TRABALHADOR INDEPENDENTE
ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DE NORMAS DE SEGURANÇA
DESCARACTERIZAÇÃO
Sumário

I - Em caso de acidente de trabalho que foi vítima trabalhador independente [que havia celebrado com a Seguradora contrato de seguro de acidente de trabalho de trabalhador independente] a violação de normas de segurança por aquele consubstancia situação enquadrável no art. 14º da LAT e na Clª 5ª, nº 1, al. f) da Apólice Uniforme do seguro de acidentes de trabalho sofridos por trabalhador independente, aprovada pela Norma Regulamentar, nº 3/2009-R, de 08.01], e não nos arts. 18º e 79º, nº 3, da mesma.
II - Para que o acidente de trabalho seja, no caso previsto no citado art. 14, nº 1, al. a), 2ª parte, descaracterizado é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (a) no caso de trabalhador independente, existência de condições de segurança previstas na lei; (b) violação, por acção ou por omissão, dessas condições; (c) que a actuação seja voluntária e sem causa justificativa; (d) que exista um nexo de causalidade entre essa violação e o acidente, competindo o ónus de alegação e prova da verificação de tais requisitos à Ré Seguradora .
III - Quanto aos requisitos referidos em b) e c) do ponto II, exige-se a verificação de um comportamento negligente por parte do sinistrado.
IV - Resultando da matéria de facto provada que, no andaime em causa e onde o sinistrado se encontrava “existia uma cruzeta – tubos metálicos fixados em cruz –, cuja base se iniciava a 50 centímetros das tábuas e fechava na parte superior a 1,20 metros, sendo a distância entre cada prumada de 2,5 metros, que diminuía o risco de queda em altura” e que “o acidente deu-se na manobra que consistiu em içar o balde de massa que se encontrava atado a uma corda, tendo-se o sinistrado, nesse momento, debruçado sobre a cruzeta do andaime, desequilibrado e sofrido a queda em altura, pela parte exterior do referido andaime, de uma altura de 5 metros, que se revelou mortal” e, bem assim, que “Se o andaime tivesse barreiras de protecção, como guarda corpos, o sinistrado não tinha caído ao chão”, encontra-se excluído o nexo causal entre a violação da norma de segurança que impunha a existência dessa medida de segurança e o acidente, não tendo também sido feita prova do referido nexo causal entre as demais deficiências do andaime e o acidente.
V - Decorrendo embora da matéria de facto provada que se o sinistrado utilizasse arnês e corda, devidamente presa a um elemento fixo superior, não teria caído ao chão, a sua não utilização não acarreta a descaracterização do acidente de trabalho tendo em conta que as medidas de protecção colectiva devem preferir às de protecção individual e bem assim ao demais contexto factual descrito no acórdão, não consubstanciando comportamento de tal forma grave e culposo/negligente que justifique, nos termos do art. 14º, nº 1, al. a), a descaracterização do acidente, não se podendo, ademais, olvidar que o acidente não ocorreu por virtude das deficiências do andaime, sendo que aquele sempre teria ocorrido mesmo que o andaime cumprisse os requisitos legais.

Texto Integral

Procº nº 1875/20.2T8OAZ.P1

Relator: Paula Leal de Carvalho (Reg. nº 1286)
Adjuntos: Des. Rui Penha
Des. Jerónimo Freitas


Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório

Na presente acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho mortal de que foi vítima AA, frustrada a tentativa de conciliação que teve lugar na fase conciliatória do processo, a A., BB, apresentou petição inicial contra a Ré, L..., SA – Sucursal em Portugal, pedindo a condenação desta no pagamento das seguintes prestações:
I – Uma pensão anual e vitalícia no montante de €2.667,00 Euros, até perfazer a idade de reforma por velhice e de €3.556,00 Euros, a partir daquela idade ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, pensão essa actualizável, devida a partir de 19-06-2020, correspondente, respectivamente, a 30,00% e a 40,00% da retribuição anual ilíquida de €8.980,00 Euros, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 56º, 57º n.º 1 al. a) e 59º n.º 1 al. a) do Decreto-lei n.º 98/2009;
II – A quantia de €1.650,00 Euros, referente a despesas de funeral, importância essa equivalente, já que houve trasladação de cadáver, a oito vezes o valor de 1,1IAS, em concordância com o preceituado no artigo 66º n.ºs 2 e 4 do mesmo diploma legal;
III – A quantia de €20,00 Euros, relativa às supracitadas despesas de transporte, em conformidade com o prescrito no artigo 39º n.º 6 ainda do mesmo diploma;
IV – A quantia de €5.792,28 Euros, respeitante a subsídio por morte, correspondente a 12 vezes o valor de 1,1IAS à data da morte, nos termos do artigo 65º n.º 2 al. a) do mesmo diploma legal;
V – Os juros de mora respeitantes a todas as sobreditas prestações, à taxa legal (4%), contados a partir do seu vencimento e até efectivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou em síntese que contraiu matrimónio com o sinistrado, o qual foi vítima do acidente de trabalho que invoca e do qual lhe resultou a morte, pelo que tem direito às prestações pedidas. Apesar do andaime não preencher todos os requisitos legais, o acidente não ocorreu por força das infracções existentes. Acresce que o sinistrado tinha 61 anos, pouca escolaridade e respeitava as regras de segurança dentro do seu discernimento, não tendo capacidade suficiente para tomar consciência de todas as regras de segurança impostas, fazendo-o de acordo com os conhecimentos que foi adquirindo ao longo do tempo na sua experiência profissional. O acidente ocorreu quando o sinistrado estava a içar um balde de massa, tendo-se desequilibrado, não tendo havido negligência grosseira.

Contestou a Ré alegando, em síntese, que o acidente ocorreu por violação grosseira das regras de segurança por parte do sinistrado, que era trabalhador independente e sobre quem impendia a obrigação de garantia das condições de segurança, pois o andaime não cumpria as regras de segurança, apresentava-se em fraco estado de conservação, com desadequado travamento ao solo, as tábuas de madeira tinham fendas nas extremidades, apresentavam fragilidades nos apoios à estrutura metálica e tinham largura insuficiente, não tinham guarda-corpos, nem rodapé ou escadas interiores e o sinistrado não usava equipamento individual de segurança, designadamente arnês e corda; o sinistrado sabia perfeitamente que o andaime que instalou não cumpria as prescrições mínimas de segurança e de saúde no trabalho, designadamente as estabelecidas nos artigos 40.º, 41.º e 42.º no Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro, no artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 41821/58, de 11 de Agosto, no artigo 11.º da Portaria n.º 101/96, de 3 de Abril e ainda, no artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 155/95, de 1 de Julho, entre outras; caso tivesse tido o cuidado e diligência de instalar um andaime que obedecesse às prescrições mínimas de segurança, dotando-o de barreiras de protecção, como guarda-corpos, ou fizesse uso de arnês e corda, o acidente dos autos, simplesmente não teria ocorrido. Assim, o acidente encontra-se descaracterizado, não sendo indemnizável, nos termos do disposto nas als. a) e b) do nº 1 e n.º 2 e 3 do Art.º 14º da Lei 98/2009, de 04 de Setembro.

Saneados os autos, delimitados os temas de prova e realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção nos seguintes termos:
“Julgo procedente a ação e, em consequência, declaro que a autora é beneficiária, por morte do sinistrado AA em acidente de trabalho ocorrido em 18 de junho de 2020 e, por via disso:
Condeno a ré L..., SA – Sucursal em Portugal, no pagamento das seguintes prestações:
O capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de €2.667, com o acréscimo relativo ao montante de €889, relativo a uma pensão anual e vitalícia de €3.556 devida a partir do momento em que alcançar a idade de reforma por velhice ou do momento em que se verifique uma situação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho, caso não se tenha extinto o direito, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde 19 de junho de 2020 até integral pagamento;
A quantia de €1.650, referente a despesas de funeral, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte à tentativa de conciliação até integral pagamento;
A quantia de €20, a título de despesas de transporte, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia seguinte à tentativa de conciliação até integral pagamento; e
A quantia de €5.792,28, respeitante a subsídio por morte, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o dia 19 de junho de 2020 até integral pagamento.
Custas pela ré.
Valor da causa: €43.586,79.”

Inconformada, a Ré recorreu, tendo formulado as seguintes conclusões:
…………………………….
…………………………….
…………………………….

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVE ABSOLVER-SE A RÉ DOS PEDIDOS FORMULADOS PELA AUTORA, ASSIM SE FAZENDO INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!
Foram violados os seguintes preceitos legais:
Artigo 342.º n. º1 do Código Civil, artigos 18.º, n.º 3 do artigo 79.º da LAT, artigo 36.º, 37.º, 40 e 41.º do DL. n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro, artigo 10.º do Decreto n.º 41821/58, de 11 de Agosto, artigo 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, al. f) do n.º 1 do artigo 4.º da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes.”.

A Recorrida contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
…………………………….
…………………………….
…………………………….

TERMOS EM QUE, E NOS MAIS DE DIREITO, O DOUTO RECURSO NÃO MERECE PROVIMENTO, DEVENDO MANTER-SE A DECISÃO RECORRIDA.”

O Exmº Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso, sobre o qual as partes, notificadas, não se pronunciaram.

Colheram-se os vistos legais.

