LEGITIMIDADE DO CESSIONÁRIO / EXEQUENTE
PREENCHIMENTO ABUSIVO DO TÍTULO DE CRÉDITO
Sumário


I - Na ação executiva, a legitimidade que é concedida aos sujeitos que constam do título executivo como credor e devedor é igualmente reconhecida aos seus sucessores: se houver sucessão no direito ou na obrigação exequendos, são partes legítimas na execução os sucessores dos sujeitos que figuram no título como credor e devedor da obrigação exequenda.
II - É o que ocorre com a cessão de créditos, a qual pode ser definida como a sucessão num crédito por efeito de um negócio jurídico inter vivos, através do qual o credor transmite a um terceiro o seu direito.
III - A cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor, desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite (artigo 583.º, n.º 1, do Código Civil).
IV - A notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, pois que o único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor, não exigindo a lei a sua autorização.
V - A notificação da cessão ao devedor é uma condição de eficácia do negócio e não condição de validade do contrato.
VI - A livrança pode ser validamente transmitida a terceiro por outra forma que não seja o endosso, designadamente através de uma cessão de créditos.
VII - A livrança em branco é admitida no nosso ordenamento jurídico, sustentando-se normativamente no art.º 10.º da L.U.L.L., devendo a mesma ser entregue pelo subscritor ao credor conjuntamente com uma autorização de preenchimento (pacto de preenchimento).

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

Inconformados com a sentença que julgou improcedentes os embargos de executado e determinou o prosseguimento da instância executiva, apelaram os executados, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

Da Matéria de Facto:

1 – Embora os Apelantes reconhecem que em princípio, no processo executivo, a matéria constante do título dado à execução deve ser tida por verdadeira, não pode ser contraditória nos seus próprios termos e contexto.
2 – E de facto a exequente afirma por um lado que o Banco ... lhe cedeu em 28/09/2017 um crédito já vencido, no valor de 6 348,00 euros sobre a Firma J. L., Lda,
3 – E por outro, alega que por esse contrato de cessão de créditos a exequente passou a ser credora de um crédito de 7 799,60 euros constante da Livrança sobre os embargantes quando aquela exequente não consta na Livrança como credora, e os embargantes não constam ser devedores por via daquela cessão de créditos.
4 – Trata-se, pois, de uma contradição manifesta no próprio contexto do requerimento executivo, pelo que não pode ser considerada como matéria provada.
5 – Contradição em que é também manifesta quanto à data de vencimento de 23/07/2020 inserida na livrança e a data de vencimento constante do contrato de cessão de 28/09/2017, quando no mesmo requerimento executivo se alega se fundar o valor de 7 799,60 euros e o vencimento de 23/07/2020 naquele contrato de 28/09/2017.
6 – Não provada também deve ser julgada a matéria do item 6, pelas mesmas razões, e ainda por nova contradição entre o valor aí adiantado de 7 830,03 euros a titulo de capital, aquando da celebração do alegado contrato de 28/09/2017 e no anexo dessa minuta contratual constar o valor, nessa mesma data de 28/09/2017 de 6 348,08 euros.

Da ilegitimidade do exequente:
7 – Nos termos do Art. 53º nº 1 do CPC a exequente só disporia de legitimidade se figurasse como credora no titulo, só que quem figura como credora no titulo, que é a Livrança, é o Banco ... ....
8 – A Sentença confunde um contrato de cessão de créditos que nem sequer constitui um titulo executivo.
Com a relação cartular de uma livrança em que figura como credor o BANCO ..., como subscritora a Firma J. L., Lda, e como avalista os embargantes.
9 – Para a exequente embargante ser portadora legitima da Livrança teria que esta lhe tivesse sido transmitida, como título executivo, pelo credor BANCO ...,
10 – e não foi.
11 – A transmissão de uma Livrança é transmissível por via de endosso (Art. 11º e 77º da L.U.L.L.), via que é o modo normal e específico de transferência dos títulos à ordem.
12 – O endosso poderá até apenas consistir na simples assinatura do endossante (neste caso do BANCO ...) no verso da Livrança (endosso em Branco).
13 – Mas tal não foi efetuado já que no verso da Livrança dada à execução só constam as assinaturas dos avalistas/embargantes, ora Apelantes.
14 – Haveria, pois, a eventualidade para os avalistas/embargantes de o titular legitimo, que é o BANCO ..., os acionar.

