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GARANTIA BANCÁRIA À PRIMEIRA SOLICITAÇÃO
CUMPRIMENTO
SOLICITAÇÃO IRREGULAR
DIREITO AO REEMBOLSO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
AUSÊNCIA DE CAUSA JUSTIFICATIVA
Sumário
1–O banco que cumpre a obrigação de garantia decorrente de uma garantia bancária à primeira solicitação tem o direito a obter, do dador da ordem, o reembolso da quantia paga, sendo que a obrigação de reembolso subsiste ainda que o dador prove que, no momento da solicitação, o beneficiário não tinha qualquer direito em virtude de já estar cumprida a obrigação principal.
2–Em caso de solicitação irregular do pagamento da garantia, o dador da ordem pode reaver toda ou parte da quantia liquidada em cumprimento da obrigação de reembolso, em acção a propor contra o beneficiário, com base em enriquecimento sem causa, recaindo sobre o demandante o ónus da prova, que consiste em demonstrar que cumpriu o contrato base ou que o incumprimento não lhe é imputável.
3–A prova da ausência de causa justificativa basta-se com a demonstração da inexistência da causa que motivou a deslocação patrimonial ou daquelas que, dentro da específica situação concreta de enriquecimento, sejam tidas como causas típicas ou habituais.
Texto Integral
Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I–RELATÓRIO
A, pessoa colectiva NIPC 5.......5, com sede na Rua ....., n.º ..., pav. ..., ....-... - G____, M____ intenta contra B, pessoa colectiva n.º 5.......0, com sede na Rua ..... ..... ....., n.º ..., ....-..., L_____ a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, formulando os seguintes pedidos: a)-A condenação da ré a devolver à autora a quantia de 7 172,04 € (sete mil cento e setenta e dois euros e quatro cêntimos), indevidamente cobrada; b)-A condenação da ré a pagar à autora a quantia de 3 130,90€ (três mil cento e trinta euros e noventa cêntimos), a título dos encargos financeiros com a garantia bancária; c)-A condenação da ré a pagar à autora a quantia de 427,57€ (quatrocentos e vinte sete euros e cinquenta e sete cêntimos), a título de juros civis à taxa legal sobre a quantia indevidamente cobrada; d)-Ainda a sua condenação no pagamento da quantia de 5 000,00€ (cinco mil euros), a título de lesão dos danos de imagem da autora e da quantia de 2 000,00€ (dois mil euros), a título dos encargos.
Alega para tanto, em síntese, o seguinte:
No âmbito das suas actividades comerciais, em Abril de 2004, a autora e a ré celebraram um contrato de fornecimento de papel, de acordo com o qual esta fornecia àquela o papel mediante o pagamento da respectiva factura, tendo exigido, como garantia do bom pagamento, a prestação de garantia bancária, que foi prestada, em 30 de Abril de 2004, a favor da ré e a pedido da autora, pelo Banco Espírito Santo, com o n.º 3.. ..4, no valor de 15 000,00€ (quinze mil euros), cujo original foi entregue à ré, que a podia accionar em caso de incumprimento;
As relações comerciais perduraram por vários anos, entre 2004 e 2016, sem que tenha existido incumprimento da autora, findas as quais a autora solicitou a devolução da garantia bancária, sem sucesso;
Entretanto, a ré comunicou que, de acordo como o seu extracto, a autora ainda lhe deve a quantia global de 7 172,04 € (sete mil cento e setenta e dois euros e quatro cêntimos), correspondente à soma das facturas que identificou, que, porém, foram pagas, conforme comprovativos que junta;
Em 25 de Julho de 2018 a ré apresentou a garantia bancária a pagamento pelo alegado valor em falta de 7 172,04 € (sete mil cento e setenta e dois euros e quatro cêntimos);
Com a apresentação indevida e ilegítima a pagamento da garantia bancaria n.º 309 684, foram retiradas da conta da autora diversas quantias, designadamente a título de comissão de reclamação de beneficiários de garantia, para além dos encargos financeiros adicionais com a sua manutenção desde o fim das relações comerciais até 27 de Julho de 2018;
Além disso, a ré actuou com má fé dolosa, com o único intuito de lesar a autora, como efectivamente lesou, ao transmitir perante o banco a imagem de uma empresa incumpridora, sendo-lhe cortado o crédito de que gozava.
A ré contestou alegando, em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 25649628):
A relação comercial entre as partes consistiu no regular e sucessivo fornecimento de papel por parte da ré à autora, a solicitação desta, através de encomendas directas ou apresentadas ao colaborador da ré que presta serviços na área geográfica de implantação da autora, dando lugar à emissão de diversas facturas mensais e regulares pagamentos pela autora, por conta do saldo global de que era devedora;
Os pagamentos realizados pela autora serviam frequentemente para pagar apenas parte das facturas emitidas pela ré e outros liquidavam várias facturas (no todo ou em parte), ficando em aberto, por liquidar, determinado saldo devedor de mês para mês, correspondente à soma parcelar de várias facturas;
As partes mantiveram um registo contabilístico correspondente a um extracto vulgarmente denominado de conta corrente, onde eram efectuados os lançamentos a débito e a crédito;
Quando cessaram os fornecimentos de papel, a ré solicitou à autora por diversas vezes o pagamento do saldo devedor que a conta corrente apresentava, no valor de 7 172,04 €, que esta não aceitou dever;
No extracto elaborado pela contabilidade da autora existem incorrecções, como facturas emitidas pela ré em duplicado, assim como estão lançadas facturas que não respeitam à ré e pagamentos que não foram efectuados, que totalizam 13 060,26 €, sendo que os valores mencionados na petição inicial serviram para pagar outras facturas;
Porque existia um saldo devedor, a ré accionou legitimamente a garantia bancária, não sendo responsável pelos encargos em que a autora incorreu, não sendo devidos juros de mora, nem dele decorrendo qualquer dano para a imagem desta.
Concluiu no sentido da improcedência da acção e da sua consequente absolvição de todos os pedidos.
Em 11 de Março de 2020, a autora apresentou resposta em que reiterou a inexistência de qualquer dívida para com a ré no âmbito do contrato a que aludem estes autos (cf. Ref. Elect. 25812070), parcialmente admitido, conforme despacho proferido em 7 de Outubro de 2020 (cf. Ref. Elect. 399151834).
Em 6 de Novembro de 2020 realizou-se a audiência prévia com prolação de despacho saneador, fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova (cf. Ref. Elect. 400301558).
Realizada a audiência final, em 8 de Abril de 2021 foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 403931340): “Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência, decido: a)- Condenar a ré B, a restituir à autora A, a quantia de € 7.172,04 (sete mil cento e setenta e dois euros e quatro cêntimos); b)- Condenar a ré B, a pagar à autora A, sobre a quantia referida em a), os juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal supletiva, fixada para os juros civis, contados desde a data da citação – 24/01/2020 – até efetivo e integral pagamento. c)- Condenar a ré B, a pagar à autora A, a quantia de € 1.778,85 (mil setecentos e setenta e oito euro e oitenta e cinco cêntimos); d)- Absolver a ré B do demais peticionado. * Custas da ação pela autora e ré - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 CPP - na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 50% para a autora e 50% para a ré.”
Inconformada, a ré interpôs recurso desta sentença.
Em 26 de Outubro de 2021 foi proferido acórdão por esta Relação que determinou a anulação da decisão recorrida, nos termos do art. 662º, n.º 1, c) do Código de Processo Civil[1] para ampliação da matéria de facto (cf. Ref. Elect. 17540383).
Baixados os autos à 1ª instância, foi proferido despacho, em 24-01-2022, a convidar as partes a, em face do conteúdo do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que ordenara a produção de prova sobre os concretos pontos de facto indicados – saber se o banco garante procedeu ao pagamento da garantia bancária e se foi exigido à autora o reembolso -, requererem o que tivessem por conveniente (cf. Ref. Elect. 412351564).
As partes foram notificadas e nada vieram requerer.
Em 16 de Fevereiro de 2022 foi proferida a seguinte decisão (cf. Ref. Elect. 412973632):
“Não tendo as partes requerido a produção de outros meios de prova e sendo entendimento deste Tribunal ser suficiente, ao cumprimento do superiormente decidido, a ponderação da prova documental já produzida, e constante dos autos, impõe-se designar data para reabertura da audiência, designadamente para alegações das partes. Neste sentido, notifique os Ilustres Mandatários para, em 10 dias, informarem se se opõem a que a diligência ocorra através de meios técnicos à distância, caso em, que deverão indicar os endereços de e-mail para que seja estabelecida a comunicação via Webex. Em alternativa, poderão as partes, querendo, alegar por escrito, o que deverão igualmente informar nos autos, no prazo acima indicado.”
Na sequência deste despacho, ambas as partes informaram nos autos que pretendiam alegar por escrito (cf. Ref. Elect. 31852992 e 31855870).
Perante esta tomada de posição, foi concedido às partes o prazo de dez dias para alegarem, após o que seria proferida sentença, o que as partes vieram fazer por requerimentos de 24 de Março e 4 de Abril de 2022 (cf. Ref. Elect. 413663651, 32084894 e 32188236).
Em 18 de Abril de 2022 foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 414694216): “Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada e, em consequência, decido: a)- Condenar a ré B, a restituir à autora A, a quantia de € 7.172,04 (sete mil cento e setenta e dois euros e quatro cêntimos); b)- Condenar a ré B, a pagar à autora A, sobre a quantia referida em a), os juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal supletiva, fixada para os juros civis, contados desde a data da citação – 24/01/2020 – até efetivo e integral pagamento. c)- Condenar a ré B, a pagar à autora A, a quantia de € 1778,85 (mil setecentos e setenta e oito euro e oitenta e cinco cêntimos); d)- Absolver a ré B do demais peticionado.”
