PRETERIÇÃO DO TRIBUNAL ARBITRAL
ARBITRAGEM VOLUNTÁRIA
EMBARGOS DE EXECUTADO
FUNDAMENTOS
TÍTULO EXECUTIVO EUROPEU
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
INCONSTITUCIONALIDADE
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
Sumário


I. A preterição do tribunal arbitral por força de cláusula compromissória convencionada não se encontra abrangida pelo regime especial de recorribilidade a que se reportam os artigos 629.º, n.º2, alínea a) e 671.º, n.º3, parte inicial, ambos do Código de Processo Civil.
II. O título no qual se baseia a ação executiva à qual correm por apenso os presentes embargos reconduz-se a um requerimento de injunção de pagamento europeia ao qual foi aposta fórmula executória.
III. A injunção a que se reporta a presente execução rege-se pelo Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2006, que criou um procedimento europeu de injunção de pagamento.
IV. Sendo aplicável à execução da injunção de pagamento europeia em apreço a lei portuguesa, a apreciação dos concretos fundamentos de oposição à execução que respeitem à regularidade da emissão do título compete aos tribunais do Estado em que foi declarada executória a injunção de pagamento europeia, como decorre do disposto nos artigos 19.º e 21.º, n.º1, do Regulamento nº 1896/2006.
V. Esta interpretação normativa acerca da incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar os concretos fundamentos de oposição à execução invocados pela embargante não é violadora dos princípios constitucionais do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados no 20.º da CRP. 
VI. A garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva não exige, tal como sugerido pela Recorrente, que o direito de agir em juízo se efetive num tribunal português, bastando – como é o caso – que seja conferida à parte um meio processual idóneo, adequado às circunstâncias do caso, para reagir relativamente a um título executivo contra si formado.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. Trading Dv Bvba instaurou ação executiva para pagamento de quantia certa contra Sporting Clube de Portugal Futebol Sad.

Como título executivo a Requerente apresentou um requerimento de injunção europeia à qual fora aposta fórmula executória. O requerimento de injunção visou obter o pagamento de duas faturas emitidas pela ora exequente em cumprimento de um contrato de prestação de serviços que celebrara com a ora executada, no valor total de €18 500,00, que a executada não havia pago. Assim, na execução a exequente pretende o pagamento da quantia de €18 500,00, acrescida de €9 111,54 a título de juros de mora vencidos desde a data de vencimento de cada uma das faturas até à data da instauração da execução – mais reclamando o pagamento dos juros de mora vencidos e vincendos desde a citação até efetivo e integral pagamento.2. A execução seguiu a forma sumária, tendo-se procedido à penhora de saldo bancário da executada.

3. Citada para a execução, a Executada deduziu embargos à execução.

A embargante alegou que:

- em 29.01.2019 recebeu de dois tribunais belgas documentação contendo, nomeadamente, uma injunção de pagamento europeia requerida contra a ora executada pela ora exequente, reclamando o pagamento de €18 500,00;

- na documentação enviada incluía-se um formulário por meio do qual a requerida poderia declarar opor-se à injunção, no prazo de 30 dias, com a cominação de a injunção adquirir força executiva;

- a executada enviou aos dois tribunais belgas, tempestivamente, a referida declaração de oposição à injunção;

- assim, cabia ao tribunal de origem efetuar nova citação da requerida, para que esta contestasse a ação declarativa que necessariamente se seguiria à manifestação de oposição à injunção;

- nesta conformidade, não pode haver lugar à formação de título executivo com base na injunção europeia em apreço, mostrando-se preenchidas as previsões constantes das alíneas a) e d) do art.º729.º do CPC, ex vi do n.º 1 do art.º 857.º e do n.º 3 do art.º 857.º do CPC.

 Subsidiariamente, a Embargante invocou ainda:

- a preterição de tribunal arbitral face ao teor de cláusula arbitral contida no contrato invocado pela exequente.

Com esses fundamentos a Executada concluiu pela extinção da execução, devendo entretanto suspender-se a instância executiva até ao trânsito em julgado da decisão final, com dispensa de prestação de caução.

4. Recebidos liminarmente os embargos, a Exequente apresentou contestação, na qual pugnou pela sua total improcedência.

5. Realizou-se audiência prévia, tendo sido proferido saneador-sentença em que os embargos foram julgados improcedentes e se determinou a prossecução da execução, com custas pela Embargante.

6. Não se conformando com esta decisão, a Embargante interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa.

7. O Tribunal da Relação de Lisboa proferiu a seguinte decisão:

“Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.

As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC)”.

8. Inconformada com tal decisão, a Embargante veio interpor o presente recurso de revista, formulando, na sua alegação, as seguintes (transcritas) conclusões:

Da admissibilidade do recurso de revista

1.ª O   título dado   à execução    nos autos principais é constituído por injunção de pagamento europeia à qual foi aposta fórmula executória, apesar de oposição regular e tempestivamente apresentada.

2.ª Entende a recorrente que cabe à jurisdição portuguesa, em sede de embargos de executado, apreciar da legalidade - ou não – da formação do título executivo, face à oposição tempestivamente apresentada.

3.ª A   decisão recorrida entende em sentido diverso, considerando que apenas o tribunal de origem (Belga) terá competência para apreciar a legalidade da atribuição de força executiva ao requerimento injuntivo, não podendo tal ser feito pelos tribunais portugueses, no âmbito dos embargos presentes.

4.ª A acrescer, do CONTRATO que o ponto 3) da matéria de facto provada dá por reproduzido, consta, no seu ponto 6, um compromisso arbitral que submete ao tribunal arbitral da FIFA (Player’s Status Committee) a dirimição de qualquer litígio emergente do contrato em apreço.

5.ª A recorrente invocou a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria por preterição do tribunal arbitral, incompetência essa da qual a decisão recorrida não conheceu, por entender que deveria ter sido suscitada no tribunal de origem.