***
II. Decisão da matéria de facto proferida pela 1ª instância

Na 1ª instância foi proferida a seguinte decisão da matéria de facto:
“1. Factos provados:
1. A Autora contraiu casamento com o sinistrado, AA, em 22 de Agosto de 1982 e viveu em comunhão de cama, mesa e habitação com o mesmo até à data da sua morte, sendo que o mesmo não tinha ascendentes a seu cargo.
2. O sinistrado, marido da Autora, era trabalhador independente, dedicando-se à prestação de serviços de construção civil.
3. O sinistrado nasceu a .../.../1959.
4. A Ré dedica-se à actividade seguradora.
5. No dia 18 de Junho de 2020, pelas das 15:30, na Rua ..., em ..., o sinistrado foi vítima de um acidente ocorrido no exercício da sua actividade de prestador de serviços de construção civil.
6. À data do acidente, o sinistrado, marido da Autora, tinha celebrado com a Ré um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, na modalidade de trabalhador independente, titulado pela apólice n.º ..., mediante o qual havia transferido para esta a responsabilidade emergente dos acidentes de trabalho por si sofridos no exercício da sua actividade profissional, pela retribuição anual ilíquida de €8.890,00 Euros (€635,00 x 14 meses).
7. O sinistrado e o irmão deste, CC, haviam sido contratados verbalmente por DD, administradora do condomínio, para executarem obras de aplicação de capoto, massas e pinturas nas paredes exteriores do edifício sito na Rua ..., em ....
8. No dia e hora do acidente, o sinistrado, marido da Autora, estava a proceder à aplicação de massas na parede exterior das traseiras do referido prédio habitacional.
9. O sinistrado encontrava-se a trabalhar num andaime, na segunda adamada, da parte de cima, junto à marquise entre o 1º e o ... andar. 10. O andaime não tinha guarda-corpos, nem rodapés, nem estava devidamente preenchido (por não ter pranchas mas sim tábuas de madeira) e não possuía escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares,
11. O sinistrado era empresário em nome individual, com actividade aberta desde 2 de Abril de 1990.
12. Não existia ficha de segurança para os trabalhos que ali decorriam.
13. O sinistrado e o seu irmão não tinham formação em segurança e saúde no trabalho, nem em montagem e/ou desmontagem de andaimes.
14. O sinistrado encontrava-se a trabalhar num lanço de parede na zona da marquise e necessitou de um balde de massa para o que o pediu ao seu irmão, ali seu colega de trabalho, que se encontrava ao solo.
15. O acidente deu-se na manobra que consistiu em içar o balde de massa que se encontrava atado a uma corda, tendo-se o sinistrado, nesse momento, debruçado sobre a cruzeta do andaime, desequilibrado e sofrido a queda em altura, pela parte exterior do referido andaime, de uma altura de 5 metros, que se revelou mortal
16. Como consequência directa e necessária do acidente, o marido da Autora sofreu violento traumatismo com lesões traumáticas craniomeningeas, raquimedulares e tóracicas, as quais, directa e necessariamente, lhe provocaram a morte.
17. Realizada em 22 de Fevereiro de 2021 a tentativa de conciliação viria esta a frustrar-se, porquanto:
- A Ré aceita a existência do acidente e a sua caracterização como de trabalho, o nexo de causalidade entre o mesmo e a morte do sinistrado, cateroria profissional e a retribuição do sinistrado, bem assim como a transferência da responsabilidade infortunística, nos termos da aludida apólice de seguro, em função da retribuição anual ilíquida de €8.890,00 Euros (€635,00 x 14 meses);
- Todavia, a Ré entende que o acidente ocorreu devido a violação das normas de segurança por parte do próprio sinistrado (trabalhador independente).
- Por conseguinte, nada aceita pagar à viúva do sinistrado, a título de pensão ou a qualquer título.
18. A montagem/instalação do andaime foi efectuada como o sinistrado sempre fez ao longo da sua vida profissional, por considerar que aquele andaime, usado daquela forma, era o adequado e correspondia às necessidades de segurança.
19. O autor tinha o 4º ano da escola primária.
20. O sinistrado não tinha conhecimento da necessidade de recurso a andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares.
21. Todos os conhecimentos que tinha foram adquiridos por experiência de trabalho, sem qualquer formação profissional externa. 22. O sinistrado trabalhava no segundo patamar, sendo que, no preciso local onde se encontrava no momento da queda, existia uma cruzeta – tubos metálicos fixados em cruz –, cuja base se iniciava a 50 centímetros das tábuas e fechava na parte superior a 1,20 metros, sendo a distância entre cada prumada de 2,5 metros, que diminuia o risco de queda em altura.
23. O colega de trabalho do sinistrado atou um balde de massa a uma corda, para que o sinistrado o içasse, como sempre um e outro haviam feito na sua vida profissional de pedreiros.
24. O autor fazia as subidas e descidas do andaime por fora, pela parte lateral.
25. Um andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares não impedia a queda do sinistrado.
26. O sinistrado e o seu irmão montaram o andaime de que eram proprietários no logradouro traseiro do prédio, onde se localizam as garagens, assentando-o a uma quota inferior às habitações, com pelo menos 3 níveis de andaime, sendo que uma das laterais de apoio do andaime encontrava-se numa zona de rampa, apoiada sobre umas tábuas.
27. O andaime apresentava-se em fraco estado de conservação, com desadequado travamento ao solo, as plataformas (tábuas de madeira) possuíam fendas nas extremidades, aparentavam fragilidade nos apoios à estrutura metálica, e detinham uma largura de cerca de 30 centímetros, não abrangendo a totalidade da largura do andaime.
28. O sinistrado não fazia uso de qualquer equipamento de protecção individual.
29. O sinistrado sabia que, trabalhando em cima de um andaime como aquele, havia a possibilidade de queda.
30. Se o sinistrado usasse arnês e corda, devidamente presa a um elemento fixo superior, o sinistrado não tinha caído ao chão.
31. Em consequência directa e necessária do acidente, o sinistrado foi autopsiado no Gabinete Médico-legal e Forense de Entre Douro e Vouga, em Santa Maria da Feira e o seu cadáver foi transladado para o cemitério de ..., onde foi a sepultar, tendo a Autora despendido a importância de €1.650 em despesas de funeral.
32. A autora despendeu a quantia de €20 com a sua deslocação obrigatória ao Tribunal.
2. Factos não provados:
1. A Ré, ao aceitar a subscrição do seguro de acidentes de trabalho para a actividade de construção civil, verificou se o sinistrado tinha formação em segurança, higiene e saúde no trabalho e/ou se o mesmo tinha os equipamentos – andaimes – adequados à sua actividade, aceitando a forma como o sinistrado sempre trabalhou.
2. O andaime encontrava-se preenchido por duas tábuas de madeira paralelas, com cerca de 30 centímetros de largura cada uma.
3. O sinistrado trabalhava em cima das duas tábuas.
4. O sinistrado sabia que o andaime tinha que ter barreiras de protecção, como guarda-corpos, ou tinha que fazer uso de arnês e corda.
5. Se o andaime tivesse barreiras de protecção, como guarda-corpos, o sinistrado não tinha caído ao chão.
***
III. Fundamentação

Salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC aprovado pela Lei 41/2013, de 26.06, aplicável ex vi do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT aprovado pelo DL 295/2009, de 13.10, alterado, designadamente, pela Lei 107/2019).
Assim, são as seguintes as questões suscitadas pela Recorrente:
- Impugnação da decisão da matéria de facto;
- Se o acidente em apreço nos autos não confere o direito à reparação por decorrer da violação de normas de segurança por parte do sinistrado.

2. Impugnação da decisão da matéria de facto

A Recorrente impugna a decisão da matéria de facto no que toca aos nºs 15, 18 e 20 dos factos provados e 4 e 5 dos factos não provados.
Tendo sido dado cumprimento aos requisitos previstos no art. 640º do CPC/2013, cumpre apreciar, para o que se procedeu à audição integral da gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas: CC, irmão do sinistrado e que com ele trabalhava na construção civil, incluindo no dia do acidente em causa nos autos; EE, trabalhador da construção civil, actualmente desempregado e que trabalhou com o sinistrado e com a testemunha CC há cerca de 12 a 15 anos atrás, tendo emigrado para a ... e regressado a Portugal; FF, conhecendo o sinistrado e o irmão deste porque ambos realizaram trabalhos de construção civil para a testemunha; GG, Inspectora da ACT que efectuou o inquérito ao acidente em apreço nos autos.

2.1. Quanto ao nº 15 dos factos provados, dele consta o seguinte: “15. O acidente deu-se na manobra que consistiu em içar o balde de massa que se encontrava atado a uma corda, tendo-se o sinistrado, nesse momento, debruçado sobre a cruzeta do andaime, desequilibrado e sofrido a queda em altura, pela parte exterior do referido andaime, de uma altura de 5 metros, que se revelou mortal”, pretendendo a Recorrente que o mesmo passe a ter a seguinte redacção: “15. O acidente deu-se na manobra que consistiu em içar o balde de massa que se encontrava atado a uma corda, tendo-se o sinistrado, nesse momento, desequilibrado e sofrido a queda em altura, pela parte exterior do referido andaime, de uma altura de 5 metros, que se revelou mortal.”
Ou seja, está em causa é o segmento do facto acima sublinhado, isto é, que se tenha o sinistrado debruçado sobre a cruzeta do andaime, entendendo a Recorrente que deve o mesmo ser dado como não provado.
Diz a Recorrente que não foi feita prova suficiente do facto e invoca os depoimentos de CC e da Inspectora da ACT, bem como relatório do inquérito ao acidente, dos quais resultaria não ter sido afirmado que o sinistrado se tenha debruçado e que ninguém presenciou o acidente.

Na fundamentação da decisão da matéria de facto referiu-se o seguinte:
“A forma como o acidente ocorreu resultou do depoimento da testemunha CC e GG e do relatório de folhas 28 a 55, com especial relevo para a fotografia de folhas 55 que identifica o local de onde o sinistrado caiu.
A não utilização de arnês e corda resultou dos depoimentos das testemunhas CC e GG. Esta testemunha, ao explicar a forma como, com grande probabilidade, ocorreu o acidente, realça que o sinistrado estava a içar um balde de massa [nos termos indicados pela testemunha CC, com um peso entre 10 e 15 quilogramas], tendo-se debruçado sobre a cruzeta [considerou pouco provável que se tenha abaixado para puxar a corda por baixo da cruzeta], pelo que acaba por concluir que, como se dedruçou sobre a cruzeta e acabou por cair, o mesmo aconteceria se o andaime estivesse equipado com um guarda corpos, pois o sinistrado debruçava-se sobre o mesmo e, com grande probabilidade, caíria da mesma forma. Já no que respeita à utilização de arnês e corda – linha de vida –, caso esta estivesse devidamente fixada, consideramos que podemos concluir que o sinistrado não caíria no chão, ou seja, o acidente sempre ocorreria, mas, em princípio, a linha de vida impediria o sinistrado de cair no chão.”

No que toca ao depoimento da testemunha CC, irmão do sinistrado, decorre da própria transcrição feita pela Recorrente que, pese embora ele não tenha assistido ao momento da queda, viu contudo o sinistrado a começar a içar o balde, mais tendo referido que "Exactamente, está aqui encostado ao X para não cair, não é, e tem de inclinar um bocadinho para o balde ao puxar para cima não bater no andaime ao subir para cima." Ou seja, decorre desse depoimento que ainda viu que o sinistrado, quando iniciou a subida, se encontrava encostado ao “X” para não cair. Referiu também, como decorre da audição integral das suas declarações, que essa era a prática habitual quando içavam o balde (a testemunha também o fazia), tendo referido que “nós estamos no X, eu boto-me sobre o X e afasto um bocadinho a corda para não bater”.
Quanto à testemunha GG, inspectora da ACT, a mesma corrobora que, segundo lhe foi dito pela testemunha CC, o sinistrado já estaria a puxar o balde quando aquele saiu do local para ir lavar a misturadora. Por outro lado, e tendo embora a mencionada inspectora aludido ao facto de apenas existir uma tábua/plataforma e de o sinistrado se puder ter desequilibrado, referiu igualmente, à pergunta sobre se o sinistrado se teria baixado, que o mesmo se poderia “ter debruçado demasiado” [sobre a cruzeta ou “X”]: " Ao puxar ele poderá ter-se debruçado se calhar demasiado ao puxar a corda." Meritíssimo Juiz: " Ou seja, por cima da própria cruzeta…"
Testemunha: "Por cima da cruzeta."
E, por outro lado, o posicionamento dado como provado não é afastado pelo que consta das fotografias, nas quais se vê a “cruzeta” e a corda em que o balde estava a ser içado, posicionamento esse que se mostra consentâneo com a lógica e com as regras da experiência e da normalidade e plausibilidade das coisas.
Resta referir que o relatório do inquérito ao acidente elabora pela ACT não concretiza o posicionamento do sinistrado.
Carece pois de fundamento a impugnação aduzida, improcedendo a alteração pretendida.

