COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
FACTORES DE CONEXÃO
CAUSA DE PEDIR COMPLEXA
DIREITO À IMAGEM
Sumário

I - São internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma ação de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos mundialmente difundidos, os tribunais do país onde se encontra o centro de interesses do lesado durante o período em que ocorrem os danos provocados por essa ofensa.
II - Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua atividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo.

Texto Integral

Proc. 996/21.9T8PVZ.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim - Juiz 4


Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I – Relatório
Nos autos supra epigrafados foi proferido seguinte despacho:
“Fixo à presente ação o valor de 257.000,00 € - art.º 297, n.º 1, do CPC.

*
Invocou a ré, na sua contestação, a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses para a apreciação da presente ação.
Notificado, o autor pugnou pela improcedência da exceção invocada.
Cumpre decidir.
A incompetência em razão da nacionalidade constitui exceção dilatória, inclusive de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e implica a absolvição da ré da instância – art.ºs 96º, a), 97º, 278º, nº 1, alínea a), 591º, nº 1, alínea d) e 595º, nº 1, alínea a), do CPC.
O autor intentou a presente ação alegando que:
- é jogador profissional de futebol, de nacionalidade portuguesa;
- a ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;
- a ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão:
- a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a E...;
- a ré tem utilizado a sua imagem e as suas características físicas quando produz os jogos objeto dos presentes autos.
O autor sustenta a competência internacional do tribunal português nos elementos de conexão das alíneas a), b) e c) do art.º 62º do CPC.
A competência do tribunal afere-se pelos termos em que a ação é proposta, atendendo-se aos fundamentos invocados e ao pedido formulado, pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida - pedido - e os respetivos fundamentos - causa de pedir, sendo irrelevantes circunstâncias que venham a ocorrer posteriormente.
Haverá em primeiro lugar que verificar se a competência internacional dos tribunais portugueses resulta de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus, considerando o que dispõe o art.º 59º do CPC.
Para a situação dos autos, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13.01.2022, junto pela ré com o seu requerimento de 09.02.2022, “não existe instrumento internacional a considerar sobre a matéria do litigio nem são aplicáveis, apesar de Portugal ser Estado-Membro da União Europeia, regulamentos europeus (designadamente não é aplicável o regime definido pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que revogou o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000)”, atendendo designadamente ao facto de a ré ter a sua sede na Califórnia, Estados Unidos da América.
Como aí também se refere, não tem também aplicação o Tribunal de Justiça da União Europeia, nomeadamente “o acórdão eDate Advertising GmbH (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62009CJ0509&from=IT), que declarou que “1) O artigo 5.º, ponto 3, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que, em caso de alegada violação dos direitos de personalidade através de conteúdos colocados em linha num sítio na Internet, a pessoa que se considerar lesada tem a faculdade de intentar uma ação fundada em responsabilidade pela totalidade dos danos causados, quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do lugar de estabelecimento da pessoa que emitiu esses conteúdos quer nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro onde se encontra o centro dos seus interesses. Esta pessoa pode igualmente, em vez de uma ação fundada em responsabilidade pela totalidade dos danos causados, interpor a sua ação nos órgãos jurisdicionais de cada Estado-Membro em cujo território esteja ou tenha estado acessível um conteúdo em linha. Estes são competentes para conhecer apenas do dano causado no território do Estado-Membro do órgão jurisdicional em que a ação foi intentada”.
É que, conforme já referimos, não tem aqui aplicação pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012 que prevê, como regra geral em matéria de competência, no seu artigo 4º que “1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro”; e no artigo 6º que “1. Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro”.
O princípio geral vigente em sede do Regulamento é o de que a competência tem por base o domicílio do requerido: desde que este tenha o seu domicílio, à data da propositura da ação, dentro de um Estado-Membro, ainda que a nacionalidade seja extracomunitária, os tribunais do Estado-Membro onde se encontra domiciliado são competentes para conhecer do litígio”.
Como aí se concluiu, a ré não tem domicílio num Estado-membro.
E continua: “é certo que existem elementos de conexão especiais em relação ao referido critério geral e que encontram enunciados nas Secções 2 a 7 do Regulamento (cfr. n.º 1 do artigo 5º).
Assim, de acordo com o critério especial previsto no artigo 7º n.º 2 do Regulamento, em matéria extracontratual, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso.
Significa isto que, em matéria extracontratual, nos termos do Regulamento, a ação pode ser proposta, à escolha do autor, tanto no Estado-Membro em que a ré tenha o seu domicílio (critério geral) ou no Estado-Membro do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso (critério especial).
De acordo com a jurisprudência firmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) o conceito de “lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso” refere-se simultaneamente ao lugar da materialização do dano e ao lugar do evento causal que está na origem desse dano, de modo que o requerido pode ser demandado, à escolha do requerente, perante o tribunal de um ou outro destes lugares; mas “segundo essa mesma jurisprudência aquela expressão «lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso», não pode ser objeto de interpretação extensiva, a ponto de englobar qualquer lugar onde possam ser sentidas as consequências danosas de um facto que já causou um prejuízo efetivamente ocorrido noutro lugar, reportando-se, antes, ao lugar onde o lesado direto alega ter sofrido um dano inicial e ao lugar onde os efeitos deste dano se manifestam concretamente, havendo necessidade, em alguns casos, de recorrer às «circunstâncias concretas» do processo para, numa apreciação global, complementar o critério da competência estabelecido no artigo 7º, nº 2, do Regulamento 1215/2012, por forma a assegurar o cumprimento dos objetivos de proteção jurisdicional de ambas as partes e os respeitantes à gestão do processo que estão subjacentes a esta regra” (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/2021, Processo n.º 26412/16.0T8LSB.L1-A.S1, Relatora Conselheira ROSA TCHING, disponível em www.dgsi.pt)
Segundo a jurisprudência do TJUE o dano relevante para efeitos da aplicação do referido preceito é apenas o dano direto, o lugar onde ocorre o dano inicial, o lugar do dano onde ocorreram os resultados diretos da ação ou da omissão que originou o dano; assim, “o lugar da ocorrência do dano direto no sentido da jurisprudência do TJUE será o lugar onde ocorreram os efeitos diretos do facto que gerou a situação de responsabilidade, o lugar onde esses efeitos diretos são produzidos, o lugar que se traduz na violação do direito protegido” (Anabela Susana de Sousa Gonçalves, “O lugar do delito nas atividades ilícitas on line e a delict oriented approach”, Direito e Pessoa no Mundo Digital - Algumas Questões, p.001-p.016, consultar em https://www.trg.pt/gallery/A%20DOS%20DELITOS%20ONLINE%20%20Anabela%20Gon%C3 %A7alves.pdf)”
Ora, no caso dos autos, não só o facto ilícito ocorreu nos Estados Unidos da América, onde segundo o Autor a Ré utilizou indevidamente e sem a sua autorização a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais nos jogos, sua propriedade, que são por si produzidos e comercializados nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, como é também aí, com a produção dos jogos, que ocorre o dano direto, a violação do seu direito”.