6.ª O presente competência competência revista, ao do CPC recurso tem por fundamento a violação de regras de internacional, bem como a violação de regras de em razão da matéria, o que legitima a interposição de abrigo do disposto na alínea a), do nº 2, do artº 629º

Da nulidade do Acórdão recorrido

7.ª A decisão de primeira instância considerou provado [no ponto 2) dos Factos Provados] que a declaração de   executoriedade aposta ao requerimento injuntivo europeu foi notificada à embargante, ora recorrente, o que legitimou o entendimento de que a sindicância da legalidade da formação do título executivo deveria ter sido feita junto do tribunal de origem, aquando dessa notificação.

8.ª Por ter sido demonstrada a inexistência de qualquer evidência (ou sequer alegação) de que a declaração de    executoriedade do requerimento injuntivo tenha sido notificada à embargante/recorrente, a decisão    recorrida alterou o conteúdo    do ponto 2) dos Factos Provados, tendo removido a menção da notificação à embargante/recorrente.

9.ª Apesar disto, o Acórdão recorrido defende que entendendo a recorrente ter sido indevidamente emitida a declaração de executoriedade do requerimento injuntivo, deveria tê-lo suscitado no tribunal de origem.

10.ª Este entendimento poderia ser compatível com a primitiva versão do Facto Provado 2), mas já é incompatível com a versão corrigida desse mesmo facto,  da qual foi removida a menção a qualquer notificação à recorrente.

11.ª Não tendo a recorrente sido notificada da aposição de fórmula executória  à injunção, o momento processualmente seguinte em que toma conhecimento desse facto é o da a citação para os termos da execução, a qual abre prazo de 20 dias para a dedução de toda a defesa possível, em sede de oposição mediante embargos de executado.

12.ª Se a injunção em apreço não fosse europeia, mas nacional, seria igualmente em sede de embargos de executado que o devedor poderia opor ao credor qualquer ilegalidade na formação do título executivo, mormente decorrente da   aposição de fórmula executória apesar de oposição tempestiva.

13.ª Não fundamenta o Acórdão recorrido como justifica a sua decisão de que a sindicância  da formação do título executivo dos autos deveria ter ocorrido junto do tribunal de origem (Belga), quando dá por não demonstrado que a declaração de executoriedade tenha sido notificada ao requerido antes da citação para a execução.

14.ª Decorre dos pontos 4) e 5) dos Factos Provados que a recorrente foi citada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para os termos do procedimento injuntivo europeu    em 29.01.2019, tendo apresentado oposição mediante o envio do formulário adequado (Formulário F) em 25.02.2019, o qual chegou ao tribunal de destino no dia seguinte, 26.02.2019, factualidade esta que levou a decisão recorrida a concluir pela tempestividade da oposição  apresentada (“dir-se-ia que a oposição foi deduzida tempestivamente”).

15.ª Apesar disto, o Acórdão recorrido conclui igualmente que a oposição ao requerimento injuntivo poderá ter sido apresentada extemporaneamente, admitindo a possibilidade – não alicerçada em factos provados – de a citação para os termos da injunção ter sido feita “provavelmente” em 22.01.2019.

16.ª O Acórdão recorrido considera que a recorrente/embargante foi citada em 29.01.2019,      mas que também poderá ter sido citada em 22.01.2019. Considera igualmente – e ao mesmo tempo - que a oposição ao    requerimento  injuntivo foi“deduzida tempestivamente”,     mas que também poderá ter sido “apresentada extemporaneamente”.

17.ª O Acórdão recorrido enferma de clara ambiguidade e falta de fundamentação (bem como de contradição na fundamentação), o que torna a decisão ininteligível e por isso nula, ao abrigo do disposto nas alíneas b) e c), do nº 1, do artº 615º, ex vi do nº 1, do artº 666º, ambos do CPC.

A acrescer,

18.ª As decisões de primeira e segunda instância  retiram à recorrente a oportunidade de se defender,     porquanto entendem que esta teria de ter discutido no tribunal belga algo de que só tomou conhecimento com a citação, em Portugal, para os termos da execução presente.

19.ª Por essa razão, quer em sede de embargos, quer em sede de recurso de apelação, a recorrente invocou os princípios constitucionais do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados pelo artº 20º   da CRP, como corolário último do seu direito a defender-se e a ver apreciados os seus argumentos - designadamente o  da       incompetência absoluta do tribunal por preterição de compromisso arbitral-, o que vale por dizer que qualquer argumentário no sentido de que a interpretação do Regulamento (CE) nº1896/2006 obriga necessariamente a que      a discussão em torno da legalidade da formação do título executivo ocorra no tribunal do Estado-Membro de origem é violadora dos invocados preceitos constitucionais.

20.ª Apesar da invocação em causa, o Acórdão recorrido não se pronuncia sobre a questão da conformação da decisão recorrida com o artº 20º da CRP, passando totalmente à margem dessa questão, levantada pela recorrente.

21.ª Tal constitui omissão de pronúncia, gerador           de nulidade, ao abrigo do disposto na alínea d), do nº 1, do artº 615º, ex vi do nº 1, do artº 666º, ambos do CPC.

Das alegações de revista

22.ª São duas as questões essenciais a apreciar em sede da presente revista: (i) a de saber se o tribunal português - da execução e dos embargos   de executado   - pode conhecer da inexistência de título executivo europeu por ilegalidade na sua formação; e (ii) a de saber se os tribunais estaduais podem apreciar a pretensão do credor, face ao compromisso arbitral contratualmente estabelecido.

23.ª Por referência à    matéria de facto dada por provada, a embargante/recorrente foi confrontada com os seguintes dois sucessivos momentos processuais: (i) um primeiro, em 29 de Janeiro de 2019, quando foi citada para os termos da injunção europeia, à qual se opôs; e (ii) um segundo, em Março de 2020, quando foi citada para os termos da presente execução, tendo apresentado embargos de executado.

24.ª Como decorre da matéria de facto dada por provada e da documentação  junta aos embargos de executado, a embargante/recorrente opôs-se à injunção de pagamento europeia mediante a apresentação tempestiva do formulário próprio para dedução de oposição (Formulário F), regularmente preenchido e assinado.

