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IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PARTILHA EM VIDA
DOAÇÃO
BOA FÉ
Sumário
I - As situações justificativas da necessidade da junção de documento por virtude da decisão proferida na primeira instância (segunda parte do nº 1 do art. 651º do CPC) relacionam-se com a novidade ou imprevisibilidade da decisão. II - Não é admissível, pois, com fundamento na segunda parte do nº 1 do art. 651º do CPC, a junção de documentos quanto a mesma se revelava pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento. III - O crédito de constituição posterior ao acto pode fundar a impugnação pauliana em caso de fraude preordenada, que ocorre quando o devedor actua com a intenção de impedir a satisfação do futuro crédito e concretiza essa intenção, tornando o seu património ‘insolvente’, em consequência do acto dolosamente praticado (por referência à data da prática do acto impugnado). IV - A partilha em vida (art. 2029º do CC) é um negócio gratuito - não há nesse negócio atribuições correspectivas que, segundo a vontade das partes, se correspondam e em que uma seja contrapartida da outra, funcionado as tornas a que possa haver lugar como meio de composição de quinhões. V - Tendo por objecto negócio gratuito (doação), a impugnação pauliana procede ainda que o devedor e o terceiro tenham actuado de boa fé (art. 612º, nº, 2ª parte do CC).
Texto Integral
Apelação nº 9772/19.8T8PRT.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO
Apelantes (réus): AA, BB e CC (por si e enquanto herdeiros de DD, falecido em .../.../2016).
Apelado (autor): Estado Português (Ministério das Finanças – Autoridade Tributária e Aduaneira), representado pelo Ministério Público
Juízo central cível do Porto (lugar de provimento de Juiz 2) - T. J. da Comarca do Porto.
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Invocando (com fonte em responsabilidades tributárias – factos tributários ocorridos em período temporal situado entre 2009 e 2014) ser credor de DD e da ré AA (o primeiro, falecido, marido desta ré e pai dos restantes réus, BB e CC, também filhos da ré) e sustentando que com acto de partilha em vida outorgado em Junho de 2014 pelo falecido DD e ré AA, sua mulher, na qual declararam doar aos réus, filhos de ambos (que declararam aceitar), bens (imóveis e móveis) que identifica, fica impedido de satisfazer o invocado crédito (e alegando ainda que os réus BB e CC alienarem, já em 2018, a terceiros, um dos imóveis doados), pediu o autor, Estado Português (Ministério das Finanças – Autoridade Tributária e Aduaneira, representado pelo Ministério Público), se declare:
- a ineficácia, relativamente a si, da doação com partilha em vida outorgada em escritura de 13/06/2014, nos termos da qual DD e AA declararam doar a BB e CC e estes declararam aceitar e proceder à partilha em vida e adjudicação a cada um deles de bens (imóveis e móveis) que identifica,
- poder o autor executar os identificados bens como se nunca tivessem saído do património dos devedores,
- poder o autor exigir também dos réus BB e CC o valor (133.680,00€) de um dos bens referidos bens, por eles alienado em 8/11/2018.
Contestaram os réus, defendendo a onerosidade do acto impugnado e alegando o total desconhecimento de qualquer responsabilidade tributária do seu (respectivamente) marido e pai. Concluem pela improcedência da acção.
Observados os trâmites legalmente estabelecidos, após realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou a acção integralmente procedente.
Inconformados, pretendendo a revogação da sentença e sua substituição por outra que os absolva do pedido, apelam os réus, terminando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
1. Os factos 23 e 43 da Sentença são inverosímeis: à data (13/6/2014), o património do de cujus era muito superior ao valor máximo das dívidas ao Estado – o que está provado no processo pela conjugação de documentos, prova indiciária e raciocínio lógico:
2. Os documentos 26 (fl. 72) e 27 (fls. 64) juntos com a PI (emitidos pelo Autor e não impugnados pelos réus) indicam que os rendimentos do devedor, entre 2009 e 2014, ascenderam 12.632.933,98€.
3. Prova indiciária à luz das regras da experiência: quem à época tem rendimentos de 12 milhões de euros, é porque possuía ativos para pagar as dívidas fiscais de no máximo 1,4 milhões de euros, até porque não se alega qualquer perfil consumista ou despesista dos devedores.
4. Prova lógica: se alguém, como o de cujus, tem valores de imposto a pagar de 1,4 milhões de euros (é menor, mas quem prova o mais, prova o menos) – é porque tem rendimentos e riqueza muito superiores, pois, por definição, o imposto incide sobre uma parte (parcela) da riqueza dos cidadãos.
5. Os factos (23 e 43) devem ser retirados do elenco dos factos provados e deve dar-se como provado: “à data de 2014/2015, o de cujus possuía um património superior ao valor do crédito de impostos e todos os acrescidos em causa neste processo”.
6. Os factos 5 e 6 da Sentença são falsos, quando indicam que à data do ato (13/6/2014), os valores das dívidas fiscais ascendiam a 1.426.993,40€ (ou 1.345.389,46€).
7. Essa informação é retirada do doc. 9 a 11 junto com a PI (essencialmente o doc. 9), mas enferma de erro e irrelevância na análise.
8. Por irrelevância: não interessa saber o valor das dívidas fiscais em 2018 (ou na data da entrada da ação judicial), como indicado no doc. 9; mas o que importa é definir o valor da dívida fiscal em 13/6/2014 – não indicado no doc. 9.
9. Por erro: em 13/6/2014, o valor das dívidas fiscais é muito inferior ao indicado nos pontos 5 e 6 dos factos indicados na Sentença, em dois segmentos:
10. Por um lado, exclui-se o IRS de 2014, cuja dívida só se constitui posteriormente, em 31/12/2014, com a verificação do facto tributário no último dia do ano – como ocorre nos impostos periódicos, como o IRS (art. 57.º do CIRS);
11. Por outro lado, as “quantia[s] exequenda[s]” do IRS de 2009 a 2013 (cfr. doc. 9 da PI) – integram, o valor do imposto em falta + o valor dos juros compensatórios, calculados desde o início do retardamento até à emissão da liquidação adicional (final de 2017/ início de 2018) – quando só o deveriam fazer até 13/6/2014.
12. Os juros compensatórios integram a própria dívida de imposto, com a qual são conjuntamente liquidados” (art. 35.º, n.º 8, da LGT); e contam-se dia a dia, desde o termo do prazo de apresentação da declaração até ao suprimento, correção ou deteção da falta que motivou o retardamento da liquidação (art. 36.º, n.º 3 da LGT).
13. Os factos 5 e 6 da Sentença devem ser omitidos e deve decretar-se: “não se provou o montante das dívidas fiscais à data de 13/6/2014, aquando do ato alegadamente prejudicial para o Estado, a partilha em vida com doação”.