Sendo inaplicável o disposto no citado Regulamento, voltamos à norma do art.º 62º do CPC.
Aqui, o tribunal português será competente quando:
- a ação possa ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
- tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;
- o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de acção proposta em território português, ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
O critério ou princípio da coincidência, previsto na alínea a), é o que se baseia na circunstância da ação poder ser proposta em tribunal português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas pela lei portuguesa e que constam dos art.ºs 70º e seguintes do CPC.
Está em casa uma alegada responsabilidade civil extracontratual da ré. E, aqui, seria competente o tribunal correspondente ao lugar onde o facto ilícito ocorreu, nos termos do art.º 71º do CPC.
Ora, o alegado facto ilícito não se verificou na área geográfica da competência deste Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim da Comarca do Porto, pois que o autor caracteriza a atuação da ré alegando que esta utiliza indevidamente a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais em diversos jogos, sua propriedade, denominados FIFA, FIFA MANAGER FIFER, FIFA ULTIMATE TEAM e FIFA MOBILE, que são por si produzidos e comercializados nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, e que são vendidos a consumidores não residentes nestes países através de subsidiárias, destacando-se na Europa a E... que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.
Assim, o facto ilícito e relativo à produção dos jogos ocorreu fora do país e, por isso, de acordo com o referido critério da alínea a), não seria o tribunal português competente.
Também inaplicável é o art.º 80º do CPC, pois que, estando em causa norma de aplicação subsidiária, a aplicabilidade do art.º 71º do CPC exclui que a mesma possa ser convocada.
O tribunal português não é assim competente pela alínea a) do art.º 62º do CPC.
O critério da causalidade, previsto na alínea b) da mesma norma, concede competência ao tribunal português sempre que o facto que serve de causa de pedir na ação tenha sido praticado em território nacional ou, tratando-se de causa de pedir complexa, aqui se tenha verificado um dos elementos da causa de pedir.
Citando novamente o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães a que já nos referimos, citando Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, 2018, p. 202 a 204) “efectivamente, no plano literal do preceito, atenta a sua indistinção e a sua origem histórica, a alínea em apreço abrange qualquer facto causal da procedência do pedido (...) sendo suficiente qualquer conexão objetiva com o nosso País, integrante da causa petendi”.
Aferindo-se a competência internacional dos tribunais portugueses em função da causa de pedir alegada pelo autor, os tribunais portugueses serão internacionalmente competentes se, de acordo com essa alegação, se praticaram actos em território nacional integradores da concreta causa de pedir.
É entendimento pacifico que são pressupostos cumulativos da obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos: a existência de facto voluntário pelo agente, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Bastaria assim que um destes elementos desta causa de pedir complexa se tivessem verificado em Portugal para que este tribunal possa ser internacionalmente competente. E, aqui, assume relevo o pressuposto da responsabilidade civil que é o dano.
Tal como consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.10.2021 (Processo n.º 3239/20.9T8CBR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt) “o facto ilícito imputado à R. no que se reporta à utilização e exploração alegadamente abusiva do seu nome e imagem, verifica-se aquando da criação deste jogo, contendo o nome, outras características pessoais e profissionais e a imagem do jogador, alegadamente sem a sua autorização e com a sua posterior divulgação. (…) A criação e divulgação destes jogos é feita pela R. nos EUA, sendo a partir deste território que serão comercializados por outras empresas, subsidiárias ou não da R., para o resto do mundo, incluindo para Portugal. Mas se a divulgação destes jogos em todo o mundo, será relevante para efeitos de quantificação dos danos e, se esta comercialização e divulgação é feita a nível mundial, não se pode afirmar que se produz em território nacional o dano ou parte relevante dos danos.
Há que não esquecer que o facto constitutivo essencial desta causa se reporta à produção e divulgação destes jogos utilizando a imagem e o nome do A., sem sua autorização e que esta produção e divulgação localizam-se em solo norte-americano, independentemente de o poderem ser posteriormente para todo o mundo, mediante acordos feitos com a proprietária dos jogos, suas subsidiárias, ou por qualquer outro meio (seja por compras online, pela sua utilização posterior em jogos e torneios)”.
O que constitui elemento relevante para atribuição da competência internacional é o local onde ocorreu o dano, onde foram criados e produzidos os jogos, enquanto elemento integrador da causa de pedir, e não o local onde a divulgação dos jogos ocorre com a sua venda ao consumidor final (e que pode verificar-se em qualquer parte do mundo).
O tribunal português não é assim internacionalmente competente, considerando a alínea b) do art.º 62 do CPC.
A alínea c) deste normativo consagra o critério ou princípio da necessidade que se traduz em os tribunais portugueses terem competência internacional quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação intentada em tribunal português ou quando a sua propositura no estrangeiro constitua apreciável dificuldade para o autor, sendo de todo o modo imprescindível que entre a ação a propor e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento poderoso de conexão pessoal ou real.
Ora, na situação em apreço, não se vislumbra razão para que o autor esteja impossibilitado de propor a ação nos tribunais americanos, podendo o direito que invoca tornar-se efetivo por meio de ação proposta fora de território português.
Também por aqui não se vê que a alínea c) do art.º 62º do CPC atribua, na situação em apreço, competência aos tribunais portugueses.
Em última instância, o autor fundamenta a competência dos tribunais portugueses na circunstância de ter em Portugal a sua vida organizada e estabilizada, o centro dos seus interesses, não sendo, porém, este um critério atribuidor de competência ao tribunal português.
Do mesmo modo, a jurisprudência referida na decisão que cita no sentido de ser por vezes difícil perceber-se onde se materializa o dano quando está em causa a violação online de direitos de personalidade, justificando que seja considerado como elemento de conexão o local de residência do lesado, não se verifica na situação dos autos, pois que a atuação que é imputada à ré, de utilização sem autorização da sua imagem, nome e características pessoais e profissionais ocorre com clareza nos Estados Unidos da América com a criação e produção dos jogos FIFA, FIFA MANAGER, FIFA ULTIMATE TEAM e FIFA MOBILE
Em face de tudo quanto ficou exposto, julgo procedente a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, absolvendo a ré da instância.
Custas pelo autor - art.º 527º do CPC. Notifique.
Registe.”