Novamente inconformada, a ré veio interpor o presente recurso que incide quer sobre a sentença, quer sobre o despacho proferido em 16 de Fevereiro de 2022, concluindo as suas alegações do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 32673930): 1ª–O Tribunal da Relação de Lisboa determinou a anulação da sentença anteriormente proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, impondo a repetição do julgamento, por considerar necessária a produção de prova incidente sobre factos essenciais para a decisão da causa; 2ª–Em cumprimento do decidido pelo Venerando Tribunal da Relação, a Meritíssima Juiz proferiu, em 24-01-2022, o despacho com a ref.ª Citius 412351564, determinando a notificação das partes para requerem o que tivessem por conveniente quanto à ordenada produção de nova prova ou renovação da prova, a contraditar entre as partes; 3ª–Nada tendo sido requerido, nomeadamente pela Autora, a quem incumbia o ónus da prova de tais factos essenciais, a Meritíssima Juiz proferiu, em 16-02-2022, o Despacho (de que ora se recorre) com a ref.ª Citius 412973632, considerando agora desnecessária a produção de nova prova ou mesmo a renovação da prova anteriormente indicada; 4ª–A prolação deste último Despacho contraria o anteriormente decidido pela Meritíssima Juiz e desrespeita o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa; 5ª–Violando, assim, o caso julgado formal constituído pelo referido Aresto, o qual passou a ter força obrigatória dentro do processo; 6ª–Ao ter fixado nova Matéria Factual, sem renovação da prova ou sequer repetição de prova, “contraditada entre as partes”, tal como fora ordenado pelo Tribunal da Relação, o Tribunal recorrido violou igualmente o princípio do contraditório; 7ª–O que torna a Sentença nula, por tal omissão afetar a própria decisão; 8ª– A Sentença ora proferida corresponde a uma repetição quase integral da Sentença anteriormente prolatada e anulada; 9ª –No essencial, foram aditados dois novos Factos Provados (os Factos 40. e 41.) e a motivação respetiva; 10ª–A Meritíssima Juiz, quanto a tais factos, não analisou criticamente as provas nem especificou os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção no que diz respeito à prova de tais factos; 11ª–Nessa parte, a Sentença padece do vício da falta de fundamentação, por manifesta omissão da análise crítica das provas e de especificação dos fundamentos decisivos à convicção do Julgador; 12ª–Conduzindo à nulidade da Sentença e à correspondente anulação do julgamento; 13ª–Só desse modo se respeitará o atual desígnio constitucional e infraconstitucional de fundamentação das decisões judiciais, sob pena do preceito constitucional e da norma legal ficarem esvaziadas de aplicação prática e sentido; 14ª–A não se entender que ocorre a nulidade da Sentença, justificar-se sempre a remessa dos autos à 1ª Instância a fim de ser suprida tal omissão; 15ª–Os Documentos n.ºs 10 e 16 juntos com a petição inicial não têm a virtualidade de dar por provado o Facto 41; 16ª–De acordo com a Factualidade provada, designadamente os Factos 36. e 39., é indiscutível que a quantia usada para pagamento da garantia bancária não foi retirada da conta da Autora; 17ª–Os Documentos n.ºs 10 e 16 não são aptos a provar que a Autora tenha reembolsado posteriormente o Banco da quantia referente à honra da garantia; 18ª–A prova testemunhal produzida pela Autora relativamente ao teor do Doc. n.º 10 consistiu unicamente no depoimento da testemunha Carlos Manuel........, a qual não foi nada esclarecedora, tendo mesmo admitido nada saber sobre o mesmo, conforme se pode confirmar pelos minutos 01:20:03 a 01:20:54 e 01:24:21 a 01:25:00 da respetiva gravação; 19ª–O Doc. 16 trata-se de uma fatura emitida pelo Novo Banco em nome da Autora cobrando o valor de €275,00, a título de “comissão reclamação de beneficiários de garantia”; 20ª–Nenhum desses documentos, isolada ou conjuntamente, prova o Facto 41., ou seja, que “a Autora reembolsou o Banco dador da garantia”; 21ª–Para provar o Facto 41. incumbia à Autora juntar aos autos documentos – designadamente extratos bancários, talões de depósito, ordens de transferências ou declarações bancárias - que comprovassem que a quantia, adiantada pelo Banco para honrar a garantia, foi posteriormente depositada por si na sua conta ou que foi paga, por qualquer outra forma, ao Banco; 22ª–O Facto 41. foi indevidamente dado por provado, devendo ser eliminado; 23ª–Quanto à prova de tal Facto não se poderá ter em consideração a prova testemunhal produzida nos autos, designadamente o depoimento da testemunha Carlos Manuel …….., única mencionada com referência a tal facto, sob pena de violação do princípio do contraditório, atendendo aos precisos termos do Despacho proferido em 16-02-2022; 24ª–Seja como for, o depoimento da referida testemunha revela-se manifestamente inconsistente, vago e inseguro, conforme se pode confirmar pelos minutos 01:04:23 a 01:05:33, 01:11:56 a 01:12:21 e 01:25;02 a 01:25:23 da respetiva gravação; 25ª–Resultando assim uma dúvida legítima acerca da realidade de tal facto, a qual terá forçosamente que se resolver contra a Autora, por ser a quem o facto aproveita; 26ª–Por falta de prova dos factos constitutivos do direito invocado pela Autora, a sua pretensão não poderá proceder; 27ª–De acordo com a factualidade provada a Ré fez todos os esforços ao seu alcance para tentar apurar as divergências que se verificavam entre a sua contabilidade e a da Autora, antes de proceder ao acionamento da garantia; 28ª–Face a tais divergências e à atitude cooperante sempre manifestada pela Ré no sentido do respetivo esclarecimento, não lhe era exigível que atuasse de outra forma; 29ª–Não se verifica o pressuposto da culpa necessário para que o instituto da responsabilidade civil funcione; 30ª–Em face da prova produzida, não se pode dar por provado que a Autora reembolsou o Banco da quantia de € 7.172,04, relativa à honra da garantia, nem da quantia € 1.778,85, referente às comissões periódicas e de reclamação de beneficiários da garantia; 31ª–Não se verificando assim o pressuposto do dano, essencial para que a Autora possa ser indemnizada com base no instituto da responsabilidade civil; 32ª–A Ré foi, pois, incorretamente condenada, quer às referidas quantias quer quanto aos juros referentes ao montante correspondente ao acionamento da garantia bancária; 33ª–Decidindo como decidiu, o Tribunal recorrido violou designadamente as normas do art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa; dos arts. 3º, nº 3; 154º; 414º; 415º; 607º, nº 4; 620º, nº 1 do Cód. Proc. Civil e do art. 483º do Cod. Civil.
Termina no sentido na procedência do recurso e revogação da decisão recorrida.
Não apresentadas contra-alegações.
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II–OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões das alegações da ré, apelante, há que apreciar as seguintes questões: a)-A conformidade do despacho proferido em 16 de Fevereiro de 2022; b)-A nulidade da sentença; c)-A impugnação da decisão da matéria de facto; d)-A apresentação injustificada a pagamento da garantia bancária e dever de restituição por parte da ré
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III –FUNDAMENTAÇÃO
3.1.–FUNDAMENTOS DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provados os seguintes factos: 1.–A autora é uma sociedade comercial, cujo escopo e objecto social consiste no fabrico de etiquetas, rótulos e produtos similares. 2.–A ré é uma sociedade comercial, cujo escopo consiste na comercialização de papéis para gráficas e decoração. 3.–No âmbito da actividade comercial a que ambas se dedicam, foi celebrado entre as partes, em abri de 2004, um contrato de fornecimento de papel, através do qual a ré se obrigou a fornecer à autora as quantidades daquele produto necessárias à sua actividade. 4.–Em virtude dos referidos fornecimentos, a ré emitia e enviava à autora as respectivas facturas, as quais deveriam ser pagas a 90 dias. 5.–Caso os pagamentos não ocorressem no referido prazo, ou os valores vencidos ascendessem a montantes significativos, não concretamente apurados, a ré suspendia os fornecimentos. 6.–A autora efectuava pagamentos regulares da totalidade das facturas e, por vezes, pagamentos parcelares que se destinavam a liquidar uma ou várias facturas, e 7.–Os pagamentos eram efectuados por cheque ou por transferência bancária, para conta titulada pela ré e, nestes, a autora fazia constar a factura ou facturas a que respeitava. 8.–Para efeitos contabilísticos, autora e ré escrituravam, internamente, todos os movimentos a débito e crédito, resultantes do contrato descrito em 3 a 5.. 9.–Como garantia do bom pagamento dos fornecimentos efectuados, pela ré, a autora, em 30/04/2004, prestou uma garantia bancária, à primeira solicitação, a pagar pelo então Banco Espírito Santo, até ao montante de 15 000,00 €. 10.–A referida garantia foi contratualizada por tempo indeterminado, salvo denúncia do Banco garante, com a antecedência de 60 dias. 11.–As relações comerciais existentes entre autora e ré cessaram, em data não concretamente apurada, mas situada em meados do ano de 2016. 12.–Após a cessação das relações comerciais, a autora, e constatado na sua contabilidade um saldo zero, solicitou à ré a devolução da garantia bancária. 13.–A ré recusou a referida devolução informando que, de acordo com o seu extracto contabilístico, ainda se encontravam pendentes de liquidação, pela autora, as facturas FT 2...6, FT 2...1, FT 2...2, FT 5..-5.., FT 0.. E FT 1..4, no valor de 7 172,04 €. 14.–E solicitou à autora a conferência da escrituração comercial de ambas para despiste de divergências de valor e conferência de saldos.
15.–No extracto de conta corrente, elaborado pela contabilidade da autora, foram detectados pela ré, imprecisões quanto à inscrição dos movimentos a débito e crédito, resultante das transacções comerciais havidas entre autora e ré. Assim: a.-a factura 1/2...7, no valor de 1 269,11 €, aparece reflectida no extracto a 31 de Dezembro de 2013 e a dia 31 de Janeiro de 2014; b.-a factura 1/2...0, no valor 418,20 €, aparece reflectida no extracto a 31 de Dezembro de 2013 e igualmente no dia 31 de Janeiro de 2014; c.-a factura n.º 2..3, no valor de 233,70 € aparece reflectida no extracto a 31 de Janeiro de 2015 e a 28 de Fevereiro do ano de 2015; d.-a factura n.º 2..2, no valor de 836,40 € aparece reflectida no extracto a 31 de Janeiro de 2015 e a 28 de Fevereiro do ano de 2015; e.-a factura n.º 2...1, no valor de 1 254,60 €, aparece reflectida no extracto a 30 de Setembro de 2015 e a 31 de Outubro de 2015;
16.– De igual forma, está reflectida no extracto de conta corrente da autora, a 31 de Maio de 2013, e no valor de 1 689,60 €, uma factura que não respeita à ré, com a observação “Manter”. 17.–No dia 09/05/2016, a autora efectuou, através de transferência bancária, para a conta PT.. 0... 0... 0... 0... 6... 8, tendo como beneficiário B, o pagamento da quantia de 1 623,60 €, referente à FT 26566. 18.–No dia 19/05/2016, a autora efectuou, através de transferência bancária, para a conta PT.. 0... 0... 0... 0... 6... 8, tendo como beneficiário B, o pagamento da quantia de 836,40 €, referente à FT 27081. 19.–No dia 30/05/2016, a autora efectuou, através de transferência bancária, para a conta PT.. 0... 0... 0... 0... 6... 8, tendo como beneficiário B, o pagamento da quantia de 1 131,60 €, referente à FT 27162. 20.–No dia 14/06/2016, a autora efectuou, através de transferência bancária, para a conta PT.. 0... 0... 0... 0... 6... 8, tendo como beneficiário B, o pagamento da quantia de 959,40 €, referente à FT 5..-FT 5.. . 21.–No dia 27/06/2016, a autora efectuou, através de transferência bancária, para a conta PT.. 0... 0... 0... 0... 6... 8, tendo como beneficiário B, o pagamento da quantia de 943,40 €, referente a parte FT 017. 22.–No dia 08/07/2016, a autora efectuou, através de transferência bancária, para a conta PT.. 0... 0... 0... 0... 6... 8, tendo como beneficiário B, o pagamento da quantia de 1 940,95 € referente a resto FT 0.. – FT 1... . 23.–A ré deu entrada dos pagamentos efectuados pela autora e imputou os mesmos ao pagamento de facturas mais antigas, que constavam da sua escrituração comercial, referida em 8. 24–A ré imputou a transferência efectuada pela autora no dia 9-05-2016, no montante de 1 623,60 €, ao pagamento de parte (428,69 €) da factura emitida pela ré, n.º 1/2...5, com data de 8/10/2015 e parte (1 194,91 €) da factura n.º 1/2...2, com data de 14/10/2015. 25–A ré imputou a transferência efectuada pela autora no dia 19-05-2016, no montante de 836,40 €, para liquidar a factura emitida pela ré n.º 1/2...5, com data de 26/10/2015 e parte (1 194,91 €) da factura n.º 1/2...2, com data de 14/10/2015. 26.–A ré imputou a transferência efectuada pela autora no dia 30-05-2016, no montante de 1 131,60 €, para liquidar parte (379,29 €) da factura emitida pela ré n.º 1/2...8, com data de 15/10/2015 e parte (752,31 €) da factura n. º1/2...8, com data de 27/10/2015. 27.–A ré imputou a transferência efectuada pela autora no dia 14-06-2016, no montante de 959,40 €, serviu para liquidar parte (959,40 €) da factura emitida pela R. n.º 1/2...8, com data de 27/10/2015. 28.–A ré imputou a transferência efectuada pela autora no dia 27-06-2016, no montante de 943,40 €, para liquidar parte (209,75 €) da factura emitida pela R. n.º 1/2...8, com data de 27/10/2015 e parte (733,65 €) da factura n. º1/2...0, com data de 5/11/2015. 29.–A ré imputou a transferência efectuada pela autora no dia 8-07-2016, no montante de 1 940,95 €, para liquidar parte (555,27 €) da factura emitida pela R. n.º 1/2...0, com data de 5/11/2015 e parte (1 131,60 €) da factura n.º 1/2...4, com data de 16/11/2015 e ainda parte (254,08 €) da factura n.º 1/2...6, com data de 20/11/2015. 30.–No dia 1 de Maio de 2017, o Novo Banco SA debitou à autora, a título de comissão periódica de garantia bancária e aval, referente à garantia bancária indicada em 9., o montante de 270,38 €. 31.–No dia 31 de Julho de 2017, o Novo Banco SA debitou à autora, a título de comissão periódica de garantia bancária e aval, referente à garantia bancária indicada em 9., o montante de 270,38 €. 32.–No dia 31 de Outubro de 2017, o Novo Banco SA debitou à autora, a título de comissão periódica de garantia bancária e aval, referente à garantia bancária indicada em 9., o montante de 270,38 €. 33.–No dia 31 de Janeiro de 2018, o Novo Banco SA debitou à autora, a título de comissão periódica de garantia bancária e aval, referente à garantia bancária indicada em 9., o montante de 270,38 €. 34.–No dia 1 de Maio de 2018, o Novo Banco SA debitou à autora, a título de comissão periódica de garantia bancária e aval, referente à garantia bancária indicada em 9., o montante de 270,38 €. 35.–Em 7 de Maio de 2018, a autora, através do seu mandatário, enviou, uma comunicação escrita à ré, que se acha junta como doc. 2 da petição inicial, com o seguinte teor: “[…] no âmbito das relações comerciais existentes entre Vs Exa e a minha constituinte E....., Lda. foi emitida a bancária nº3....4 no valor de € 15.000,00, a favor deB, Lda. (…). Uma vez que as relações comerciais que originaram a emissão da referida garantia já terminaram, a garantia prestada caducou automaticamente, deixando V.Exas de terem legitimidade para a manterem na vossa posse. Assim, na qualidade de mandatário das E....., Lda., sou a solicitar que no prazo de 10 dias, Vs. Exas procedam à devolução do original da garantia aqui anexada, bem como emitindo declaração de que a mesma já não produz efeitos fruto do cumprimento integral das relações comerciais existentes à data entre ambas as partes […]”
36.–Em 25 de Julho de 2018, a ré apresentou a pagamento, pelo valor de 7 172,04 €, a garantia bancária referida em 9.. 37.–No dia 26 de Julho de 2018, o Novo Banco SA debitou à autora, a título de comissão de reclamação de beneficiários de garantia, referente à garantia bancária indicada em 9., o montante de 286,00 €. 38.–No dia 31 de Julho de 2018, o Novo Banco SA debitou à autora, a título de comissão periódica de garantia bancária e aval, referente à garantia bancária indicada em 9., o montante de 141,10 €. 39.–À data da apresentação da garantia a pagamento, a autora não tinha saldo suficiente na conta à ordem. 40.–O banco garante assegurou o pagamento da garantia pelo valor contratualizado de 7 172,04 €. 41.–A autora reembolsou o Banco dador da garantia. 42.–A ré não indicou à autora quais os fornecimentos/facturas que se encontram por liquidar.
