade, ao abrigo do disposto no artigo 1569.º n.º 2 do Código Civil, deve ser declarada a sua extinção, com as legais consequências”.
Na réplica a autora, referindo que, apesar do alegado nos artigos 33.º a 35.º da petição inicial, por manifesto lapso não deduziu pedido de constituição de servidão por usucapião para o caso de improceder a constituição de uma servidão por destinação de pai de família, concluindo, para o efeito:
“Nos termos e para os efeitos expostos a autora, isto é, improcedendo os pedidos formulados na petição inicial de a) a g), a autora, subsidiariamente, formula os seguintes pedidos:
Condenar-se os réus:
h) – a reconhecerem os pedidos formulados em a) e b).
i) – a reconhecerem que o seu prédio rústico, identificado em 15º e 16º da P.I., se encontra onerado com uma servidão de passagem, constituída por usucapião, a favor do prédio rústico da autora, identificado em 3º b) da P.I., com as características e dimensões e extensões, referidas em 19º da P.I. (depois, já no rústico ...) e artigos 27º, 28º, 29º e 30º da P.I.
j) – a restituírem tal direito de servidão de passagem à autora e, em consequência, desobstruírem ambas as entradas da mesma, retirando os cadeados colocados nos portões, ou fornecendo uma chave dos mesmos à autora e retirarem todos os objectos e material colocado em toda a área que constitui a dita servidão, de forma a tonar a mesma transitável em toda a extensão.
l) – os pedidos formulados em e), f) e g) que aqui se repetem”.
Sobre a dedução do referido “pedido subsidiário”, incidiu o seguinte despacho, com a referência 87786829:
“O articulado de réplica não serve o desiderato de rectificar lapsos ou omissões de pedidos, importando-os numa fase tardia, tanto mais que um pedido não é passível de convite ao aperfeiçoamento.
Por outro lado, consabidamente, a autora não pretende alterar o pedido na réplica mas apenas e pela primeira vez, formulá-lo na decorrência de factos e causa de pedir, oportunamente, carreados para a petição inicial, vale isto dizer, enxertá-lo, fora do local e sede próprios que é a petição.
Assim, a adição ou colagem de um pedido que foi olvidado na petição é destituído de suporte legal, conforme arts. 265 n.s 2 e 6 e 590 n.º 2 alínea b) e n.ºs 3 e 4 do CPC.
Termos em que se rejeita o aditamento do pedido formulado no art. 9.º da réplica.
Custas pela autora, que se fixam em 2 UCs, valendo-lhe porém, o benefício de apoio judiciário.
Notifique”.
2. Não se resignando a Autora com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
1.– A autora, por lapso, olvidou-se de formular os pedidos subsidiários, os pedidos relativos à constituição da servidão adquirida por usucapião.
2.– Por isso, e em seguimento da contestação deduzida pelos réus, em articulado próprio, conquanto apresentado quando da resposta e na mesma altura, pelas razões nele vertidas, veio colmatar tal lapso e, consequentemente, formulou os concernentes pedidos.
3.– Os réus, notificados daquele requerimento, com os fundamentos vazados no requerimento que apresentaram, relegaram para depois exercer o direito do contraditório.
4. – Sucede que, sem que tal direito tenha sido exercido, foi proferido o despacho recorrido.
5. –Com o qual a recorrente não concorda, porque:
a. –a mesma submeteu a Juízo dois (2) pedidos (alegou factos que circunscrevem os mesmos: - constituição de uma servidão por destinação de pai de família; - constituição de uma servidão por usucapião, este, como resulta dos factos alegados, sempre como subsidiariamente aquele - artigo 554º do CPC.
b. – no seguimento do alegado pelo réus, em sede de contestação, efectuou o requerimento de ampliação do pedido, aqui em causa, ao abrigo dos princípios de economia processual e de privilégio da justa e efectiva composição do litígio (artigo 6o do CPC);
c. – fê-lo com a convicção de que era admissível e, sobretudo, porque a não formulação do pedido subsidiário, acarretaria, na respectiva parte/extensão, a ineptidão da petição inicial (a nulidade da mesma), conforme o artigo 186º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC);
d. – o Tribunal deve, oficiosa ou a requerimento, providenciar pelo aperfeiçoamento da petição inicial - artigo 590.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil (CPC).