O autor AA veio interpor recurso, concluindo:
a) A decisão recorrida é, salvo o devido respeito, que aliás é muito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados.
b) Entende o Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida.
c) O ora Recorrente não se conforma com a sentença proferida pelo Tribunal a quo, entendendo que a mesma padece de vícios, no que à decisão proferida sobre a sua incompetência internacional, já que não restam dúvidas da competência internacional do Tribunal a quo para o julgamento do presente litígio.
d) A ré produziu e comercializou, fisicamente e online, milhões de jogos de vídeo contendo a imagem, nome e demais características pessoais do Autor, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica.
e) Tal conduta constituiu uma apropriação da imagem do Autor, que tem um valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado.
f) O Autor – ao contrário do que a decisão recorrida refere - substanciou em factos a ocorrência de um dano, e os danos causados ao Autor (patrimoniais e não patrimoniais), por acção da ré, apenas a esta podem ser imputáveis, por ela a única autora do facto danoso (cfr. artigos 562.º, 563.º, 564, n.º 1, 565.º, 566.º n.ºs 1, 2 e 3, todos do Código Civil e ainda artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil).
g) Ao contrário do que a decisão recorrida refere, esses danos verificam-se no nosso país, porquanto os jogos são comercializados, distribuídos, jogados e a imagem, nome e demais características do Autor são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também em Portugal.
h) Isso mostra-se devidamente alegado nos artigos 15.º, 18.º, 102.º e 195.º, da petição inicial.
i) É, pois, absolutamente evidente que são praticados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção.
j) A obrigação de reparação, no caso concreto do Autor, resulta de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial - a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. (negrito e sublinhado nossos).
k) A obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem. Tal como a decisão recorrida, salvo o devido respeito, ignora ostensivamente!
l) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação do factor de conexão previsto na alínea b) do artigo do artigo 62.º do Código de Processo Civil: ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram (à causa de pedir).
m) Neste sentido, e no que respeita a situações análogas já analisadas pelo TJUE quanto a esta matéria salientam-se os acórdãos Shevill e eDate Advertising GmbH, cujos textos, para efeitos de exposição, aqui se dão por reproduzidos e ainda a doutrina já fixada no douto acórdão do STJ de 25- 10-2005.
n) Sendo que, ao contrário do referido pelo Tribunal a quo, tem aplicação o regime previsto no Regulamento (EU) n.º 1215/2012, por se verificarem os elementos de conexão especiais previstos nas suas Secções 2 a 7, designadamente, no artigo 7.º, n.º 2, uma vez que o dano sofrido pelo Autor é, pois, um dano inicial e não consecutivo: resulta diretamente do evento causal (a utilização da sua imagem pela Ré nos seus jogos).
o) Para além disso, o Autor é cidadão português, tem aqui o seu domicílio e os seus familiares mais próximos, pelo que o seu centro de interesses é em Portugal.
p) Sendo irrelevante o facto de a distribuição dos jogos ser feita na prática por uma subsidiária da ré, pois é esta a proprietária dos jogos e é só ela que aufere os avultados lucros resultantes da sua comercialização.
q) O que está em causa é a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do Autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente.
r) Pelo que, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em articulação com a alínea a) do artigo 62.º do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
s) Tanto mais que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.
t) E, estando em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil, não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.
u) Tanto mais que, nos autos é arguida pelo Autor, aqui Recorrente, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa).
v) Ora, a necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.º, alínea c), do Código de Processo Civil, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
w) Ora, in casu, essa praticabilidade e exercício está irremediavelmente comprometida, com a decisão agora proferida e de que se recorre.
x) O princípio da necessidade vale, assim, como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.
y) Por outro lado, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.
z) Ora, o Autor toda a sua vida organizada e estabilizada em Portugal, pelo que não tem qualquer nexo estreito com outro país, muito menos com os Estados Unidos da América.
aa) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua distribuição mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.
bb) Sem necessidade de mais considerações, estão os Tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.
cc) Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
dd) Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto nas disposições firmadas no artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento 1215/2012, nos artigos 62.º, alíneas a), b) e c), 71.º, n.º 2 e 80.º n.º 3, todos do Código de Processo Civil, o artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 70.º e 72.º do Código Civil.
Termos em que deverá o presente recurso proceder, por provado, e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgando internacionalmente competentes os tribunais portugueses, prossiga
a tramitação dos autos, fazendo-se assim a Costumada JUSTIÇA!

A ré K... Inc. apresentou contra-alegações concluindo:
a) O presente recurso de apelação, interposto pelo autor, visa a revogação da sentença de 06.04.2022, pela qual se declarou procedente a exceção de incompetência internacional.
b) O recurso interposto pelo autor deverá ser rejeitado, improcedendo o único fundamento invocado: erro de julgamento na apreciação dos fatores de conexão do art.º 62.º do CPC.
c) Improcedência que se justifica, desde logo, por quatro razões centrais:
(i) A ré tem sede fora da EU;
(ii) Nenhum ato, territorialmente situado em Portugal, é imputado pelo autor à ré;
(iii) Nenhum dano concreto é invocado pelo autor, em toda a petição inicial, sob qualquer forma e, bem assim, localizado em Portugal; e
(iv) A venda de jogos em Portugal – além de não ser imputada à ré, cuja atuação o autor circunscreve aos territórios dos EUA, Canadá e Japão – não assume conexão relevante para que se possa avocar a competência dos tribunais portugueses.
d) A exceção de incompetência internacional submetida à apreciação deve ser dirimida, exclusivamente, à luz do regime interno, por inexistir qualquer instrumento internacional de regulação do foro aplicável, incluindo de fonte europeia.
e) O regulamento europeu n.º 1215/2012 não é aplicável ao caso em apreço, porque quer as disposições gerais (art.º 4.º, n.º 1 e 6.º, n.º 1), quer as regras de competências especiais (art.º 7.º, n.º 2) apenas se aplicam quando a entidade demandada tem domicílio num Estado-Membro.
f) A ré tem sede nos EUA, no Estado da Califórnia, pelo que está afastada do âmbito deste regulamento europeu, bem como da aplicação de qualquer jurisprudência densificadora de conceitos previstos em regulamentação europeia.
g) Ainda que se quisesse considerar os ensinamentos do TJUE – o que não se concede –, à luz dessa jurisprudência consolidada, a presente causa não contém qualquer alegação factual que demonstre a existência da ocorrência de danos em Portugal, que permitam a avocação de competência internacional por banda dos tribunais portugueses.
h) A competência internacional, neste pleito, deve ser apreciada exclusivamente à luz da fonte interna, prevista no art.º 62.º do CPC e respetivos três fatores de conexão:
(i) alínea a): quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
(ii) alínea b): quando foi praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram;
(iii) alínea c): quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
i) A apreciação destes fatores centra-se exclusivamente no teor da petição inicial – art.º
38.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
j) Para esta tarefa, assumem-se como relevantes os seguintes factos ali invocados:
Quanto à ré:
(i) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;
(ii) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não
alega que a ré o faz em Portugal (artigo n.º 1 e 2 da petição inicial);
(iii) O autor refere que “…a ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca,
na Europa, a E...…” (artigo n.º 2 da petição inicial), o que atesta que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa;
Quanto ao facto ilícito imputado à ré:
(iv) Em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA, FIFA MANAGER e FIFA MOBILE, chegando mesmo a reconhecer, quanto
a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros (artigo 26.º e 37.º da petição inicial).