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O Tribunal a quodeu como não provados os seguintes factos: a)-Nos termos do contrato referido em 3. a 7., autora e ré acordaram que os pagamentos efectuados, pela autora, fossem imputados às facturas mais antigas; b)-A imagem da autora perante o Banco que prestou a garantia bancária ficou lesada, transmitindo uma imagem de empresa incumpridora, de situação financeira débil, de empresa que não cumpre com as suas obrigações; c)-apresentação a pagamento, pela ré, da garantia bancária, gerou um mal-estar e desconfiança, levando ao corte à autora do crédito de que gozava; d)-De igual forma, gerou junto de outros fornecedores da autora dificuldade de negociação no preço de aquisição da matéria-prima (papel) necessária para a sua laboração e cumprimento das suas obrigações perante os seus clientes; e)-A autora suportou despesas originadas com os honorários do mandatário e despesas administrativas, que se computam em 2 000,00 €.
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3.2.–APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
3.2.1.–Do despacho proferido em 16 de Fevereiro de 2022
A ré/recorrente insurge-se contra o despacho proferido em 16 de Fevereiro de 2022 que, face à ausência de requerimentos das partes para indicação de outros meios de prova, reconheceu que se impunha proceder à reabertura da audiência, sendo suficiente, no seu entender, a prova já produzida, designadamente a documental, para apreciar as questões colocadas no anterior acórdão desta Relação, e notificou aquelas para, querendo, indicarem se pretendiam a sua realização através de meios técnicos à distância ou se optavam antes por alegar por escrito.
Confrontadas com esta decisão, ambas as partes limitaram-se a aderir à proposta de apresentação de alegações por escrito, o que fizeram no prazo que lhes foi concedido para tanto.
Posteriormente, foi então proferida nova sentença.
A recorrente entende que o mencionado despacho desrespeita o que foi ordenado no âmbito do acórdão proferido nestes autos, em 26 de Outubro de 2021, violando o caso julgado, pois que esta Relação impôs a repetição do julgamento, por ser necessária a produção de prova a incidir sobre os factos essenciais que não tinham sido apreciados, pelo que tinha de ser produzida nova prova ou, quando muito, a renovação da prova anteriormente oferecida, submetendo-a ao contraditório.
Não tem razão o apelante.
No acórdão de 26 de Outubro de 2021 consignou-se, entre o mais, o seguinte, a páginas 39 a 41: “E se incumbe ao demandante nesse tipo de acção provar a solicitação irregular da garantia, naturalmente terá ainda de demonstrar que o banco garante procedeu ao seu pagamento e, mais do que isso, que lhe foi exigido o respectivo reembolso, enquanto factos, negativos e positivos, constitutivos do direito alegado […] Ora, não obstante a autora/recorrida ter alegado que a garantia foi apresentada a pagamento e que o valor de 7 172,04 € foi retirado da sua conta bancária (cf. artigo 28º da petição inicial), seguro é que tal não consta dos factos provados, nem dos não provados. Ainda que o tribunal recorrido tenha dado como provada a apresentação a pagamento da garantia (cf. ponto 36.) […], não se pronunciou sobre o efectivo pagamento pelo banco […] e menos ainda sobre o reembolso pela autora […]. Seguro é, porém, que o tribunal recorrido não tomou qualquer posição expressa sobre os dados factuais alegados nos articulados que permitiriam aferir sobre a verificação do prejuízo ou do dano em que a autora/recorrida se louva para justificar a sua pretensão de restituição do montante que entende ter saído do seu património indevidamente. Note-se que está em causa matéria de facto expressamente alegada e impugnada, sendo certo que se trata de factos que integram o tema da prova vertido na alínea e) da respectiva enunciação: “dos danos sofridos pela autora” – cf. acta da audiência prévia de 6 de Novembro de 2020, com a Ref. Elect. 400301558. […] Constata-se, deste modo, a necessidade de ampliar a decisão sobre matéria de facto, no que respeita aos factos relevantes para o enquadramento da relação estabelecida entre as partes e apuramento sobre o eventual direito da autora a obter a restituição visada, desde logo, com pronúncia sobre os factos atinentes ao prejuízo suportado por aquela, ampliação que deve ser efectuada pela 1ª instância […] Uma vez que o tribunal a quo omite a pronúncia sobre factos essenciais para a decisão, factos que foram devida e oportunamente alegados pela autora e impugnados pela ré, impondo-se, por isso, ampliar a matéria de facto em conformidade e porque não pode este tribunal substituir-se ao tribunal recorrido, sendo necessária a produção de prova – contraditada entre as partes – sobre tal factualidade, anula-se a sentença recorrida, devendo o processo baixar à 1ª instância com vista à ampliação da matéria de facto, a fim de ali se apurarem os factos alegados e acima enunciados e ainda quaisquer outros que o tribunal tenha por pertinentes. O novo julgamento a realizar em 1ª instância, pela mesma senhora juíza subscritora da sentença recorrida, abrangerá apenas os pontos de facto identificados supra, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições (art. 662º, nº 3, c), do CPC), daqui resultando, por conseguinte, que não é admissível a produção de nova prova ou a renovação de prova incidente sobre a parte da decisão de facto que não está viciada.”
Entendeu, pois, esta Relação que a apreciação do mérito da causa exigia a pronúncia por parte do Tribunal recorrido sobre os concretos pontos de facto indicados, alegados na petição inicial e impugnados em sede de contestação e sobre os quais a 1ª instância não se havia pronunciado, para o que optou pela anulação da decisão e pela baixa do processo para esse efeito, considerando que se tornava necessária a produção de prova sujeita a contraditório.
Considerou-se, ademais, que tais factos, para além de alegados, se podiam ter por contemplados na amplitude do tema de prova vertido na alínea e) da respectiva enunciação efectuada em sede de audiência prévia[2], pelo que não se tratava de situação de ampliação da matéria de facto[3] (eventualmente carecida de um despacho prévio de convite ao aperfeiçoamento dos articulados), mas de ampliação da decisão sobre a matéria de facto.
A necessidade de ampliar a decisão da matéria de facto, que se considerou imprescindível para uma boa decisão da causa, cingia-se a factos alegados nos articulados, mas poderia determinar a necessidade de aditamento de novos temas da prova (cf. art.º 596º, n.º 1 do CPC), não fosse o caso de se poderem ter já por abrangidos nos temas da prova preteritamente elencados, posto que o foram de modo genérico e não em termos de enunciação precisa dos factos alegados[4], mas deles resultando claro que se impunha apurar o prejuízo suportado pela autora na sua esfera jurídica – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15-01-2015, processo n.º 1110/13.0T2STC-B.E1[5].
A terem sido aditados novos factos aos temas da prova é evidente que se tornaria premente o contraditório das partes em sede de audiência de julgamento e, mais do que isso, se impunha a concessão às partes do direito a apresentar requerimentos probatórios e rol de testemunhas correspondentes aos novos temas da prova – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, pág. 338; cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-10-2020, processo n.º 2106/11.1TBLRA-A.C1 – “[…] se há matéria nova a indagar, mas não expressamente alegada, compreendida, claro está, na causa de pedir (factos instrumentais e complementares), sobre a qual as testemunhas inquiridas naturalmente não se pronunciaram, é de admitir a indicação de novas testemunhas, porquanto as partes não estavam a contar com tais factos. […] Se se trata de ouvir as testemunhas a matéria alegada nos articulados, não será de alterar o rol porque as partes já indicaram as testemunhas contando que seriam ouvidas a essa matéria.”
Todavia, a constatação de factos alegados, relevantes para a apreciação da causa, que não foram objecto pronúncia pela 1ª instância evidencia o incumprimento do dever de fundamentação da sentença, em que o juiz deve não só declarar os factos provados, como os não provados, justificando os motivos da sua decisão, impondo-se, então, a ampliação da matéria de facto, o que implica a baixa do processo à 1.ª instância para que se apreciem os factos que, tendo sido oportunamente alegados, não foram objecto de decisão positiva ou negativa – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-04-2021, processo n.º 3300/15.1T8ENT-A.E1.S2.
Tal não significa, contudo, que tenha necessariamente de ser produzida nova prova ou que tenha de ser produzida prova testemunhal e menos ainda que tenha de existir renovação da prova já produzida, sem prejuízo da necessidade de reabertura da audiência e prolação de nova decisão.
Atente-se que aquilo que foi decidido no acórdão desta Relação foi anular a decisão recorrida – e não o julgamento -, para ampliação da matéria de facto, nos termos expressamente mencionados no texto e prolação de nova decisão.