Do preenchimento abusivo da Livrança:
15 – Nos Arts. 8º a 13º da Petição de Embargos foi deduzida matéria de exceção relativa ao preenchimento abusivo.
16 – A Embargada não contestou, pelo que nos termos do nº 3 do Art. 732º do CPC, terão de ser considerados provados por confissão aqueles factos consubstanciadores do preenchimento abusivo. (cfr. CPC anotado – António Abranches Geraldes, P. Pimenta e Luís F.P. Sousa - Volume II, pag. 90, nota5, ao Art. 732º).
Porém,
17 – Segundo o alegado no requerimento executivo o discutido crédito se teria vencido em 28/09/207.
18 – No momento e data do vencimento de 28/09/2017, a livrança já devia, pois, estar preenchida com essa data de vencimento e com o valor de 6 348,00 euros, por ser este o valor que consta no anexo da alegada cessão de créditos.
19 – Nessa data a livrança já teria que estar preenchida conforme a própria Sentença sustenta a págs. 11 e 12.
20 – Mas a livrança nem foi preenchida nessa data nem foi o credor BANCO ... que a preencheu.
21 – O alegado Pacto de preenchimento constante do documento junto pela Embargada antes da Audiência, nos itens 14 e 14.1 não permitia que a Livrança fosse preenchida pela exequente, nem esta foi parte no contrato de empréstimo onde se inseriu esse Pacto.
22 – De facto, quem preencheu a livrança foi a exequente, com a data aleatória de 23/07/2020 e pelo valor de 7 799,60 euros, conforme se expressa em duas cartas datadas de 16/07/2020, juntas também pouco antes da Audiência, subscritas por um Advogado em representação e nome da Embargada.
Ora,
23 – A Exequente não foi contratante no contrato de empréstimo, e o Pacto de preenchimento apenas autorizava ser feito o preenchimento pelo Banco ... ... através de qualquer um dos seus funcionários (clausula 14.1).
Nenhuma cessão contratual foi efetuada pelo Banco a favor da exequente, nem tal foi alegado.
Apenas se alegou a cessão de um invocado crédito.
É certo que podia legalmente ser cedida a posição contratual do Banco, no contrato de empréstimo, a favor da exequente, incluindo por essa via a transmissão da garantia da Livrança. (Neste sentido vide notas 11 e 12 ao Art. 11º da L.U.L.L. anotado de Abel Delgado a pags. 89 e 90).
Mas nesse caso, para a cessão ser oponível aos avalistas/embargantes seria exigível o consentimento destes nos termos do Art. 424º do C. Civil.
24 – A Sentença não apreciou esta questão, quer da falta de contestação, quer da própria confissão feita nos documentos.
25 – A Sentença violou assim, pelo menos, os Arts. 53º nº 1, 615º nº 1 alínea d), e 732º 3 do CPC, e os Arts. 1º, 2º, 10º, 11º, 13º e 77º da L.U.L.L., e Art. 474º do C. Civil.

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A Recorrida não apresentou contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

São as seguintes as questões a apreciar:

- Da modificação da matéria de facto;
- Do mérito da sentença
a) quanto à legitimidade do cessionário/exequente;
b) quanto ao preenchimento abusivo do título de crédito.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

3.1. DE FACTO

Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:

1 - Por contrato de cessão de créditos, celebrado em 28 de setembro de 2017 o Banco ... S.A e o Banco X S.A, venderam à Y SARL um conjunto de créditos vencidos de que era titular, conforme documento n.º 1 junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2 - Pelo contrato supramencionado foi cedido à aqui Requerente o crédito que aqui se peticiona/executa.
3.- Na sequência do contrato de cessão supra mencionado, a Exequente é dona e legítima portadora de uma livrança no valor de 7.799,60€ vencida a 23/07/2020, subscrita por J. L. Lda e avalizadas pelo subscritores J. P. e L. P., que, assim, se tornaram solidariamente responsáveis por tal crédito, conforme documento n.º 2 junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
4.- Na data do respetivo vencimento (23/07/2020), a mesma não foi paga, nem posteriormente e até ao presente por nenhum dos intervenientes cambiários, apesar das diligências para o efeito levadas a cabo, tanto pelo Banco Cedente, como posteriormente pela Exequente, conforme documentos juntos no passado dia 04-03-2022, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
5.- A Firma J. L., Lda, foi declarada insolvente em Maio de 2013.
6.- A Exequente é credora dos Executados da quantia de 7 830,03€, valor devido a título de capital aquando da celebração do contrato de cessão de créditos, acrescida dos respetivos juros de mora, até efetivo e integral pagamento, contados à taxa legal de 4%.
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3.2. O DIREITO

3.2.1. Da modificabilidade da decisão da matéria de facto

Dispõe o art. 662.º, n.º 1 do CPC, que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Logo, como se afirma no acórdão desta Relação de Guimarães de 22.10.2020, (1) quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo. Estarão aqui em causa, como naquele aresto se exemplifica, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material, onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles.
Todavia já no preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro, reconhecia o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», pelo que procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido.
Existem, assim, requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais, se não observados, conduzem à sua rejeição.

Estes decorrem do art. 640.º, do CPC, que impõe ao recorrente o ónus de:

a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
É hoje indiscutível a inadmissibilidade de recursos que se insurgem em abstrato contra a decisão da matéria de facto: o recorrente tem que especificar os exatos pontos que foram, no seu entender, erroneamente decididos e indicar também com precisão o que entende que se deve dar como provado.
Impõe-se que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser assente, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de forma a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto, e saber claramente em que sentido pretendem que a matéria de facto provada seja alterada.

Com a imposição destas indicações pretende-se impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, restringindo-se a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente.” (2)
Por estes motivos, o recorrente, além de ter que assinalar os pontos de facto que considera incorretamente julgados e indicar expressamente a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre esses pontos, tem também que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos, evitando-se que sejam apresentados recursos inconsequentes, não motivados, com meras expressões de discordância, sem fundamentação que possa ser percetível, apreciada e analisada.
Quanto a cada um dos factos que pretende que obtenha diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados, criticar os mesmos e, também discriminada e explicadamente, concluir pela resposta que deveria ter sido dada.
Tão clara e perentória é a norma e tão importante para a salvaguarda da utilidade da impugnação da matéria de facto, reservando-a para os casos em que a parte tem sustento razoável para o efeito, que se entende que a exigências destes requisitos não se traduz num desnecessário predomínio da forma sobre a matéria, mas à defesa do nível de exigência a que a impugnação da matéria de facto tem que corresponder.
No caso em apreço, os Recorrentes impugnam a matéria de facto dizendo que a exequente afirma, por um lado, que o BANCO ... lhe cedeu em 28/09/2017 um crédito já vencido, no valor de 6 348,00 euros sobre a Firma J. L., Lda, e, por outro, que por esse contrato de cessão de créditos passou a ser credora de um crédito de 7 799,60 euros constante da livrança sobre os embargantes, quando aquela exequente não consta na livrança como credora, e os embargantes não constam ser devedores por via daquela cessão de créditos. Acrescentam que se trata de uma contradição no próprio contexto do requerimento executivo, pelo que não pode ser considerada como matéria provada. Dizem ainda que a contradição é também manifesta quanto à data de vencimento de 23/07/2020 inserida na livrança e a data de vencimento constante do contrato de cessão de 28/09/2017, quando no mesmo requerimento executivo se alega se fundar o valor de 7 799,60 euros e o vencimento de 23/07/2020 naquele contrato de 28/09/2017. Por fim, consideram que a matéria do item 6, não deve ser dada como provada, pelas mesmas razões, e ainda por nova contradição entre o valor aí adiantado de 7 830,03 euros a título de capital, aquando da celebração do alegado contrato de 28/09/2017 e no anexo dessa minuta contratual constar o valor, nessa mesma data de 28/09/2017 de 6 348,08 euros,
Das conclusões recursivas e respetivas alegações resulta que os Recorrentes não concordam com a decisão, e discordam de todas as suas partes, da decisão da matéria de facto e sua motivação e da fundamentação de direito. Porém, atacam-na de forma global, e no percurso de dissensão entremeiam considerandos subjetivos e ilações a retirar dos documentos.
A abordagem impugnatória realizada pelos Recorrentes não cumpre manifestamente os requisitos legais.