e. - ao contrário do decidido no despacho recorrido, tal convite ao aperfeiçoamento constituiu uma forma de rectificar, de forma célere, um simples lapso (como sucede in casu) ou uma simples lacuna na formulação dos pedidos, conferindo-se, assim, respostas adequadas ao princípio da economia processual e ao da prevalência das decisões de mérito sobre as formais, em consonância com o princípio da estabilidade da instância. Se assim não fosse, em particular in casu, sempre a autora (improcedendo os pedidos relativos à servidão por destinação de pai de família, o que não se conceberá), sempre poderia instaurar uma outra acção em que a causa de pedir o pedido assentasse precisamente na posse – usucapião;
6. - Assim, foram violados, entre outros, os princípios supra indicados - artigos 3º, nº 3, 6º e 590.º, n. º 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil (CPC).
Nestes termos e sempre com o mui Douto suprimento de Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, deve o despacho recorrido ser revogado por outro que acolha a formulação dos pedidos subsidiários acima indicados, assim se fazendo a esperada JUSTIÇA!!!”.

Os apelados apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se é ou não admissível a formulação do pedido que deduziu na réplica.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Mostram-se relevante à apreciação do objecto do recurso os factos/incidências processuais narrados no relatório antecedente.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
A petição inicial é o instrumento processual próprio para o autor proceder à exposição dos factos essenciais que integram a causa de pedir e razões de direito que fundamentam a pretensão prosseguida com a acção por si proposta[1], constituindo, por sua vez, a contestação o meio de que o réu dispõe para deduzir a sua defesa, podendo fazê-lo por impugnação e/ou excepção, devendo nela “expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor” e “expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação”[2].
O artigo 588.º do Código de Processo Civil consagra um desvio às regras mencionadas ao permitir às partes, a quem aproveitem, deduzir factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes, em articulado posterior ou em novo articulado, possibilitando, desta forma, que aqueles factos sejam atendidos na sentença, conforme previsto no artigo 611.º do mesmo diploma legal.
Por sua vez, o artigo 260.º do mesmo diploma legal, que consagra o princípio da estabilidade da instância, determina: “Citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”.
Assim, após a citação do réu, a modificação dos elementos subjectivos ou objectivos da instância só pode operar nos estritos limites consentidos pelos artigos 261.º a 265.º do Código de Processo Civil.
No que concerne especificamente à modificação dos elementos objectivos (causa de pedir e pedido), havendo acordo das partes, os mesmos “podem ser alterados ou ampliados em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito”[3].
Na falta de acordo, a modificação da causa de pedir só pode ocorrer verificados os pressupostos exigidos pelo artigo 265.º, cujo n.º 1 determina: “Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação”.
Por sua vez, quanto à alteração do pedido, estabelece o n.º 2 do mesmo normativo: “O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”.
Assim, havendo acordo das partes o pedido pode ser alterado ou ampliado em qualquer altura, em 1.ª ou 2.ª instância, desde que a alteração ou ampliação não perturbe inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito; na ausência de acordo, a ampliação do pedido tem como limite temporal, para ser exercida, o encerramento da discussão em primeira instância, exigindo-se ainda que a ampliação seja “o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”.
Embora a lei não defina o que deve entender-se por “desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo”, a interpretação de tais conceitos deve orientar-se no sentido de a ampliação radicar numa origem comum.
Esse é o entendimento que vem sendo sustentado na doutrina e na jurisprudência[4], ao defenderem que a ampliação do pedido será processualmente admissível, por constituir desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, quando o novo pedido (objecto de ampliação) esteja virtualmente contido no âmbito do pedido inicial, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial, ou da reconvenção, sem recurso a invocação de novos factos[5]. Ou seja: a ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo quando o pedido formulado esteja virtualmente contido no pedido inicial e na causa e pedir da acção, pressupondo-se, para tanto, que dentro da mesma causa de pedir o pedido primitivo se modifique para mais.
Como Alberto dos Reis[6] explicava, o “limite de qualidade de nexo a ampliação há-de ser o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, quer dizer, a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial.