(v) A compra efetuada pelos mandatários do autor foi à empresa “C... Unipessoal Lda.”, com sede no Porto e não à ré, sendo que na fatura de compra nem sequer constam os jogos que o autor refere como incluindo a sua imagem (artigo n.º 38 da petição inicial e respetivo Doc. 15).
(vi) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, como ocorrendo em Portugal.
k) O fator de conexão da alínea a) refere-se às regras de competência territorial da nossa ordem jurídica, sendo aplicável, às ações de responsabilidade civil, o art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o lugar onde o facto ocorreu.
l) Tendo o autor – e bem – circunscrito a atuação da ré aos territórios dos EUA, Canadá e Japão, não foi imputado à ré a prática de qualquer facto em Portugal, o que por si só
afasta a verificação da alínea a) do art.º 62.º do CPC.
m) Acresce que, como se refere na sentença sob crise, “…o alegado facto ilícito não se
verificou na área geográfica da competência deste Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim da Comarca do Porto, pois que o autor caracteriza a atuação da ré alegando que esta utiliza indevidamente a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais em diversos jogos, sua propriedade, denominados FIFA, FIFA MANAGER FIFER, FIFA ULTIMATE TEAM e FIFA MOBILE, que são por si produzidos e comercializados nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão (…) o facto ilícito e relativo à produção dos jogos ocorreu fora do país e, por isso, de acordo com o referido critério da alínea a), não seria o tribunal português competente.”.
n) A aplicação do critério de competência em razão do território mostra que os tribunais
portugueses são incompetentes para o pleito desenhado na petição inicial.
o) Quanto ao fator de conexão da alínea b) – facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que a integram –, não se encontra alegado na petição inicial qualquer ato imputado à ré em Portugal.
p) O autor não alega que o putativo facto ilícito – produção dos jogos – ocorreu em Portugal, não invoca qualquer dano que tenha ocorrido em Portugal, nem alega nenhuma circunstância integradora dos restantes requisitos da responsabilidade civil (culpa ou nexo de causalidade) localizada em Portugal.
q) Na verdade, não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco no território nacional.
r) Mais, em toda a petição inicial, não foi alegado um único facto com conexão significativa com Portugal.
s) Na tese do autor, vertida na petição inicial, se o dano equivale ao facto ilícito, então o
dano inicial apenas poderá ter ocorrido no local da produção dos jogos, i.e., em território estrangeiro.
t) A comercialização plurilocalizada dos jogos, na Europa por entidades que não a ré, não pode ser perspetivada como um fator relevante ou significativo no contexto da causa de pedir e que atribua relevância suficiente para a afirmação da competência dos nossos tribunais.
u) Como se transcreve na sentença objeto de recurso, “… O que constitui elemento relevante para atribuição da competência internacional é o local onde ocorreu o dano, onde foram criados e produzidos os jogos, enquanto elemento integrador da causa de pedir, e não o local onde a divulgação dos jogos ocorre com a sua venda ao consumidor final (e que -se em qualquer parte do mundo).”.
v) A comercialização dos jogos FIFA, a nível mundial, revela ligação identicamente ténue com todos os territórios onde ocorre e, nessa medida, não assume conexão minimamente relevante que justifique a atribuição de competência internacional a Portugal.
w) Na verdade, a consideração da venda, por terceiros, como fator de conexão geraria uma situação de conflito positivo de competência internacional, já que qualquer tribunal do mundo, considerar-se-ia competente para esta lide, hipótese que as normas de competência internacional visam evitar.
x) A alegação do autor, posterior à petição inicial, acerca da ocorrência de danos globalmente e, por isso, também no seu domicílio, apelando ao conceito de centro de interesses, não permite colmatar a falta de invocação de quaisquer danos em Portugal, por três motivos:
(i) apenas a factualidade constante da petição inicial é relevante para a averiguação da competência;
(ii) não são alegados danos concretos e que muito menos se verifiquem em Portugal;
(iii) a alegação de que o dano ocorre em todo o mundo e também em Portugal não traduz, como vimos, conexão suficiente ou relevante com a jurisdição portuguesa.
y) Acresce que a invocação de um centro de interesses do autor em Portugal (figura desenvolvida pelo TJUE a propósito de normas europeias), além de ser inaplicável a estes autos e suscitada em momento posterior à petição inicial, não é suscetível de preencher os requisitos de competência internacional dos tribunais portugueses, porque o facto ilícito e a produção do dano, a existirem, situam-se nos EUA onde a imagem do autor foi aposta nos jogos.
z) Daí que se conclua que não se verifica o fator de conexão previsto na alínea b) do art.º 62.º do CPC, já que inexiste alegação factual sobre a causa de pedir ou qualquer facto que a integre, praticado em Portugal.
aa) Idêntica conclusão se atinge ao apreciar o fator de conexão da alínea c): não só o autor não invocou qualquer razão que, mesmo em tese, demonstre que o seu direito não possa tornar-se efetivo se não por meio de uma ação em Portugal, como da petição inicial resulta a alegação da existência dessa tutela judicial nos EUA.
bb) O direito invocado pode tornar-se efetivo por meio de ação proposta em território estrangeiro, sem que tal constitua uma dificuldade apreciável para o autor, como se entendeu na decisão posta em crise, sendo irrelevantes nesta sede as questões de conveniência logística resultantes do alegado domicílio do autor ou dos seus familiares.
cc) Não se verificando, em suma, nenhum fator de conexão legal que justifique a avocação de competência internacional dos tribunais portugueses para estes autos.
dd) Em síntese, acompanhando o sentido decisório da sentença proferida pelo Tribunal a quo, e, bem assim, a jurisprudência dos tribunais portugueses em lides idênticas, os factos alegados pelo autor não revelam a verificação de quaisquer fatores de conexão relevantes que atribuam competência internacional à ordem jurídica Portuguesa.
ee) Devem por isso improceder todas as conclusões do recurso do autor.
Nestes termos, requer-se a Vossas Exas., face a tudo o que foi adrede expendido, que se dignem considerar improcedente o recurso, confirmando a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se os tribunais portugueses são ou não internacionalmente competentes para conhecer da presente acção.


II – Fundamentação de facto
Para decisão do recurso releva a alegada factualidade que se extrai do relatório supra e ainda a que resulta do trecho da petição inicial que se transcreve.
“(…) I - DOS FACTOS
1.ºA Ré K... Inc, através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interactivo.
2º Por sua vez, pelo mundo, a Ré conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a E..., pessoa colectiva registada no Registo de Pessoas Colectivas de Genebra com o número CH-...-.......-. e sede em ..., Suiça, a qual é uma empresa que opera como subsidiária (subdivisão) daquela, e que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.
3.º O Autor é um jogador de futebol de nacionalidade Portuguesa nascido a .../.../1989, em ..., Brasil.
4.º O Autor tem uma longa e ilustre carreira como jogador de futebol profissional, sobejamente conhecido no meio do futebol, tendo exercido a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses, dedicando-se inteiramente à prática desportiva do futebol, com a qual sempre se sustentou a si e à sua família.