Como resulta do corpo das alegações e das respetivas conclusões, os Recorrentes:

- não fazem referência aos concretos pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados (salvo a indicação do ponto 6 relativamente ao qual a seguir nos pronunciaremos);
- não indicam os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ele propugnados;
- não referem a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida.

Note-se que na motivação o Sr. Juiz fez consignar que, para além dos factos firmados pelo acordo das partes (aval da livrança por parte dos embargantes), formou a sua convicção na conjugação do teor do original da livrança junta aos autos de execução com os dizeres do contrato de mútuo e missivas juntas aos autos no dia 04-03-2022.
Quanto a estes meios de prova documentais, em que assentou a convicção do tribunal a quo, os Recorrentes não extraem qualquer factualidade positiva.
Em suma, os Recorrentes só não concordam com a decisão.
E porque assim, reafirma-se que os ónus processuais de impugnação devem ser apreciados à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilização das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (3).
Assim, considerando que os factos provados 1 a 5 tiveram por base o contrato de cessão de créditos, o contrato de mutuo, o título cambiário e as missivas enviadas aos executados, o teor genérico da impugnação da decisão da matéria de facto terá necessariamente que improceder.
Quanto ao facto provado nº 6, único ponto individualizado, o mesmo é claramente conclusivo, devendo como tal ser excluído do elenco dos factos provados.
Cremos, contudo, pela relevância que assumem em face do objeto do processo, que a documentação junta aos autos impõe que se adite aos factos provados os seguintes:
- À devedora J. L. foi comunicada a cessão de créditos operada, por carta datada de 08.11.2017.
- A cessão de créditos foi ainda comunicada a L. P. por carta de 14.03.2018.
- Y SARL, na qualidade de cessionária, por carta datada de 16.07.2020 comunicou a L. P. e J. P., a resolução do contrato de empréstimo e preenchimento de livrança.
Assim, a factualidade provada a atender é a seguinte (ordenada):
1 - Por contrato de cessão de créditos, celebrado em 28 de setembro de 2017 o Banco ... S.A e o Banco X S.A, venderam à Y SARL um conjunto de créditos vencidos de que era titular, conforme documento n.º 1 junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
2 - Pelo contrato supramencionado foi cedido à aqui Requerente o crédito que aqui se peticiona/executa.
3. À devedora J. L. foi comunicada a cessão de créditos operada, por carta datada de 08.11.2017.
4. A cessão de créditos foi ainda comunicada a L. P. por carta de 14.03.2018.
5. Na sequência do contrato de cessão supra mencionado, a Exequente é dona e legítima portadora de uma livrança no valor de 7.799,60€ vencida a 23/07/2020, subscrita por J. L. LDA e avalizadas pelo subscritores J. P. e L. P., que, assim, se tornaram solidariamente responsáveis por tal crédito, conforme documento n.º 2 junto com o requerimento executivo, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
6. Y SARL, na qualidade de cessionária, por carta datada de 16.07.2020 comunicou a L. P. e J. P., a resolução do contrato de empréstimo e preenchimento de livrança.
7. Na data do respetivo vencimento (23/07/2020), a mesma não foi paga, nem posteriormente e até ao presente por nenhum dos intervenientes cambiários, apesar das diligências para o efeito levadas a cabo, tanto pelo Banco Cedente, como posteriormente pela Exequente, conforme documentos juntos no passado dia 04-03-2022, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
8.- A Firma J. L., Lda, foi declarada insolvente em Maio de 2013.
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3.2.2. Do mérito da decisão