25.ª O modelo tipificado de oposição à injunção europeia não serve para o requerido discutir o mérito da pretensão do requerente ou sequer invocar   excepções que obstem ao conhecimento dessa mesma pretensão, nomeadamente a incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria por preterição de compromisso arbitral.

26.ª A   oposição a injunção de pagamento europeia é uma oposição meramente formal que visa obstar à imediata formação de título executivo. Sendo apresentada oposição, a acção prossegue nos tribunais competentes do Estado-Membro de origem, de acordo com as normas do processo civil comum, …” [nº 1 do artº 17º do Regulamento (CE) nº 1896/2006], devendo ser efectuada nova citação, conferindo prazo para contestar acção declarativa, onde, aí sim, todos os argumentos de defesa      devem ser apresentados, discutidos e apreciados.

27.ª O  momento processualmente admissível para a embargante/recorrente invocar a excepção de incompetência absoluta do  tribunal por preterição de compromisso arbitral não era o do oferecimento de oposição por subscrição do formulário “F”.

28.ª Por não ter sido notificada da aposição de fórmula executória ao requerimento injuntivo, e por não ter sido aberta a fase de acção declarativa que  deveria ter sido aberta com   a apresentação de oposição,     o primeiro momento processual embargante/recorrente teve oportunidade de invocar a preterição de tribunal arbitral foi exactamente com a dedução de embargos de executado à execução destes autos.

29.ª Nos termos da matéria de facto dada por provada, não há dúvida de que a embargante/recorrente exerceu o seu   direito de defesa regular e tempestivamente. O prazo para dedução de oposição é de 30 dias (artº  16º, nº2 do Regulamento (CE) nº 1896/2006). A embargante/recorrente foi citada a 29 de Janeiro e a sua oposição foi entregue em Juízo a 26 de Fevereiro [Factos Provados 4) e 5)]

30.ª O   Acórdão recorrido coloca a hipótese de a embargante/recorrente ter sido citada para os termos da  injunção europeia em 22.01.2019, por carta registada com aviso de recepção enviada directamente do tribunal de origem, pelo “oficial de justiça AA”, hipótese esta que não encontra respaldo em matéria que tenha sido dada por demonstrada, porquanto nenhum facto provado ou sequer alegado sustenta uma citação da embargante/recorrente que seja anterior à efectuada pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

31.ª Para além disso, nos termos do artº 13º do Regulamento (CE) nº 1896/2006, a citação segue os termos da lei  do Estado onde é realizada,    neste caso o Estado Português. E nos termos da lei nacional, só quando frustrada a citação promovida pela Secretaria Judicial é possível, após despacho judicial, avançar para as demais modalidades de citação, incluindo   por agente de  execução ou funcionário judicial (cfr artºs 226º, nºs 1 e 3 e 231º, nº 1, ex vi do artº 246, nº 1, todos do CPC).

32.ª No caso dos autos a citação foi   realizada pela Secretaria Judicial, como o atesta o Facto   Provado 4). Deste modo, nenhuma outra (putativa) modalidade de citação será de considerar.

33.ª A confirmação da regularidade e tempestividade da apresentação da oposição por parte da embargante/recorrente – Factos Provados 4) e 5) – leva  a uma inequívoca conclusão: O título executivo foi indevidamente constituído, porquanto foi aposta fórmula executória ao requerimento injuntivo apesar da apresentação da competente oposição.

34.ª Outra conclusão daqui emerge: Não tendo a aposição de fórmula executória sido notificada à requerida, o primeiro momento em que esta tomou conhecimento da existência de título executivo contra si formado foi aquando da citação para os termos da execução presente.

35.ª O   Acórdão recorrido entende    que, nos termos do artº 20º do Regulamento (CE) nº 1896/2006, apenas o tribunal do Estado-Membro de origem teria competência para reapreciar a injunção europeia à qual foi indevidamente aposta fórmula executória.

36.ª Nos termos do artº21º do Regulamento (CE)  nº1896/2006,  a execução de requerimento de injunção com aposição de fórmula executória rege-se pela lei do Estado da execução, no caso, o Estado Português.

37.ª Assim, por referência às normas nacionais constantes das disposições conjugadas dos artºs 857º, nº 1 e 3; 729º e 728º, nº 1, todos do CPC, nos 20 dias seguintes à citação para a execução o executado pode opor à execução fundada em injunção europeia o mesmo que poderia opor a execução fundada em injunção nacional, nomeadamente excepções dilatórias e peremptórias de conhecimento oficioso.

38.ª Nos seus embargos de executado (bem como         no recurso de apelação) a recorrente invoca a inexistência de título executivo, o que constitui fundamento expressamente previsto na alínea a), do artº 729º do CPC, aplicável ao caso ex vi do nº 1, do artº 857º do CPC e do artº 21º do Regulamento (CE) nº 1896/2006.

39.ª Essa inexistência de título emerge da nulidade na sua formação, porquanto a formação do título executivo, ou seja, a aposição da respectiva fórmula executória, desconsiderou a prévia apresentação de oposição regular e tempestiva.

40.ª A  nulidade do processo constitui excepção dilatória de conhecimento oficioso (artº577º, alínea b) e      578º do CPC), invocável no caso de oposição a execução fundada em injunção, nos termos do preceituado no nº 3, do artº 857º do CPC.

41.ª Sendo instaurada nos tribunais portugueses injunção nacional à qual tenha sido aposta fórmula executória apesar da dedução de oposição tempestiva, ao executado é conferida a possibilidade de se defender nos termos supra referidos.