5.º Na qualidade de jogador profissional de futebol, como é normal, o Autor conta com a exposição pública da sua imagem, tanto nos espectáculos desportivos, como fora deles, em participações televisivas, de radiodifusão, meios virtuais etc.
6º Cabe mencionar que o Autor actuou em centenas de partidas oficiais como profissional e sempre se destacou na posição de Defesa Central, como é conhecido internacionalmente, tendo actuado no ... (Brasil), ..., ..., ..., ..., ... e ... (Estados Unidos da América), entre outros, algo detalhado em pormenor, tal como as competições em que participou e o seu palmarés, em páginas de internet da especialidade, demonstrando a notoriedade do Autor, representadas no Documento 1 1.
7.º Por ter representado alguns dos mais importantes clubes portugueses, pelo número de jogos numa inusitadamente longa carreira, chegando a ser designado Capitão de Equipa tal o respeito que granjeou, podemos afirmar que o Autor se trata de um dos mais relevantes personagens do mundo do futebol a actuar em Portugal neste século.
8.º Conforme resulta, também, do Doc. 1 Autor esteve vinculado aos seguintes clubes e nas seguintes épocas:
- 2020/21 – ...
- 2019/20 – ...
- 2018/19 – ... e ... (EUA)
- 2017/18 - ...
- 2016/17 – ...
- 2015/16 - ...
- 2014/15 - ...
- 2013/14 - ...
- 2012/13 – ...
- 2011/12 – ...
- 2010/11 - ...
- 2009/10 – ...
9.º Numa extensa carreira de jogador, que dura até à atualidade, os títulos obtidos nas equipas que representou em Portugal, tais como: vencedor de uma Taça de Portugal e vencedor de uma Taça da Liga, alcançando grande notoriedade e sólida reputação.
10.º O Autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais forame continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 202 FIFA MANAGER FIFA (inicialmente designado Total Club Manager), nas edições 2012, 2013 e 2014, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT nas edições 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, e FIFA MOBILE, nas edições 2020 e 2021, todos propriedade da Ré.
11.ºO Autor jamais concedeu autorização expressa, ou sequer autorização tácita, a quem quer que fosse, para ser incluído nos supra identificados jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, i.e. FIFA, FIFA MANAGER, FIFA ULTIMATE TEAM – FUT e FIFA MOBILE.
12.º E importa salientar, que tão pouco conferiu poderes aos Clubes, para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome, especificamente para jogos electrónicos, jogos de vídeo, aplicativos, ou quaisquer outros jogos online ou offline, em qualquer tipo de plataforma.
13º A Ré é uma empresa mundialmente reconhecida pela produção e desenvolvimento de jogos para computadores, jogos de vídeo e aplicações diversas, conforme notícia divulgada no ano de 2010, conta com uma facturação estrondosa: “A marca no mundo
Atualmente a E..., segunda maior produtora e desenvolvedora de jogos para computadores, vídeo games (Wii, Xbox360 e PS3), dispositivos móveis (iPhone, iPade celulares) e Internet, têm seus produtos distribuídos em mais de 100 países ao redor do mundo. Com faturamento superior a US$ 4 bilhões, a EA é responsável por jogos de extremo sucesso como a série The Sims, jogo de computador mais vendido de todos os tempos com mais de 150 milhões de cópias desde seu lançamento. O EA ORIGIN, serviço de distribuição online de jogos da empresa, já conta com mais de 13 milhões de usuários registrados. Em 2011, a empresa teve 27 jogos que venderam mais de um milhão de cópias, entre os quais The Sims™, Madden NFL, FIFA Soccer, Need for Speed™, Battlefield™, Star Wars™: The Old Republic™ e Mass Effect™.”
Notícia disponível em http://....blogspot.com/search?q=electronic+arts)
E mais recentemente:
(…) Outro jogo grande da EA, foi FIFA 19. Neste caso, o título de futebol vendeu 20 milhões de unidades em todo o mundo, representando um crescimento de 3 milhões de unidades, face ao jogo do ano anterior. Embora positivas, estas vendas também ficaram aquém das expectativas para esse jogo.
Contudo, 2019 pode demonstrar-se mais risonho para os seus investidores. Apontado para este Outono, teremos três grandes jogos previstos para o terceiro trimestre fiscal, de Outubro até Dezembro. Como saberão, os anos fiscais para estas empresas começam a 1de Abril de cada ano, com o actual a terminar a 31 de Março.
(…)
Como não podia deixar de ser, FIFA 20 da L... também está em produção, prometendo novidades assinaláveis para o jogo base e para o popular modo FIFA Ultimate Team. E é bom que a equipa de produção se esmere porque o rival está de olho. Ao todo, a K... reportou um lucro abaixo das expectativas neste ano fiscal. Dos 1.725 milhões de dólares de vendas, a empresa reportou “apenas”1.609 milhões, sendo 908milhões vindos do mercado digital e 381 milhões do retalho.
São números impressionantes, de facto, de uma empresa lucrativa. (…)”
Notícia de 06/02/2019, in WASD consultável em ....
15.º Acrescente-se à informação acima, os dados constantes nos documentos 22 e 33, os quais referem os elevados resultados financeiros da Ré, decorrentes das actividades exploradas, entre elas, através dos jogos de vídeo identificados nesta petição e que se tornaram mundialmente conhecidos, de modo que a repercussão da imagem do Autor não se insere apenas ao âmbito nacional, mas é utilizada pela Ré a nível global. Pelo que, sendo o dano a própria utilização não autorizada e indevida da imagem do Autor, o facto danoso ocorre, também, em Portugal.
16.º A título de exemplo, refira-se que a facturação da Ré, para o ano de 2010, foi na ordem dos US$ 4 mil milhões (quatro mil milhões de dólares americanos).
17.º Enquanto no ano de 2018, a Ré teve um rendimento resultante do total de vendas na ordem dos US$ 5,15 mil milhões (cinco mil cento e cinquenta milhões de dólares americanos), cfr.doc. 4 e 5.
18º O Autor viu a sua imagem ser retratada e o seu nome divulgado, sem o seu consentimento, em milhões de jogos de vídeo (por exemplo o jogo FIFA 12 vendeu 5 milhões de unidades em apenas 30 dias por todo o mundo, cfr. doc. 6).
19.º A Ré é uma poderosa multinacional com milhares de milhões de dólares de lucro, que vem a utilizar a imagem e do nome do Autor, para divulgar e disseminar a venda dos jogos FIFA e FIFA MANAGER, sem a devida autorização.
20.º O documento 7 prova que a Ré estava avaliada em mais de 23 mil milhões de Dólares Americanos em Maio de 2019.
21.º No ano de 2019 a Ré teve um valor líquido de 1.725 milhões de dólares em vendas, sendo 908 milhões vindos do mercado digital e 381 milhões do retalho.