a) Legitimidade do cessionário/exequente

A questão posta em recurso prende-se com a legitimidade do cessionário para intervir na fase executiva.
Na ação executiva, a legitimidade que é concedida aos sujeitos que constam do título executivo como credor e devedor é igualmente reconhecida aos seus sucessores: se houver sucessão no direito ou na obrigação exequendos, são partes legítimas na execução os sucessores dos sujeitos que figuram no título como credor e devedor da obrigação exequenda.
É o que ocorre com a cessão de créditos, a qual pode ser definida como a sucessão num crédito por efeito de um negócio jurídico inter vivos (v.g., venda, doação, troca) através do qual o credor transmite a um terceiro o seu direito. (4)
Sobre a admissibilidade da cessão, prescreve o artigo 577º, nº1, do Código Civil que o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor.
Este fenómeno translativo implica uma modificação meramente subjetiva da obrigação: ao credor originário sucede um “novo” credor, mantendo-se, no entanto, a relação obrigacional totalmente inalterada quanto ao respetivo objeto e ao programa contratual convencionado junto do credor originário, incluindo todas as garantias eventualmente associadas à obrigação (identidade objetiva) (5). Este último aspeto – intangibilidade do conteúdo obrigacional– verifica-se, desde logo, na impossibilidade de o devedor ver a sua posição jurídica afetada, podendo opor ao cessionário todos os meios de defesa que poderia opor em relação ao credor primitivo (artigo 585.º do Código Civil).
Os requisitos e os efeitos da cessão entre as partes são definidos em função do negócio que lhe serve de base, como decorre do disposto no artigo 578.º do Código Civil, implicando a cessão, na falta de convenção em contrário, a transferência das garantias e dos acessórios ao abrigo do disposto no artigo 582.º do Código Civil.
A cessão de créditos apenas produz efeitos em relação ao devedor, desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite - artigo 583.º, n.º 1. Como se escreve no acórdão da Relação de Évora de 27.05.2021, “a notificação e a aceitação não estão sujeitos a forma especial (cfr. artigo 219.º), podendo inclusivamente a aceitação ser efetuada tacitamente (cfr. artigo 217.º), como acontecerá no caso de o devedor combinar com o cessionário qualquer alteração na obrigação (lugar e tempo do cumprimento, garantias, etc.). (6)
Destarte, embora não careça do consentimento do devedor, a cessão apenas lhe será oponível a partir do momento em que mediante uma declaração, judicial ou extrajudicial, o devedor tome conhecimento de que existiu uma alteração na identidade do respetivo credor.
A notificação da cessão ao devedor é, por isso, uma condição de eficácia do negócio e não condição de validade do contrato.
A questão da notificação ao devedor cedido antes da propositura da ação e o seu modo de concretização tem merecido respostas não uniformes por parte da jurisprudência, sendo distinguíveis duas orientações: a que considera que a notificação do devedor pode ser feita através da citação para a ação judicial (7); a que defende que a citação para a ação judicial não pode valer como meio de notificação para a cessão de créditos (8).
De acordo com a primeira orientação, considera-se que a citação para a ação, à semelhança de qualquer notificação “prévia” à ação judicial, cumpre plenamente os fins visados pelo legislador, na medida em que com a citação aquele fica totalmente ciente da existência de um “novo” credor, logo, asseguradas as condições para a prestação ser realizada perante o cessionário.