14. À cautela: à data relevante (13/6/2014), o valor das dívidas fiscais dos doadores era de 1.133.102,00€ (1.140.000,00€, com arredondamento por excesso): capital (1.047.000,00€) + juros compensatórios (86.102,00€).
15. Assim, está provado (em nova redação dos factos 5 e 6 ou, se excluídos, num novo ponto, a acrescentar): “Em 13/6/2014, o valor total das dívidas fiscais era inferior a 1.200.000,00€”.
16. Para a quantificação das dívidas fiscais a 13/6/2014, importa a junção aos autos das liquidações adicionais dos impostos em causa (art. 651.º, n.º 1, do CPC): a) só agora se tornou necessário, em virtude da sentença em primeira instância; b) perante o erro de prova de facto essencial para a pretensão do autor e verdade material; c) o documento foi emitido pelo Autor e faz prova concludente.
17. O ato prejudicial para o Estado não foi gratuito, mas oneroso – os factos 19, 21 e 23 resultam de apreensões erradas do Tribunal a quo.
18. A Sentença erra na: a) na análise do doc. 8 junto com a PI; b) por contradição com os factos 39 e 40; e c) por força de prova indiciária.
19. Erro na análise do doc. 8 da PI: o ato não se designa por doação, mas por partilha em vida; os transmitentes não efetuaram um negócio gratuito, mas exigiram que os transmissários lhes entregassem, como entregaram, 58.686,66€, “que constitui a legítima do doador que falecer em último lugar”.
20. Sendo os intervenientes os presuntivos herdeiros legitimários, os filhos (transmissários) pagaram imediatamente aos pais (transmitentes) essa quantia, como composição da legítima dos progenitores que morresse em último lugar.
21. Por contradição com os factos 39 e 40 da Sentença, que provam: em 11/2015, os filhos contraíram mútuo de 290 mil euros, com hipoteca, sobre o prédio urbano da Rua ... (objeto de partilha em vida); ato contínuo, os filhos transferiram esse valor para o pai (12/2015); e essa quantia foi utilizada para os pais saldarem as dívidas perante o Banco e cancelarem as hipotecas sobre esse imóvel.
22. Deram-se assim duas prestações de sentido inverso, mas conexas, – prestação e contraprestação –, assim, inequivocamente, se tendo operado um negócio jurídico oneroso, e não, como parece ter sido o entendimento do Tribunal a quo, duas liberalidades efectuadas por cada uma das partes (uma em bens – feita pelos pais a favor dos filhos – logo seguida de outra em dinheiro – feita pelos filhos a favor dos pais).
23. Por prova indiciária: não é normal que os filhos ajudem os pais em valores tão elevados (290.000,00€), inclusive contraindo dívidas avultadas para esse efeito.
24. Perante as circunstâncias concretas, o normal – em regras de experiência comum, alicerçada em presunções naturais decorrentes da vida normal – é que os filhos se endividaram e entregaram aos pais 290.000€ (com hipoteca de um dos imóveis da partilha em vida) em execução – como contrapartida – do acordo celebrado em 13/6/2014, para o pai saldar as suas dívidas perante o Banco, porque estava doente, com cancro e deixaria de trabalhar e não queria penalizar a sua mulher, também devedora ao Banco.
25. Como é normal, nem tudo tem que ficar escrito nestes acordos de família (entre pais e filhos).
26. Como é normal nas circunstâncias concretas, não se formalizou um contrato de compra e venda em 13/6/2014, pois não se quis explicitar que os filhos ficariam devedores dos pais – e o Banco poderia não autorizar o empréstimo.
27. Como é normal nas circunstâncias concretas, mediaram 17 meses entre o ato e mútuo bancário, com hipoteca e entrega aos pais desses fundos: dada a doença do pai (que atrasou as negociações) e a usual demora de concretização da operação pelo sistema bancário.
28. O ato foi oneroso, por dois factos que são contrapartidas sinalagmáticas da partilha em vida – cada um por si torna o negócio oneroso: a) os filhos pagaram de imediato aos pais a quantia de 58.686,66€; e b) os filhos entregaram cerca de 290.000,00€ aos pais, em 12/2015, em execução de contrapartida, por acordo familiar celebrado no momento do ato em que se pede a sua ineficácia nesta ação.
29. Os factos 19, 21 e 23 da Sentença devem ser alterados, no sentido de que o ato prejudicial para o Estado (de 13/6/2014) foi um ato oneroso.
30. Improcede a ação (a Sentença deve ser revogada), porque o autor não provou o valor do crédito à data do ato (doação com partilha em vida, em 13/6/2014) – mas em data posterior (2018), que é irrelevante e errado.
31. Essa prova compete ao autor, nos termos do art. 611.º do Código Civil.
32. À cautela (caso se considere provado o valor do crédito): à data do ato (13/6/2014), o valor do património dos devedores (pais) era superior ao valor, a essa mesma data, das dívidas fiscais constantes dos presentes autos.
33. No recurso da matéria de facto, provou-se que o de cujus tinha um património superior ao valor do crédito de imposto e acrescidos em causa neste processo (mesmo no valor máximo indicado no facto 6, de quase 1,5 milhões de euros).
34. À cautela: está provado que, em 2014/2015, o património do de cujos ascendia a 1.200.000,00€ (facto 43) e está provado, no recurso da matéria de facto, que em 13/6/2014, o valor das dívidas fiscais em causa era inferior a 1.200.000,00€.
35. Em qualquer caso, do ato (partilha em vida de 13/6/2014) não resulta a impossibilidade para o credor (AT) de obter a satisfação do seu crédito (ou o agravamento dessa impossibilidade) – e a sentença tem de ser revogada, porque procedeu a errada interpretação e aplicação do art. 610.º, al. b), do CC.
36. Sendo o ato oneroso (como provado no recurso da matéria de facto), a procedência da impugnação pauliana pressupõe a atuação de má-fé dos devedores (pais) e de terceiros (filhos).
37. Os filhos (transmissários) não atuaram de má-fé: não tinham consciência do prejuízo que o ato (denominado partilha em vida) causaria ao credor (Estado) – como indica e bem a Sentença (p. 12).
38. Impõe-se a revogação da Sentença: tratando-se de negócio oneroso, improcede a impugnação pauliana, por falta de má fé dos transmissários, nos termos e para os efeitos do art. 612.º do CC.
Contra-alegou o autor, pugnando pela improcedência da apelação e manutenção da decisão recorrida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Delimitação do objecto do recurso.
Linear a identificação e delimitação das questões a decidir:
- impugnação da matéria de facto, e
- verificação (não verificação, sustentam os apelantes) dos requisitos do instituto da impugnação pauliana – mais especificamente, i) a onerosidade do acto impugnado e a não demonstração da má fé dos adquirentes e ii) a suficiência do património do devedor (doutro modo: apreciar do eventus damni), incluindo apurar dos invocados créditos a atender (considerando o tempo da sua constituição).