42.ª Se essa possibilidade de defesa existe na execução de injunção nacional, também existe na execução de injunção europeia, não só por força do nº 1, do artº 21 do Regulamento (CE) nº 1896/2006, mas também por força do seu considerando 27: “(27) Uma injunção de pagamento europeia emitida num Estado-Membro e que tenha adquirido força executiva deverá ser considerada, para efeitos de execução, como se tivesse sido emitida no Estado-Membro no qual se requer a execução…”

43.ª Assim, ao considerar-se incompetente para apreciar das questões suscitadas pela embargante/recorrente, a decisão recorrida violou as disposições constantes dos artºs 857º, nºs 1 e 3; 729º, nº 1; 577º, alínea b) e 578º, todos do Código de Processo Civil Português, bem como do artº 21º, nº 1 e do Considerando 27, ambos do Regulamento (CE) nº 1896/2006.

Da inconstitucionalidade

44.ª O artº 20º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da proibição da indefesa, que garante ao cidadão o direito à defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não lhe podendo, por isso, ser denegada justiça.

45.ª Denegação de justiça foi o que   a decisão recorrida fez, ao considerar-se internacionalmente incompetente para apreciar das questões suscitadas pela embargante/recorrente, e estribando-se para isso no artº 20 do Regulamento (CE) nº 1896/2006.

46.ª O  20º do Regulamento (CE) nº1896/2006 não significa que a capacidade de defesa do requerido em injunção europeia à qual foi aposta fórmula executória fique circunscrita à sua reapreciação no tribunal de origem, particularmente quando a lei nacional do Estado do local da execução confira ao executado meios de defesa em execução baseada em requerimento injuntivo.

47.ª A embargante não pode ser privada do seu direito à apresentação de defesa conforme à lei processual portuguesa sob o entendimento de que o artº 20º do Regulamento (CE) nº 1896/2006 obriga a que os fundamentos da defesa só possam ser apreciados pelo tribunal de origem.

48.ª A fazer-se isto, está a desaplicar-se o artº seus  nºs 1 e 3, às situações em  que o título requerimento  de injunção com aposição de fórmula nacional, mas europeu.

49.ª A interpretação do artº 857º, nºs 1 e 3, do CPC, no sentido de que o normativo em causa não se aplica às execuções fundadas em injunção   de pagamento europeia à qual tenha sido aposta fórmula executória,  é inconstitucional, por violação dos  princípios da proibição da indefesa e da tutela jurisdicional efectiva, ínsitos no artº 20º da Constituição de República Portuguesa.

50.ª Pelos mesmos exactos argumentos, é igualmente inconstitucional, também por violação dos princípios da proibição da indefesa e da tutela jurisdicional efectiva, a interpretação do artº 20º do Regulamento (CE) nº 1896/2006, no sentido de que é impeditivo da apresentação de defesa a execução fundada em injunção de pagamento europeia à qual tenha sido aposta fórmula executória, no tribunal da execução, ainda que em respeito pela lei local.

E conclui: “apreciadas as invocadas nulidades  e os fundamentos do recurso de revista, deverá revogar-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue procedentes os embargos de executado, assim extinguindo a instância executiva”.

9. A Recorrida não apresentou contra-alegações.

10. Cumpre apreciar e decidir.

- Na elaboração do relatório teve-se em consideração o Relatório elaborado no Tribunal da Relação de Lisboa –

II. Delimitação do objeto do recurso

1. Questões prévias

No âmbito da presente causa, cujo valor é inferior à alçada do Tribunal da Relação, interpõe a Embargante recurso de revista de um acórdão que confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, a decisão do Tribunal de 1.ª instância, que julgou improcedentes os embargos de executado por si deduzidos.

A Recorrente invoca, como fundamentos do recurso interposto, a violação de regras de competência internacional, bem como a violação de regras de competência em razão da matéria por preterição do tribunal arbitral.

Se não se presta a particular discussão – e considerando que se encontram reunidos os restantes pressupostos gerais de admissibilidade do recurso concernentes à natureza e conteúdo da decisão recorrida (artigo 671.º, n.º1, do Código de Processo Civil), à legitimidade da recorrente (artigo 631.º, n.º1, do Código de Processo Civil) e à tempestividade do recurso (artigo 638.º, n.º1, do Código de Processo Civil) – que a revista interposta com o fundamento em violação das regras de competência internacional se mostra admissível, à luz do preceituado na alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil –, idêntica conclusão não vale no que toca ao fundamento recursório atinente à preterição de tribunal arbitral.

Com efeito, a Recorrente alega que do contrato a que alude o ponto 3) da matéria de facto provada consta, no seu ponto 6, um compromisso arbitral que submete ao tribunal arbitral da FIFA (Player’s Status Committee) a resolução de qualquer litígio emergente do convénio.

Como é consabido, a convenção de arbitragem consubstancia o acordo das partes em submeter a resolução de um ou mais litígios determinados ou determináveis a uma via arbitral de tipo voluntário, não se confundindo a convenção de arbitragem transnacional, como a invocada nos autos, com a competência  internacional dos tribunais portugueses, entendida, nas palavras de Remédio Marques, “como a fração do poder jurisdicional atribuída a estes tribunais portugueses, no seu conjunto, relativamente à fração de poder jurisdicional atribuída, por leis nacionais estrangeiras ou tratados ou convenções internacionais, a tribunais estrangeiros sempre que o litígio seja transfronteiriço, isto é, quando apresente elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras (…)” (A ação declarativa à luz do Código revisto, 3.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 268).

Ora, ainda que a preterição do tribunal arbitral por força de cláusula compromissória convencionada seja determinante da incompetência absoluta do tribunal judicial, nos termos do disposto no artigo 96.º, alínea b) do Código de Processo Civil, a verdade é que tal preterição não se inclui nos casos de incompetência absoluta definidos pela alínea a) daquele normativo, relativos a situações de violação das regras de competência em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia. Daqui se conclui, na linha do que tem sido o entendimento da jurisprudência do STJ na matéria (cf. acórdãos de 8/11/2018 - processo n.º 22574/16.4T8LSB.L1.S1 -, de 22/04/2021 - processo n.º 2654/19.5T8LSB.L1.S1 e de 23/09/2021 - processo n.º 175/17.0TNLSB.L1.S1-) que a preterição do tribunal arbitral por força de cláusula compromissória convencionada não se encontra abrangida pelo regime especial de recorribilidade a que se reportam os artigos 629.º, n.º2, alínea a) e 671.º, n.º3, parte inicial, ambos do Código de Processo Civil. Donde não se conhecerá do objeto do recurso neste particular.