Exemplo característico: pediu-se em acção de reivindicação, a entrega do prédio; pode mais tarde fazer-se a ampliação, pedindo-se também a entrega dos rendimentos produzidos pelo prédio durante a ocupação ilegal. (…)
Em vez de ser uma consequência, pode ser um desenvolvimento. Pediu-se o pagamento de uma dívida; pode depois alegar-se que a dívida vencia juros e pedir-se o pagamento destes (…).
A ampliação pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão primitiva se modifica para mais; a cumulação dá-se quando a um pedido, fundado em determinado acto ou facto, se junta outro, fundado em acto ou facto diverso”.
No mesmo sentido, referia Castro Mendes[7]: “Exemplo de ampliação, no sentido rigoroso do termo, haverá “verbi gratia” se se pedir 100 contos de indemnização por certo acto danoso, que posteriormente é causa de novo prejuízo no valor de 20: o pedido de indemnização pode ser ampliado para 120 contos.
O que é necessário é que a ampliação ou o pedido cumulado seja desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, e que por conseguinte tenham essencialmente origem comum – causas de pedir, senão totalmente idênticas, pelo menos integradas no mesmo complexo de factos.”
O acórdão da Relação de Lisboa de 18.02.2018, depois de referência a jurisprudência vária a admitir a ampliação do pedido, sustenta: “Em todos estes exemplos estamos perante situações em que, na verdade, o A. poderia ter formulado a sua pretensão ampliada logo na petição inicial. Pelo que, o que relevou foi fundamentalmente o princípio da economia processual, no sentido do máximo aproveitamento do processo para a solução definitiva do concreto litígio que opõe as partes, desde que não se pusesse em causa um mínimo de estabilidade na relação jurídica processual em que assenta o conflito e que motiva a concreta reclamação da tutela jurisdicional.
Esse limite mínimo de estabilidade era tradicionalmente reportado pela doutrina à distinção entre “ampliação” e “cumulação” de pretensões.
A este propósito ensinava Alberto dos Reis (in Ob. Loc. Cit., pág. 94) que: «para se distinguir nitidamente a espécie “cumulação” da espécie “ampliação” há que relacionar o pedido com a causa de pedir. A ampliação pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão primitiva se modifica para mais; a cumulação dá-se quando a um pedido, fundado em determinado ato ou facto, se junta outro, fundado em ato ou facto diverso.». E exemplifica com um caso duma ação em que se pedia a anulação de duas escrituras de doação por simulação e depois se vem a pedir a anulação duma terceira escritura de doação com o mesmo fundamento. Nesse caso, conclui esse insigne processualista, que: «o Autor não se mantém no mesmo ato ou facto jurídico, formula um pedido com individualidade e autonomia perfeitamente diferenciada dos pedidos primitivos»”.
E, mais adiante, acrescenta o mesmo acórdão: “...como já tivemos oportunidade de realçar, todos os exemplos de ampliação do pedido, que não se sustentem na superveniência objectiva de factos novos em que assentam, traduzem-se em pretensões que poderiam ser formuladas logo na data da propositura da ação. Ora, nunca semelhante dúvida sobre a interpretação do Art. 265.º n.º 2 do C.P.C. assolou o espírito de ninguém, quando se admitia sem pestanejo a ampliação do pedido de pagamento em quantia certa, numa acção de dívida, por forma a passar a compreender também a condenação em juros de mora. É que, neste caso, como é evidente, o novo pedido só não foi formulado logo na petição inicial por “mero esquecimento” da parte peticionante.
Salvaguardadas eventuais situações manifestamente dolosas ou de negligência grave, não se justifica uma interpretação restritiva do Art.º265.º n.º 2 do C.P.C. apenas para sancionar uma parte, dado não existir nenhum princípio geral que justifique semelhante penalização em face do facto de o mencionado preceito fixar a preclusão do direito de ampliação do pedido no momento do «encerramento da discussão em 1.ª instância».
Como já referimos atrás, o que está em causa é a consonância do princípio da estabilidade da instância com o princípio da economia processual, dando-se prevalência a este último na estrita medida em que se verificam reais vantagens na solução definitiva num único processo do conflito existentes entre as mesmas partes, desde que a relação controvertida seja essencialmente a mesma, assente virtualmente na mesma causa de pedir”.