A orientação oposta, defende que a notificação ao devedor constitui um facto constitutivo da cessão, razão pela qual tem de estar observado à data da instauração da competente ação judicial, sob pena de ineptidão da petição inicial, por outo lado, os efeitos da citação são, exclusivamente, os que se encontram consignados no artigo 564.º do Código de Processo Civil, não consentindo a lei processual a decorrência de outros efeitos.
No caso, com rigor, esta questão não chega a colocar-se.
Como se alcança dos documentos juntos aos autos, o devedor cedido (J. L.) foi notificado da cessão de créditos operada, por carta datada de 08.11.2017.
Da cessão foi ainda notificada a executada e ora embargante L. P. por carta de 14.03.2018.
Por sua vez, o executado e aqui também embargante J. P., teve conhecimento da cessão, pelo menos, com a carta de resolução do contrato de empréstimo e preenchimento de livrança que lhe foi enviada pela cessionária, nessa qualidade ali identificada, datada de 16.07.2020.
Como já deixámos referido, a notificação da cessão ao devedor pode ser feita por qualquer meio, pois que o único elemento constitutivo da eficácia da cessão é o conhecimento do devedor, não exigindo a lei a sua autorização. A lei apenas faz depender a eficácia da cessão em relação ao devedor do conhecimento que este tenha de que o crédito foi cedido e este é o elemento central determinante da eficácia da transmissão perante o devedor. Esse conhecimento pode comprovar-se de formas distintas, seja através da prova da aceitação, da notificação ou do simples conhecimento. (9)
Daqui decorre que, se quanto à executada L. P. dúvidas não restam quanto à sua notificação, cremos que também quanto ao executado J. P. os dizeres insertos na carta de resolução do contrato onde a exequente se assume como cessionária, é meio idóneo e bastante para transmitir o conhecimento da cessão.
Por conseguinte, impõe-se a conclusão de que os embargantes tiveram conhecimento da cessão de créditos, sendo quanto a eles eficaz o negócio.
Apreciada esta questão, importa agora conhecer uma outra suscitada pelos recorrentes que é a de saber se a livrança pode ser validamente transmitida a terceiro por outra forma que não seja o endosso, designadamente através de uma cessão de créditos.
Dos artigos 77º e 11º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL) resulta que a livrança é transmissível pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.
Mais, caso a letra ou a livrança tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, as mesmas só podem ser transmitidas pela forma e com os efeitos de uma cessão ordinária de créditos.
Isto significa que a letra e a livrança não podem ser endossadas se tiverem inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente, mas traduz também que podem ser livremente transmitidas pela forma e com os efeitos duma cessão de créditos (10).
A cessão de créditos, na falta de convenção em contrário, importa a transmissão para o cessionário das garantias e outros acessórios do direito transmitido.
A livrança foi subscrita por J. L. e avalizada pelos embargantes como caução do pagamento da importância em dívida por força do contrato de mútuo oneroso celebrado entre J. L. e o Banco ... S.A.
As partes subscreveram a livrança como caução do pagamento da dívida resultante do mútuo oneroso, pretendendo que a livrança acompanhasse como garantia o crédito resultante do mútuo e não que se autonomizasse da dívida caucionada.
A livrança entrou na posse do exequente através de uma cessão ordinária de créditos.
A transmissão da livrança juntamente com o crédito que a mesma cauciona é válida e legalmente prevista, pelo que a exequente é legítima portadora da livrança, legitimação material a suprir a legitimação formal, já que não consta do próprio título, e pode acionar os seus subscritores pelo seu não pagamento.