Delimitado o objeto cognoscível do recurso, há que concluir que este Supremo Tribunal de Justiça apenas se poderá pronunciar sobre as nulidades suscitadas pelo recorrente na medida que as mesmas apresentem conexão com tal objeto.

Com efeito, como sublinha o acórdão do STJ de 16/12/2020 (processo n.º 12380/17.4T8LSB.L1.S1) de “ainda que, segundo o disposto no artigo 674º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil, a revista possa ter por fundamento as nulidades previstas nas alíneas b) a e) do artigo 615.º do mesmo código, certo é que aquela norma não pode deixar de ser conjugada com o preceituado no n.º 4 deste último artigo, segundo o qual, tais nulidades só são arguíveis por via recursória quando da decisão reclamada caiba também recurso ordinário, ou seja, como fundamento acessório desse recurso.

Destarte, como deu nota o acórdão do STJ de 7/09/2020 (processo n.º 12651/15.4T8PRT.P1.S1), “a apreciação das nulidades decisórias do acórdão recorrido da Relação, nos termos do art. 615.º, n.º 4 («As nulidades mencionadas nas als. b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades.»), e 666.º, n.º 1, aplicáveis por força do art. 679.º, sempre do CPC, implica que, uma vez convocado o art. 674.º, n.º 1, al. c), do CPC, essa sindicação constitui um fundamento acessório do objecto recursivo admitido e, se o recurso for admitido na modalidade de revista excepcional (art. 672.º, n.º 3, do CPC) ou a título especial («sempre admissível») ou extraordinário de revista (art. 629.º, n.º 2, do CPC), é necessariamente vinculada ao objecto (questão ou matéria) ou fundamento de admissão dessas revistas. Se estas revistas forem admitidas para a apreciação de questão ou matéria que não tenha conexão substantiva ou processual com o fundamento da nulidade decisória, há que interpretar restritivamente o art. 615.º, n.º 4, quando admite a apreciação dessa nulidade no recurso, atenta a teleologia dessa apreciação, a fim de não a admitir (…)” (sublinhado nosso).

Tendo o presente recurso sido admitido nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, o objeto da presente revista mostra-se vinculado à matéria que determinou a sua admissibilidade extraordinária, pelo que apenas as nulidades que apresentem conexão substantiva ou processual com tal matéria deverão integrar o objeto cognoscível da revista. Assim, a apreciação da nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia invocada a respeito do fundamento recursório que exorbita os poderes de cognição deste Tribunal e que atine à incompetência absoluta do tribunal por preterição de compromisso arbitral compete, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 615.º, n.º4 (este interpretado restritivamente) e 617.º, n.º6 do Código de Processo Civil, ao tribunal recorrido (que já a efetuou).


2. Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pela Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

i. Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, por oposição entre fundamentos e decisão e por ambiguidade que torna a decisão ininteligível;

ii. Da competência internacional dos tribunais portugueses para apreciação dos concretos fundamentos de oposição por embargos deduzidos. 


III. Fundamentação

1. As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1.1. Trading Dv Bvba instaurou a execução sumária a que estes autos estão apensos contra Sporting Sociedade Desportiva de Futebol Sad, apresentando, como título executivo, procedimento europeu de injunção de pagamento (cfr. documentos juntos com o requerimento executivo e cujo teor se considera aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);

1.2. No âmbito do procedimento de injunção referido em 1), a declaração de executoriedade foi emitida em 05 de Junho de 2019, e notificada ao aqui embargante.

1.3. Entre embargante e embargado foi ajustado, com data de 14 de Setembro de 2007, um documento denominado CONTRATO, junto com o requerimento executivo como doc. 1 (fls. 6-8 dos autos executivos principais) e cujo teor se considera aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

1.4. Em 29.01.2019 o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa citou a requerida para os termos do procedimento de injunção europeia suprarreferido em 1) e 2).

1.5. Em 25.02.2019 a requerida/embargante enviou para os dois endereços do tribunal constantes nos formulários A e E o formulário F do procedimento de injunção, declarando opor-se à mesma, para tal utilizando os serviços da operadora DHL Express, a qual certificou que essas duas encomendas haviam sido entregues no seu destino no dia 26.02.2019, respetivamente às 10h46m e às 10h26m.

2. Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, por oposição entre fundamentos e decisão e por ambiguidade que torna a decisão ininteligível

A Recorrente começa por afirmar que o acórdão recorrido padece de ambiguidade, de falta de fundamentação e que incorre em contradição na fundamentação, o que o torna ininteligível, alegando encontrarem-se verificadas as causas de nulidade da decisão a que se reportam as alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (aplicável por remissão do estatuído no artigo 666.º, n.º1, do mesmo diploma).

Em sede de conferência, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou não verificadas as nulidades invocadas.

Apreciando.

Segundo o que dispõe o artigo 615.º do Código de Processo Civil, “1 - É nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (…).”

Competindo ao juiz especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão (artigo 607.º, n.º3, do Código de Processo Civil), há nulidade (no sentido lato de invalidade utilizado pela lei) por falta de fundamentação quando, como explicam Lebre de Feitas e Isabel Alexandre, “falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão” (Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, p. 736), não integrando tal vício a mera deficiência de fundamentação.

Quanto à nulidade adveniente da existência de oposição entre os fundamentos e a decisão, esta só se verifica quando das premissas de facto e de direito constantes da decisão se extraia uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído. Como observam os mesmos autores, existe contradição lógica entre os fundamentos e a decisão determinativa da nulidade da sentença se “na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente.” (ob. cit., p. 736). Este vício não se confunde com o erro de julgamento, em que o juiz, muito embora mal, “entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre” (ob. cit., p. 737).