No caso vertente, a autora pede, entre o mais, na petição inicial que sejam os réus condenados a “c) Reconhecerem que o seu prédio rústico, identificado nos artigos 15º e 16º desta peça processual, se encontra onerado com uma servidão de passagem, constituída por destinação de pai de família, a favor do prédio rústico da autora identificado em 3º b), com as características e extensão indicadas em 19º (depois, já no rústico ...) e artigos 27º, 28º, 29º e 30º desta peça processual”.
Não deduz pedido de reconhecimento da servidão de passagem constituída por usucapião, apesar da matéria alegada nos artigos 33.º a 35.º na petição inicial.
Só posteriormente, depois de deduzida pelos réus contestação com reconvenção - na qual pedem que, a reconhecer-se o direito de servidão invocado pela autora, seja o mesmo declarado extinto, no caso de constituição por destinação do pai de família, por aquela actuar com abuso de direito, ou, em caso de constituição por usucapião, por desnecessidade –, a autora veio na réplica deduzir pedido subsidiário, pedindo que, improcedendo o pedido de reconhecimento da servidão constituída por destinação de pai de família, lhe seja reconhecida servidão de passagem constituída por usucapião, invocando ter alegado na petição inicial factos integradores da respectiva causa de pedir, mas não tendo formulado tal pedido por “manifesto lapso”.
Não se trata, no caso, de ampliação do pedido primitivo, mas antes da dedução de um novo pedido – ainda que formulado a título subsidiário -, já que os pedidos de reconhecimento do direito de servidão – por destinação de pai de família e por usucapião – não emergem da mesma causa de pedir, assentando em distintas realidades factuais, reconduzindo-se, deste modo, à designada “cumulação de pedidos” de que falava o Prof. Alberto dos Reis, em contraposição à designada “ampliação do pedido”.
Também não ocorre a superveniência objectiva a que se refere o artigo 588.º do Código de Processo Civil.
Como se começou por precisar, a petição inicial é o instrumento processual adequado para o demandante formular todas as pretensões que entenda deduzir, com base na correspondente causa de pedir que lhe serve de suporte.
O princípio da estabilidade da instância, expressamente consagrado no artigo 260.º do Código de Processo Civil, veda a possibilidade da formulação de pedidos fora do âmbito da petição inicial (ou da reconvenção, sendo esta deduzida), salvaguardados os casos excepcionalmente previstos na lei para o efeito, e apenas no apertado quadro processual desenhado para o efeito.
Ora, nenhuma dessas situações se configurando em concreto, não pode a autora, em requerimento ou articulado posterior à petição inicial, formular novos pedidos, a título principal ou subsidiário, suprindo, por essa via, o lapso que invoca por não o ter deduzido no momento e no articulado próprio, isto é, na petição inicial.
Na perspectiva da autora, que, para o efeito, convoca os princípios da economia processual e da prevalência das decisões de mérito sobre as decisões formais, devia o tribunal recorrido, mesmo oficiosamente, ter formulado convite ao aperfeiçoamento, de forma a rectificar, de forma célere, um simples lapso, como o que ocorreu ao não ser formulado o pedido mais tarde deduzido.
Segundo o n.º 4 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, “Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.
Como precisam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “a formulação conferida ao nº 4 do art. 590º pôs termo à discussão que vinha existindo, por referência ao art. 508º, nº 3, do CPC de 1961, acerca da natureza do despacho destinado ao aperfeiçoamento dos articulados, ficando agora (mais) claro o seu carácter vinculado, arredando a possibilidade de o juiz optar entre proferir ou não tal despacho.”
Em consonância com tal entendimento, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro escrevem, a este propósito, o seguinte: "O convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é agora uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever. A intenção do legislador é clara: a ação ou a exceção não podem naufragar por insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada”.
Mas, como claramente resulta da redacção do citado artigo 590.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, a incumbência, agora vinculada, de formular convite ao aperfeiçoamento de articulado apenas se justifica como forma de suprimento de deficiente exposição ou concretização da matéria de facto alegada, por insuficiência ou imprecisão da mesma. Como adverte o acórdão da Relação do Porto de 10.09.2019[8], “tal dever não tende à recuperação de petições ineptas, mas impõe-se para o aproveitamento de articulados minimamente aptos, mau grado insuficientes, deficientes ou imprecisos, de forma a prevenir que o curso do processo venha, sem alteração do seu conteúdo fáctico, a inviabilizar ulteriormente a completa identificação da fattispecie do instituto jurídico previamente apontado em sede de causa de pedir”.