b) Preenchimento abusivo do título de crédito

Como questão prévia ao conhecimento da questão posta pelos Recorrentes sobre o preenchimento abusivo da livrança, importa esclarecer que, contrariamente ao por si afirmado, a falta de contestação, no caso, não opera a aceitação dos factos, na medida em que estão em oposição com os expressamente alegados no requerimento executivo. Com efeito, o título executivo estabelece a presunção da existência do direito de credito, e os princípios que enformam os títulos cambiários fazem presumir o direito quanto ao valor, data de vencimento e demais termos apostos no título.
Isto posto.
A livrança em branco é admitida no nosso ordenamento jurídico.
A sua admissibilidade sustenta-se no normativo do art.º 10.º da L.U.L.L., devendo a mesma ser entregue pelo subscritor ao credor conjuntamente com uma autorização de preenchimento (pacto de preenchimento).

No caso em apreço, ao mutuante foi entregue uma livrança avalizada pelos embargantes como garantia do crédito resultante do mútuo (capital e juros) tendo ficado acordado o pacto de preenchimento quanto à data de vencimento, local de pagamento e valores.
Bem analisada a petição dos embargos, verifica-se que os embargantes entrecruzam a alegação do preenchimento abusivo da livrança com a alegação de que a exequente não explica como foi apurado o montante aposto na livrança, chamando à colação o valor do capital mutuado por contraposição ao aposto na livrança e a data de vencimento daquele contrato com a data constante do título de crédito.
Sem razão, porém.
Como vem sendo entendimento jurisprudencial pacifico (11), tendo a livrança sido entregue sem dela constar a data do seu vencimento, para ser preenchida no caso de incumprimento do contrato de mútuo, daí não resulta que a data do vencimento da livrança deva ser precisamente a do vencimento da obrigação garantida pela mesma livrança. Assim, não há forçosamente preenchimento abusivo da livrança quando a data nela aposta como data do seu vencimento não coincida com a data de vencimento da obrigação emergente do empréstimo.
Por outro lado, sabendo-se que os avalistas intervieram no pacto de preenchimento, conferiram ao portador o direito de a preencher em determinados termos que, por regra, são definidos através de um acordo ou contrato - o pacto de preenchimento - pelo qual se definem os termos em que a obrigação cartular irá ficar definida, no que respeita, designadamente, à fixação do seu montante e data de vencimento.
Por isso, estando o portador da livrança em branco legitimado a preencher o seu montante, a liquidez da obrigação cambiária consta do valor expresso no título.
Como se decidiu no acórdão do STJ de 25.05.2017, a certeza, a liquidez e a exigibilidade da dívida incorporada no título cambiário, em relação ao qual foi acertado pacto de preenchimento, nos termos do art.10.º da LULL, alcança-se após o preenchimento e completude do título que, assim, se mostra revestido de força executiva” (12).
É claro que o valor pode não estar conforme ao pacto de preenchimento, mas, em tal caso, impendia sobre os embargantes o ónus de alegar e demonstrar que o valor inscrito na livrança não corresponde à dívida emergente do contrato de mútuo no âmbito do qual a livrança foi subscrita, o que não fizeram.
Não era sobre o exequente que impendia o ónus de alegar que o preenchimento foi feito segundo o acordado, mas antes sobre os executados/oponentes que houve violação desse acordo.
Considerando que a livrança, nos termos expostos, podia ter sido preenchida na data em que o foi, e que o pacto de preenchimento prevê a autorização de preenchimento da mesma com o valor do capital em dívida e juros, não há dúvida que a exequente podia ter preenchido a livrança como o fez, apondo-lhe o valor que aí consta.
Nestes termos, improcede a apelação.
*
IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Guimarães, 03 de Novembro de 2022

Assinado digitalmente por:
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes



1. Disponível em www.dgsi.pt.
2. Cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, 2017, pag.153.
3. Nesse sentido, Abrantes Geraldes, ob. cit, pag. 16).
4. Dias Marques, In Noções Elementares de Direito Civil, 7.ª edição, Lisboa, 1992, pág. 188.
5. Neste sentido, Gil Valente Maia, Julgar on line, dezembro de 2021, pag. 3.
6. Disponível em www.dgsi.pt.
7. São exemplo os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-05-2021 e de 07-09-2021, da Relação de Guimarães de 26.06.2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
8. São exemplo os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-06-2003, da Relação de Lisboa 19-05-2020, da Relação de Coimbra de 19-09-2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
9. Acórdão da Relação de Évora de 27.05.2021, disponível em www.dgsi.pt.
10. Carolina Cunha, In Letras e Livranças, Paradigmas Actuais e Recompreensão de um Regime, pág. 77 a 84.
11. Por todos o acórdão do STJ de 01.07.2003, disponível em www.dgsi.pt.
12. Disponível em www.dgsi.pt.