Por outro lado, e deslocando o prisma de análise para o vício a que respeita a segunda parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, há que realçar que, no regime atual, a ambiguidade ou a obscuridade, agora limitadas à parte decisória, só relevam quando geram ininteligibilidade, isto é, “quando um declaratório normal, nos termos dos art. 236.º/1 e 238.º/1 do CC não possa tirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.” (ob. cit., p. 735). Como precisou o acórdão do STJ de 11/02/2015 (processo n.º 6391/07.5TBALM.L2.S1), “I - No âmbito do NCPC (2013), a obscuridade ou ambiguidade do julgado deixou de constituir fundamento de reforma da decisão, passando a sua ocorrência a constituir, quando torne imperceptível a decisão, fundamento para a invocação da nulidade desta (art. 615.º, n.º 1, al. c), do NCPC).   II - Tal alteração pretendeu eliminar os pedidos de esclarecimento com propósitos meramente dilatórios, pois só a verificação de vícios da sentença que atinjam aquele grau de gravidade justificará a intervenção judicial no sentido da sua supressão mediante o reconhecimento da consequente nulidade.  III - Por ambígua deve continuar a ter-se a decisão à qual é razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares, ao passo que será obscura a resolução cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido (…)”.

Na situação dos autos, a Recorrente alega que a circunstância de o tribunal recorrido, no âmbito da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, ter alterado o conteúdo do ponto 2) dos factos provados e removido a menção da notificação à Embargante/Recorrente se mostra incompatível com o entendimento por si propugnado no sentido de que a Recorrente deveria ter suscitado junto do tribunal de origem a questão da indevida formação do título. Ora, as premissas mobilizadas pelo Tribunal da Relação – a circunstância de não ter resultado provada a notificação da embargante da declaração de executoriedade aposta ao requerimento injuntivo europeu – não se mostram colidentes, do ponto de vista da coerência lógica, com a conclusão alcançada a respeito do pressuposto processual atinente à competência internacional para apreciar os específicos fundamentos de embargos suscitados.

Não se vislumbra, pois, nenhuma oposição entre os fundamentos e a decisão integradora do vício que se analisa, do mesmo modo que o acórdão recorrido, no seu segmento decisório, não apresenta qualquer ambiguidade ou obscuridade. A fundamentação do acórdão a respeito da notificação da embargante no âmbito do procedimento europeu de injunção (e empreendida a título de “obter dictum”, já que o Tribunal da Relação de Lisboa acaba por concluir que a questão da tempestividade da dedução da oposição deveria ser apreciada por tribunal belga) explicitou, em termos claramente apreensíveis para um destinatário medianamente esclarecido, que a data de certificação da notificação da injunção constante do título executivo (22/01/2019) não se mostra coincidente com a data documentada nos autos em que a executada foi citada (22/01/2019) - e daí os dois cenários terem sido descritos em termos assumidamente contraditórios e, por isso, não ambíguos, por se encontrarem baseados em dados factuais diversos. Tais considerações, como se deixou antever, não chegaram sequer a ter reflexos no sentido da decisão tomada, pelo que carece de sentido a arguida falta de fundamentação de facto que se dirige, não à “ratio decidendi” do acórdão, mas a considerandos aí aduzidos a título de “obiter dictum”.

Acrescenta a Recorrente, por outro lado, que o acórdão recorrido não fundamenta a sua decisão de que a sindicância da formação do título executivo dos autos deveria ter ocorrido junto do tribunal de origem (belga), sendo que dá por não demonstrado que a declaração de executoriedade tenha sido notificada ao requerido antes da citação para a execução.

A decisão acerca da competência para apreciação da regularidade da formação do título executivo, cujo acerto não cumpre apreciar nesta sede, foi proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa por apelo à disciplina consagrada no artigo 20.º do Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2006, com abstração dos factos adquiridos no processo, posto que se reporta à verificação de um pressuposto processual - constituindo entendimento sedimentado o de que, para aferir da competência internacional, não há que apreciar o mérito da causa, mas tão-só que atentar nos contornos factuais e jurídicos da pretensão deduzida na estrita medida do necessário para aferir o pressuposto causa (cf., neste sentido, o acórdão do STJ de 29/09/2022, processo n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1). Tal decisão encontra-se, pois, suficientemente fundamentada do ponto do ponto de vista jurídico, sendo juridicamente inoperativa a alegação da sua ausência de fundamentação de facto, em virtude de a mesma incidir sobre a aferição de um pressuposto processual.

Improcedem, assim, as nulidades arguidas nos pontos das conclusões de recurso constantes dos pontos 1 a 17.

3. Da competência internacional dos tribunais portugueses para apreciação dos concretos fundamentos de oposição por embargos deduzidos

O título no qual se baseia a ação executiva à qual correm por apenso os presentes embargos reconduz-se a um requerimento de injunção de pagamento europeia ao qual foi aposta fórmula executória.

A injunção a que se reporta a presente execução rege-se pelo Regulamento (CE) n.º 1896/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12/12/2006, que criou um procedimento europeu de injunção de pagamento.

Resulta do considerando n.º 9 deste diploma que o mesmo “tem por objetivo simplificar, acelerar e reduzir os custos dos processos judiciais em casos transfronteiriços de créditos pecuniários não contestados, através da criação de um procedimento europeu de injunção de pagamento, e permitir a livre circulação das injunções de pagamento europeias em todos os Estados-Membros, através do estabelecimento de normas mínimas cuja observância torne desnecessário qualquer procedimento intermédio no Estado-Membro de execução anterior ao reconhecimento e à execução.”

A Recorrente vem apresentar embargos com fundamento nas alíneas a) e d) do artigo 729.º do Código de Processo Civil, normas aplicáveis às execuções que tenham por fundamento requerimento de injunção, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 857.º do Código de Processo Civil.

A Recorrente alega que o título executivo sob escrutínio foi indevidamente constituído, uma vez que foi aposta fórmula executória ao requerimento injuntivo apesar da apresentação válida e tempestiva de oposição.