2.2. Quanto aos nºs 18 e 20 dos factos provados e nº 4 dos factos não provados:
Do nº 18 dos factos provados consta o seguinte: “18. A montagem/instalação do andaime foi efectuada como o sinistrado sempre fez ao longo da sua vida profissional, por considerar que aquele andaime, usado daquela forma, era o adequado e correspondia às necessidades de segurança”, pretendendo a Recorrente que o mesmo seja alterado nos seguintes termos: “18. O Sinistrado não montou/instalou o andaime como sempre o fez ao longo da sua vida profissional, bem sabendo que aquele andaime, usado daquela forma, não era adequado nem correspondia às necessidades de segurança”.
Do nº 20 dos factos provados consta que “20. O sinistrado não tinha conhecimento da necessidade de recurso a andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares”, pretendendo a Recorrente que a resposta seja a seguinte: “20. O sinistrado tinha conhecimento da necessidade de recurso a andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares.”
Do nº 4 dos factos não provados consta que “4. O sinistrado sabia que o andaime tinha que ter barreiras de protecção, como guarda-corpos, ou tinha que fazer uso de arnês e corda”, pretendendo a Recorrente que seja dado como provado.
Diz a Recorrente que o nº 18 dos factos provados está em contradição com o nº 29 dos mesmos.
Sustenta ainda a impugnação nos depoimentos das testemunhas CC, FF e EE, bem como nos 30 anos de experiência do sinistrado.

Na fundamentação da decisão da matéria de facto referiu-se o seguinte:
“As características dos andaimes, os elementos que os compunham, a forma como o sinistrado e o seu irmão procederam à sua montagem e a escolaridade, experiência prática, conhecimento sobre montagem de andaimes e formação do sinistrado resultaram dos depoimentos das testemunhas CC, EE, FF e GG conjugados com o inquérito de acidente de trabalho de folhas 28 a 55, destacando-se as fotografias de folhas 51 a 55 que demonstram as condições do andaime.”

Quanto à alegada contradição entre o nº 18 dos factos provados [“18. A montagem/instalação do andaime foi efectuada como o sinistrado sempre fez ao longo da sua vida profissional, por considerar que aquele andaime, usado daquela forma, era o adequado e correspondia às necessidades de segurança”] e o nº 29 dos mesmos, deste consta que: “29. O sinistrado sabia que, trabalhando em cima de um andaime como aquele, havia a possibilidade de queda.”
Não se nos afigura que haja contradição entre os mencionados pontos sendo certo que o facto do sinistrado considerar que o andaime “era o adequado e correspondia às necessidades de segurança” não afasta, ou não afasta necessariamente, a percepção da possibilidade de queda. Nos trabalhos em altura, em cima de um andaime, ainda que porventura verificadas todas as condições de segurança da sua montagem, existe sempre um risco de queda. Uma coisa é a ideia que o sinistrado tinha ou podia ter quanto ao cumprimento das regras de segurança na utilização do andaime e, outra, a percepção de que, não obstante, sempre poderá haver o risco de queda.

No mais:
Quanto à resposta pretendida pela Recorrente relativamente ao nº 18 dos factos provados [“18. O Sinistrado não montou/instalou o andaime como sempre o fez ao longo da sua vida profissional, bem sabendo que aquele andaime, usado daquela forma, não era adequado nem correspondia às necessidades de segurança”], consubstancia ela a prova de facto contrário ao que foi dado como provado naquele ponto [“18. A montagem/instalação do andaime foi efectuada como o sinistrado sempre fez ao longo da sua vida profissional, por considerar que aquele andaime, usado daquela forma, era o adequado e correspondia às necessidades de segurança”].
O segmento em que se refere que “o sinistrado não montou/instalou o andaime como sempre o fez ao longo da sua vida profissional” não foi alegado pelas partes, mormente pela Recorrente na contestação, sendo que o que alegou foi o que consta do nº 4 dos factos provados. Ora, assim sendo, não pode a Recorrente pretender que tal facto seja dado como provado, o qual, consubstanciando facto principal, extravasando a matéria alegada.
Não obstante, tal não impede que se reaprecie o mencionado ponto 18 dos factos provados no sentido de saber se o mesmo deverá ser dado como não provado, o que se contém na impugnação, representando um menos em relação à pretensão recursiva.
E, reapreciando, não assiste razão à Recorrente, sendo que o facto dado como provado encontra sustentação nos depoimentos das testemunhas CC, EE e FF.
Com efeito, CC, como referido, irmão do sinistrado, trabalhando juntos e a quem o andaime também pertencia, referiu que este foi adquirido pelos dois há cerca de 30 anos e que era sempre o utilizado, estando ambos convictos que o mesmo oferecia protecção e que cumpria as necessidades de segurança. EE afirmou que há cerca de 12 anos chegou a trabalhar com o sinistrado e com a testemunha CC, que o andaime em causa era, já então, o utilizado e que se sentia seguro. E FF referiu que o sinistrado e CC lhe prestaram vários serviços de construção civil, sempre tendo eles utilizado o andaime em causa.
E, sempre se diga que, do referido decorre que a redacção alternativa pretendida pela Recorrente sempre seria improcedente.

Quanto aos nºs 20 dos factos provados [“20. O sinistrado não tinha conhecimento da necessidade de recurso a andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares”], pretendendo a Recorrente que a resposta seja a seguinte: “20. O sinistrado tinha conhecimento da necessidade de recurso a andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares.”] e 4 dos factos não provados [“4. O sinistrado sabia que o andaime tinha que ter barreiras de protecção, como guarda-corpos, ou tinha que fazer uso de arnês e corda”]:
O nº 4 corresponde ao que foi alegado na contestação, sendo que nesta não se faz referência ao preenchimento com pranchas.
Muito embora a testemunha CC às perguntas se ele e o sinistrado já haviam visto andaimes com guarda corpos e escadas e se estes não ofereciam maior segurança haja respondido afirmativamente, daí não decorre que tivessem conhecimento da necessidade, designadamente legal, da sua utilização. Referiu ainda no seu depoimento, designadamente a pergunta sobre se sabiam que era preciso guarda corpos, rodapé, escada interior, que não sabiam, que o andaime é o que sempre utilizaram, durante cerca de 30 anos, que era seguro, nunca tendo havido problema ou sido chamados à atenção, que esse tipo de andaimes se encontra à venda, que o “X” conferia protecção, que, para si, “tinha todas as condições” de segurança.
E as respostas aos pontos em causa não são contrariadas pelos depoimentos das testemunhas EE ou FF, designadamente nos excertos transcritos pela Recorrente. Ambos afirmaram que, para eles, o andaime é seguro, não decorrendo dos seus depoimentos que o sinistrado, ou seu irmão, tivessem conhecimento da necessidade, mormente legal, de utilização de guarda corpos, rodapés e escadas interiores. O que, na verdade, decorre, designadamente dos excertos transcritos pela Recorrente, é que, de acordo com os depoimentos dessas testemunhas (EE, quando trabalhou com o sinistrado e FF quando este lhe prestou trabalhos de construção civil) , eram colocadas lado a lado duas tábuas de madeira mas resistentes e não apenas uma (as pranchas dos andaimes a que se refere o nº 20 são estruturas de diferente material e que assentam de diferente forma).
Acontece que nos “quesitos” em apreço não está em causa o número de tábuas que eram utilizadas, mormente se uma ou duas, nem decorre da contestação que a Ré haja imputado o acidente à utilização de apenas uma tábua e não de duas e/ou alegado que apenas estaria a ser utilizada uma tábua e não duas. De todo o modo, sempre se diga que dos referidos depoimentos e/ou da restante prova nada decorre no sentido de que o acidente haja resultado da (eventual) utilização de apenas uma tábua.
Resta dizer que a experiência profissional do sinistrado não permite, por si só, retirar a ilação no sentido das respostas pretendidas quanto aos nºs 20 dos factos provados e 4 dos factos não provados.
Improcedem assim e nesta parte as alterações pretendidas.

2.3. Quanto ao nº 5 dos factos não provados, dele consta que:“5. Se o andaime tivesse barreiras de protecção, como guarda-corpos, o sinistrado não tinha caído ao chão.”
Pretende a Recorrente que o mesmo seja dado como provado, alegando para tanto que: a tese de que as barreias de protecção não eram aptas a evitar o acidente assenta na premissa de que o sinistro ocorreu pelo facto do Sinistrado se ter debruçado na cruzeta do andaime ao içar o balde; ou seja, da mesma forma que a cruzeta não preveniu a queda, uma guarda-corpos que estará em princípio a uma altura semelhante, também não o preveniria; contudo, não sendo, como acima referido, possível afirmar que o Sinistrado se tenha debruçado sobre a cruzeta do andaime, também não é possível asseverar que o guarda-corpos não evitaria o risco de queda. Mais invoca o depoimento da Sr.ª Inspectora da ACT, de acordo com o qual a mesma nunca constatou um acidente de trabalho, ocorrido em andaimes, em que o guarda-corpos não tivesse sido eficaz a anular o risco de queda, sendo possível afirmar, como aquela refere com uma certeza perto dos 99,9%, que a implementação de guarda-corpos era apta a anular o risco de queda.
Importa, antes de mais, referir que do nº 25 dos factos provados consta que “25. Um andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares não impedia a queda do sinistrado”, facto este que não foi impugnado pela Recorrente. Não obstante, estando ele, como está, em contradição com a pretensão da Recorrente quanto ao nº 5 dos factos não provados, tem-se o mesmo como impugnado, sendo certo que, a eventual procedência da impugnação do nº 5 determinaria, sob pena de contradição, que o nº 25 dos factos provados fosse dado como não provado.
A alteração pretendida assenta, desde logo, numa premissa que não se verifica, qual seja a da alteração do nº 15 dos factos provados. Ou seja, mantendo-se, como se mantém, a prova de que o sinistrado se debruçou sobre a cruzeta do andaime, improcede a argumentação aduzida a esse propósito.
Por outro lado, no que se reporta ao depoimento da testemunha GG, se é verdade que a mesma disse que, se houvesse guarda corpos, a probabilidade do sinistrado não cair seria muito grande, de 99,9%, o certo é que, depois, referiu também que aquele se pode ter debruçado por cima da cruzeta e que, se houvesse o guarda corpos, “é provável” que também se tivesse debruçado sobre o guarda-corpos, para além de que não foi feita prova (nem foi alegado) que a cruzeta onde o mesmo se debruçou tivesse uma altura inferior à do guarda corpos.
Não se nos afigura, pois, ser de alterar a resposta dada ao nº 5 dos factos provados (ou nº 25 dos factos provados).
De todo o modo, sempre se dirá o seguinte:
Mesmo que, porventura, se entendesse (que não entendemos, mas por mera hipótese de raciocínio) que não teria sido feita prova suficiente de que o sinistrado se havia debruçado sobre a cruzeta, nunca se poderia concluir no sentido de que a existência de guarda-corpos teria impedido o acidente.
Com efeito:
A falta de prova de um facto não significa a prova do facto contrário e, no caso, a eventual falta de prova suficiente de que o sinistrado se teria debruçado sobre a cruzeta não significa a prova de que não se debruçou. E, no caso, não teria sido feito prova de como o acidente ocorreu, sendo que não foi feita qualquer prova de que não se tivesse debruçado e ou de que outra maneira o acidente ocorreu, pois nenhuma das testemunhas a ele assistiu (apenas a testemunha CC assistiu ao que foi já relatado). Ora, assim sendo, desconhecendo-se a fenomenologia real, isto é, como em termos factuais ocorreu o acidente (sendo que o nexo causal comporta, para além da sua faceta jurídica – teoria do nexo de causalidade adequada -, também uma faceta factual) e uma vez que o facto de se ter debruçado sempre seria uma possibilidade, nunca se poderia dar como provado o nº 5 dos factos não provados. Apenas determinaria que o nº 25 dos factos provados fosse dado como não provado.