Confrontada com o assim determinado, a senhora juíza a quo convidou as partes a requererem o que tivessem por conveniente face à ordenada apreciação dos concretos pontos de facto em falta, mencionando a produção de prova, tal qual resultava do teor do acórdão, vertendo o seguinte no despacho proferido em 24 de Janeiro de 2022 (cf. Ref. Elect. 412351564): “Tomei conhecimento do Douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa. Atendendo a que, nos termos do artigo 662º, n.º 3, alínea c) do CPC, foi ordenada a produção de nova prova ou a renovação de prova incidente, contraditada entre as partes, sobre os concretos pontos de facto ali indicados – se o banco garante procedeu ao pagamento da garantia bancária e se foi exigido, à autora, o respectivo reembolso – convida-se, antes de mais, autora e ré, a, no prazo de 10 dias, requererem o que tiverem por conveniente. Após, abra conclusão para designação de data para reabertura da audiência.”
Como é evidente, a senhora juíza a quonão tomou qualquer posição sobre a necessidade de produção de prova, limitando-se a dar cumprimento ao ordenado pela Relação, convidando as partes a, querendo, requererem o que tivessem por conveniente, e dando conta de que a audiência seria reaberta, como, aliás, se impunha, antes da prolação de nova decisão.
Ora, foram as partes, designadamente a autora, que se abstiveram de requerer o que quer que fosse a esse propósito, conformando-se, desse modo, com a prova já produzida, com base na qual restaria à senhora juíza a quo emitir pronúncia positiva ou negativa sobre os factos que importava julgar e que estavam em falta.
Assim, na ausência de qualquer requerimento ou apresentação de novo meio de prova – o que é reconhecido pela própria recorrente – restava ao Tribunal recorrido prosseguir com a reabertura da audiência, conceder oportunidade às partes para se pronunciarem sobre os factos que haveria que apreciar e proferir nova decisão. E foi isto que sucedeu.
As partes foram ouvidas sobre a realização da audiência à distância através de meios informáticos ou sobre a concessão de prazo para alegarem por escrito; acederam, em concordância, com esta última via; apresentaram as suas alegações, em que efectuaram a ponderação da prova produzida com pronúncia sobre a sua virtualidade, ou não, para dar como provados os aludidos novos factos – sobre o que a ora recorrente expressamente se pronunciou -, e o Tribunal proferiu nova decisão.
Assim, contrariamente ao sustentado pela recorrente, o despacho proferido em 16 de Fevereiro de 2022, que ordenou a reabertura da audiência para produção de alegações, face à ausência de qualquer requerimento quanto a uma eventual necessidade de se produzir qualquer uma outra prova limitou-se a cumprir o superiormente ordenado e a retirar as devidas consequências do comportamento as partes, sendo certo que não competia proceder à renovação da prova já produzida, que, aliás, a ter sido ordenada, sê-lo-ia perante o Tribunal da Relação e não na 1ª instância – cf. José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, 3ª Edição, pág. 175.
Por outro lado, reitere-se, não se impunha qualquer «repetição do julgamento» em termos de reprodução dos meios de prova já produzidos, mas apenas o julgamento dos factos em falta, ou seja, a concreta pronúncia, com resposta positiva ou negativa, sobre tais factos, não necessariamente precedida de diligências de prova.
Assim, não existiu qualquer violação por parte da 1ª instância do decidido por esta Relação e tão-pouco se verifica qualquer contradição entre o despacho proferido em 16 de Fevereiro de 2022 e o anteriormente prolatado em 24 de Janeiro de 2022, onde nenhuma posição foi tomada sobre a produção de meios de prova, não se detectando violação de caso julgado formal[6].
A senhora juíza a quocumpriu aquilo que se lhe impunha: convidar as partes a requerer o que tivessem por conveniente; reabrir a audiência; proferir nova decisão.
Se os autos forneciam ou não os elementos de prova bastantes para dar como provados os factos que vieram a ser consignados nos pontos 40. e 41. é questão distinta de uma eventual violação de caso julgado formal ou desrespeito pelo conteúdo do acórdão da Relação, pois que deverá ser apreciado enquanto eventual erro de julgamento.
Improcedem, assim, as conclusões 1ª a 5º do recurso, na parte atinente ao despacho proferido em 16 de Fevereiro de 2022.
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3.2.2.–Das nulidades da sentença
A recorrente vem imputar invalidades à sentença recorrida que integra nas nulidades previstas nas alíneas d) e b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, com a seguinte ordem de fundamentos:
O Tribunal recorrido fixou a nova matéria de facto sem que a prova fosse contraditada entre as partes, tendo violado o princípio do contraditório, quanto à produção de prova, violando o estatuído nos art.ºs 3º, n.º 3 e 415º do CPC, pelo que a sentença é nula por ter sido omitida formalidade obrigatória;
A sentença recorrida é quase mera repetição integral da anteriormente proferida, tendo eliminado apenas referências às despesas com honorários do mandatário e despesas administrativas, não obstante ter sido formulado pedido expresso que as abrange;
Além disso, aditou os novos factos 40. e 41., a fundamentação destes pontos (na página 13) e a referência ao pagamento da quantia contratualizada, nada mais tendo sido acrescentado, não tendo sido analisadas criticamente as provas que fundamentam os factos 40. e 41., remetendo apenas para os documentos n.ºs 10 e 16 juntos com a petição inicial, sem indicar a demais prova relevante para dar por assente tais factos, pelo que, nessa parte, a sentença padece do vício de falta de fundamentação por omissão da análise crítica das provas;
Ainda que se entenda que não ocorre a apontada nulidade, sempre se justifica que os autos sejam remetidos à 1ª instância para ser suprida tal omissão.
A senhora juíza a quoproferiu despacho admitindo o recurso interposto mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, n.º 1 e 617º do CPC (cf. Ref. Elect. 418312599).
A omissão de despacho do juiz a quo sobre as nulidades arguidas não determina necessariamente a remessa dos autos à 1ª instância para tal efeito, cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 149.
Tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC.
Dispõe o art. 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:
“1- É nula a sentença quando: a)- Não contenha a assinatura do juiz; b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d)- O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e)- O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
Conforme impõe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciação (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art. 607º do CPC).
É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 737.
Sustenta a recorrente que, não tendo o Tribunal recorrido permitido que as partes se pronunciassem ou discutissem novamente a prova violou o princípio do contraditório, pelo que ao proferir decisão sem essa prévia pronuncia, esta é nula.
Com efeito, tem sido entendido que tendo existido uma omissão na tramitação processual – ausência de audição das partes, por exemplo -, vindo a ser proferida decisão, aquilo que se impõe verificar é a da sua legalidade e das consequências de eventual ilegalidade para a sentença que veio a ser proferida.
Na verdade, ainda que na generalidade das nulidades processuais a sua verificação deva ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre esta incidir, tal solução é inadequada quando estão em causa situações em que o próprio juiz, ao proferir a decisão, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá cobertura a essa omissão.
Nesses casos, a nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC – cf. neste sentido, Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, 29-11-2016, Jurisprudência (496) Decisão-surpresa; nulidade; investigação da paternidade; caducidade[7]; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23-06-2016, processo n.º 1937/15.8T8BCL.S1; de 6-12-2016, processo n.º 1129/09.5TBVRL-H.G1.S2 e de 22-02-2017, processo n.º 5384/15.3T8GMR.G1.S1.
O art.º 3º, n.º 3 do CPC estatui: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Subjacente ao princípio do contraditório está a ideia de que, apenas em situações excepcionais, as decisões podem ser tomadas à revelia de algum dos interessados, daí que aquele se imponha como princípio geral que atravessa todas as fases processuais, especialmente na fase dos articulados e na fase de apresentação e produção de meios de prova (cf. art.º 415º do CPC).
No âmbito da apresentação e produção de prova, a observância do princípio do contraditório varia em função da natureza dos meios de prova (nas provas constituendas, devem as partes ser ouvidas relativamente à sua admissão, preparação e produção; nas provas já constituídas, devem poder pronunciar-se sobre a sua admissão e apreciação), sendo que a intervenção de ambas as partes na produção da prova, a apreciação os elementos recolhidos deve ser precedida do contraditório.
Ora, basta atentar no acima explanado quanto às circunstâncias em que o tribunal recorrido reabriu a audiência e proferiu nova decisão para facilmente concluir que não se verificou qualquer violação do princípio do contraditório.
O Tribunal louvou-se na prova carreada para os autos e na já produzida em sede de audiência de julgamento para se pronunciar sobre os novos factos e proferir nova decisão, tendo previamente auscultado as partes e concedido a oportunidade quer de estas requererem o que tivessem por conveniente para cumprimento do ordenado pela Relação, quer para se pronunciarem sobre a matéria que cumpria aprecia, o que, aliás, fizerem, alegando por escrito.
Não ocorreu, pois, a suscitada violação do princípio do contraditório, pelo que a decisão proferida não se mostra afectada da apontada nulidade (excesso de pronúncia).
Por sua vez, a nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art. 615º do CPC é reconduzida à falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito ou a sua ininteligibilidade, o que tem sido uniformemente entendido pela jurisprudência como abrangendo apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente ou o desacerto da decisão.
Como se dá conta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2-06-2016, processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1:
“As causas de nulidade tipificadas nas alíneas b) e c) do nº 1 do artigo 615º […] ocorrem quando não se especifiquem os fundamentos de facto e de direito em que se funda a decisão (al. b)) ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou se verifique alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível (c)). O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154º do Código de Processo Civil e impõe-se por razões de ordem substancial, cumprindo ao juiz demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto, e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar o respectivo fundamento ou fundamentos […] Não pode, porém, confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, sendo que só a falta absoluta de motivação constitui a causa de nulidade prevista na al. b) do nº 1 do artigo 668º citado, como dão nota A. Varela, M. Bezerra e S. Nora (Manual de Processo Civil, 2ª ed., 1985, p. 670/672), ao escreverem “Para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”. Só a total omissão dos fundamentos, a completa ausência de motivação da decisão pode conduzir à nulidade suscitada.”
A figura da nulidade da sentença por falta de fundamentação constitui, assim, uma figura de muito difícil verificação, dado que a doutrina e a jurisprudência têm salientado que tal só se verifica em situações de falta absoluta de indicação das razões de facto e de direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência ou laconismo, se deve considerar a fundamentação deficiente.
Já o Prof. José Alberto dos Reis esclarecia que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.» - cf. Código de Processo Civil Anotado, V Volume, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág. 140.
Significa isto que o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação não ocorre em situações de escassez, deficiência, ou implausibilidade das razões de facto e/ou direito indicadas para justificar a decisão, mas apenas quando se verifique uma total falta de motivação que impossibilite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011, processo n.º2/08.9TTLMG.P1.
Como a própria apelante reconhece, na decisão recorrida ficou consignado, a propósito dos factos aditados e numerados como 40. e 41., que para a respectiva prova “teve-se em consideração os documentos n.ºs 10 e 16 juntos com a petição inicial”, assim como se aludiu à prova testemunhal produzida, em concreto os depoimentos das testemunhas Carlos Manuel …….. e Carlos Alberto …….., cujo conteúdo essencial relatou, para justificar a sua convicção quanto à afirmação de que o banco garante assegurou o pagamento da garantia e que a autora o reembolsou por esse valor, pelo que é evidente que o tribunal recorrido fundamentou a resposta dada aos factos que cumpria apurar, louvando-se na prova documental e testemunhal aportada aos autos.
Sequer se pode afirmar, como pretende a recorrente, que não tenha sido efectuada uma análise crítica da prova, porquanto ainda que o Tribunal se tenha limitado a adicionar os pontos 40. e 41. Ao elenco dos factos relativamente aos quais a prova se efectuou com base em tais depoimentos, consta do texto a motivação que justificou a resposta positiva dada.
Pode suceder que a prova seja insuficiente para dar como demonstrados tais factos ou que tenha ocorrido uma incorrecta valoração, mas tal contende com um eventual erro de julgamento e não com a nulidade decorrente de falta de fundamentação.
Não sendo constatada tal omissão é evidente que se torna inútil qualquer remessa dos autos à 1ª instância para suprir o vício que não se identificou.