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Da requerida junção de documentos.
Os apelantes, em sustento dos argumentos aduzidos no segmento em que impugnam a decisão sobre a matéria de facto quanto ao valor da dívida fiscal que, à data de 13/06/2014, estaria em dívida, requerem a junção de liquidações adicionais (e acertos) efectuadas pela AT e a eles comunicadas, ainda antes da propositura da acção (liquidações de finais de 2017, princípios de 2018).
Justificam tal pretensão alegando que (veja-se a conclusão 16ª) a junção de tais documentos (liquidações adicionais) só em virtude da decisão de primeira instância se tornou necessária, considerando o errado julgamento sobre facto essencial para a pretensão deduzida (‘perante o erro de prova de facto essencial para a pretensão do autor e verdade material’, torna-se necessária a junção dos documentos, que fazem prova concludente sobre a matéria).
Apreciando.
A apresentação de documentos com as alegações, à luz da parte final do nº 1 do art. 651º do CPC – a primeira parte do preceito não tem, no caso, aplicação, pois que não se alega (nem se constata) a impossibilidade da sua apresentação em momento anterior ao recurso (não se verifica superveniência objectiva nem subjectiva dos documentos, que estavam ao dispor da parte – foram elaborados previamente à propositura da acção e notificados aos réus antes da propositura da acção, o que afasta a possibilidade de se ponderar a impossibilidade da sua apresentação até ao momento da interposição do recurso) –, é justificada (e admissível) quando se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido na 1ª instância, ‘maxime quando este seja de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo’, não podendo justificar-se a junção de documentos para prova de ‘factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.’[1]
As situações justificativas da necessidade da junção por virtude da decisão proferida na primeira instância relacionam-se com a novidade ou imprevisibilidade da decisão – a segunda parte do nº 1 do art. 651º do CPC tem o seu âmbito de aplicação circunscrito às situações em que a decisão da 1ª instância cria, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento.
Não é admissível, pois, a junção de documentos quanto a mesma se revelava ‘pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.’[2]
Os documentos cuja junção os apelantes agora requerem na apelação relacionam-se, de forma directa, com a matéria que estava em discussão e era objecto de apreciação (e julgamento) na decisão proferida – respeitam ao valor do crédito tributário invocado pelo autor, matéria que constituía facto essencial sobre o qual o tribunal tinha de se pronunciar (matéria controvertida, pois que os réus impugnavam o invocado crédito – veja-se o artigo 3º da contestação), para apreciar do mérito da causa.
Consubstanciam mesmo documentos que se reportam a actos que alegam no artigo 9º da contestação (as liquidações adicionais de IRS e IVA de 2009 a 2014, de que foram notificados em finais de 2017).
Não podiam os apelantes desconhecer que os documentos que agora pretendem juntar aos autos eram úteis e relevantes à decisão de tal matéria (do valor do invocado crédito tributário)
Arredada, pois, a possibilidade de admitir a junção de tais documentos com fundamento no julgamento proferido na 1ª instância.
Atento o exposto, não se admite a junção dos documentos que acompanham as alegações de recurso.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
Factos provados (considerados na decisão apelada).
1. Os réus AA, BB e CC, são os únicos herdeiros (cônjuge e descendentes, respectivamente) de DD, falecido em .../.../2016, no estado de casado na comunhão de adquiridos com a ré AA, sendo o segundo e terceiros réus filhos do casal assim constituído.
2. Em 13 de Junho de 2014 DD e a ré AA eram donos dos seguintes bens:
a. prédio urbano: casa de rés-do-chão andar e águas furtadas e dependência sita na Rua ..., ..., na união das freguesias ..., ..., ..., ..., ... e ..., concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ... /Santo Ildefonso, inscrito na respectiva matriz sob o art.º ... (originado no antigo art.º ... da extinta freguesia ...) com o valor patrimonial tributário atribuído de 129.410,00€ (cento e vinte e nove mil, quatrocentos e dez euros), estando o indicado prédio urbano onerado com as inscrições de hipoteca ... e Ap. ...,
b. fracção autónoma designada pela letra ‘C’ – garagem na cave, com entrada pelo nº ..., afecta ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal sita na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho do Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ... / ..., inscrito o título constitutivo de propriedade horizontal pela inscrição AP. ..., inscrito na respectiva matriz sob o art.º ..., com o valor patrimonial tributário atribuído de 9.430,00€ (nove mil quatrocentos e trinta euros),
c. prédio urbano: habitação de rés-do-chão e andar, garagem e logradouro, sito na Rua ..., freguesia e concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o nº ... / Vila do Conde, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial tributário atribuído de 133.680,00€ (cento e trinta e três mil seiscentos e oitenta euros),
d. o recheio do prédio urbano indicado na alínea anterior, no valor global atribuído de 79.600,00€ (setenta e nove mil e seiscentos euros);
3. Em escritura pública[3] denominada ‘Partilha em vida’, outorgada em 13 de Junho de 2014 no Cartório Notarial do Lic. EE, sito no Porto, em que foram outorgantes DD e os réus (assim como as esposas dos réus BB e CC – que aí declararam, a final, prestar aos respetivos cônjuges o necessário consentimento para a prática do acto), foram feitas as seguintes declarações:
- DD e AA, declarando-se donos e legítimos possuidores dos bens referidos no anterior facto, declararam que, para efeitos do art. 2029º do CC, doavam, em comum, aos outorgantes BB e BB e CC, seus descendentes, os referidos bens, doação que nos valores unitariamente ali atribuídos totalizava o montante global de trezentos e cinquenta e dois mil cento e vinte euros, que também lhe atribuem,
- BB e CC declararam aceitar a doação nos termos exarados acrescentando ainda que, sendo eles os únicos e presuntivos herdeiros legitimários dos doadores, como qualquer um destes (doadores) é presumível herdeiro legitimário daquele que pré-falecer, procediam à partilha em vida dos referidos bens pertencentes aos seus ascendentes, ‘nos valores unitariamente atribuídos no global de trezentos e cinquenta e dois mil cento e vinte euro’, o qual se dividia ‘em duas partes de cento e setenta e seis mil e sessenta euro, que constitui a meação de cada cônjuge doador’, sendo uma de tais ‘meações dividida em três partes iguais de cinquenta e oito mil seiscentos e oitenta e seis euro e sessenta e seis cêntimos, assim se achando a legítima do cônjuge doador’ que falecesse em último lugar, sendo o remanescente de tal meação adicionado à meação do outro cônjuge doador, assim se apurando o ‘valor de duzentos e noventa e três mil quatrocentos e trinta e três euro e trinta e quatro cêntimos (por excesso)’ que se dividia ‘em duas partes iguais de cento e quarenta e seis mil setecentos e dezasseis euro e sessenta e sete cêntimos’, cabendo cada uma de legítima a cada um dos descendentes (os outorgantes BB e CC). Mais declararam os termos em que, ‘cumprindo a vontade dos autores da liberalidade’, procediam à partilha e consequente adjudicação, adjudicando a cada um deles, BB e CC, metade indivisa dos bens identificados, ‘nos valores atribuídos no total de cento e setenta e seis mil e sessenta euro’, superior àquele a que tinham direito no montante de vinte e nove mil trezentos e quarenta e três euro e trinta e três cêntimos, que repunham de tornas;
- o DD e AA declararam por sua vez ter já recebido ‘dos donatários a quantia de cinquenta e oito mil seiscentos e oitenta e seis euro e sessenta e seis cêntimos’, que constituía a legitima do doador que falecesse em último lugar.