22.º Acresce que, os jogos electrónicos são lançados anualmente, pelo que novas versões são lançadas no mercado todos os anos, permitindo actualizações semanais via internet, fazendo com que o público consumidor de tais produtos seja levado a adquirir as novas versões dos jogos, motivo pelo qual o dano sofrido pelo Autor é renovado a cada ano, paralelamente ao facto de que a Ré, com as novas versões, aufere rendimentos, com um consequente crescimento da sua facturação.
23.º Portanto, a exploração indevida da imagem e do nome do jogador Autor é renovada a todos os anos por via do lançamento de novas versões dos jogos
24º Ora, no caso dos autos, a Ré está a utilizar indevidamente a imagem e o nome do Autor, pelo menos, desde 18 de outubro de 2011 (data de lançamento do jogo de vídeo FIFA Manager 2012) até aos dias de hoje.
25.ºE, tais jogos, mesmo de anos anteriores, continuam a ser difundidos e vendidos, em Portugal e em todo o mundo, sendo que as versões mais antigas dos jogos FIFA e FIFA MANAGER continuavam a ser vendidas em 2019, por exemplo, conforme documentos 8 e 9 ora juntos, e, portanto, continuam no mercado.
26.º Pouco importa, se as antigas versões dos jogos são comercializadas por terceiros, porque a Ré já auferiu lucro com a venda de tais versões.
27.ºAdemais, a Ré procede ao relançamento de versões mais antigas dos jogos, conforme prova o doc. 10, que se junta.
28.º Para além disso, os jogos da Ré são ainda recorrentemente utilizados para a realização de torneios a nível nacional e internacional, organizados pelas mais diversas entidades.
29.º Isso mesmo, sucedeu agora em Portugal, por exemplo, em que a própria Liga Profissional de Futebol promoveu um torneio denominado “FIFA 20”, em que cada clube participante foi representado por um dos seus jogadores, cfr. doc. 11 que se junta.
30º Outro exemplo, digno de nota pela exposição mediática e consequente retorno pecuniário da divulgação feita em benefício da Ré, será a realização de diversos torneios organizados por canais de televisão e outros meios de comunicação social, que implicam a exposição da imagem do Autor ao público em geral, não apenas aos compradores do jogo, como é exemplo o torneio organizado pelo canal Eleven Sports, cfr. Doc. 12 que se junta.
31.º Aliás, mais se diga que a própria Ré organiza e patrocina um desses torneios internacionais, designado por “FIFA Global Series”, onde participam aficionados de jogos online, provenientes de todo o mundo, cfr. Doc. 13 que se junta.
32.º Tirando partido do maior distanciamento social imposto, com a consequente limitação ao espectáculo desportivo real, encontrou a Ré, com evidentes propósitos comerciais, outras formas de chegar à generalidade do público, como atestam declarações doCEO da L... “Queremos juntar a comunidade mundial de futebol com o torneio L... FIFA 20 Stay and Play, para que milhões de fãs possam ter a oportunidade de verem os seus clubes preferidos e jogadores profissionais a jogar – mesmo que longe", cfr, Doc. 14 que se junta.
33.º É através de iniciativas que visam substituir o espectáculo real por um “espectáculo virtual” de enorme exposição mediática, com intervenção de jogadores reais, que pretendem publicitar o seu produto, mas sempre alicerçado na exposição abusiva porque não autorizada da imagem do Autor e outros.
34.º Pelo que, também por aqui o Autor vê a Ré utilizar a sua imagem e nome, sem a devida autorização, para divulgar e disseminar a venda dos seus jogos e, consequentemente, lucrar com isso. (…)”

III – Fundamentação de direito
A questão colocada consiste em saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciação e decisão da acção proposta.
A competência em geral é a medida da jurisdição de um tribunal e, particularmente, a competência internacional é a “fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto em face dos tribunais estrangeiros para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras”- vide Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 198.
De acordo com das disposições conjugadas dos artigos 37º e 38º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) e artigo 60º do CPC, cabe á a lei de processo fixar os factores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais, fixando-se a competência no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei; bem como as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.
Os Estados fixam os elementos de conexão que consideram relevantes para a atribuição de competência para julgar determinados litígios, dispondo o artigo. 59º CPC do CPC que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º, tudo sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais.
Assim, a competência internacional dos tribunais portugueses depende, em primeiro lugar, do que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus, sendo que no nosso Ordenamento Constitucional - artigo 8º - vigora o princípio da recepção automática das normas e princípios de direito internacional geral e comum e, bem assim, das normas constantes de convenções internacionais vinculativas do Estado Português, ou seja, dos tratados e acordos internacionais que abranjam Portugal.
O artigo 62º do CPC determina os factores de conexão elegidos e que são: o da coincidência [alínea a)], o da causalidade [alínea b)] e o da necessidade [alínea c)], considerando-se que a sua verificação não tem de ser conjunta ou cumulativa, bastando a verificação de um dos factores, ainda que isolado, para que haja competência dos tribunais portugueses.
O artigo 63º do CPC refere-se às situações que são da competência exclusiva dos tribunais portugueses.
De tudo resulta que o primeiro passo consiste em apurar se a matéria em questão está abrangida por algum regulamento europeu ou por outro instrumento internacional.
Estamos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual em que o autor, jogador profissional, se queixa de que a ré produziu e comercializou, fisicamente e online, milhões de jogos de vídeo contendo a sua imagem, nome e demais características pessoais, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica.
A questão colocada tem sido objecto de inúmeras acções e a competência internacional dos tribunais portugueses tem sido objecto de ampla controvérsia.
Porém, é consensual que não é directamente aplicável o regime definido pelo Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, que revogou o Regulamento (CE) n.º 44/2001, de 22/12/2000.
Este Regulamento estabelece o princípio geral de que a competência tem por base o domicílio do requerido: desde que este tenha o seu domicílio, à data da propositura da acção, dentro de um Estado-Membro, ainda que a nacionalidade seja extracomunitária, os tribunais do Estado-Membro onde se encontra domiciliado são competentes para conhecer do litígio.
E no seu artigo 6º institui que “1. Se o requerido não tiver domicílio num Estado-Membro, a competência dos tribunais de cada Estado-Membro é, sem prejuízo do artigo 18.º, n.º 1, do artigo 21.º, n.º 2, e dos artigos 24.º e 25.º, regida pela lei desse Estado-Membro”.
Ora, desde logo se observa que a ré não tem domicílio em nenhum Estado-Membro, mas antes tem a sua sede na Califórnia, Estados Unidos da América.
Não estando a matéria em causa abrangida por qualquer das situações previstas no artigo 63º, nem se tendo aduzido haver entre as partes qualquer pacto atributivo de jurisdição, a solução tem de passar por apurar se existe algum elemento de conexão à luz do artigo 62º do CPC.
E é aqui que reside o dissenso jurisprudencial.
A decisão seguiu a posição que tem sido defendida, por exemplo, no Tribunal da Relação de Guimarães no acórdão citado; no Tribunal da Relação de Évora de 12-05-2022, proc. nº 4239/20.4T8STB.E1; e no Tribunal desta Relação do Porto de 10-02-2022, proc. nº 637/20.1T8PRT.P1 e de 08-06-2022, proc. nº 1579/20.6T8PVZ.P1, todos em www.dgsipt.