Improcede, também aqui, a nulidade apontada à decisão, pelo que improcedem as conclusões 6ª a 14º do recurso.
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3.2.3.–Da Impugnação da Matéria de Facto
Entende a apelante que o ponto 41. da matéria de facto provada foi incorrectamente julgado, porquanto os documentos n.ºs 10 e 16 juntos com a petição inicial não têm a virtualidade de demonstrar tal facto, o que faz referindo o seguinte:
Dos factos provados sob os pontos 36. e 39. decorre que a autora não tinha saldo na sua conta à data da apresentação a pagamento da garantia, pelo que não foi aquela que pagou, directamente, o montante de 7 172,04 €;
O documento n.º 10 é processado por computador, aparentemente pelo próprio sistema informático do Novo Banco e não está assinado ou subscrito por quem quer que seja; a testemunha Carlos …….. não soube explicitar nada sobre tal documento, conforme decorre do seu depoimento aos minutos 01:20:03 a 01:20:54 e 01:24:21 a 01:25:00;
O documento n.º 16 corresponde a uma factura processada pela entidade bancária, cobrando o custo da comissão relativa à operação de honra da garantia, o que, conjugado com o documento n.º 10, pode justificar a prova de que o banco assegurou o pagamento da garantia, mas não prova que a autora reembolsou o banco, não tendo sido apresentado qualquer extracto de conta que revele esse pagamento, talão de depósito ou ordem de transferência;
A prova testemunhal não podia ser considerada porque a senhora juíza a quo consignou que seria suficiente a prova documental, pelo que a aquela ponderação viola o princípio do contraditório e, de todo o modo, o depoimento da testemunha Carlos …….. é inconsistente para dar como provado o ponto 41., conforme gravação aos minutos 01:04:23 a 01.05:33, 01:11:56 a 01:12:21 e 01:25:02 a 01:25:23.
Assim, conclui que o facto vertido no ponto 41. deve ser dado como não provado.
Em conformidade com o já acima explanado, há que reconhecer que nada impedia o Tribunal recorrido de lançar mão de toda a prova produzida para se pronunciar sobre os factos a apurar, pois que se trata de prova já adquirida para os autos, cuja admissão, preparação e produção foi sujeita a contraditório, tendo ambas as partes gozado da oportunidade de sobre ela se pronunciar e contrariar.
Apesar de a senhora juíza a quo ter mencionado, no despacho de 16 de Fevereiro de 2022, que entendia que os autos forneciam os elementos necessários para decidir, aludindo apenas à prova documental, isso não a impedia, como se afigura de meridiana clareza, de, uma vez reaberta a audiência, tendo já as partes se pronunciado sobre a matéria factual em discussão, lançar mão de toda prova produzida, seja a documental, seja a testemunhal.
Os meios de prova relevantes para a fixação da matéria de facto são todos aqueles que se apresentem como potencialmente úteis para a decisão dos factos necessitados de prova, entendendo-se estes como os que importem, ainda que instrumentalmente, a qualquer uma das possíveis soluções de direito da causa.
A prova pode ter um valor fixado pelo legislador (prova legal) ou ser livremente valorada pelo tribunal (prova livre), sendo que neste último caso, o tribunal aprecia livremente a prova segundo a sua prudente convicção acerca da prova produzida pela parte (cf. art.º 607º, n.º 5 do CPC).
Ora, neste caso, porque os factos carecidos de prova não estão sujeitos a prova vinculada – a lei não faz depender a demonstração do pagamento da garantia pelo banco e o seu reembolso pelo dador da garantia apenas de prova documental – nada impedia que o Tribunal recorrido se baseasse em toda a prova produzida, desde logo, porque ambas as partes tiveram a oportunidade de a sindicar e porque a referência constante do despacho de 16 de Fevereiro de 2022 não tem a virtualidade de cingir a prova a considerar apenas à prova documental. E ainda que esta pudesse de facto, na perspectiva da 1ª instância, ser bastante para comprovar os factos em questão, nada impedia que tal prova continuasse a ser corroborada pela demais prova produzida.
Assim, nada impede também esta Relação de sindicar o juízo probatório efectuado pela 1ª instância, por referência à fundamentação por esta aduzida.
O Tribunal recorrido deu como provado o seguinte: 41.–A autora reembolsou o Banco dador da garantia.
O que fundamentou do seguinte modo:
“Para prova dos factos elencados em 40 e 41 teve-se em consideração os documentos nº 10 e 16 juntos com a petição inicial.
Quanto à demais matéria dada como provada, designadamente os factos elencados em 4 a 6, 15 e 16 e, bem assim, 23, 39, 40 e 41, o Tribunal teve ainda em conta o somatório de toda a prova testemunhal produzida, conjugada com a prova documental carreada para os autos. […]
Por sua vez, a testemunha Carlos Manuel …….., gestor de conta da autora, na agência do Novo Banco, SA., desde maio de 2017, confirmou a prestação de garantia bancária, pela autora a favor da ré; a apresentação, por esta, em meados de 2018 da garantia bancária a pagamento; confirmou que o banco garante cobra, por débito na conta do cliente, custos trimestrais de manutenção da garantia, os quais são devidos desde a sua emissão até ao seu cancelamento ou apresentação a pagamento e, bem assim, uma comissão pela sua apresentação a pagamento; esclareceu, por fim, que à data da apresentação da garantia a pagamento a autora não tinha saldo suficiente na conta, o que levou a que a conta ficasse em situação de incumprimento perante o Novo Banco, uma vez que este pagou a quantia contratualizada, situação que a autora prontamente regularizou, sendo que atualmente se mantém como cliente do Novo Banco SA. – factos provados 9 e 10, 30 a 34 e 36 a 41.”
O documento n.º 10 junto com a petição inicial constitui, como refere a apelante, um documento produzido informaticamente, sem aposição de qualquer assinatura, contendo no canto superior esquerdo a data de 25/07/2018, por baixo desta data, a designação “NOVO BANCO e no canto superior direito a inscrição “NBnetwork”, contendo o seguinte teor:
Descrição do Movimento HONRA DE GARANTIA BANCARIA N. 00.....4
Data da Operação 2018-07-25
Data Valor 2018-07-25
Tipo Movimento CD55DEB
Montante 7.172,04 EUR
Cód. Aplicação Emissora B10
Cód. Iniciador da transação B1 502
Data/Hora da transação (PT) 2018-07-25 1 5:27:52
Utilizador ANABELA ……..
Empresa NOVO BANCO- A
O documento n.º 16 junto com a petição inicial constitui a factura n.º 6........7, emitida pelo Novo Banco, com data de 26 de Julho de 2018, dirigida à A., sociedade autora, com inscrição do valor de 286,00 €, atinente à comissão de reclamação de beneficiário de garantia, com a referência 3....4 - que corresponde ao número da garantia bancária referida em 9. dos factos provados[8] -, reportando a operação com a designação de “honra”, pelo montante honrado de 7 172,04 €.
Os factos já apurados, designadamente, os relativos à relação comercial estabelecida entre as partes, à prestação da garantia, à identificação pela ré de uma quantia ainda em dívida, que a autora contraria, pois que solicitou a devolução do original da garantia, o que foi recusado por aquela e a apresentação a pagamento da garantia bancária (cf. pontos 1. a 3., 6. a 13., 35. e 36.), em conjugação com os dois mencionados documentos autoriza, tal como entendeu a 1ª instância, a concluir que a garantia bancária foi apresentada a pagamento, o banco assegurou o seu pagamento e a autora reembolsou-o pelo valor em causa, não obstante à data da apresentação a pagamento não tivesse saldo suficiente na conta à ordem (cf. ponto 39.), facto que se revela insuficiente para contrariar a liquidação perante o garante das quantia satisfeita ao beneficiário.
Se se confrontar este documento n.º 10, com os documentos n.ºs 4 a 9 juntos com a petição inicial, que constituem ordens de transferência efectuadas pela empresa A, na mesma plataforma informática do Novo Banco (NBnetwork) é possível verificar que o utilizador em todas essas situações é Anabela ........., o que permite concluir que terá sido através deste canal que a autora procedeu ao reembolso ao banco do valor por este suportado com a honra da garantia prestada.
A inexistência de saldo bastante na conta titulada pela autora junto do banco garante não significa que aquela não tenha suportado o valor correspondente, conforme pretende a recorrente, mas apenas que o banco cumpriu a sua obrigação de garante – como se lhe exigia -, pagando, por si, a garantia apresentada e, posteriormente, fez-se pagar junto da autora.
Assim, não tem razão a apelante quando pretende afastar qualquer virtualidade de tais documentos para comprovarem o reembolso mencionado no ponto 41..
Ademais, o depoimento da testemunha Carlos ........, gestor de conta da empresa autora junto do Novo Banco desde Maio de 2017, ainda que não tenha sido totalmente esclarecedor a este propósito, não deixa de corroborar esta conclusão.
Com efeito, embora a testemunha não revelasse um conhecimento seguro sobre o significado dos dizeres constantes do documento n.º 10, foi assertiva quanto ao facto de a garantia ter sido apresentada a pagamento, de o banco ter honrado a garantia, de o saldo existente na conta titulada pela autora ter ficado negativo, de tal situação ter sido regularizada pela autora, o que evidencia que seja através do débito em conta, seja através da regularização do saldo negativo, a autora acabou por suportar o valor da garantia paga pelo banco.
De igual modo, esta testemunha confirmou que o nome Anabela …….. corresponde ao utilizador da empresa autora que tem acesso à conta por esta titulada junto do banco, através do serviço por este facultado através da internet, daí que, embora não sabendo esclarecer o destinatário do valor indicado no documento n.º 10, seguro é que tal valor coincide com aquele que foi satisfeito pelo banco e que de um modo ou de outro foi, em última instância, reembolsado pela autora ao banco, sendo certo que não está sequer em discussão que a garantia foi accionada (cf. ponto 36.), que o banco assegurou o pagamento (cf. ponto 40.), e que isso originou a comissão atinente a tal reclamação (cf. ponto 37.).
Mais referiu a testemunha, embora não sabendo esclarecer o significado dos números e letras que se encontram apostos à frente das designações “Tipo Movimento”, “Cód. Aplicação Emissora” e “Cód. Iniciador da transacção”, que o valor referido no documento n.º 10 foi para liquidar o montante da garantia bancária, mas não corresponde a um depósito na sua conta, nem a uma transferência para a sociedade ré, pelo que se tratou da regularização decorrente do accionamento da garantia.
Neste contexto, não se vislumbram razões para divergir da conclusão a que chegou a 1ª instância, devendo manter-se inalterado o facto provado sob o ponto 41..
Improcede, pois, a impugnação da decisão da matéria de facto, improcedendo as conclusões 15ª a 25ª.
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3.2.4.–Da apresentação injustificada a pagamento da garantia bancária e dever de restituição por parte da ré
Insurge-se a recorrente contra a apreciação do mérito da causa, considerando que a autora não fez prova dos factos constitutivos do seu direito, não tendo a sentença recorrida efectuado uma aplicação correcta do direito, pois que condenou a ré com base no instituto da responsabilidade civil em que um dos respectivos pressupostos é a culpa, que não se provou, dado que a ré fez todos os esforços para apurar as divergências entre a sua contabilidade e a da autora antes de proceder ao accionamento da garantia, o que não foi possível, mas existindo um saldo devedor desta; além disso, na senda da modificação de facto por que propugnou, entende que não está provado que a autora tenha reembolsado o banco da quantia referente ao accionamento da garantia, pelo que não deveria ter sido condenada na restituição do montante de 7 172,04 €.
Mais refere que não está provado que a autora tenha pagado as quantias atinentes a comissão periódica de garantia bancária (pontos 31. a 34. e 38.) ou de reclamação de beneficiários de garantia (ponto 37.), porque apenas se provou que o Novo Banco debitou tais montantes mas não que a autora os pagou, pelo que não deveria ter sido condenada no pagamento da quantia de 1 178,85 €.