4. Esta escritura pública foi celebrada porque, pelo menos o de cujus DD e a ré AA, sabiam que a sua situação tributária estava a ser sujeita pela Autoridade Tributária a acções inspectivas que evidenciariam a existência de dívidas fiscais de valor muito elevado, encontrando-se cientes de que tais dívidas existiam efectivamente.
5. A Fazenda Nacional (Autoridade Tributária) liquidou ao de cujus e à ré AA, as seguintes contribuições de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), que se encontram em execução:
a) do período de tributação de 2009 (IRS), o montante de 251.701,40€, acrescido de juros de mora e custas [em execução no processo de execução fiscal (PEF) ...] (docs. juntos aos autos),
b) do período de tributação de 2010 (IRS), o montante de 212.599,98€, acrescido de juros de mora e custas (em execução no PEF ...),
c) do período de tributação de 2011 (IRS), o montante de 283.643,73€, acrescido de juros de mora e custas (em execução no PEF ...),
d) do período de tributação de 2012 (IRS), o montante de 249.025,36€, acrescido de juros de mora e custas (em execução no PEF ...),
e) do período de tributação de 2013 (IRS), o montante de 186.147,64€, acrescido de juros de mora e custas (em execução no PEF ...),
f) do período de tributação de 2014 (IRS), o montante de 70.575,61€, acrescido de juros de mora e custas (em execução no PEF ...),
g) do período de tributação de 2011 (IVA), o montante de 56.852,83€ - mais 12.990,48€ de juros compensatórios -, acrescidos de juros de mora e custas (em execução no PEF ... e no PEF ...),
h) do período de tributação de 2013 (IVA), o montante de 19.032,50€ - mais 2.819,33€ de juros compensatórios -, acrescido de juros de mora e custas (em execução no PEF ... e no PEF ...);
6. Tais quantias não se mostram pagas, perfazendo os impostos exequendos, 1.345.389,46€ (um milhão, trezentos e quarenta e cinco mil, trezentos e oitenta e nove euros e quarenta e seis cêntimos), importando os correspondentes juros de mora em 67.161,20€ (sessenta e sete mil, cento e sessenta e um euros e vinte cêntimos) contabilizados em 12.02.2019 e continuando a vencer-se, tendo as custas tributárias atingido já o valor de 14.442,74€ (catorze mil, quatrocentos e quarenta e dois euros e setenta e quatro cêntimos), o que, tudo somado, corresponde a um total líquido de 1.426.993,40€ (um milhão quatrocentos e vinte e seis mil novecentos e noventa e três euros e quarenta cêntimos).
7. Tais factos tributários são relativos aos anos de 2009, 2010, 2011, 2012, 2013 e 2014, ocorrendo nos anos de 2009 a 2015 a obrigação declarativa dos mesmos por parte do falecido DD.
8. Tais actos inspectivos e respectiva liquidação pela AT, resultaram dos seguintes procedimentos inspectivos:
a) procedimento resultante da ordem de serviço nº ..., para os anos de 2009 e 2010, de que o visado teve conhecimento em 05.08.2013 (doc. de fls. 38 verso),
b) procedimento resultante da ordem de serviço nº ..., para o ano de 2011, de que o visado teve conhecimento em 10.10.2013 (doc. de fls. 40 verso),
c) procedimentos resultantes das ordens de serviço nºs ..., ... e ..., para os anos de 2012, 2013 e 2014, iniciados em 25/9/2017, na sequência de documentos de venda remetidos pela administração fiscal da Holanda e que haviam sido emitidos por DD naqueles anos (2012 a 2014, inclusive) e que originaram em Portugal o inquérito 102/2013.3IDPRT (documento de fls. 114 a 146, doc. nº 27 junto com a petição inicial).
9. O âmbito das ordens de serviço referidas nas alíneas a) e b) anteriores foi alterado, de parcial para geral, em 04.03.2014, com fundamento no art.º 15º do RCPITA - Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária e Aduaneira - tendo DD tomado disso conhecimento em 20.03.2014, assim ficando inteirado dos respectivos fundamentos, nos quais se encontravam exarados os seguintes termos: ‘estando em causa as acções inspectivas (…) que envolvem o levantamento de sigilo bancário, diversos pedidos de elementos de cooperação internacional (….) e situações passíveis de configuraram crime fiscal (…) – documento de fls. 14 e 15 (doc. nº 14 junto com a petição inicial).
10. AA recebeu, por lhe terem sido enviados em 04.10.2017 e em 10.11.2017, respectivamente, o projecto de relatório e o relatório da inspecção tributária resultante das ordens de serviço nº ... e ... (docs. 15 e 16 juntos com a petição inicial) e, por lhe terem sido enviados em 04.10.2017 e em 09.11.2017, respectivamente, o projecto de relatório e o relatório da inspecção tributária resultante das ordens de serviço nºs ..., ... e ... (doc. 28 da petição inicial).
11. Antes da escritura acima referida, DD e os réus AA e BB tinham acordado outra doação, a qual se realizou em 21.12.2012 na Primeira Conservatória do Registo Predial do Porto.
12. Após DD e AA terem tido conhecimento de que iriam ser alvo de inspecção tributária com incidência nos anos de 2009 e 2010, designadamente no âmbito de IRS e IVA, declararam doar a BB e este declarou aceitar, no mencionado acto de 21.12.2012, a fracção autónoma ‘S’ (com lugar de estacionamento e arrecadação incluídos) correspondente a uma habitação sita no quarto andar esquerdo do prédio urbano sito na Rua ..., com entrada pelo nº ..., no Porto, com o valor patrimonial tributário de 156 240,00€ (doc. 17 da petição inicial).
13. Os processos inspectivos resultantes das ordens de serviço ... e ... iniciaram-se em 05.08.2013 e 10.10.2013, respectivamente.
14. Em 17.12.2013, considerando a existência de indícios de ilícito criminal fiscal, foi instaurado o processo de inquérito 102/13.3IDPRT da Direcção de Finanças do Porto, remetido e autuado no Ministério Público em 24.12.2013, que veio a ser arquivado pelo óbito de DD.