 O Tribunal da Relação, não obstante tecer considerações acerca da tempestividade da dedução da oposição por parte da embargante, observa que a presente questão deveria ter sido dirimida perante o tribunal belga, deixando consignado: “a executoriedade da injunção mostra-se declarada por um tribunal belga, na sequência de requerimento de injunção europeia requerida pela ora exequente nos termos do apontado Regulamento, para o qual a executada foi citada, como reconheceu. Se a executada entende que a declaração de executoriedade foi indevidamente emitida, porque a executada terá apresentado a sua oposição tempestiva e validamente, tal questão deveria ter sido suscitada perante o tribunal de origem, conforme decorre do disposto no art.º 20.º do Regulamento.”

Vejamos o quadro jurídico aplicável à situação decidenda.

Segundo o que dispõe o artigo 19.º do Regulamento n.º 1896/2006 “a injunção de pagamento europeia que tenha adquirido força executiva no Estado-Membro de origem é reconhecida e executada nos outros Estados-Membros sem que seja necessária uma declaração de executoriedade e sem que seja possível contestar o seu reconhecimento.”

Por outro lado, preceitua o artigo 20.º do Regulamento, “(…) 2. Após o termo do prazo fixado no n.º 2 do artigo 16.º, o requerido tem também o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia ao tribunal competente do Estado Membro de origem nos casos em que esta tenha sido emitida de forma claramente indevida, tendo em conta os requisitos estabelecidos no presente regulamento ou outras circunstâncias excepcionais. 3. Se o tribunal indeferir o pedido do requerido com base no facto de que não é aplicável nenhum dos fundamentos de reapreciação enumerados nos n.o s 1 e 2, a injunção de pagamento europeia mantém-se válida. Se o tribunal decidir que se justifica a reapreciação com base num dos fundamentos enumerados nos n.ºs 1 e 2, a injunção de pagamento europeia é declarada nula.”

Como ressalta o considerando n.º 25 do Regulamento, “Após o termo do prazo para apresentar a declaração de oposição, o requerido deverá ter, em certos casos excecionais, o direito de pedir a reapreciação da injunção de pagamento europeia. A reapreciação em casos excecionais não deverá significar a concessão ao requerido de uma segunda oportunidade para deduzir oposição. Durante o procedimento de reapreciação, o mérito do pedido não deverá ser apreciado para além dos fundamentos decorrentes das circunstâncias excecionais invocadas pelo requerido. As outras circunstâncias excecionais poderão incluir os casos em que a injunção de pagamento europeia tenha por base informações falsas fornecidas no formulário de requerimento.

Com efeito, como decidiu o Tribunal de Justiça da União Europeia, em acórdão datado de 22/10/2015 (processo C‑245/14), “Quanto à possibilidade de reapreciar a injunção de pagamento europeia, uma vez decorrido o prazo para a dedução de oposição, esta reapreciação só pode ocorrer em «casos excecionais», como indica a própria epígrafe do artigo 20.° do referido regulamento. A este respeito, resulta do texto do artigo 20.°, n.° 2, do Regulamento n.° 1896/2006 que uma injunção de pagamento europeia pode ser reapreciada em caso de incumprimento do prazo de dedução de oposição, quando tenha sido emitida de forma claramente indevida, tendo em conta os requisitos estabelecidos no Regulamento n.° 1896/2006 ou outras circunstâncias excecionais. Tendo o legislador da União pretendido limitar o procedimento de reapreciação a situações excecionais, a referida disposição deve necessariamente ser objeto de interpretação estrita (v., por analogia, acórdão Comissão/Conselho, C‑111/10, EU:C:2013:785, n.° 39 e jurisprudência aí referida).”

Preceitua o artigo 21.º do Regulamento referido, nos seus n.os 1 e 2, que “1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, o processo de execução rege-se pela lei do Estado-Membro de execução. A injunção de pagamento europeia que tenha adquirido força executiva é executada nas mesmas condições que uma decisão executória proferida no Estado-Membro de execução (…)”

Por fim, segundo o n.º 1 do artigo 6.º do mesmo Regulamento, “para efeitos da aplicação do presente regulamento, a competência judiciária é determinada em conformidade com as regras do direito comunitário aplicáveis na matéria, designadamente o Regulamento (CE) n.º 44/2001.”

A Recorrente refere que, nos termos do artigo 21.º do Regulamento nº 1896/2006, a execução de requerimento de injunção com aposição de fórmula executória se rege pela lei do Estado da execução (no caso, a lei portuguesa), o que a habilita a, de acordo com as normas constantes das disposições conjugadas dos artigos 857.º, nºs 1 e 3; 729.º e 728.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil, opor à execução fundada em injunção europeia os mesmos fundamentos que poderia opor à execução fundada em injunção nacional, nomeadamente exceções dilatórias e perentórias de conhecimento oficioso.

A questão tem de ser colocada em dois planos: um deles é o da competência internacional (fração de poder jurisdicional atribuído aos tribunais de cada Estado-Membro, no seu conjunto, por parte do Regulamento nº 1896/2006, no âmbito de um litígio plurilocalizado) para apreciação da regularidade da formação do título de injunção de pagamento europeia; o outro plano, respeita à lei aplicável (no cômputo das leis de cada um dos Estados-Membros suscetíveis de disciplinar a situação) ao processo de execução no âmbito da ação instaurada para execução de injunção de pagamento europeia que tenha adquirido força executiva.

Ora, alegando a Executada, como fundamento de oposição, a ilegalidade na formação do título executivo em virtude da apresentação tempestiva da sua parte de oposição no âmbito do procedimento europeu de injunção, a circunstância de este concreto fundamento, que a Recorrente integra nas alíneas a) e d) do artigo 729.º do Código de Processo Civil, contender com a regularidade da formação do título executivo faz com que, de acordo com o que estatui o n.º1 do artigo 21.º do Regulamento nº1896/2006, a competência para apreciar tal questão resida nos tribunais belgas, enquanto tribunais do Estado-Membro de origem do título.