3. Se o acidente em apreço nos autos não confere o direito à reparação por ter decorrido da violação de normas de segurança por parte do sinistrado

3.1. Na sentença recorrida referiu-se, a propósito da questão ora em apreço, o seguinte:
“1.2 No entanto, a ré invoca factos tendentes à descaracterização do acidente como de trabalho, pois imputa o acidente à própria negligência grosseira do sinistrado, ancorando a sua pretensão no artigo 14.º, da LAT. Podia discutir-se se, tratando-se de um acidente que vitimou um trabalhador independente, este deve ser tratado como empregador, aplicando-se o artigo 18.º, n.º 1, da LAT, excluindo a responsabilidade da seguradora pela mera culpa do sinistrado. Contudo, entendemos que o artigo 18.º, da LAT, é uma norma destinada apenas a relações de trabalho subordinadas ou em que o empregador, ou quem o representa, coloca um trabalhador numa situação de risco acrescida por não cumprimento de regras de segurança. Por isso, não tem aplicação a acidentes que vitimam trabalhadores independentes. Tratando-se de trabalhadores que exercem a sua atividade em condições semelhantes aos trabalhadores subordinados, no que respeita ao modo de execução do trabalho, consideramos que a exclusão da responsabilidade da seguradora deve ser enquadrada, como a ré seguradora defende no artigo 33.ª da sua contestação, no âmbito do artigo 14.º, da LAT.
O artigo 14.º, da LAT, trata a questão da descaracterização do acidente de trabalho, reconduzindo-se à questão de saber em que medida o comportamento culposo do sinistrado assume relevância na medida em que permite a definição da esfera de risco assumida pelo próprio sinistrado.
Nos termos do n.º 1 da referida norma «O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
Por sua vez, o n.º 2, estabelece que se considera «que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la».
Acresce que o n.º 3 precisa o conceito de negligência grosseira como «o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão».
Interessa-nos a causa de descaracterização prevista na segunda parte da alínea a), do n.º 1, do artigo 14.º, da LAT, nos termos da qual o acidente é descaracterizado se «provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei».
Esta causa de descaraterização do acidente resulta da configuração da esfera de tutela normativa do risco profissional para o risco de autoridade ou empresarial e se o sinistrado, sujeito ao dever de obediência, se subtraía à esfera do risco de autoridade, desobedecendo às ordens emitidas pela entidade patronal, então ficaria a descoberto da proteção resultante do regime de reparação dos acidentes de trabalho.
Esta asserção manifesta-se na violação das condições de segurança resultantes da lei ou estabelecidas pelo empregador, não bastando que o sinistrado se afaste do exercício das funções que integram a sua categoria profissional.
Para que se verifique uma descaraterização do acidente é necessário que a violação das condições de segurança seja a causa do acidente ou do dano e não apenas o contexto em que este ocorreu, afastando-se as situações em que, de facto, o sinistrado viola uma condição de segurança, mas se possa concluir que mesmo que a tivesse cumprido, o dano ocorreria de qualquer forma.
Assim, sucintamente, temos que estar perante uma violação, por ação ou omissão, das condições de segurança, a inexistência de causa justificativa para a violação, a existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade empregador ou previstas na lei e o acidente ter sido consequência necessária do ato ou omissão do sinistrado4.[1]
Esta violação tem que ocorrer sem causa justificativa, considerando-se como tal as situações em que «o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la».
O regime apresenta uma diferenciação relativamente ao regime da responsabilidade civil, mais concretamente no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, em sede de apreciação da culpa do trabalhador pois o que é relevante é a culpa em concreto do sinistrado e não a sua culpa apreciada em abstrato, atendendo ao padrão do bom pai de família [culpa como deficiência da conduta e não da vontade], ainda que colocado na posição ou nas circunstâncias concretas do trabalhador em causa.
A justificação desta diferente modalidade de apreciação da culpa ou da formação do juízo de censura que esta encerra encontra-se no facto da atividade laboral configurar, em regra, uma atividade repetitiva em que fatores como o cansaço, o ritmo de trabalho, o stress laboral e a concentração, devem ser ponderados.
Mas qual o grau de culpa na violação das regras de segurança pelo sinistrado que se exige para ocorrer uma descaracterização do acidente?
A posição de Pedro Romano Martinez é a de que a violação das condições de segurança implica a descaraterização do acidente de trabalho desde que ocorra sem justificação, não sendo necessária uma negligência grosseira do sinistrado nessa violação, bastando uma negligência consciente que se entende já assumir a gravidade suficiente para o preenchimento deste pressuposto5[2].
Os fundamentos desta menor exigência ao nível da apreciação da conduta do sinistrado resultam da circunstância da negligência grosseira resultar já como causa autónoma de descaracterização do acidente de trabalho e, como tal, a violação de condições de segurança sem justificação tem que assumir diferente âmbito ou conteúdo normativo.
Daí que esteja em causa uma negligência consciente que, por isso mesmo, já assume gravidade suficiente para justificar a descaraterização do acidente de trabalho, ou seja, impõe-se a verificação de dois requisitos: primeiro o conhecimento das condições de segurança pelo trabalhador e, segundo, a violação negligente destas regras de segurança da empresa.
Contudo, esta posição não é isenta de críticas.
Desde logo, há quem fale em violação “dolosa”6[3] ou em “intencionalidade ou dolo” 7[4].
Por um lado, João Nuno Calvão da Silva defende que “só a culpa qualificada 8[5] do trabalhador na violação das condições de segurança poderá interromper o nexo causal e afastar ou diminuir a responsabilidade do empregador”, sendo que a mesma tem que ser apreciada no âmbito do artigo 570.º, do Código Civil 9 [6].
Por outro lado, Júlio Gomes argumenta, numa primeira linha, que não estão em causa apenas violações de regras de segurança específicas da entidade empregadora pois a norma fala claramente em condições de segurança previstas na lei. Acresce, numa segunda linha, que a tese referida implica a necessidade de distinção entre formas ou modalidades de negligência, designadamente entre negligência inconsciente e consciente, grave e grosseira que tenha sido causa exclusiva do acidente, sem que estas distinções tenham um reflexo normativo. Por fim e, numa terceira linha, o resultado a que se chega com a teoria referida é exatamente o oposto da finalidade com que “foi desenvolvida em França a noção de `faute inexcusable´, mais tarde, `importada´ para o nosso ordenamento como `culpa grave e indesculpável´ 10 [7] e convertida, finalmente, em negligência grosseira, a saber, a de que apenas uma culpa extremamente grave do trabalhador serviria para `descaracterizar´ o acidente”11 [8].
Na sequência destas críticas, Júlio Gomes apresenta uma interpretação alternativa, apelando, desde logo, ao elemento sistemático de interpretação pois esta causa de descaraterização do acidente de trabalho não está normativamente refletida em norma autónoma, mas antes surge associada aos comportamentos dolosos do trabalhador, o que significa que temos que estar perante situações suficientemente graves para surgirem quase equiparadas a situações dolosas. Acresce que historicamente a exclusão da responsabilidade surgia associada a situações de dolo, violações propositadas de ordens expressas emitidas pelo empregador ou atos que diminuam as condições de segurança no trabalho estabelecidas pela entidade patronal ou exigidas pela natureza particular do trabalho 12 [9], violação não justificada das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal 13[10] e depois as violações das condições de segurança estabelecidas na lei 14 [11], o que significa que a violação de regras de segurança foi sempre tratada como uma situação de desobediência próxima do dolo e não propriamente próxima da negligência. Para além disso, em matéria de acidentes de trabalho, em geral, “o trabalhador está inserido num ambiente que, no essencial, não controla” e que é propício à ocorrência de acidentes, em que a prevenção individual não pode ser mais importante do que a prevenção coletiva e, por isso, uma violação de condições de segurança sem negligência grosseira15 [12], não deve ser punida, por desproporcionalidade, com a “privação da reparação por acidentes de trabalho” mas apenas no plano disciplinar 16[13].
Pelo que, a culpa que está em causa no presente preceito, parece ser mais próxima da falta indesculpável, da imprudência, desleixo ou descuido inútil, embora não intencional, ou seja, a negligência grosseira 17 [14], sendo que a compatibilização com a norma prevista na alínea b) terá que ser feita a propósito da exclusividade causal dessa negligência grosseira para a ocorrência do acidente.
Assim, temos que ter uma violação, sem causa justificativa, por negligência grosseira [ainda que, causalmente, não exclusiva] de uma regra de segurança prevista na lei ou uma situação de negligência grosseira exclusivamente causal do acidente.
Não temos dúvidas nenhumas que o andaime montado pelo sinistrado e pelo seu irmão, que com ele trabalhava, apresenta deficiências sérias – falta de guarda-corpos, rodapés, escadas interiores e de pranchas em quantidade suficiente e encaixadas em segurança – e apresenta um estado de de conservação pouco adequado à perigosidade dos trabalhos que o sinistrado exercía no momento do acidente. Mas, na realidade, consideramos que o acidente não ocorre por força dessas omissões de segurança. O elemento do andaime que estava verdadeiramente em causa era o guarda-corpos. Todavia, a forma como o acidente ocorreu leva-nos a concluir que, com muita probabilidade, a existência do guarda-corpos não teria impedido a queda do sinistrado. Por um lado, no local onde o sinistrado estava quando caiu, existia uma cruzeta, constituída por duas traves de ferro cruzadas. Estes elementos não servem diretamente para evitar a queda de pessoas que circulam no andaime, mas apenas conferir estabilidade ao próprio andaime. Contudo, nos locais onde existem as cruzetas, como sucedia no caso, as cruzetas acabam por produzir, de forma menos eficiente, o mesmo efeito. No entanto, o acidente ocorreu quando o sinistrado estava a içar um balde de massa, com um peso entre 10 e 15 quilogramas, com recurso a uma corda que puxava e, quando o fazia, debruçou-se sobre a cruzeta e desiquilibrou-se, caíndo. Este mecanismo em que consistiu o acidente, ocorreria igualmente se, em vez da cruzeta, existisse um guarda-corpos, pois o sinistrado dedruçar-se-ia sobre o mesmo e o peso [certamente excessivo] do balde provocaria idêntico desiquílibrio do sinistrado, fazendo-o passar por cima do guarda-corpos, como passou por cima da cruzeta. Logo, aceitando-se a utilização de um andaime sem condições de segurança adequadas à execução da tarefa, consideramos que não existe nexo de causalidade entre essa falta de condições de segurança e a queda que conduziu à morte do sinistrado. A questão coloca-se, não a propósito da falta de segurança do andaime, mas sobretudo a respeito da não utilização de arnês e corda [linha de vida] e já não o sistema de cordas previsto no artigo 39.º, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro, que no caso era mais perigoso que o meio utilizado. Este equipamento individual de segurança é que era apto a poder evitar o acidente, caso fosse cumulado com a utilização do andaime, sendo certo que o autor não o usava. Importa, por isso, saber se podemos classificar a conduta omissiva do sinistrado, não utilizando este tipo de equipamento individual de segurança como uma conduta grosseiramente negligente. Consideramos que não podemos afirmar a existência de uma conduta omissiva grosseiramente negligente pelos seguintes motivos:
Primeiro: o artigo 36.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro, e o artigo 11.º, da portaria n.º 101/96, de 3 de abril, estabelecem a prioridade das medidas de proteção coletiva sobre as medidas de proteção individuais, o que significa que, em situação de normalidade, a utilização de um andaime dispensava a utilização de uma medida de proteção individual como o arnês com cordas;
Segundo: o sinistrado era um trabalhador com muita experiência, mas pouca formação profissional, o que associado à sua baixa escolaridade e ao início da laboração numa fase muito juvenil, leva a que não tivesse os conhecimentos adequados sobre os sistemas de proteção a utilizar em cada momento; e
Terceiro: existe uma evidente habituação do sinistrado a situações de perigo, com reflexos na falta de cuidados na execução de trabalhos em altura e à facilitação de trabalhos que, executados de maneira diferente, do habitual, permitem uma diminuição expressiva do perigo. Só assim entendemos que o sinistrado estivesse a usar uma força braçal direta, sem uma pequena roldana devidamente fixada em cota superior, para içar um balde de massa pesado numa altura de cerca de cinco metros, com necessidade de maior dispêndio de energia e possibilidade de desiquilibrio ao debruçar-se sobre os elementos fixos do andaime.
Em nosso entendimento, a conduta negligente do sinistrado, que resulta evidente, é resultado de uma habituação ao trabalho em situação de perigo, com falta de atenção para a possibilidade de utilização de meios mais seguros para a sua execução, numa atitude comum [censurável] de facilitação, pelo que a enquadramos numa situação de negligência, mas não de negligência grosseira e, por conseguinte, consideramos que não há lugar à descaracterização do acidente de trabalho.”
Discordando, alega a Recorrente que: deveria ter sido absolvida nos termos do art. 18º e 79º, nº 3, da LAT, preceito aplicável em caso de inobservância das regras de segurança por parte de trabalhador independente; o art. 15.º, nº 13, da Lei n.º 102/2009, de 10.09, estatui que "Para efeitos do disposto no presente artigo, e salvaguardando as devidas adaptações, o trabalhador independente é equiparado a empregador"; a al. f) do n.º 1 do artigo 4.º da Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes dispõe que, para além dos acidentes excluídos pela legislação aplicável, não ficam, em caso algum, abrangidos pelo presente contrato os acidentes que sejam consequência de falta de observância das disposições legais sobre segurança, higiene e saúde no local de trabalho; o Sinistrado encontrava-se a realizar trabalho em altura, com recurso a andaime que o próprio montou em conjunto com o seu irmão, nas seguintes condições: - colocação de uma tábua de madeira em metade da largura do andaime de cerca de 30 cm, ou seja, não abrangia a totalidade da zona de trabalho do Sinistrado, deixando a descoberto cerca de metade dessa área; - sem instalação de qualquer equipamento de protecção colectiva, como guarda-corpos, rodapés e redes de protecção; - sem utilização de qualquer equipamento de protecção individual, como arnês e linha de vida; - sem recurso a equipamento adequado ao içamento de matérias; - Sem escadas interiores, sendo as subidas e descidas efectuadas por fora, pelas traves laterais de ligação dos prumos; - sem preenchimento de ficha de segurança para os trabalhos em altura; - o Sinistrado não tinha formação em segurança e saúde no trabalho, nem em montagem de andaimes; o Sinistrado realizava trabalho em manifesto desrespeito pelas regras de segurança no trabalho, nomeadamente as que se encontram consagradas nos art. 36.º, 37.º, 40 e 41.º do DL n.º 50/2005, de 25 de Fevereiro, art. 10.º do Decreto n.º 41821/58, de 11 de Agosto, e art. 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, inobservância que é causa do acidente em discussão.