A sentença recorrida, qualificando a relação existente entre a autora e a ré como um contrato de fornecimento, a que, para além do acordado entre as partes, se aplicariam as regras da compra e venda, designadamente, a obrigação por parte do vendedor de entregar a coisa e do comprador de pagar o preço, apreciou o dever de restituição pela ré da quantia suportada pela autora junto do banco garante, nos seguintes termos:
“No caso em apreço, e pese embora seja o comprador/devedor que se apresenta a propor a ação, competia igualmente à ré, nos termos em que a autora configura a causa de pedir, alegar os sucessivos fornecimentos dos produtos, nos termos contratados com a autora, e, nessa sequência, a emissão das correspondentes faturas e, bem assim, que as mesmas foram remetidas àquela, assim como os produtos encomendados e igualmente o não pagamento pela autora do respetivo fornecimento, o que justificaria a apresentação da garantia a pagamento.
Caberia, por sua vez, à autora a prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos daquele direito, nomeadamente que efetuou o pagamento dos produtos fornecidos.
Nos autos, verificamos que a autora logrou provar o pagamento das faturas que totalizavam a quantia alegadamente em dívida à ré, e que esteve na base do acionamento da garantia bancária – factos provados 13 e 17 a 22 – não tendo esta logrado provar os factos constitutivos do seu direito, que, além do mais, a autorizariam a apresentar a garantia bancária a pagamento. – facto provado 40.
Note-se que a ré nem sequer procedeu à junção dos documentos que alegadamente titulavam tal crédito.
Com efeito, a ré limitou-se a alegar que, no trato comercial existente entre si e a autora, existe a seu favor “um saldo credor no montante global de € 7.172,04”.
E, com o nítido propósito de sustentar esse saldo, juntou o extrato da conta corrente, por si elaborada, que se acha junta como doc. 3 da contestação, e igualmente como doc. 3 da petição inicial, na tentativa de, assim, expressar os valores, no seu entendimento, devidos pela autora, pelo fornecimento do papel, e que justificou o acionamento da garantia.
Contudo, analisados criticamente tais documentos não correspondem os mesmos a qualquer fornecimento pela ré de qualquer bem – papel - com um certo preço, mediante solicitação da autora, mas antes, e tão só, um registo contabilístico, cuja elaboração é totalmente alheia à autora, de operações efetuadas a crédito e débito.
Ora, a mera circunstância de a ré, e igualmente a autora, elaborarem, para sua própria organização interna, um registo contabilístico, a que designam de conta corrente, onde lançam, ou inscrevem, os seus movimentos a crédito e a débito, nada esclarece ou comprova a este título.
E isto porque a conta corrente contabilística é uma mera técnica de escrituração, na qual o comerciante, sem intervenção do seu cliente ou fornecedor, regista numericamente o movimento das suas transações. Tal processo contabilístico de escriturar as transações comerciais, em rubricas de “deve” e “haver” ou “débitos” e “créditos” é, aliás, comum a comerciantes e não comerciantes.
Acontece que, na prática, e frequentemente, este processo de escrituração se confunde com o também chamado contrato de conta corrente. Este, no seu sentido técnico-jurídico, consiste na convenção entre as partes no sentido de lançarem a débito e a crédito os valores que reciprocamente tenham ou venham a ter de entregar uma à outra e de se exigirem apenas o saldo final que se venha a apurar - artigos 344º e 350º do Cód. Comercial.
No entanto, uma coisa é o contrato de conta corrente, outra diversa é a conta corrente contabilística, a qual, como dissemos, apenas tem o significado de documentar e registar a organização contabilística de uma empresa e nada mais.
Ora, atendendo à factualidade adquirida nos autos, não ressuma que entre autora e ré tenha sido celebrado qualquer contrato de conta corrente.
Daí que, e quanto a nós, não se afigure sustentável que, no âmbito de um contrato de fornecimento de bens, quem pretenda fazer valer-se do mesmo – no caso a ré - se limite a apresentar um mero registo contabilístico, o qual, tratando-se eventualmente de um meio de prova, não tem a virtualidade de configurar um contrato comercial de conta corrente, para poder daí extrair os efeitos que pretende.
Aliás, como se escreveu no douto Acórdão da Rel. de Coimbra de 23/2/1994, “o facto de se celebrarem reciprocamente transações e estas serem escrituradas em conta corrente não implica necessariamente a existência de um contrato de conta corrente” (BMJ 434-697). Isto posto,
Resultou igualmente demonstrado que a autora liquidou as faturas apontadas pela ré como estando em dívida, FT 2...6, FT 2...1, FT 2...2, FT 5..-5.., FT 0.. E FT 1..4, no valor de € 7.172,04 - através de pagamentos efetuados, via transferência bancária, para a conta bancária, titulada pela ré, indicando que tais pagamentos se destinavam ao pagamento daquelas concretas faturas. - factos provados 17 a 22.
Pagamento que a ré aceitou. – facto provado 23.
Todavia, e motu próprio, imputou esses diferentes pagamentos à liquidação de outras faturas, com datas anteriores - factos provados 24 a 29 - o que cremos nós, lhe não era permitido fazer face à indicação expressamente feita pela autora.
Na verdade, a respeito, dispõe o artigo 783º do CC, sob a epígrafe “designação pelo devedor”, que “1.- Se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efetuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere. 2.- O devedor, porém, não pode designar contra a vontade do credor uma dívida que ainda não esteja vencida, se o prazo tiver sido estabelecido em benefício do credor; e também não lhe é lícito designar contra a vontade do credor uma dívida de montante superior ao da prestação efetuada, desde que o credor tenha o direito de recusar a prestação parcial”.
Por seu turno, dispõe o artigo 784º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “regras supletivas”, que “1.-Se o devedor não fizer a designação, deve o cumprimento imputar-se na dívida vencida, entre várias dívidas vencidas, na que oferece menos garantia para o credor, entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor, entre várias igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido, se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data. 2.-Não sendo possível aplicar as regras fixadas no número precedente, a prestação presumir-se-á feita por conta de todas as dívidas rateadamente, mesmo com prejuízo, neste caso, do disposto no artigo 763º”.
Vale isto por dizer que, no que à imputação do cumprimento respeita, deverá atender-se em primeiro lugar, ao acordo das partes, ainda que tácito; sendo que na falta de acordo, prevalece a regra da imputação pelo devedor, com limitações (as previstas no nº 2 do artigo 783º), por forma a que não resulte violado o interesse legítimo do credor.
A propósito, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. II, 3ª ed., págs. 56 e 57, escrevia que “de harmonia com o princípio da liberdade negocial, a primeira indicação a considerar para o efeito será a do acordo (expresso ou tácito) das partes (artigo 783º, nºs 1 e 2). Na falta de acordo, a lei confere ao devedor, quando a prestação por ele efetuada não baste para extinguir todas as obrigações, a faculdade de designar as dívidas a que o cumprimento se refere. Não se trata, porém, de uma faculdade discricionária, arbitrária ou indiscriminada, na medida em que tem de subordinar-se, lógica e razoavelmente, a duas regras fundamentais em matéria de cumprimento. Por um lado, o devedor não pode designar, contra a vontade do credor, uma dívida ainda não vencida, se o prazo estiver estabelecido em benefício (quer exclusivo, quer conjunto) do credor. Por outro, não lhe é permitido designar, contra a vontade do credor, uma dívida de montante superior ao da prestação efetuada, desde que o credor tenha o direito de recusar a prestação parcial. De contrário, a designação do devedor violaria a regra do cumprimento integral (e não por partes),…”.
Voltando aos autos, temos que a ré imputou as quantias pagas, pela autora, no montante de € 7.172,04 ao pagamento parcial, das quantias em dívida tituladas pelas faturas que junta como doc. 7 a 14 da contestação. – factos provados 24 a 29.
Todavia, não se apurou que autora disso tivesse conhecimento ou em tal procedimento tivesse consentido ou acordado – facto não provado a).
E a ser assim, inexistindo qualquer acordo quanto à imputação de cada pagamento, e sendo certo que estamos perante uma sucessão de dívidas da autora, da mesma espécie, isto é, oriundas do mesmo contrato e relativamente ao mesmo credor – aqui ré – tinha aplicação, em primeira linha, o estatuído no citado nº 1 do artigo 783º do C. Civil.
Assim, e consequentemente, estando provado que a autora ao efetuar diversos pagamentos indicou expressamente as faturas, a que os mesmos se destinavam – factos provados 17 a 22 - não podia a ré, enquanto credora, imputar esses recebimentos a outras dívidas, ainda que mais antigas, como fez, a pretexto de evitar a suspensão dos fornecimentos.
E note-se que, não obstante, em tese, se poder considerar que a ré, ao imputar o pagamento a outras faturas mais antigas significa que faturas havia que permaneciam em dívida, o que é facto é que tal tese pressupunha, por parte da ré, a alegação (e prova), nos termos já referidos, do fornecimento desses produtos, nos termos contratados com a autora, e, nessa sequência, a emissão das correspondentes faturas, o que não fez, não servindo esse propósito a mera junção de uma conta corrente contabilística ou alegação genérica de que “continuariam então em dívida outras faturas, permanecendo por pagar o saldo devedor reclamado pela R.”
E assim, tanto basta para concluir que assiste razão à autora na sua pretensão, quanto ao pedido formulado em a) e que, nessa medida, não sendo devedora do montante apresentado pela ré a pagamento - € 7.172,04 – junto do Banco garante, foi aquela cobrança indevida, devendo ser condenada na restituição à autora do mesmo montante.”
A autora demandou a ré pretendendo obter, entre o mais, a condenação desta na restituição da quantia de 7 172,04 € que aquela teve de despender para reembolsar o Novo Banco na sequência da apresentação irregular a pagamento da garantia bancária n.º 3....4, que prestou no âmbito do contrato de fornecimento de papel que as partes celebraram entre si em Abril de 2004 e que vigorou até meados do ano de 2016, findo o qual, na versão da autora, existia um saldo zero entre elas, enquanto para a ré existia um saldo credor a seu favor pelo montante referido.
Conforme decorre do conteúdo da petição inicial, a autora, apesar de tanto aludir à existência de má fé por parte da ré e a uma intenção dolosa (que não se provou), acabou por sustentar a sua pretensão no instituto do enriquecimento sem causa, atento o que consignou nos artigos 41º e 42º daquele articulado.
A decisão recorrida não é clara quanto ao instituto jurídico em que se louvou para condenar a ré na restituição do montante de 7 172,04 €; quanto à condenação da ré no pagamento das quantias despendidas pela autora com as comissões que lhe foram cobradas pelo Novo Banco, parece ter enveredado pelo instituto da responsabilidade civil (ao que se depreende, contratual); porém, a final, refere-se na decisão que tais condenações teriam assentado no instituto da responsabilidade civil por factos ilícitos (art.º 483º do Código Civil), e que assim resultava afastado o enriquecimento sem causa (cf. página 32 da sentença recorrida).
Como se explanará infra, crê-se que os factos alegados e provados devem ser apreciados à luz do instituto do enriquecimento sem causa.
A autora alegou que o montante de que a ré se fez cobrar junto do banco garante foi por esta justificado como correspondendo a diversas facturas cujo valor ainda estaria em dívida no final da relação contratual.
Alegou e demonstrou que as facturas identificadas pela ré como estando em dívida foram pagas com as transferências que identificou, conforme pontos 13. e 17. a 22. da matéria de facto provada.
Por sua vez, a ré admitiu ter recebido os valores que a autora entregou para pagamento das facturas referidas em 13., mas aduziu que os imputou para pagamento de outras facturas. Porém, não identificou os fornecimentos efectuados na vigência da relação contratual nem as facturas correspondentes que se encontrariam por saldar, no final da relação comercial, não concretizou os seus valores, assim como não juntou aos autos as facturas cujo pagamento teria visado alcançar com o accionamento da garantia bancária.