15. O prédio urbano referido na al. c) supra (sito na Rua ..., freguesia e concelho de Vila do Conde, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o nº ... / Vila do Conde, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...) foi transmitido por escritura pública de compra e venda celebrada de 08.11.2018, pelo preço declarado de 185.000,00€, outorgando: como vendedores, os réus BB e CC; como adquirentes compradores, FF, GG e HH, na proporção de ½, 1/3 e 1/6, respectivamente (docs. nº 7 e 22 da petição inicial).
16. DD (NIF ...) encontrava-se registado para o exercício de duas actividades distintas: a título principal, estava registado na actividade de ‘compra e venda de bens imobiliários’ com o CAE ..., iniciada em 01.09.1982; como actividade secundária, ‘comércio a retalho de artigos de ourivesaria e joalharia estav. Espec.’, CAE ..., iniciada em 01.01.2008, e também exerceu regularmente a actividade de ‘corretor de relojoaria e ourivesaria’, actuando como intermediário na comercialização de relógios usados.
17. No 1º semestre do ano de 2011, DD, havia sido objecto, por parte da Direcção de Serviços de Investigação da Fraude e de Ações Especiais (DSIFAE), de uma acção inspectiva externa de consulta, recolha e cruzamento de elementos através do despacho n.º ... de 15/02/2011 (exercícios de 2009 e 2010) a fim de ser dada resposta a um pedido de cooperação administrativa da Holanda com base em documentos que indiciavam o fornecimento por aquele de relógios usados da marca ‘Rolex’ e ‘IWC’, tendo o mesmo sido ouvido em declarações em 23.02.2011 (doc. nº 18 junto com petição inicial).
18. Em 20.09.2012 foi informada a UIF - Unidade de Informação Financeira da Polícia Judiciária de movimentos em contas bancárias tituladas por cidadãos nacionais em Espanha, ocorridas designadamente entre Portugal e Espanha, tendo sido identificados como intervenientes DD e os réus AA, BB e CC (doc. nº 19 junto com a petição inicial).
19. Assim, o DD e AA desfizeram-se, através de doações, de seis imóveis que detinham, sendo um em Vila do Conde e cinco na cidade do Porto, passando a viver em casa arrendada, no Porto, doações que foram outorgadas por DD e pela AA, com o intuito, conseguido, de fazer gorar a cobrança pela Autoridade Tributária (AT) dos créditos acima mencionados.
20. Tais dívidas fiscais e a actuação da Autoridade Tributária anteriormente descrita eram, à data da outorga da escritura de doação com partilha em vida acima referida, do conhecimento do falecido bem como da ré AA.
21. As descritas transferências da titularidade da propriedade dos referidos bens doados e partilhados foram efectuadas com o propósito de impedir que a Autoridade Tributária obtivesse o pagamento das dívidas tributárias mencionadas.
22. DD e a ré AA, concertados entre si, diminuíram e estavam cientes de que diminuíam a garantia patrimonial dos créditos fiscais aludidos, de cuja obrigação eram conhecedores e de que daí resultava a impossibilidade de a AT obter a total satisfação dos seus créditos.
23. O DD e a ré AA sabiam que, com a outorga das doações, ficariam sem património suficiente para garantir os impostos devidos ao Estado, estando cientes da perda que os ditos actos de doação com partilha em vida causavam à Autoridade Tributária, tratando-se de um expediente para afastar da esfera patrimonial dos ditos doadores os aludidos bens.
24. Os herdeiros do de cujus participaram o falecimento, em sede de Imposto de Selo, em .../.../2016, no Serviço de Finanças de Porto 1, tendo sido atribuído à participação o n.º ... e à herança indivisa o nif ... (doc. nº 20 da petição inicial).
25. Naquela participação foi apenas relacionado um bem do falecido: 1/3 do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ... da União de Freguesias ... e ..., do concelho de ..., distrito de Bragança, com um valor patrimonial tributável (VPT) de 4,79€ (doc. nº 21 da petição inicial).
26. Em 16.02.2018 pelos réus AA e BB (este enquanto cabeça-de-casal da herança de DD) foi apresentada reclamação graciosa das liquidações de IRS e juros compensatórios de 2009 a 2014 (Procedimento n.º ...), cuja decisão foi de indeferimento, estabilizado em 27.11.2018 (doc. nº 23 da petição inicial).
27. Em 16.02.2018 pelo réu BB (este enquanto cabeça-de-casal da herança de DD) foi apresentada reclamação graciosa das liquidações de IVA e juros compensatórios de 2009, 2010, 2011 e 2013 (Procedimento n.º ...), cuja decisão foi de indeferimento, estabilizado em 06.01.2019 (doc. 24 junto com a petição inicial).
28. Sobre o património e rendimentos da ré AA e da herança de DD:
a. o único bem patrimonial sujeito a registo conhecido que resta é 1/3 do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo ... da União de Freguesias ... e ..., do concelho de ..., distrito de Bragança, com um VPT de 4,79€,
b. a ré AA não é titular registada de qualquer imóvel ou veículo e, segundo o sistema informático da AT, auferiu, no ano de 2017: rendimentos de trabalho dependente no montante bruto de 8.371,00€; rendimentos de pensões no montante de 5.483,19€; rendimentos de capitais no montante de 13,2€ (doc. 25 junto com a petição inicial).
29. Na esfera patrimonial da ré AA e da herança de DD não são conhecidos bens e rendimentos suficientes para garantir a cobrança das dívidas tributárias existentes.
30. À data de 2014 o DD tinha uma vida desafogada, sem que se lhe notassem indícios de dificuldades financeiras.
31. Ouvido pelas autoridades tributárias em declarações, o DD refutou as correcções que o Fisco investigava.
32. DD era comerciante (nomeadamente na área dos relógios de luxo) e os réus BB e CC não exerceram actividades comerciais com o seu pai.
33. A ré AA era doméstica, desde sempre e até à morte do seu marido, vivendo sempre na dependência financeira do seu marido e dos proventos da actividade comercial que este angariava para o casal.
34. Em 2009 foi detectado um cancro no estômago ao decesso DD, tendo sido tratado no IPO ..., com exames, tratamentos de quimioterapia e intervenção cirúrgica, doença que parecia derrotada em 2011.
35. Porém, em 2013, o cancro reapareceu, dessa feita no pâncreas, com prognóstico reservado e agravando-se a partir do primeiro trimestre de 2015.
36. Em consequência da doença e necessidade de tratamentos médicos, foi diminuindo paulatinamente a sua actividade comercial, até a cessar.
37. Em 2015, por conselho médico, decidiu recorrer a tratamentos médicos no sector privado, na fundação ... em Lisboa, o que fez até à data do seu óbito.