3.2. No que toca ao enquadramento do acidente em apreço no art. 14º da Lei 98/2009, de 04.09 e não no art. 18º e 79º, nº 3, da mesma, concordamos com a sentença recorrida e, bem assim, com o alegado pela Recorrida nas contra-alegações ao referir que: “61. Desde logo, num primeiro nível, a responsabilidade agravada do empregador, consagrada no art. 18.º LAT, consiste num regime pensado especificamente para o trabalho subordinado, pretendendo um acréscimo de tutela em caso de acidente sofrido por trabalhador a quem são impostas (ênfase na imposição), pelo empregador ou seu representante, condições de segurança em claro desrespeito pelas normas vigentes. 62. Ora, em princípio, o trabalhador independente estabelece as suas próprias condições de trabalho e de segurança, não sendo as mesmas objeto de imposição por parte de um terceiro, pelo que o regime de responsabilidade agravada constante do art. 18.º/1 LAT não é equacionável. 63. Aliás, em última análise, o argumento da confusão entre a responsabilidade de reparação do acidente e o respetivo crédito na mesma pessoa acaba não por adaptar o regime da LAT aos trabalhadores independentes, mas sim de os excluir pura e simplesmente da sua regulação. 64. A responsabilidade assumida pela Seguradora será sempre aquela transferida pelo empregador, e subsidiária da mesma, pelo que o entendimento de que o trabalhador independente deve ser equiparado ao empregador tem a virtualidade de, em abstrato, excluir os trabalhadores independentes do regime de reparação de acidentes de trabalho, resultado esse que não é o pretendido pelo legislador.”.
Nos arts. 18º e no 79º, nº 3, prevê-se uma responsabilidade agravada do empregador pelo facto de sujeitar a pessoa que para ele trabalha (trabalhador) à prestação do trabalho sem observância das condições de segurança exigidas e de, por isso, ter o acidente ocorrido, sendo que, em tal caso, o trabalhador sempre terá direito à reparação do sinistro, pelo qual é responsável o empregador, estando embora a seguradora obrigada à satisfação do pagamento das prestações que seriam devidas se não fosse o agravamento a que se reporta o art. 18º, sem prejuízo, todavia, do seu direito de regresso contra o empregador. Ou seja, o sinistrado sempre será ressarcido, ressarcimento aliás em montante superior ao que decorreria das prestações normais, sendo o empregador a entidade responsável por essa reparação; deverá, contudo, a seguradora satisfazer o pagamento ao sinistrado das prestações normais, tendo direito de regresso sobre o empregador. E daí resultando que a norma está vocacionada, não para os trabalhadores independentes, mas sim para os trabalhadores a que se reporta o art. 3º da LAT.
Por outro lado, o acidente de trabalho decorrente da violação de normas de segurança pelos trabalhadores independentes não é passível de enquadramento nos citados arts. 18º e 79º, nº 3, em que o sinistrado é ele próprio o seu “empregador” e, simultaneamente, credor do direito à reparação e devedor da mesma, o que, por confusão (art. 868º do Cód. Civil), determinaria a extinção do crédito e divida, o que não é o previsto e o propósito dos citados arts. 18º e 79º, nº 3.
Nos termos do art. 2º do DL 159/99, de 11 .05, que Regulamenta o seguro de acidentes de trabalho para os trabalhadores independentes, “O seguro de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes rege-se, com as devidas adaptações, pelas disposições da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, [leia-se, actualmente, Lei 98/2009] e diplomas complementares, salvo no que adiante especificamente se refere.”.
Ora, a norma aplicável ao caso de acidente de trabalho sofrido por trabalhador independente decorrente da violação de normas de segurança será o art. 14º da LAT, que prevê as situações de exclusão do direito à reparação (designadas de descaracterização do acidente de trabalho) e a Clª 5ª, nº 1, al. f) da Apólice Uniforme do seguro de acidentes de trabalho sofridos por trabalhador independente, aprovada pela Norma Regulamentar, nº 3/2009-R, de 08.01, a qual dispõe que “1. Além dos acidentes excluídos pela legislação aplicável, não ficam cobertos pelo presente contrato: (…) f) os acidentes que sejam consequência de falta de observância das disposições legais sobre segurança”.
Aliás, a Recorrente, na contestação, havia enquadrado a exclusão do direito à reparação no art. 14º da LAT e não já no seu art. 18º como agora, em sede de recurso, o faz.
Por fim, é de referir que entendemos que a clª 5ª, nº 1, al. f), da apólice Uniforme deverá ser aplicada e interpretada em consonância com o art. 14º, nº 1, al. a) e 2 da LAT.