A ré, após apontar diversos erros e lapsos na contabilidade da autora, limitou-se a concluir que as transferências de valores por esta efectuadas não serviram para liquidar as facturas por ela indicadas e, ainda que tivessem tido essa finalidade, então estariam outras em dívida, mas não concretizou quais as facturas que estariam em dívida.
Este Tribunal superior já se pronunciou no anterior acórdão proferido nestes autos sobre a natureza da garantia bancária autónoma, para onde se remete, evitando-se repetições desnecessárias.
Atente-se, porém, que a característica essencial da garantia bancária autónoma é a da sua independência, ou seja, é ela própria fonte contratual de uma obrigação distinta da obrigação garantida, pelo que o banco assume uma obrigação que não pode ser atingida pelas vicissitudes da obrigação principal, ou seja, a obrigação do banco é independente de qualquer discussão acerca do cumprimento ou do incumprimento do contrato (no caso, o fornecimento do papel e o respectivo pagamento).
O accionamento da garantia autónoma depende, pois, apenas da interpelação à instituição bancária por parte do beneficiário da garantia; o banco, o garante, pagará ao beneficiário determinada quantia, assim que este lha solicite.
Aquilo que está em discussão nos presentes autos é determinar se o accionamento da garantia pela ré foi injustificado e, sendo-o, se esta deve restituir à autora o valor que despendeu para reembolsar o banco pela satisfação da garantia.
O banco que cumpre a obrigação de garantia tem o direito a obter, do dador da ordem, o reembolso da quantia paga; por sua vez, o dador deverá reembolsar o garante, sem poder invocar meios de defesa respeitantes às relações dador-beneficiário. Assim, como refere, Jorge Duarte Pinheiro, “a obrigação de reembolso subsiste ainda que, p.e., o dador prove que, no momento da solicitação, o beneficiário não tinha qualquer direito em virtude de já estar cumprida a obrigação principal” – cf. Garantia Bancária Autónoma, Revista Ordem dos Advogados, pág. 453[9].
No caso de solicitação irregular do pagamento da garantia, o dador da ordem pode reaver toda ou parte da quantia liquidada em cumprimento da obrigação de reembolso, para o que deverá propor uma acção contra o beneficiário, que, geralmente, se tratará de uma acção de enriquecimento sem causa – cf. Jorge Duarte Pinheiro, op. cit., pp. 454-455.
Nessa acção, recai sobre o demandante/dador da garantia, que invoca a exigência irregular do pagamento desta, o ónus da prova, que consiste em demonstrar que cumpriu o contrato base ou que o incumprimento não lhe é imputável – cf. Jorge Duarte Pinheiro, op. cit., pp. 455-456, nota 107.
O devedor/dador da garantia – no caso, a autora – tem de demonstrar que cumpriu o contrato-base ou que o incumprimento não lhe é imputável (ao invés do que sucede na acção de incumprimento, em que o autor, o credor, deve provar a inexecução, enquanto ao devedor cabe demonstrar que a inexecução não lhe é imputável) – cf. Jorge Duarte Pinheiro, op. cit., pág. 456, nota 107.
A enorme dificuldade a nível de ónus da prova por via desta inversão de posições, não deixa de ser realçada pela doutrina, como é o caso de Jorge Duarte Pinheiro, sendo que também se alerta para a necessidade de estabelecer limites à autonomia da garantia bancária, dado que o garante, e sobretudo o devedor principal, fica numa situação gravosa face a um abuso do beneficiário, pois terá de pagar primeiro e reclamar depois, interpondo uma acção de enriquecimento sem causa de incerta probabilidade de sucesso – cf. Francisco Cortez, A Garantia Bancária Autónoma, ROA 1992, Ano 52, Vol. II, Junho, pág. 595, nota 159[10].
Neste mesmo sentido, aponta Alexandre Mota Pinto, in Proteção Cautelar Contra Execução Abusiva de Garantia Bancária Autónoma: Entre a Certeza de uma Garantia Forte e a Verosimilhança da Tutela Cautelar, pp. 233-234[11]:
“Em bom rigor, estas garantias operam uma inversão das posições e dos ónus das partes na relação base, bem como dos correspondentes riscos. Caso não existisse a garantia, o credor na relação base teria de discutir primeiro e só receberia depois (concomitantemente, o devedor estaria na vantajosa posição de só depois de discutir, ser obrigado a pagar). Com a emissão da garantia, o credor/beneficiário recebe primeiro e só terá de discutir depois, ao passo que o devedor/mandante terá de pagar primeiro e só poderá discutir depois. Portanto, a garantia inverte o ónus de propositura da acção de satisfação do crédito garantido, passando este ónus a incidir sobre o devedor. Em consequência desta inversão de papéis, a garantia opera uma inversão dos riscos de insatisfação do crédito do beneficiário. Sem garantia, este incorreria no risco de incumprimento do devedor e de insolvência deste. Com a garantia, é o devedor e mandante que assume o risco de execução ilícita da garantia pelo credor/beneficiário, bem como o risco de insolvência deste.”
Competia, assim, à autora demonstrar o cumprimento do contrato base e, por consequência, a falta de justificação para que a ré apresentasse a garantia bancária prestada a pagamento.
Não obstante a formação e emissão de uma garantia bancária autónoma pressuponha a celebração de três negócios jurídicos - o contrato-base entre o mandante da garantia e o beneficiário (no caso, o acordo para fornecimento de papel); o contrato pelo qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário (celebrado, neste caso, entre a autora e o então Banco Espírito Santo, S. A.); e o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar o valor acordado, logo que o beneficiário o informe que a obrigação garantida se venceu e não foi paga e solicite o pagamento -, certo é que a apresentação a pagamento de uma garantia bancária quando não existe fundamento para tanto origina o dever de reembolso por parte do dador mas confere-lhe, simultaneamente, o direito a reaver junto do beneficiário a quantia liquidada ao garante por força da solicitação irregular.
Na verdade, a quantia liquidada sem justificação corresponderá a um enriquecimento ilegítimo do beneficiário, sendo certo que para efeitos do estatuído no art.º 473º do Código Civil, o enriquecimento corresponde ao reflexo no património do enriquecido de um facto não justificado juridicamente – cf. Ana Prata, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Atualizada, pág. 649.
É essa falta de causa justificativa para a apresentação a pagamento da garantia bancária que cumpria à autora demonstrar – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-07-2018, processo n.º 779/15.5T8PTM.E1.S1.
Note-se que a situação patenteada nos autos se identifica mais com a existência de um enriquecimento do que com a verificação de um dano, pelo que não se afigura que seja enquadrável pela via da responsabilidade civil, que visa a supressão ou a compensação de um dano (e não a remoção de um enriquecimento), pois que tal exige a verificação de pressupostos específicos: facto, ilicitude, culpa, nexo causal e dano (e não, o enriquecimento, o empobrecimento e a falta de causa).
Como refere Diogo Costa Gonçalves, o instituto do enriquecimento “visa ordenar a vida em sociedade, precavendo-se contra deslocações injustificadas de riqueza. Tais deslocações são desaprovadas sem, contudo, darem azo às soluções mais enérgicas da responsabilidade civil. A ideia de ilicitude imperfeita exprime o traço peculiar de o enriquecimento sem causa não comportar (ao contrário da verdadeira ilicitude) elementos subjectivos. O seu regime atenuado não deixa, todavia, de exprimir a desaprovação do Direito pelos eventos sobre que ele repousa.” – cf. Código Civil Comentado, II – Das Obrigações em Geral, Coordenação António Menezes Cordeiro, CIDP, pág. 389.
A propósito da dificuldade da prova do facto negativo que aqui releva refere-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-06-2009, processo n.º 3572/03.4TBALM-6:
“A falta de causa terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 342º, por quem pede a restituição. Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do onus probandi, que não se prove a existência de uma causa de atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa […]
Não se objecte que «não é justo nem razoável colocar-se o empobrecido, sobre quem recai o ónus da prova do facto negativo apontado, na posição de, praticamente, ter que eliminar toda e qualquer causa justificativa da transmissão patrimonial operada teoricamente pensável para poder ver acolhida a sua pretensão; sem nunca perder de vista, para não a desvirtuar, a razão de ser dos dois institutos jurídicos em presença, há que circunscrever e delimitar minimamente o ónus probatório do autor da acção de enriquecimento; e quando esta se funde, como aqui sucede, na circunstância de ter sido recebida determinada importância em vista de um efeito que não se verificou, a delimitação deverá traduzir-se no seguinte: o autor (empobrecido) precisa de demonstrar, não que não existe qualquer causa, seja ela qual for, para a prestação, mas sim que aquela ou aquelas que foram alegadas pelo réu (enriquecido) – alegadas, note-se, e não necessariamente provadas – não existem. Sendo o facto negativo, no caso em exame, um facto negativo indefinido – vale por dizer, um facto a que corresponde, como antítese, uma série indefinida de factos positivos – a prova que impende sobre o autor tornar-se-á, mais do que diabólica, pura e simplesmente impossível se esta precisão interpretativa não for introduzida na aplicação do art.º 342º, nº 1 […]
Com efeito, não se exige que o empobrecido que pretenda a restituição demonstre a inexistência de todas as causas possíveis para a deslocação patrimonial, mas tão só daquela causa que motivou a deslocação patrimonial. […]
Assim, o empobrecido apenas tem que provar uma causa – a causa que esteve na origem da deslocação patrimonial, e que esta, ou não existia, ou deixou de existir […]”
Sobre este ponto, refere ainda Diogo Costa Gonçalves, op. cit., pág. 392:
“[…] há que provar o montante do enriquecimento e a falta de causa. A este propósito, ocorrem flutuações: enquanto uma linha explica que tal “falta” deve mesmo ser provada, ainda que se trate de facto negativo (e, portanto, não bastando que a causa seja desconhecida), uma outra explica que esse ponto não deve ser exagerado, não sendo razoável provar a ausência de toda e qualquer causa possível imaginária.
Nos termos gerais, a falta de causa é um elemento constitutivo: deve ser provada por quem se queira prevalecer do instituto. Isto dito, há que ser razoável: cada situação de enriquecimento, a ser legítima, tem causas típicas ou habituais: a sua ausência deve ser minimamente demonstrada. A partir daí, o juiz deve agir com prudência e razoabilidade.”
Cumpre notar que, cessada a relação comercial entre as partes, a ré recusou a devolução da garantia bancária solicitada pela autora informando-a que, de acordo com o seu extracto contabilístico, estavam pendentes de liquidação as facturas FT 2...6, FT 2...1, FT 2...2, FT 5..-5.., FT 0.. E FT 1..4, no valor de 7 172,04 € - cf. pontos 11. a 13. da matéria de facto provada.
Foi precisamente por esse valor que a ré apresentou a garantia bancária a pagamento e foi esse o valor que o banco pagou e pelo qual foi depois reembolsado – cf. pontos 36., 40. e 41..
Ora, a autora logrou demonstrar que à data da apresentação a pagamento da garantia bancária (25 de Julho de 2018) tais facturas estavam pagas.
Com efeito, conforme decorre dos pontos 17. a 22. dos factos provados, entre 9 de Maio de 2016 e 8 de Julho de 2016, a autora efectuou diversas transferências bancárias para pagamento das mencionadas facturas.
Certo é que ficou também demonstrado que a ré imputou os pagamentos efectuados no pagamento de facturas mais antigas que constavam na sua contabilidade, conforme descrito em 23. a 29.. Contudo, não está provado que a autora e a ré tenham acordado nesse sentido, ou seja, que os pagamentos que por aquela fossem efectuados no contexto da relação comercial das partes, seriam por esta imputados às facturas mais antigas – cf. alínea a) dos factos não provados.