Importa referir ser indiscutível que a competência do tribunal deve ser apreciada em face dos termos em que a acção é proposta, ou seja, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir, não dependendo da legitimidade das partes nem da procedência da acção
Neste entendimento, considerou-se na decisão que, internamente, nos termos do disposto no artigo 71.º, n.º 2 do CPC, a acção deve ser proposta no tribunal correspondente ao lugar onde o facto ocorreu. E que o facto ilícito que o autor imputa à ré é a produção de jogos de vídeo, com a utilização da sua imagem, sem consentimento nem autorização, produção essa que, de acordo com a própria alegação do autor, ocorreu nos EUA, não se verificando, no caso, o factor de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previsto na al. a) do artigo 62º do CPC.
Quanto ao factor da al. b) - critério da causalidade – seguiu-se a tese de que o dano resulta da própria utilização não autorizada e indevida da imagem e verifica-se pela própria criação dos jogos contendo o nome e imagem do autor, alegadamente sem o seu consentimento. Assim, a maior ou menor divulgação ou comercialização destes jogos apenas potenciam ou agravam danos que para o autor resultavam já da utilização da sua imagem nestes jogos, mas não constituem em si um dano autónomo.
Diz-se que a criação e divulgação destes jogos é concretizada pela ré nos EUA, sendo a partir deste território que serão comercializados por outras empresas, subsidiárias ou não da ré, para o resto do mundo. Que a divulgação destes jogos em todo o mundo será relevante para efeitos de quantificação dos danos mas que não se pode afirmar que se produz em território nacional o dano ou parte relevante dos danos.
Enfatiza-se que não é o local, ou um dos locais onde essa divulgação ocorre que confere a competência internacional aos tribunais portugueses. Que não é o local, ou um dos locais onde o jogo é vendido ao consumidor final que constitui o elemento relevante para atribuição da competência internacional, mas antes o local onde o referido jogo foi criado e posto em circulação, por ser nesse local que ocorreram os factos constitutivos do direito invocado pelo autor.
Conclui-se não se verificar este factor de atribuição da competência internacional.
Quanto ao factor da al. c) - critério da necessidade -, o qual redunda numa cláusula de salvaguarda para obviar a que o direito a exercitar fique desprovido de garantia judiciária, ou seja, que ocorra uma situação objectiva de denegação de justiça, incluindo os casos de impossibilidade absoluta e relativa ou dificuldade em tornar efectivo o direito por meio de acção instaurada em tribunal estrangeiro, também se pondera não existir porque o direito indemnizatório invocado poderá tornar-se efectivo por meio de acção proposta em território norte-americano, sem que tal constitua uma dificuldade apreciável para o autor.
Considerou-se também ser de afastar toda a jurisprudência desenvolvida neste âmbito pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
E o resultado deste posicionamento é o da absolvição da ré da instância visto que a incompetência internacional é uma forma de incompetência absoluta, e, como tal, uma excepção dilatória de conhecimento oficioso.
Recentemente o STJ veio adoptar uma análise diferente enunciada no acórdão de 24-05-2022, proc. nº 3853/20.2T8BRG.G1.S1 ao qual se seguiram outros arestos no mesmo sentido, designadamente o de 07-06-2022, proc. nº 24974/19.9T8LSB.L1.S1, em www.dgsi.pt.
Sinteticamente, dir-se-á que se teve em conta a jurisprudência que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem proferido em questões idênticas sob a sua alçada.
Assim, no dito acórdão de 24-05-2022 consignou-se:” Na resolução da questão que é colocada neste recurso, designadamente na aplicação do critério da causalidade constante do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, iremos seguir de perto a linha definida por esta jurisprudência, não só porque a isso aconselha a preservação da coerência e harmonia do nosso ordenamento jurídico, mas também porque reconhecemos nessa linha um equilíbrio ponderado da valorização dos critérios a adotar na determinação do(s) tribunal(ais) que se encontra(m) em melhores condições para administrar a justiça, numa situação de violação de direitos de personalidade através de meios de divulgação global. Note-se que a valorização do local onde se situa o centro de interesses do lesado, como um dos elementos de conexão que poderá determinar a competência internacional dos tribunais desse país, não significa que se despreze o denominado centro de gravidade do conflito, uma vez que a aplicação daquele critério poderá ser afastada sempre que se verifique que a dimensão dos danos localizados no país do foro é diminuta, não sendo aí que previsivelmente se encontra um número significativo das provas dos factos que fundamentam a pretendida responsabilização.

Conforme já acima tínhamos concluído, dado estarmos perante uma ação com uma causa de pedir complexa, do ponto de vista da competência jurisdicional, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, podem constituir critérios de vinculação quer o lugar do evento causal, quer o lugar onde o dano se materializou, podendo cada um deles, segundo as circunstâncias, revelar-se especialmente útil, do ponto de vista da prova e da organização do processo, para se determinar qual é o tribunal ou tribunais que se encontram em melhores condições para proferir uma decisão de mérito informada.
Relativamente ao lugar onde ocorreu a ação causal do dano, há que ter em consideração, que a ação violadora do direito ao nome e à imagem, através de um conteúdo divulgado de forma difusa por todo o mundo, compreende não só a produção dos videojogos em causa, processo em que se inclui o nome e se representa a imagem num determinado suporte físico ou digital, mas também a sua exposição pública através da comercialização mundial generalizada desses suportes [19].
….
É sobretudo neste ponto que nos afastamos da tese do acórdão recorrido e dos demais acórdãos da Relação acima referenciados na nota 1. Os danos na ofensa aos direitos de personalidade ao nome à imagem são realidades distintas do ato lesivo e claramente diferenciadas quando este é apenas resumido à atividade criadora do suporte que contém o conteúdo lesivo, não se considerando a atividade de divulgação púbica generalizada.
Quanto ao lugar onde os danos invocados pelo Autor se verificaram, revelando-se uma tarefa impossível avaliar com certeza e fiabilidade os danos causados em cada um dos países onde o conteúdo que utilizava o seu nome e imagem foi exposto, deve seguir-se o critério apontado pela jurisprudência do TJUE, segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nestas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos sofridos satisfaz o objetivo da boa administração da justiça.
…..
Na presente ação, durante os anos em que o Autor situa a violação do direito ao seu nome e imagem (desde finais de 2009, pelo F... e finais de 2018, pelo F...), com exceção das épocas desportivas de 2013/2014 e 2014/2015, que o Autor jogou numa equipa romena, o seu centro de interesses localizava-se em Portugal, uma vez que foi aí que o Autor praticou, profissionalmente, a sua atividade desportiva.