3.3. O art. 14º, nº 1, al. a), da Lei 98/2009, de 04.09, dispõe [de forma essencialmente similar ao regime que provinha dos arts. 7º da anterior Lei 100/97, de 13.09 e 8º do DL 143/99, de 30.04] que: “1- O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) (…)”.
Está em causa a 2ª parte do mencionado preceito [não foi alegado, nem se fez qualquer prova de factos integradores da verificação da 1ª parte do preceito].
Para que o acidente de trabalho seja, no caso previsto no citado art. 14, nº 1, al. a), 2ª parte, descaracterizado é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
(a) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei;
(b) violação, por acção ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima;
(c) que a actuação desta seja voluntária e sem causa justificativa;
(d) que exista um nexo de causalidade entre essa violação e o acidente, nexo de causalidade esse que não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao acidente - - cfr. Acórdão do STJ de 26.09.2007, in www.dgsi.pt, Processo nº 07S1700, sendo ainda de salientar que, como decorre de tal aresto, para efeitos de descaracterização do acidente de trabalho se deverá atender ao nexo de causalidade adequada entre o comportamento da vítima e o acidente na sua formulação positiva [o facto só deve considerar-se causa adequada do dano que constitua uma consequência normal, típica, provável, dele], entendimento que mantém actualidade, se sufraga e a que pertence o seguinte excerto que passamos a transcrever:
“Quando existe este nexo e que nexo?
As diferentes teorias sobre a causalidade pretendem responder a esta questão: que relação deve existir entre o dano e o facto “para que este possa, sob a óptica especial do Direito, ser tratado como causa daquele”?
Como é sabido, no processo causal conducente a qualquer dano concorrem em regra muitas circunstâncias. Nem todas, porém, integram o conceito de causa do dano. Podemos distinguir, antes de mais, entre aquelas sem cujo concurso o dano não teria ocorrido (cada uma dessas causas será uma verdadeira condição s. q. n. do dano) e aquelas cuja falta não teria obstado à verificação do evento lesivo, se bem que, na situação concreta, também tenham concorrido para ele. Do ponto de vista jurídico, há ainda que eleger de, entre as várias condições do dano, “as que legitimam a imposição, ao respectivo autor, da obrigação de indemnização”. Esta perspectiva conduz-nos à teoria da causalidade adequada, segundo a qual “para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (s.q.n.); é necessário ainda que, em abstracto, ou em geral, o facto seja causa adequada do dano”.
Resta saber qual o critério que se deve usar para saber quando é que a condição é causa adequada do dano.
Segundo alguns, “será causa adequada do dano, sempre que este constitua uma consequência normal ou típica daquele, ou seja, sempre que, verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação” (corresponde à formulação positiva da causalidade adequada; neste sentido, Galvão Telles).
Para outros, que advogam uma formulação mais ampla, o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo em todo indiferente para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, extraordinárias ou anómalas, que intercedem no caso concreto” (corresponde à formulação negativa devida a Enneccerus-Lehmann).
Com esta formulação mais ampla tem-se, sobretudo, em vista garantir a indemnização ao lesado.
Interpretando o artº 563º do CC (onde se preceitua que: a «obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão»), A. Varela, depois de afirmar não haver elementos seguros, nem na letra, nem no espírito da disposição, que indique uma opção firme por parte da lei relativamente a uma das duas formulações (positiva e negativa) da causalidade adequada, acaba por concluir que a “doutrina mais criteriosa, quando a lesão proceda de facto ilícito (contratual ou extracontratual), é a formulação negativa…”.
Noutras situações, designadamente, nos casos em que a obrigação de reparar assenta sobre um facto lícito do agente, a orientação mais defensável já será a que defende que um facto só deve considerar-se causa (adequada) do dano que constitua uma consequência normal, típica, provável dele.
Há, ainda, que ter presente que “a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano”. (Das Obrigações em Geral, I, 10ª ed, pg 881 a 900).
Para Pessoa Jorge (Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, pg 392), “a orientação hoje dominante é a que considera causa de certo efeito a condição que se mostra, em abstracto adequada a produzi-lo, traduzindo-se essa adequação “em termos de probabilidade, fundada nos conhecimentos médios: se, segundo a experiência comum, é lícito dizer que, posto o antecedente X se dá provavelmente o consequente Y, haverá relação causal entre eles”
3. Como já referimos, a questão colocada consiste em saber se o acidente (de trabalho) deve ser descaracterizado com fundamento no disposto na 2ª parte da alínea a) do artº 7º da LAT.
Também já ficou dito que a descaracterização do acidente, no caso da 2ª parte da alínea a) do nº 1 do citado preceito, exige a verificação cumulativa de vários requisitos, um deles, o nexo de causalidade entre a violação ali prevista (violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal) e o acidente.
A Exmª Magistrada do MºPº sustenta que, no caso dos autos, falta este requisito e que, por isso, o acidente, tal como decidiu o tribunal recorrido (embora com outro fundamento: existência de causa justificativa para a actuação do autor), não pode ser descaracterizado.
Vamos começar por aqui: verificar se existe ou não um nexo de causalidade (adequada) entre o comportamento da vítima e o acidente (de que resultaram as suas lesões e incapacidade).
Frisa-se, antes de mais, que estamos perante um facto do próprio lesado e não de terceiro (lesante) e que no nosso sistema jurídico nada obsta a que, de acordo com as circunstâncias do facto concreto, se opte pela formulação positiva ou negativa da causalidade (adequada).
Ora, se, como vimos, o fim visado pela formulação negativa é garantir a indemnização ao lesado, então na situação presente – em que se procura saber se o acidente deve ser descaracterizado com a consequente perda do direito à indemnização por parte do lesado/trabalhador - nada obsta, antes tudo aconselha, a que se recorra à formulação positiva (da causalidade) para se aferir se a conduta deste (trabalhador/lesado) foi causal do acidente de trabalho que o vitimou.
É este o nosso entendimento.
(…)”
E, por outro lado e ainda quanto ao nexo causal, citando o acórdão do STJ de 03.02.2010, Proc. 304/07.1TTSNT.L1.S1, a afirmação do nexo causal entre o facto e o dano comporta duas vertentes: a vertente naturalística, que consiste em saber se o facto praticado pelo agente, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano e a vertente jurídica, que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstracto, como causa idónea do dano ocorrido, não sendo possível estabelecer-se, por presunção, o nexo causal entre o acidente de trabalho e a violação de normas de segurança se se desconhece a dinâmica do acidente e quando o facto, tendo sido objecto de prova, foi dado como não provado.
Assim também o Acórdão do STJ de 09.07.2014, Proc. 5395/08.5TBLRA.C1.S1, de cujo sumário consta que: “I – Adentro do nexo de causalidade entre o facto e o dano, o legislador nacional perfilhou a doutrina da causalidade adequada, integrante, num primeiro momento, de um nexo naturalístico que constitui matéria de facto, e, num segundo momento, de um nexo de adequação que constitui matéria de direito. II – Tendo sido “quesitada” factualidade integradora da existência daquele primeiro nexo e não tendo a mesma ficado provada, não pode a Relação tê-la por provada com base em presunções judiciais.”.
E no Acórdão do STJ de 25.11.2010, Proc. 55/07.7TTLMG.P1.S1, em cujo sumário se refere que: “I. Apurando-se, apenas, que o acidente se verificou “quando o Autor cortava umas tábuas com uma máquina» e que esta máquina «não estava dotada de um elemento protector do disco de corte», desconhece-se o processo naturalísitico que, em concreto, lhe deu origem, pelo que não é possível afirmar a existência de nexo de causalidade entre a violação, por parte da empregadora, das normas de segurança no trabalho que lhe impunham dotar a ferramenta de corte da máquina dos adequados protectores e a eclosão do acidente.”.

No que se reporta ao primeiro dos mencionados requisitos - violação de normas de segurança - está o mesmo relacionado com o disposto no art. 15º, nº 1, da Lei 102/2009, de 10.09, e que dispõe sobre as obrigações do empregador em matéria de segurança no trabalho, sendo o trabalhador independente, para tais efeitos, equiparado ao empregador, como determina o nº 3 do mesmo. E são diversas as obrigações aí referidas, em síntese, as de prever e acautelar devidamente as situações de risco na prestação de actividade, acrescendo as demais imposições legais específicas à natureza da actividade e risco a acautelar, no caso concreto trabalho de construção civil e risco de queda em altura, mormente as disposições legais invocadas pela Recorrente.