E segundo o acórdão da mesma Relação de 7.12.2018[9], “o despacho-convite ao aperfeiçoamento quanto a articulados imperfeitos apenas se dirige a imperfeições de dois tipos: faticamente insuficientes ou faticamente imprecisos.
São articulados faticamente insuficientes (incompletos) aqueles em que a exposição fáctica, permitindo embora determinar ou descortinar a causa de pedir ou a exceção invocada, não se revela suficiente ou bastante para o preenchimento da figura em causa, isto é, não contém todos os factos necessários para que possa operar-se a subsunção na previsão da norma jurídica (ou normas jurídicas) de que a parte quer prevalecer-se.
Articulados faticamente imprecisos (inexatos) ocorrem quando a narração dos pontos de facto aí vertidos suscita dúvidas, seja porque não é clara ou não é precisa, seja porque é vaga ou é obscura, seja porque é ambígua ou incoerente”.
O despacho de aperfeiçoamento, que a lei faculta ao juiz como forma de suprimento das irregularidades previstas nos n.ºs 3 e 4 do citado artigo 590.º, jamais poderá constituir solução paliativa para o lapso que a autora afirma haver cometido ao não formular em sede próprio o pedido que mais tarde, indevidamente, formulou na réplica.
E também, nestas circunstâncias, o princípio da celeridade processual e o da prevalência da decisão de mérito sobre a decisão formal em caso algum se poderiam sobrepor às normas processuais que, de modo peremptório, regulam a dedução dos pedidos, quer pelo autor, quer pelo réu/reconvinte. Tal solução, a ser admitida, violaria, de forma frontal, o princípio da estabilidade da instância expressamente previsto no artigo 260.º do Código de Processual e a segurança que o mesmo visa garantir aos intervenientes processuais, esvaziando o próprio princípio da autorresponsabilidade das partes de conteúdo prático, como afrontaria ainda as próprias normas processuais que disciplinam, de forma inderrogável, a matéria em causa.
Não merecendo, por conseguinte, reparo o despacho recorrido, é de manter o mesmo, improcedendo, desta forma, o recurso da apelante.

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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação: pela apelante, levando-se, todavia, em conta o apoio judiciário de que beneficia.

Porto, 27.10.2022
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
__________________________
[1] Artigo 552º, n.º 1, d) do Código de Processo Civil.
[2] Artigos 571.º, n.º 1, e 572º, b) e c) do Código de Processo Civil.
[3] Artigo 264.º do Código de Processo Civil.
[4] Cfr., LEBRE DE FREITAS, Introdução ao Processo Civil-Conceito e princípios gerais à luz do novo Código, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 29, ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, Coimbra Editora, pág. 93 e CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. II, AAFDL, 1987, pág. 347; acórdãos da Relação de Évora de 10.10.2019, processo nº 38/18.1T8VRL-A.E1 e de 23.03.2017, processo nº 108/16.0T8FAR-A.E1, acórdão da Relação de Lisboa de 12.03.2009, processo nº 427/07.7TCSNT.L1-1) e acórdão da Relação de Guimarães de 6.02.2020, processo nº 992/18.3T8GMR.G1), todos em www.dgsi.pt. [5] Quando a ampliação derive da alegação de novos factos, a mesma só é processualmente admissível se tais factos forem supervenientes; nessa hipótese, o autor, ou o reconvinte, deve introduzir os novos factos, nos quais sustenta a ampliação do pedido, através de articulado superveniente, de acordo com o disposto no artigo 588.º do Código de Processo Civil, instrumento processual adequado, nestas circunstâncias, para requerer a ampliação do pedido: cfr. LEBRE DE FREITAS (Introdução ao Processo Civil, págs. 163-164.
[6] Comentário ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 93-94.
[7] Direito Processual Civil, Vol. II, p. 347-348.
[8] Processo n.º 11226/16.5T8PRT-A.P1, www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 17055/16.9T8PRT.P1, www.dgsi.pt.