38. Com tais tratamentos, suportou elevados custos e despesas, superiores a 32.040,87€ (valor documentado nos autos).
39. Dá-se aqui por reproduzido o teor do documento de fls. 221 a 232 (‘mútuo com hipoteca e renúncia de hipoteca’, em que foram intervenientes, além do mais, os réus CC a BB).
40. Dá-se por reproduzido o doc. de fls. 233 (doc. nº 4 da contestação) e em que, além do mais, constam transferências bancárias em numerário, de conta bancária do réu CC, para BB, em 1 e 02.12.2015.
41. Os réus BB e CC não chegaram a tomar posse dos bens móveis constantes da doação.
42. Os filhos réus utilizaram o produto da venda do imóvel de Vila do Conde a terceiros, pelo preço de 185 mil euros, para saldar o mútuo associado ao imóvel do ... (fls. 235, doc. n.º 6 da contestação).
43. À data de 2014/2015 o de cujus mantinha relógios para o seu comércio de compra e venda, em valor estimado de cerca de 1.200.000,00 euros.
Factos não provados (assim considerados na decisão apelada):
- que os réus BB e CC, à data de 13.06.2014, fossem conhecedores da situação tributária do seu pai, que este estivesse a ser sujeito a inspecções tributárias e/ou que tivessem celebrado a escritura pública naquela data, conhecedores de tal situação, conluiados com os seus pais e com intenção de impedirem que a autoridade tributária obtivesse pagamento dos seus créditos,
- que os réus BB e CC apenas tivessem tomado conhecimento de tais factos após o óbito do seu pai,
- que àquela data de 13.06.2014 a ré AA desconhecesse a situação tributária, financeira e patrimonial do seu então marido, nada sabendo dos seus negócios,
- que os réus apenas pretendessem efectuar ‘partilha em vida’ para prevenir eventuais complicações sucessórias por choque de feitios entre os filhos,
- que com o acto de 13.06.2014 pretendessem, o de cujus e cônjuge, vender tais bens aos segundo e terceiro réus, pelo seu valor de mercado.
*
Fundamentação jurídica
A. Da censura dirigida pelos apelantes à decisão da primeira sobre a matéria de facto.
Impugnam os apelantes a decisão da primeira instância sobre a matéria de facto sustentando que a valorização da prova documental produzida impõe:
- se retirem os pontos 5 e 6 do elenco dos factos provados, considerando-se antes como provado ‘não se ter provado o montante das dívidas fiscais à data de 13/06/2014, aquando do ato alegadamente prejudicial para a Estado, a partilha em vida com doação’ ou, à cautela, que em ‘13/04/2014, o valor total das dívidas fiscais era inferior a 1.200.000,00€’ – conclusões 6ª a 15ª,
- se alterem os pontos 19, 21 e 23 dos factos provados no sentido de neles se considerar que ‘o ato prejudicial para o Estado (de 13/06/2014) foi um ato oneroso’ – conclusões 17ª a 29ª,
- se retirem os pontos n23 e 43 do elenco dos factos provados, dando-se antes como provado que ‘à data de 2014/2015 o de cujus cujus possuía um património superior ao valor do crédito de impostos e todos os acrescidos em causa neste processo’ – conclusões 1ª a 5ª.
Patente a improcedência da impugnação dirigida pelos apelantes quanto aos pontos 5º e 6º dos factos provados, ponderando que a matéria neles exposta – ter a Autoridade Tributária liquidado ao falecido DD e à ré AA as contribuições de IVA e IRS discriminadas, quanto a valores e períodos de tributação (com os acréscimos relativos a juros compensatórios), no ponto 5 e mostrarem-se tais valores em execução, atingindo os valores (com juros vencidos contabilizados em 12/02/2019) discriminados no ponto 6 – se mostra demonstrada por certidão emitida pelo oficial público com competência em razão da matéria e do lugar (veja-se o documento junto com a petição sob o nº 10 – certidão de dívidas, emitida pelo Direcção de Finanças do Porto, relativa ao DD e à ré AA, que faz a descrição, discriminada, das dívidas de tais contribuintes por IVA e IRS em cobrança coerciva), com força probatória plena (arts. 369º e 371º do CC). Porque a força probatória de tal certidão (documento autêntico) não foi ilidida (art. 372º do CC) – a falsidade do documento não foi sequer invocada pelos réus –, a matéria nele atestada deve ter-se por demonstrada em juízo, impondo-se ao tribunal considerá-la (2ª parte do nº 4 do art. 607º do CPC), estando a mesma subtraída à livre apreciação do julgador (2ª parte do nº 5 do art. 607º do CPC). De todo o modo, ainda que o documento não estivesse dotado de força probatória plena (o que se não concede, apenas se ponderando para efeitos de argumentação), sempre se teria de considerar o mesmo como suficiente para demonstrar a matéria em causa e, bem assim, que os factos por ele revelados se mostram fielmente vertidos nos factos 5º e 6º dos factos provados.
Manifesta também a improcedência da impugnação dirigida relativamente aos pontos 19, 21 e 23 dos factos provados (pretendendo os apelantes se considere provado que o acto impugnado foi um acto oneroso).
Ultrapassando a questão de que os apelantes pretendem fazer incluir na decisão de facto matéria estritamente jurídica[4], a modificação pretendida é impedida pela ponderação de que o negócio jurídico aludido no facto 39 e os actos mencionados no facto 40 não são referidos, mencionados ou considerados, no acto impugnado, como seus correspectivos, como suas contrapartidas – no acto impugnado é pelos outorgantes manifestada a vontade de conceder uma liberalidade (pelo DD e à ré AA) e de receber uma liberalidade (os réus BB e CC), sem qualquer contrapartida ou correspectivo, designadamente que se manifeste a vontade de que a atribuição patrimonial então feita aos réus BB e CC tivesse como correspectivo ou contrapartida a prática, por estes, dos actos mencionados nos factos provados com os números 39º e 40º.
De afastar, terminantemente, que o negócio jurídico aludido no facto 39 (mútuo com hipoteca e renúncia de hipotecas, em que os réus BB e CC se contraem empréstimo hipotecário de 290.000,00€, em que a garantia incide sobre imóvel referido no facto 3º, tendo em tal negócio a entidade bancária renunciado a hipotecas que haviam sido contraídas pelo DD e pela AA) e as transferências monetárias referidas no facto 40 (transferências feitas em Dezembro de 2015 do réu CC para o BB) indiciem, per se (como se a sua simples ocorrência fosse reveladora da razão(ões) justificadora(s)), um nexo de correspectividade (de reciprocidade, ligação sinalagmática) com o acto impugnado (sendo este negócio e transferências perfeitamente compatíveis, em termos de racionalidade e lógica, com a liberalidade exposta no facto 3º).