No que toca ao segundo e terceiro requisitos - violação, por acção ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima e que a actuação desta seja voluntária e sem causa justificativa -, com eles se prende a questão de saber se a causa de exclusão do direito à reparação prevista al. a) do art. 14º da LAT [assim como dos arts. 7º, nº 1, al. a), da Lei 100/97, de 13.09 e Base VI, nº 2, al. a), da Lei 2127, de 03.08.65, que antecederam a Lei 98/2009] exige, ou não, um comportamento negligente por parte do sinistrado, questão que não não é pacífica, não acolhendo, designadamente, a unanimidade da doutrina.
O Professor Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, 2013, 6ª Edição, Almedina, pág. 819 a 821, sobre a questão das causas de exclusão da responsabilidade no âmbito dos acidentes de trabalho refere que “A exclusão ou a redução da responsabilidade por acidentes de trabalho pode advir de motivos imputáveis à vítima. Corresponde a uma autorresponsabilização do trabalhador pela sua conduta”, mas que “não é qualquer atuação menos cuidada por parte do trabalhador que acarreta a exclusão ou a redução da responsabilidade; torna-se necessário que a falta tenha alguma gravidade.” E, mais adiante, a propósito da violação das condições de segurança, pelo sinistrado, sem causa justificativa, refere que:Neste caso, o legislador exige somente que a violação careça de «causa justificativa», pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1, do art.º 14.º, do Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras.
As condições de segurança, quando estabelecidas pela entidade patronal, podem constar de regulamento interno de empresa, de ordem de serviço ou de aviso afixado em local apropriado na empresa. As condições de segurança podem igualmente encontrar previsão na lei e, neste caso, incluem-se não só as regras de segurança no trabalho, como as que respeitam à segurança em outros sectores, nomeadamente na circulação rodoviária.
Se o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador.”
Neste sentido, aponta, entre outros, o Acórdão do STJ 23.09.2009, www.dgsi.pt, Processo 323/04.0TTVCT.S1, no qual se entendeu que a descaracterização do acidente de trabalho com fundamento nessa alínea a) não depende da intensidade da culpa com que o sinistrado tenha atuado, nele se referindo o seguinte:
“(…)
E a discordância da recorrente é inteiramente pertinente quando alega que a violação das normas de segurança não está dependente da intensidade dessa violação, pois, como se disse no acórdão de 14.3.2007, deste Supremo Tribunal (www.dgsi.pt - processo 06S4907), a propósito da violação das normas de segurança, a alínea a) do art.º 7.º, n.º 1, da LAT “não exige qualquer comportamento doloso ou voluntário, mas unicamente a prática de acto ou omissão que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei”, mais entendendo que tal decorre da letra da lei e, bem assim, que tal se compreende “ na medida em que a violação das condições de segurança, sem causa de justificativa, constitui um comportamento que denota já um acentuado grau de negligência, por não estar em causa a simples inobservância dos deveres gerais de cuidado, mas o incumprimento de específicos deveres de diligência estabelecidos pelo empregador ou previstos na lei que o trabalhador está obrigado a implementar, seja por força do dever de obediência a que está sujeito nos termos do contrato de trabalho (art.º 20.º, n.º 1, alínea c), da LCT (em vigor à data do acidente), seja por força do disposto no art.º 15.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 441/91, de 14 de Novembro. (…)”
De tal entendimento discorda o Professor Júlio Gomes[15], in O Acidente de Trabalho, o acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, págs. 201 e segs, que, refere, para além de aprofundada análise à posição acima referida, o seguinte [págs. 240 e segs]:
Parece-nos, com efeito, que, tanto pelas razões históricas já atrás aduzidas, como para garantir a coerência do sistema face às consequências extremamente severas da descaracterização - com a exclusão de todas as prestações, ressalvando-se apenas o dever de prestar primeiros socorros e pedir auxílio – não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras «justificações» poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deverá ser aferida em concreto e não em abstrato, e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a eventual passividade do empregador perante condutas similares no passado – até porque muitos especialistas sublinham que o desrespeito por regras de segurança resulta, muitas vezes, de o trabalhador tentar encontrar «atalhos» para produzir mais rapidamente, sobretudo quando lhe são impostos ritmos de produção muito elevados ou de o trabalho ter sido, anteriormente, elogiado ou apreciado, apesar de o empregador bem saber que tinha sido prestado com violação das condições de segurança – e, simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais, como o cansaço, o calor ou o ruído existentes no local de trabalho”.
E, nesta linha, pelo menos no que toca à existência de outras causas justificativas da violação de regras de segurança que não apenas as referidas no nº 2 do art. 14º da Lei 98/2009, se posicionou o Acórdão do STJ de 11.05.2017, Proc. 1205/10.1TTLSB.L1.S1, no qual se refere que “ A posição defendida pelo Professor Júlio Manuel Vieira Gomes parece-nos bem conforme com os objetivos de uma lei que se pretende que seja o mais amplamente reparadora dos acidentes de trabalho, daí que se aceite que a violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, possa ter outras causas justificativas para além das referidas no n.º 2, do art.º 14, do Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais.”.
E, no Acórdão do STJ de 13.10.2021, Proc. 3574/17.3T8LRA.C1.S1, a propósito da 2ª parte da al. a) do nº 1do art. 14º refere-se o seguinte:
<<Veja-se, a título de exemplo, o acórdão de 19.11.2014, proferido no processo n.º 177/10.7TTBJA.E1. S1, e o acórdão de 26.06.2019, no processo 763/16.1T8AVR.P1.S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. No sumário deste último, na parte que aqui releva, a propósito da alínea a) do n.º 1, do art.º 14.º, da Lei n.º 98/2009, consta o seguinte: (...)
«II. Em matéria de acidentes de trabalho a lei consagra a exclusão da responsabilidade do empregador em determinadas situações, estatuindo expressamente que aquele não tem de reparar os danos decorrentes do acidente sempre que se verifiquem as circunstâncias enunciadas no n.º 1, do art.º 14.º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
III. A alínea a), do n.º 1, do art.º 14.º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, prevê duas hipóteses de descaracterização do acidente: uma, decorrente de atuação dolosa provocada pelo sinistrado e outra, prevista na segunda parte, se o acidente provier de ato ou omissão do sinistrado que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei.
IV. A descaracterização do acidente prevista na segunda parte da alínea a), do n.º 1, do art.º 14.º, da citada lei, exige que: a) as condições e regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou pela Lei se mostrem conexionadas com o risco decorrente da atividade profissional exercida, ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua atividade laboral; b) o sinistrado tenha conhecimento de tais condições e regras de segurança; c) e que se verifique o nexo de causalidade entre o ato ou omissão cometida pelo trabalhador e o acidente de que este foi vítima, ocasionado por violação das referidas regras. (…)»
Em comentário à mesma norma, mas da anterior LAT, Carlos Alegre [in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado – 2ª edição, Almedina, 2000, página 61], entende que o acidente só não dá direito a reparação, se se verificarem, cumulativamente, as seguintes condições:
«1ª. Que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, exigindo-se, aqui, a intencionalidade ou dolo, na prática ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco;
2ª. Que as violações das condições de segurança sejam sem causa justificativa (do ponto de vista do trabalhador), o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do ato ou omissão: a causa justificativa não tem que ter um carácter lógico ou normal em relação à atividade laboral, pode ser uma brincadeira a que não se associam consequências danosas, uma inadvertência ou momentânea negligência, uma imprudência ou mesmo um impulso instintivo ou altruísta.
3ª. Que as condições de segurança sejam, apenas, estabelecidas pela entidade patronal (em regulamento de empresa, ordem de serviço ou outra forma de transmissão.»
(…)
Na verdade, não basta a mera violação das regras de segurança para que o acidente seja descaraterizado, sendo ainda necessário essa infração ocorra por culpa grave do trabalhador e que este tenha consciência da violação. Neste sentido, vide o acórdão deste Tribunal, proferido em 12.12.2017, no processo n.º2763/15.0T8VFX.L1.S1, também disponível em www.dgsi.pt, «[a] descaracterização do acidente de trabalho com fundamento na 2.ª parte da alínea a), do nº 1, do art.º 12º, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro - violação das condições de segurança previstas na lei - exige que o trabalhador atue com culpa grave, que tenha consciência da violação, não relevando os casos de culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração ou ao esquecimento.”
Seja como for, em ambas as posições doutrinais acima referidas, e assim também o consideramos, se entende que não será toda e qualquer violação de norma ou regra de segurança que imporá a “descaracterização” do acidente de trabalho, sendo certo que também na posição do Professor Pedro Romano Martinez “não é qualquer atuação menos cuidada por parte do trabalhador que acarreta a exclusão ou a redução da responsabilidade; torna-se necessário que a falta tenha alguma gravidade.”.
Com efeito, diga-se que, a nosso ver, tanto a intensidade da culpa, como também a própria gravidade da infracção são susceptíveis de gradação [assim, e tomando como exemplo, a segurança rodoviária, o excesso de velocidade será tanto mais grave quanto maior for o excesso], às mesma se podendo e devendo atender no âmbito da al. a), 2ª parte, do art. 14º.
E, por outro lado, afiguram-se-nos na verdade redutoras as causas justificativas da violação referidas no nº 2 do art. 14º, sendo que se acompanha o entendimento do mencionado Acórdão do STJ de 11.05.2017, nos termos do qual, como se sintetiza no seu sumário, “os objectivos reparadores da Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais permitem que se aceite que a violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, possa ter outras causas justificativas, para além das referidas no nº 2, do art. 14, do referido diploma legal.”
Por fim, constitui jurisprudência pacífica que o ónus de alegação e prova dos factos integradores da descaracterização do acidente de trabalho (porque impeditivas do direito à reparação – art. 342º, nº 2, do Cód. Civil) recaem sobre a entidade responsável pela reparação do mesmo.

3.4. No que se reporta à causa de exclusão prevista na al. b) do nº 1 do citado art. 14º, dispõe este que o acidente que provenha exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado não confere o direito à reparação e, o nº 3 do mesmo preceito, que “3 - Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”
E, quanto a esta causa de descaracterização, como é pacífico na doutrina e jurisprudência, para que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por elementar sentido de prudência. Como se diz na norma, exige-se que seja um comportamento temerário em alto e relevante grau.
Com efeito:
A negligência consubstancia-se na omissão de um dever objetivo de cuidado ou de diligência adequados, segundo as circunstâncias concretas de cada caso, a evitar a produção de um determinado evento.
Porém, a negligência pode assumir gravidade diferente, sendo usual a distinção entre a negligência consciente e inconsciente e, em função da intensidade da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais), entre a negligência lata ou grave, leve e levíssima.
Na negligência consciente, o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação; na inconsciente, o agente, por inconsideração, descuido, imperícia ou inaptidão, não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo embora prevê-lo e evitar a sua verificação.
Exigindo a lei, como pressuposto da descaracterização, a negligência grosseira, «o legislador está a afastar implicitamente a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não considera os prós e os contras. (…). A negligência lata ou grave confina com o dolo e parece ser, sem dúvida, a esta espécie de negligência que se refere o legislador ao mencionar a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus pater-familias.» - cfr. Carlos Alegre, in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2ª edição, a págs. 63.
A própria lei, no nº 3 do art. 14º [tal como já o entendia o antecedente art. 8º, nº 2, do DL 143/99], aponta para uma negligência particularmente grave, considerando como negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau.
Como se refere no Ac. do STJ de 29.11.05, proferido na Revista nº 1924/05-4 (Proc. nº 124/2000., do TT Porto, 1º Juízo, 3ª Secção), «a figura da negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.».
E, citando o Acórdão do STJ de 03.03.2016, Processo 568/10.3TTSTR.L1.S1, nele se refere que:
“Trata-se da consagração da doutrina que se foi firmando no domínio da Lei nº 2127, de cuja base VI, nº 1, alínea b) resultava que não dava direito a reparação o acidente de trabalho que proviesse, exclusivamente, de falta grave e indesculpável da vítima, pois segundo a doutrina que se foi firmando, com foros de unanimidade, no domínio desta LAT, só assumia esta natureza um comportamento temerário do sinistrado, inútil para o trabalho, indesculpável e reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, vendo-se neste sentido os acórdãos do STJ de 20/9/88, BMJ 379/527 e de 12/5/99, BMJ 487/208.
Também para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b), do nº 1, do artigo 14º da actual LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só uma falta grave, indesculpável e exclusiva da vítima é que é apta a produzir tal efeito, não tendo esta virtualidade os comportamentos do sinistrado que constituam meras imprudências, inconsiderações, irreflexões ou leviandades.
Efectivamente, a culpa consiste na omissão reprovável de um dever de diligência, que é de aferir em abstracto – cfr. Vaz Serra, RLJ, 11º – 151, podendo nela distinguirem-se três graus:
- culpa levíssima, que é aquela que só as pessoas extremamente diligentes podem evitar;
- o de culpa leve, que é aquela em que não cairia uma pessoa de vigilância ou diligência média;
- o de culpa grave, que é aquela em que o agente usa de uma diligência abaixo do mínimo habitual, procedendo como pessoa extremamente desleixada
Por outro lado, e para Galvão Teles, Direito das Obrigações 274, 4ª edição, quer a culpa grave quer a leve correspondem a condutas de que uma pessoa normalmente diligente – o bonus pater - se absteria, consistindo a diferença entre elas em que a primeira só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser cometida, apresentando-se por isso como uma culpa grosseira, correspondente à “magna negligentia” dos romanos.
Já dissemos que para a descaracterização do acidente de trabalho à luz da alínea b) do artigo 14º da LAT, o legislador optou claramente pela modalidade mais grave da culpa, pois só a negligência grosseira e exclusiva do sinistrado é que é apta a produzir tal efeito.
Por isso e desde logo temos que afastar da descaracterização do acidente aqueles comportamentos da vítima que constituam meras imprudências, inconsiderações irreflexões ou leviandades, pois é preciso que o comportamento do sinistrado assuma o alto grau de censura e reprovação correspondente ao exigido para a negligência grosseira.”.
Mais se exige, para que se se verifique a causa de exclusão prevista na al. b), do nº 1, do art. 14º, que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.