Esta localização presumida dos danos pelos quais o Autor responsabiliza a Ré é confirmada pelo tipo de danos diretos, e não meramente reflexos, alegados na petição inicial. Foi em Portugal que a utilização do seu nome e imagem poderá ter influído na comercialização dos referidos videojogos, uma vez que foi, predominantemente, nas competições desportivas portuguesas que o Autor interveio como jogador profissional; foi em Portugal que se poderá ter refletido a influência negativa provocada pela invenção dos seus atributos físicos e técnicos naqueles videojogos, prejudicando a sua vida profissional e pessoal, uma vez que foi aí que o Autor, predominantemente, desenvolveu a sua atividade profissional e viveu; e foi em Portugal que o Autor poderá ter experienciado a alegada perturbação, desgosto, tristeza e revolta que a utilização do seu nome e imagem não autorizada lhe terão provocado, pois foi aí que o Autor, com exceção das épocas de 2013/2014 e 2014/2015, se encontrava.
Estando o centro de interesses do Autor predominantemente localizado em Portugal desde o momento em que este situa o início da violação dos seus direitos de personalidade ao nome e à imagem (finais de 2009, relativamente ao F... e finais de 2018, relativamente ao F...), tendo sido aí que terão ocorrido os danos invocados pelo Autor, não há razões para que, a coberto do critério da causalidade admitido pelo artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil, não se considerem os tribunais portugueses competentes para julgar esta ação, uma vez que, estando nós, perante uma causa de pedir complexa, os danos alegados terão ocorrido predominantemente em Portugal, pelo que será no nosso país que se encontrará um significativo acervo das provas a produzir com vista à realização da justiça.
Esta conclusão não constitui de forma alguma o reconhecimento de uma competência exorbitante, uma vez que releva uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português, justificativa da intervenção dos seus tribunais, assim como não fere qualquer interesse legítimo da empresa demandada, uma vez que, atenta a comercialização global dos videojogos por si produzidos, é expetável que possam ocorrer litígios com eles relacionados em qualquer parte do globo, em que sejam chamados a intervir os órgãos jurisdicionais locais, além de que a sua estrutura organizacional, atenta a sua dimensão, sempre lhe permitirá, sem excessivas dificuldades, produzir as provas que entenda necessárias em Portugal.
Por estas razões, deve o recurso interposto ser acolhido, reconhecendo-se competência aos tribunais portugueses para julgarem a presente ação, nos termos do artigo 62.º, b), do Código de Processo Civil.”
Sufraga-se todo este ajuizamento, sendo importante salientar que no acórdão também se refere:” O artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento Bruxelas I bis, nas situações em que o demandado não tenha domicílio num Estado-Membro, como ocorre no presente caso, ao determinar uma remissão para as regras do direito processual civil do Estado Membro cujo tribunal é chamado a pronunciar-se, em matéria de competência internacional, sendo estas as normas aplicáveis nessas situações, denuncia que essas regras internas também fazem parte de um mesmo sistema de regras de conflito de competências instituído pelo Regulamento, que se pretende global e coerente [12].
Não deixamos, pois, de estar também aqui perante uma remissão intrasistemática, apesar da sua aparência extrasistemática [13].
Este convívio, por efeito desta remissão, no nosso ordenamento jurídico das regras de direito europeu sobre a competência internacional dos tribunais dos Estados Membros da União Europeia, incluindo os tribunais portugueses (neste caso, o Regulamento Bruxelas I bis), e as regras do direito processual civil português sobre a mesma matéria, embora com um âmbito de aplicação distinto, exige a preservação da coerência sistémica do nosso ordenamento jurídico.
Não só o conteúdo das normas internas sobre competência internacional não devem conduzir a soluções díspares com os princípios que regem o direito europeu nessa matéria, o que tem sido objeto de preocupação do legislador nacional, como a sua interpretação deve ter em consideração a leitura que o Tribunal de Justiça da União Europeia tem efetuado das normas europeias que estabeleçam critérios idênticos às normas de direito interno. A harmonia do ordenamento jurídico pede que critérios idênticos na definição da competência internacional dos tribunais, apesar de provirem de fontes distintas, tenham uma aplicação coincidente, sendo certo que a jurisprudência do TJUE tem um papel fundamental na interpretação do direito europeu.”
Com efeito, evidencia-se que o artigo 7º do Regulamento Bruxelas I bis estabelece um factor de conexão idêntico ao da al. b) do artigo 62º do CPC pelo que, com o devido respeito, cremos que, efectivamente, não tem sentido que na nossa ordem jurídica conflituem interpretações sobre idênticas matérias apenas porque provêm de fonte diversa.
É desejável que as normas provenientes do ordenamento europeu comunitário constituam, juntamente com as normas do ordenamento português, um corpo unitário, uma unidade formal e uma unidade material. A primeira funda-se a partir de elementos axiologicamente neutros, alheando-se de considerações de correcção material. A segunda pressupõe uma identidade de opções valorativas e uma correcção de justiça nessas escolhas.
Castanheira Neves, em “Teoria do Direito” (lições proferidas ao ano lectivo de 1998/ 1999, policop.), Coimbra, 1998, explica que à unidade de um ordenamento jurídico só pode corresponder um sistema aberto e de reconstrução dialéctica, tendo ela como referente a consciência jurídica geral, enquanto conjunto de princípios que traduzam o sentido e a validade fundamentantes do direito, no momento histórico em que o problema se põe. Visão sistemática material que parte da consideração de que a intenção de fundamentação de validade subjacente a um qualquer ordenamento passa por um processo de contínua reconversão (“reconversão de intencionalidade”), após se ter corporizado numa “experiência problemática” e que encontra na realização do Direito o seu “momento nuclear”.
Unidade e sistema são complementares, sendo que actualmente a noção de sistema jurídico não é a um de um sistema fechado e completo, formado exclusivamente por regras.
Como refere Karl LARENZ, os princípios transmitem a ideia de Direito, do que é certo, correto, diferentemente das regras, meras reguladoras de conduta.
Os princípios traduzem a ratio iuris do ordenamento jurídico, sendo referenciais axiológicos do sistema, evitando possíveis arbítrios do intérprete.
Os princípios podem revelar ao intérprete normas que não são expressas por qualquer enunciado legislativo, à medida que estiverem implícitas neste ou no sistema inteiro (implícita ou explicitamente), de modo a possibilitar ao intérprete desenvolver, integrar e complementar o direito. O sistema é sempre completável precisamente porque é incompleto cumprindo os princípios e estes regulam não apenas no plano da validade como também no da valoração.
O que se pretende é reflectir sobre a importância que a unidade e o sistema têm nos juízos que não se bastam com meras subsunções mas que se traduzem em ponderações de múltiplos factores e em que se podem extrair princípios coerentes de uma unidade sistemática, como cremos que ocorre com posição adoptada.

Pelo exposto, delibera-se julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a excepção da incompetência internacional do Juízo Central Cível da Póvoa de Varzim, determinando-se o prosseguimento do processo.

Custas pela apelada em 1ª e 2ª Instâncias.

Porto, 25 de Outubro de 2022
Ana Lucinda Cabral
Rodrigues Pires
Márcia Portela

(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)