Improcedente, também, a censura dirigida pelos apelantes aos factos provados 23 e 43 – como incisivamente realça o D. M. do M. P. nas suas contra-alegações, os documentos juntos com a petição sob os números 26 e 27 (relatórios de inspecção tributária levada a cabo pela AT ao DD) revelam, não o rendimento do DD nos anos de 2009 a 2014, muito menos o seu património, antes o volume de negócios sujeito a tributação, que se não confunde com o património do sujeito nem sequer permite (por si só) concluir pelo valor do património do sujeito passivo.
Não merece censura, em razão do exposto, a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto.
B. Do mérito da causa.
A impugnação pauliana constitui um meio de conservação da garantia patrimonial do crédito posto à disposição dos credores pelo ordenamento jurídico, possibilitando-se, através dela, a reacção contra os actos praticados pelo devedor que, inconvenientemente, diminuam o activo ou aumentem o passivo patrimonial deste – ou seja, os actos com os quais o devedor empobrece o seu património[5].
Sendo escopo do instituto a protecção do património enquanto garante do cumprimento das obrigações do seu titular (arts. 601º e 817º do CC), a condição primária para o seu exercício é a existência de um crédito que justifique a sua utilização[6], como resulta claro do corpo do art. 610º do CC, ao preceituar que o credor pode impugnar os actos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito.
Destinando-se, funcionalmente, a proteger a garantia patrimonial do crédito, o segundo requisito do instituto da impugnação pauliana é o eventus damni – o prejuízo causado pelo acto impugnado ao património do devedor.
O art. 610º, b) do CC exige como requisito da impugnação pauliana que do acto impugnado resulte para o credor a impossibilidade de satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade. É este prejuízo que justifica a utilização da impugnação pauliana, enquanto meio de conservação da garantia patrimonial e é por isso erigido em requisito autónomo do instituto – é este prejuízo (eventus damni) que, constituindo a sua ‘pedra de toque’, confere interesse e justificação à impugnação, sendo requisito inerente ao papel funcional do instituto, consubstanciando o ‘ponto de equilíbrio entre a defesa dos direitos do credor e dos direitos do terceiro beneficiado pelo acto impugnado’ (só quando é afectada a garantia patrimonial do seu crédito o credor tem interesse e justificação para se intrometer num acto praticado por terceiros – a acção pauliana não tem aplicação sempre que o devedor pratica um acto diminuidor do seu património, circunscrevendo-se o seu âmbito de aplicação às situações em que tal diminuição ponha em perigo a possibilidade do credor obter a satisfação do seu crédito)[7].
Tal requisito da nocividade concreta[8] do acto impugnado mostra-se estabelecido com precisão na alínea b) do art. 610º do CC, preceituando-se aí ser necessário que do acto resulte para o credor a impossibilidade de obter a satisfação do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade.
Essa impossibilidade é aferida em razão da situação patrimonial do devedor após a prática do acto a impugnar, apurando-se, de um lado, o seu passivo (o montante das suas dívidas) e, do outro, o seu activo (os seus bens penhoráveis e respectivo valor). A nocividade do acto existirá se o valor dos bens penhoráveis existentes no património do devedor for insuficiente para solver o montante das suas dívidas – sem prejuízo daqueles casos em que se mostra fortemente improvável a submissão dos bens existentes no património do devedor a uma execução judicial, em razão das suas natureza e características (o património do devedor, apesar da sua solvabilidade, pode ser constituído por bens de fácil ocultação ou dissipação ou pode ser composto por créditos de difícil cobrança)[9].
Exige também a lei (art. 610º, a), primeira parte, do CC) como requisito da impugnação pauliana a anterioridade do crédito relativamente ao acto impugnado, pois que só os titulares de créditos anteriores a tal acto podem considerar-se lesados com a sua prática – só eles podiam legitimamente contar com os bens entretanto saídos do património do devedor como valores integrantes da garantia patrimonial do seu crédito (ou, noutra perspectiva, não podia o credor contar com bens que já não se encontravam no património do devedor à data da constituição da obrigação)[10].
O critério para apurar (fixar) a data do nascimento do crédito, para o efeito de apreciar da verificação da sua anterioridade relativamente ao acto impugnado, varia consoante a respectiva origem e natureza[11] (note-se que interessa a data da constituição, não a do vencimento do crédito – não é necessário que o crédito se encontre vencido para que o credor possa reagir contra os actos de diminuição da garantia patrimonial anteriores ao vencimento, contanto que a constituição do crédito seja anterior ao acto[12]): v. g., o crédito indemnizatório fundado na responsabilidade civil extracontratual nasce com o evento determinante da obrigação, o crédito de alimentos nasce com o surgimento da situação de necessidade, o crédito resultante de contrato nasce com a outorga do contrato (no momento da perfeição negocial – quando a declaração de aceitação é do conhecimento ou cognoscível pela contraparte) e, com interesse ao caso dos autos, a obrigação tributária constitui-se com o facto tributário (assim o estabelece, expressamente, o art. 36º da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL 398/98, de 17/12 – o ‘facto constitutivo da obrigação tributária é o facto gerador, ou seja, o preenchimento dos pressupostos de facto previstos na lei aos quais esta liga o dever de prestar o imposto. É neste momento que surgem os direitos e obrigações a cargo de cada um dos sujeitos, embora a obrigação, em princípio, só se torne certa e exigível com a sua liquidação’[13]).
Admite a lei, excepcionalmente, a impugnação pauliana relativamente a créditos posteriores aos actos de disposição patrimonial quando se demonstre que estes foram realizados dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor (2ª parte da alínea a) do art. 610º do CC). São os casos doutrinariamente designados por fraude preordenada[14], exigindo-se como requisito que o devedor actue com a intenção de impedir a satisfação do futuro crédito e ainda que concretize essa intenção, tornando o seu património «insolvente», em consequência do acto dolosamente praticado (o que se deve verificar por referência à data da prática do acto impugnado)[15].
Por fim, exige-se, na impugnação que tenha por objecto actos onerosos, a má fé do devedor e do terceiro, procedendo a impugnação dos actos gratuitos ainda que ambos (ou um ou outro) hajam actuado de boa fé (art. 612º, nº 1 do CC) – má fé que se traduz no simples conhecimento do prejuízo que do acto resulta para o credor (art. 612º, nº 2 do CC).
B.1. A anterioridade do crédito, a fraude preordenada e o prejuízo (eventus damni).
Considerando, como acima se referiu, que a obrigação tributária se constitui com o facto tributário, constata-se que, exceptuado o crédito relativo ao IRS de 2014 (alínea f) do facto provado nº 5), que também abrange período temporal posterior a 13/06/2014 (o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares incide sobre o valor anual dos rendimentos obtidos no ano civil, como estabelece o nº 1 do art. 1º do Código do IRS), todos os demais créditos são de constituição anterior ao acto impugnado – e por isso que se verifica, relativamente a estes, o requisito da anterioridade (a que não obsta a circunstância da sua liquidação ser posterior, como acima se expôs).