3.5. No caso, e no que se reporta à violação de normas de segurança relativas ao tipo de andaime utilizado pelo sinistrado, pese embora verificada a violação de normas de segurança, concordamos no essencial com a sentença recorrida ao nela se ter considerado não ter sido feita prova do nexo causal entre a mencionada violação e a ocorrência do acidente, para ela se remetendo.
Com efeito, é apenas de salientar que, pese embora o andaime não observasse as condições de segurança impostas por lei, designadamente a existência de guarda-corpos nos termos previstos no art. 23º do Decreto 41821, de 11.08 1958 (Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil) e apresentasse as demais deficiências referidas no nº 27 dos factos provados, não fez a Ré prova do nexo de causalidade entre a inexistência do referido guarda-corpos e/ou demais anomalias apresentadas pelo andaime, como decorre do facto, dado como não provado, no nº 5 do respectivo elenco [não provado que “Se o andaime tivesse barreiras de protecção, como guarda corpos, o sinistrado não tinha caído ao chão”], antes de tendo provado o contrário, ou seja, que um andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitisse o acesso entre patamares não impedia a queda do sinistrado, como decorre do nº 25 dos fatos provados. E não se provou, também que, qualquer uma das outras deficiências apresentadas pelo andaime hajam sido causa do acidente, sendo que tal prova cabia Á Ré Seguradora.
Assim, nesta parte – que se reporta à violação de normas de segurança por parte do andaime utilizado – e sem necessidade de considerações adicionais, improcedem as conclusões do recurso.

3.6. Mas a violação de normas de segurança como causa do acidente que vitimou o sinistrado coloca-se também em virtude de o mesmo não ter feito uso de qualquer equipamento de protecção individual (nº 28 dos factos provados), sendo que se tivesse utilizado arnês e corda, devidamente presa a um elemento fixo superior, não teria caído ao chão (nº 30 dos factos provados).
Como se diz na sentença “o artigo 36.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 50/2005, de 25 de fevereiro, e o artigo 11.º, da portaria n.º 101/96, de 3 de abril, estabelecem a prioridade das medidas de proteção coletiva sobre as medidas de proteção individuais, o que significa que, em situação de normalidade, a utilização de um andaime dispensava a utilização de uma medida de proteção individual como o arnês com cordas;”. No caso, o andaime utilizado apresentava as deficiências referidas no nº 27 dos factos provados, pelo que se nos afigura que, na verdade e em abstracto, abstraindo do que concretamente ocorreu, deveria o sinistrado ter ponderado a utilização da mencionada medida de protecção individual (arnês e corda) como forma de acautelar o risco de eventual queda, sendo que, se o tivesse utilizado, o acidente não teria ocorrido.
Acontece porém que, atendendo ao concreto processo factual que conduziu ao acidente e que não pode deixar de ser tido em conta, que as mencionadas deficiências do andaime, designadamente a falta de guarda corpos (e/ou as demais), e que justificariam a utilização da medida de protecção individual, não foram, no caso concreto, causa do acidente, o qual sempre teria ocorrido mesmo que o andaime observasse as exigências legais. Não se nos afigura, assim, que se possa dizer que entre as deficiências do andaime e a necessidade da protecção individual, por um lado, e a ocorrência do acidente, por outro, interceda um nexo de causalidade adequada, na sua formulação positiva, sendo que, mesmo que existisse um andaime adequado às exigências legais, com o que seria desnecessária a protecção individual, o acidente não teria ocorrido.
De todo o modo, ainda que assim se não entendesse, concorda-se com a sentença recorrida quando refere, no sentido de excluir a descaracterização do acidente de trabalho, que, em condições normais, “(…) a utilização de um andaime dispensava a utilização de uma medida de proteção individual como o arnês com cordas;
Segundo: o sinistrado era um trabalhador com muita experiência, mas pouca formação profissional, o que associado à sua baixa escolaridade e ao início da laboração numa fase muito juvenil, leva a que não tivesse os conhecimentos adequados sobre os sistemas de proteção a utilizar em cada momento; e
Terceiro: existe uma evidente habituação do sinistrado a situações de perigo, com reflexos na falta de cuidados na execução de trabalhos em altura e à facilitação de trabalhos que, executados de maneira diferente, do habitual, permitem uma diminuição expressiva do perigo. Só assim entendemos que o sinistrado estivesse a usar uma força braçal direta, sem uma pequena roldana devidamente fixada em cota superior, para içar um balde de massa pesado numa altura de cerca de cinco metros, com necessidade de maior dispêndio de energia e possibilidade de desiquilibrio ao debruçar-se sobre os elementos fixos do andaime.
Em nosso entendimento, a conduta negligente do sinistrado, que resulta evidente, é resultado de uma habituação ao trabalho em situação de perigo, com falta de atenção para a possibilidade de utilização de meios mais seguros para a sua execução, numa atitude comum [censurável] de facilitação, (…)”.
Ora, em tal contexto factual, em que o sinistrado e o seu irmão não tinham formação em segurança e saúde no trabalho, nem em montagem e/ou desmontagem de andaimes, a montagem/instalação do andaime foi efectuada como o sinistrado sempre fez ao longo da sua vida profissional, por considerar que aquele andaime, usado daquela forma, era o adequado e correspondia às necessidades de segurança, o sinistrado tinha o 4º ano da escola primária, não tendo conhecimento da necessidade de recurso a andaime com guarda-corpos, com rodapés, devidamente preenchido com pranchas e com escadas interiores que permitissem o acesso entre patamares, que todos os conhecimentos que tinha foram adquiridos por experiência de trabalho, sem qualquer formação profissional externa (nºs 13, 18, 19, 20, 21 dos factos provados) e em que, pese embora as deficiências do andaime, o mesmo ainda, assim, oferecia algum grau de protecção atenta a existência da “cruzeta” (nº 22 dos factos provados), dizíamos, em tal contexto factual afigura-se-nos não existir uma adequada consciência do perigo oferecido pelo andaime existente e da necessidade de utilização, em simultâneo, de meios de protecção individual, não consubstanciando, a não utilização de arnês com corda, comportamento de tal forma grave e culposo/negligente que justifique, nos termos do art. 14º, nº 1, al. a), a descaracterização do acidente, não se podendo, ademais, olvidar que o acidente não ocorreu por virtude das deficiências do andaime, sendo que aquele sempre teria ocorrido mesmo que o andaime cumprisse os requisitos legais.

3.7. Por fim, ainda que a Recorrente, no recurso, coloque o enfoque da exclusão do direito à reparação na violação de normas de segurança por parte do sinistrado [e, daí, conclua, embora indevidamente, no enquadramento da exclusão no art. 18º da LAT e não no art. 14º, nº 1, al. b)], na contestação havia enquadrado ainda a exclusão do direito à reparação não apenas na al. a) do nº 1 do art. 14º, mas também na al. b) do mesmo, entende-se ser de dizer o seguinte:
O art. 14º, nº 1, al. b), dispõe que não confere direito à reparação o acidente que provenha exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
Ora, no caso e no essencial essencial relevam as considerações já tecidas, quer quanto i) à inexistência de nexo causal entre a violação de normas de segurança quanto à montagem do andaime e o acidente, ii) quer quanto á não utilização de arnês e corda (medida de protecção individual).
Relativamente ao referido em i), por falta de nexo causal, não poderá essa violação, ainda que grosseira fosse, que não é, determinar a descaracterização do acidente.
Quanto ao referido em ii), as razões que já deixámos explanadas e que nos levaram a afastar, na não utilização de arnês e corda, a negligência como susceptível de levar à descaracterização do acidente são, até por maioria de razão, transponíveis para a causa de exclusão a que se reporta a al. b) do nº 1 do art. 14º, que não se basta com a verificação de um comportamento negligente, antes se exigindo uma negligência grosseira que, no caso e pelo que já se deixou dito, não se verifica.

3.8. Em conclusão, entendemos ser de confirmar a sentença recorrida, improcedendo as conclusões do recurso.
***
IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Porto, 03.10.2022
Paula Leal de Carvalho
Rui Penha
Jerónimo Freitas
___________________________
[1] 4 Maria Adelaide Domingos, Viriato Reis e Diogo Ravara, obra citada, página 38.
[2] 5 Pedro Romano Martinez, obra citada, página 879; na jurisprudência, o acórdão da Relação de Guimarães de 12 de Fevereiro de 2015 – Processo n.º 679/11.8TTVNF.P1.G1 – acessível em www.dgsi.pt.
[3] 6 Maria Adelaide Domingos, Viriato Reis e Diogo Ravara, obra citada, página 38.
[4] 7 Carlos Alegre, obra citada, página 61.
[5] 8 Também Mariana Gonçalves de Lemos, Descaracterização dos Acidentes de Trabalho, Lisboa, 2011, páginas 71 e 74, fala numa “espécie de culpa qualificada” mas sem que se exija uma negligência grosseira.
[6] 9 João Nuno Calvão da Silva, Segurança e saúde no trabalho, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 2008, Ano 68, Volume I, ponto 2.2 ddd).
[7] 10 No ordenamento jurídico francês, a faute inexcusable do trabalhador é relevante quando seja voluntária, de excecional gravidade, sem causa justificativa, colocando-se numa situação de exposição ao perigo que tinha o dever de conhecer, mas não exclui o direito à reparação, apenas o reduz pois só a faute intencionale exclui a reparação: Jean-Jacques Dupeyroux e Xavier Prétot, Droit de la Securité Sociale, 12 Édition, Dalloz, Paris, 2008, página 155/156; e Jean-Pierre Chauchard, Droit de la Sécurité Social, 5.ª Edição, LGDJ, Lextenso Éditions, Paris, 2010, página 492.
[8] 11 Júlio Manuel Vieira Gomes, O acidente de trabalho, O acidente in itinere e a sua descaracterização, Coimbra Editora, 2013, 1.ª Edição, páginas 225/226.
[9] 12 Lei n.º 1942.
[10] 13 Base VI, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 2127.
[11] 14 Lei n.º 100/97.
[12] 15 Em sentido semelhante, José Eduardo Sapateiro, obra citada, página 215, considera que estão abrangidas apenas situações dolosas ou grosseiramente negligentes.
[13] 16 Júlio Manuel Vieira Gomes, obra citada, páginas 227/232. [14] 17 Também Fernando Sinde Monteiro, Estudos sobre a responsabilidade civil, Coimbra, 1982, páginas 149/150, defende que em matéria de danos corporais só a culpa grave (gross negligence) constitui causa de exclusão de responsabilidade pois uma pessoa vale mais do que uma coisa.
[15] Actualmente Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.