Resulta, pois, do exposto que, sendo incontestavelmente aplicável a lei portuguesa à execução da injunção de pagamento europeia em apreço, a apreciação dos concretos fundamentos de oposição à execução que respeitem à regularidade da emissão do título compete aos tribunais do Estado em que foi declarada executória a injunção de pagamento europeia, como decorre do disposto nos artigos 19.º e 21.º, n.º1, do Regulamento nº 1896/2006.

Efetivamente, ainda que, nos termos das disposições dos artigos 2.º a 7.º do Regulamento (CE) n.º44/2001 do Conselho, de 22 de dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (aplicável ao procedimento europeu de injunção de pagamento em matéria de competência em virtude da remissão operada pelo artigo 6.º, n.º1, do Regulamento nº 1896/2006) vigore o princípio de que, em geral, a competência tem por base o domicílio do requerido, a interpretação conjugada dos artigos 19.º e 21.º, n.º1, do Regulamento nº 1896/2006 leva-nos a concluir que a competência internacional para apreciação das questões suscitadas no caso dos autos reside nos tribunais do Estado-membro de origem da injunção europeia.

O regime aplicável à execução de injunção de pagamento europeia à qual foi aposta fórmula executória, no âmbito particular da competência para apreciação das irregularidades imputadas à formação do título difere, efetivamente, do regime aplicável à injunção homóloga portuguesa. No entanto, tal diversidade de tratamento, que não é arbitrária porque se apresenta teleologicamente fundada na plurilocalização dos litígios em causa (“casos transfronteiriços”, na aceção do Regulamento nº1896/2006) não ofende o regime preceituado pelo n.º 1 do artigo 21.º, n.º1, daquele diploma – segundo o qual “a injunção de pagamento europeia que tenha adquirido força executiva é executada nas mesmas condições que uma decisão executória proferida no Estado-Membro de execução” -, uma vez que o proémio do próprio artigo ressalva a aplicação das restantes normas previstas no Regulamento.

Estando em causa uma situação em que a competência internacional dos tribunais portugueses deve ser aferida por regras do direito europeu, não será ocioso sublinhar que, no presente caso, não existe qualquer concorrência de normas, de fonte interna e de fonte comunitária, disciplinadoras da competência internacional, considerando que os preceitos indicados pela Recorrente cingem o seu âmbito de aplicação aos fundamentos da oposição à execução, nada dispondo acerca daquele pressuposto processual. De qualquer modo, sempre se diga que os regulamentos comunitários, sendo diretamente aplicáveis em todos os Estados-membros, gozam de prevalência na aplicação no confronto com normas de direito interno, o que implica, nas palavras de Miguel Gorjão-Henriques, para os órgãos jurisdicionais nacionais “a obrigação de garantirem a plena eficácia do direito europeu, ainda que tal implique a desaplicação de normas nacionais, qualquer que seja a sua dignidade formal, como aliás resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça.” (Direito da União, 9.ª edição, 2019, Coimbra, Almedina, p. 360).

Por fim, sublinhe-se que a interpretação normativa que se deixou exposta acerca da incompetência internacional dos tribunais portugueses para apreciar os concretos fundamentos de oposição à execução invocados pela embargante não é violadora dos princípios constitucionais do contraditório e da proibição da indefesa, consagrados no 20.º da CRP.  

A Recorrente refere que a decisão recorrida incorreu em denegação de justiça ao considerar-se internacionalmente incompetente para apreciar as questões suscitadas, acrescentando que o artigo 20.º do Regulamento (CE) nº1896/2006 não significa que a capacidade de defesa do requerido em injunção europeia à qual foi aposta fórmula executória fique circunscrita à sua reapreciação no tribunal de origem, particularmente quando a lei nacional do Estado do local da execução confira ao executado meios de defesa em execução baseada em requerimento injuntivo.

Como foi salientado no acórdão do STJ, de 22/11/2018 (Processo n.º 19920/12.3YYLSB.L1.S1), “as garantias de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, contempladas no art. 20.º, n.º 1, da CRP, não são naturalmente incompatíveis com a existência de regras processuais, dispondo o legislador de ampla liberdade de conformação nesta matéria.” É, pois, o que sucede com o estabelecimento de regras de competência internacional, cujo regime é concretamente estabelecido pelo legislador por referência a fatores de conexão relevantes, por referência a diferentes ordens jurídicas em contacto com um litígio plurilocalizado.

Na situação vertente, e como decorre do acima referido, a Embargante sempre poderá suscitar a irregularidade de formação do título executivo junto de um tribunal (neste caso, belga), invocando nessa sede os seus fundamentos de facto e de direito – sendo que, como decorre do n.º 3 do artigo 20.º do Regulamento nº 1896/2006, se o tribunal em causa decidir que a injunção de pagamento europeia foi emitida de forma indevida, a mesma será declarada nula. A Recorrente poderá, pois, exercitar, através de um processo equitativo, o seu direito de ação junto de um órgão jurisdicional (ainda que não português) para contestar a regularidade do título executivo, sendo desta forma salvaguardados os seus direitos de defesa e ao contraditório. A garantia constitucional de tutela jurisdicional efetiva não exige, tal como sugerido pela Recorrente, que o direito de agir em juízo se efetive num tribunal português, bastando – como é o caso – que seja conferida à parte um meio processual idóneo, adequado às circunstâncias do caso, para reagir relativamente a um título executivo contra si formado.

A interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa do regime vigente nesta matéria foi a correta e não enferma de qualquer inconstitucionalidade, devendo improceder o recurso apresentado pela Embargante.

Por todo o exposto, o recurso terá de improceder.


IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em:

- não tomar conhecimento do recurso, na parte respeitante à preterição do tribunal arbitral;

- negar a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

As custas ficarão a cargo da Recorrente.


Lisboa, 8 de novembro de 2022


Pedro de Lima Gonçalves (Relator)   

Maria João Vaz Tomé           

António Magalhães