A 1ª instância considerou que não existe prova de que a autora tivesse conhecimento da imputação efectuada pela ré e do procedimento por esta adoptado, que nele tivesse consentido, expressa ou tacitamente, pelo que, tendo aquela designado expressamente as facturas a que se destinavam os pagamentos não podia a credora imputar o recebimento noutras dívidas.
O regime da imputação do cumprimento, quando não está em causa apenas uma dívida, encontra-se previsto nos art.ºs 783º a 785º do Código Civil.
Havendo um devedor de várias dívidas da mesma espécie perante o mesmo credor e sendo a prestação insuficiente para as extinguir a todas, o art. 783º, n.º 1 do Código Civil atribui àquele a possibilidade de escolher a dívida a que a prestação se refere.
O normativo em referência reporta-se a dívidas homogéneas, isto é, relativas a coisas do mesmo género, da mesma parte devedora no confronto com a mesma parte credora, independentemente da sua origem e, conforme resulta do n.º 2 do art. 783º, a dívidas vencidas.
O art. 783º, n.º 2 do Código Civil reporta-se a dívida não vencida com prazo a benefício do credor, que não pode ser indicada pelo devedor para ser saldada e a dívida vencida de montante superior ao da prestação efectuada, em relação à qual o credor tenha o direito a recusar a prestação parcial.
No caso está em causa uma sucessão de dívidas da autora, da mesma espécie, oriundas do mesmo contrato e relativamente à mesma credora, pelo que colhe aplicação o estatuído no n.º 1 do art. 783º do Código Civil.
No que à imputação do cumprimento diz respeito, há que atender, em primeiro lugar, ao acordo das partes, ainda que tácito – cf. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, 4ª edição revista e actualizada, pág. 34 – “A faculdade concedida ao devedor pressupõe que não houve acordo prévio entre as partes, quanto à ordem por que as obrigações deveriam ser cumpridas.”
Na falta de acordo, prevalece a regra da imputação pelo devedor, com as limitações do n.º 2 do art. 783º do Código Civil.
Ora, não resultou provado qualquer acordo das partes quanto à imputação dos pagamentos que fossem sendo efectuados.
Por outro lado, também não se provou que a autora tivesse conhecimento ou tivesse consentido no modo de procedimento seguido pela ré.
Assim, provado que está que a autora indicou, aquando dos pagamentos que efectuou, quais as facturas a que estes se destinavam, são estas cujo valor deve ser considerado pago e extinta a respectiva dívida.
Note-se que, ainda que o devedor não designe a dívida que deve ser extinta, tal não significa que a escolha se transfira para o credor, pois que então se aplica o regime supletivo previsto no art.º 784º do Código Civil.
Daqui se retira que, não obstante a imputação efectuada pela ré/credora, não estando demonstrado que a autora tomou conhecimento dessa imputação e que com ela se conformou ou que aceitou o procedimento adoptado pela ré, há que conceder relevância à sua designação, considerando as facturas enunciadas no ponto 13. como estando saldadas à data da apresentação da garantia a pagamento.
Comprovado o pagamento da dívida correspondente às facturas invocadas pela ré como estando em dívida e sendo estas a causa justificativa da apresentação a pagamento da garantia bancária, deve concluir-se que a autora logrou demonstrar a ausência dessa causa justificativa, o que torna a solicitação do pagamento da garantia irregular e determina a obrigação de restituição por parte da ré.
E a tanto não obsta a circunstância de a ré invocar que, ainda assim, se estas facturas se encontram pagas, outras estariam em dívida.
Ora, como resulta do acima expendido, não é exigível ao autor (empobrecido) que demonstre a inexistência de toda e qualquer causa susceptível de ponderação, mas sim que não existe aquela que foi alegada pelo réu, pois que não é razoável ou expectável que aquele logre demonstrar a inexistência de uma qualquer causa de entre uma profusa panóplia que pode existir.
Ademais, num caso como o presente, em que a relação comercial entre a autora e a ré perdurou durante cerca de doze anos, com sistemáticos fornecimentos e pagamentos, não pode a ré se limitar a afirmar que, se não eram as facturas identificadas no ponto 13. que estavam em dívida, seriam outras, porque o seu saldo contabilístico final indicava a existência daquela dívida.
Não pode recair sobre a autora um ónus de prova de tal modo perverso que lhe torne exigível demonstrar o pagamento de todas as facturas emitidas pela ré ao longo de doze anos de relação comercial.
Além disso, é de salientar que, apesar das discrepâncias identificadas no extracto de conta corrente elaborado pela contabilidade da autora, com imprecisões quanto à inscrição de movimentos a débito e a crédito relativos às transacções comerciais estabelecidas com a ré (cf. pontos 15. e 16.), certo é que esta não indicou à autora quais os fornecimentos/facturas que se encontram por liquidar, nem essa indicação foi efectuada no contexto dos presentes autos.
Por outro lado, não sendo de relevar a imputação efectuada pela credora quanto aos pagamentos efectuados pela autora em contrário da designação por esta feita das facturas que visavam pagar (cf. pontos 24. a 29.), tal não significa que aquelas outras facturas se encontrem em dívida, pois que, tal como sucedeu com as facturas descritas em 13., também relativamente a essas pode bem suceder que a autora tenha efectuado outros pagamentos que se destinavam a saldá-las e que tal não haja sido considerado pela ré.
Assim, tendo a ré invocado como causa justificativa a falta de pagamento das facturas identificadas no ponto 13. dos factos provados e tendo a autora provado que essas facturas estavam pagas, conseguiu efectuar a prova da ausência de causa justificativa para a apresentação a pagamento da garantia bancária, pelo que lhe assiste o direito a ser restituída pelo valor que despendeu para liquidar ao banco garante o valor pago.
Improcede, nesta parte, a apelação, mantendo-se a decisão recorrida, ainda que com fundamentação diversa.
***
A ré insurge-se ainda contra a sua condenação no pagamento da quantia de 1 778,85 € a título de indemnização pelos valores que a autora teve de suportar com comissões bancárias, o que faz alegando que não está provado que esta pagou ao banco as quantias relativas a comissão periódica e comissão de reclamação de beneficiários de garantia, pois que apenas se deu por provado que o Novo Banco as debitou à autora.
Esta argumentação não procede.
Como é evidente, quando se refere nos pontos 30. a 34. e 36. a 38. que o banco debitou à autora os aludidos montantes a título de comissão periódica de garantia bancária e de reclamação de beneficiários tal significa que o banco se fez pagar pelas quantias devidas a esse título, o que normalmente sucede, no contexto de uma relação bancária, por débito em conta, com a subtracção dos valores devidos.
No entanto, a sentença, como acima se referiu, fundamentou a condenação da ré no pagamento desta quantia na responsabilidade civil pela prática de acto ilícito (incumprimento do contrato, ao que se depreende), que considerou ser a apresentação indevida a pagamento da garantia.
Ora, em conformidade com o expendido, não se concorda com tal entendimento, pois que na situação sub judicenão foram demonstrados os pressupostos da obrigação de indemnização assente em responsabilidade civil (seja contratual, seja extracontratual), face à inexistência de comportamento ilícito e culposo por parte da ré (que apresentou a pagamento a garantia no pressuposto de que tinha a seu favor um saldo credor perante a autora, no contexto da relação comercial com ela estabelecida e já finda).
Por outro lado, não se pode presumir que a ré actuou de má fé, conhecedora da falta de causa bastante para apresentar a garantia a pagamento ou que quis causar prejuízo à autora, sendo que os factos provados tal não revelam.
Assim, aquilo que importa determinar é se relativamente a tais valores ainda se está perante uma situação de enriquecimento sem causa gerador da obrigação de indemnizar ou restituir tais montantes.
Em consonância com o atrás explanado, o conceito legal de enriquecimento à custa de outrem deve ser conotado com a obtenção de vantagem patrimonial, através de meios ou instrumentos pertencentes a outrem.
A obrigação da ré, no caso, face à ausência de prova de um facto ilícito que lhe seja imputável, cinge-se à medida da obrigação de restituir no âmbito da figura do enriquecimento sem causa, nos termos do art.º 479º do Código Civil.
Ora, tal obrigação de restituir não visa reparar qualquer dano do lesado, tendo por única finalidade suprimir ou eliminar o enriquecimento de alguém à custa do outro. Assim, a obrigação de restituir não vincula o enriquecido a reintegrar toda a deslocação patrimonial, mas apenas a correspondente ao acréscimo que obteve no seu património. Releva, como tal, o enriquecimento injustificado e não o empobrecimento daquele à custa de quem o enriquecimento se deu, sendo a sua medida a diferença entre a situação actual e a situação hipotética do enriquecido.
O enriquecimento, em concreto (efectiva vantagem registada), constitui o primeiro limite; o segundo, é o empobrecimento, em abstracto (valor simples da deslocação).
O Professor António Menezes Cordeio introduz um terceiro limite: a obrigação de restituir é limitada pelo enriquecimento em concreto (1º limite), até ao montante do dano em abstracto (2º limite) ou em concreto (3º limite – reflexo negativo global na esfera do empobrecido), se este for mais elevado – cf. Diogo Costa Gonçalves, op. cit., pág. 400.
Ora, neste caso, a obrigação de restituir tem o limite do enriquecimento concreto da ré, que foi de 7 172,04 €, pelo que a sua obrigação de restituir se cifra neste montante.
Assim, procede, nesta parte, a apelação, devendo a decisão recorrida ser revogada na parte em que condenou a ré no pagamento de 1 778,85 €, determinando-se a sua absolvição quanto a esse segmento do pedido.
*** Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A recorrente decai apenas parcialmente quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) do recurso ficam a cargo da apelante e da apelada, na proporção do respectivo decaimento.
***
IV–DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente a apelação, e, em consequência: a.-Revogar a decisão recorrida na parte em que condenou a ré B a pagar à autora A, a quantia de 1 778,85 € (alínea c) do segmento dispositivo), absolvendo-a quanto a essa parte do pedido; b.-Manter, quanto ao mais, a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante e da apelada, na proporção do respectivo decaimento.
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Micaela Marisa da Silva Sousa Cristina Silva Maximiano Alexandra Castro Rocha
[1]Adiante designado pela sigla CPC. [2]“Dos danos sofridos pela autora.” [3]Atento o dever que recai sobre o Tribunal de cooperar com as partes, com vista a assegurar a justa composição do litígio (cf. art.º 7º, n.º 1 do CPC), João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa considera ser de interpretar a alínea c) do n.º 2 do artº 662º do CPC extensivamente no sentido de abranger também a própria ampliação da matéria de facto – cf. Manual de Processo Civil, Volume II AAFDL 2022, pág. 240. [4]A enunciação dos temas da prova pode fazer-se em diversos graus de abstracção ou concretização, ora mais vaga, ora mais precisa, tudo dependendo daquilo que seja realmente adequado às necessidades de uma instrução apta a propiciar a justa composição do litígio - cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I . Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 699. [5]Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem. [6]A decisão transitada tem força de caso julgado, ou seja, tem força obrigatória, não podendo a questão decidida vir a ser resolvida em termos diferentes, sendo que quando as decisões incidem sobre questões de carácter processual, forma-se o caso julgado formal (processual, externo ou de simples preclusão); o caso julgado formal só tem força obrigatória dentro do próprio processo em que a decisão é proferida (eficácia estritamente intraprocessual), obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida – cf. art.º 620º, n.º 1 do CPC; cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-05-2020, processo n.º 486/18.7T8MNC.G1. [7]Acessível em https://blogippc.blogspot.com/2016/11/jurisprudencia-496_29.html. [8]Conforme documento n.º 1 junto com a petição inicial. [9]Acessível em https://portal.oa.pt/upl/%7Bcfbaa676-d481-41bd-b894-d1b448b0c128%7D.pdf. [10]Acessível em https://portal.oa.pt/upl/%7Bee65574e-4208-4ec9-8042-b659dcd6ff77%7D.pdf. [11Acessível em https://www.uria.com/documentos/publicaciones/5902/documento/art018.pdf?id=8354. [12]Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.