Quanto ao crédito de IRS relativo ao ano de 2014, arredada (relativamente à sua totalidade) a sua anterioridade relativamente ao acto impugnado, tem de afirmar-se a verificação dos requisitos da fraude preordenada.
Resulta provado que os devedores (o DD e a AA), concertados entre si, diminuíram (e estavam cientes que diminuíam) a garantia patrimonial dos créditos fiscais (incluindo do crédito de IRS que nesse ano se vinha constituindo), sabendo que do acto agora impugnado resultava a impossibilidade da AT obter a satisfação total dos seus créditos, procedendo ao impugnado acto com o intuito de fazer gorar a sua cobrança pela AT (factos provados 19, 21, 22 e 23). Provado, pois, que os devedores actuaram com intenção de impedir (também) a satisfação do crédito futuro, que ao tempo se vinha constituindo, relativo ao IRS de 2014 – acuaram com dolo directo, pois o acto foi voluntária e conscientemente praticado pelos devedores, com o propósito de alcançar, como efeito directo da conduta, a retirada dos bens do património que constituía a garantia da obrigação.
O requisito da insuficiência patrimonial (por referência à data da prática do acto impugnado) também se verifica.
Na verdade, o montante global da obrigação tributária, ponderando exclusivamente o seu capital (excluindo, pois, os juros compensatórios – e bem assim os juros moratórios e outros acréscimos, como as custas tributárias), ascende a 1.329.579,05€ (facto provado nº 5 – tal valor corresponde ao resultado da soma dos valores de capital concernentes aos impostos já constituídos e a constituir à data de 13/06/2004, sendo estes segundos a considerar em razão da fraude preordenada), sendo que o valor do património dos devedores era, à data de Junho 2014 insuficiente para o solver, ainda que se considere o património em relógios (estimado em cerca de 1.200.000,00€) referido no facto provado com o número 43 (sem apreciar sequer se à data do acto impugnado os relógios ‘mantidos’ pelo de cujus para o seu comércio importavam nesse valor – a referência temporal do facto 43 é aos anos de 2014/2015, sem precisar a situação em Junho de 2014 – e sem sequer explorar a questão concernente à fácil ocultação ou dissipação que tais bens móveis possibilitam).
Patente, pois, o eventus damni – a nocividade do acto constata-se, com linear clareza, em virtude do valor dos bens restantes do património dos devedores (ponderando os factos 28 e 43) não permitir a integral satisfação das suas dívidas, tendo por referência a data do acto impugnado (ou seja, do acto resultou, com nexo de causalidade adequada, a impossibilidade para o credor de satisfazer o seu crédito).
B.2. A gratuitidade do acto impugnado – o requisito da má fé (art. 612º do CC).
O acto impugnado (partilha em vida, nos termos do art. 2029º do CC – essa a designação expressamente declarada pelos outorgantes para o acto praticado) é um acto gratuito – consubstancia uma doação entre vivos, cuja especialidade resulta dos donatários serem alguns (ou algum) dos presumidos herdeiros legitimários do doador e de os demais herdeiros não contemplados serem inteirados com as respectivas tornas[16].
No negócio de partilha em vida, qualificável como uma doação, não existe qualquer ‘contrapartida pecuniária em relação à transmissão dos bens’, importando sacrifícios económicos apenas para uma das partes (o doador), não existindo ‘atribuições patrimoniais que devam ser tidas como prestações correspectivas’ que façam dela um negócio oneroso (ou seja, na partilha em vida não há atribuições correspectivas que, segundo a vontade das partes, se correspondam e em que uma seja contrapartida da outra), funcionado as tornas a que possa haver lugar como meio de composição dos quinhões hereditários[17] (ou, como no caso, de composição da legítima).
Arredada a possibilidade de considerar, no plano do facto, qualquer nexo de correspectividade entre o acto impugnado e o negócio jurídico referido no facto 39 e actos referidos no facto 40 e de, assim, se poder considerar, no âmbito da valorização jurídica, que o acto impugnado tivesse neste negócio e actos, de acordo com a vontade das partes, a sua contrapartida, a qualificação do acto impugnado como gratuito é evidente – as tornas que no acto impugnado foram postas a cargo dos donatários destinaram-se, exclusivamente, a compor a legítima do cônjuge-doador que falecesse em último lugar.
Tratando-se o acto impugnado de um acto gratuito – característica essencial do negócio gratuito é o de criar uma vantagem patrimonial para um dos sujeitos sem nenhum equivalente (ao contrário dos negócios onerosos, que pressupõem atribuições patrimoniais de ambas as partes, com nexo ou relação de correspectividade entre elas): o acto é gratuito porque realizado com uma particular intenção ou causa que é a de proporcionar uma vantagem à outra parte[18], como aconteceu na situação dos autos (ao negócio presidiu o animus beneficiandi, pois os devedores tiveram manifestada intenção de realizarem atribuição patrimonial aos seus filhos sem qualquer contrapartida, que receberam a vantagem com a consciência e vontade de a receber sem um sacrifício correspondente) –, a impugnação procede, independentemente de os outorgantes terem actuado de boa fé (ou seja, sem consciência do prejuízo causado ao credor). Consubstanciando-se o acto impugnado num negócio gratuito, não constitui requisito da impugnação (pressuposto de procedência da pretensão) a demonstração de que devedores e terceiros tinham consciência psicológica de que o acto praticado provocaria a impossibilidade do credor obter a satisfação do seu crédito ou num agravamento dessa impossibilidade (art. 612º, nº 2 do CC), ou seja, de que uns e outros (devedores e terceiros) não tinham conhecimento da situação patrimonial dos primeiros (dos devedores) e dos efeitos do acto que iam praticar como ainda que se aperceberam que tais efeitos impossibilitariam ao credor do devedor a obtenção da integral satisfação dos seus créditos[19].
Constata-se, assim, verificarem-se no caso todos os requisitos para a procedência da impugnação apuliana.
C. Síntese conclusiva.
Do exposto resulta a improcedência da apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em confirmar a sentença apelada.
Custas da apelação pelos apelantes
Suportarão também os apelantes as custas do incidente do desentranhamento dos documentos – que se ordena –, fixando-se a taxa de justiça em uma UC (art. 7º, nº 4 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela II a tal regulamento anexa).
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Porto, 11/10/2022
João Ramos Lopes
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
_______________ [1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, pp. 242/243. No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, p. 786. [2] Acórdão do STJ de 30/04/2019, processo nº 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2 (Catarina Serra), no sítio www.dgsi.pt. [3] Transcreve-se, ao abrigo dos art. 663º, nº 2 e 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC o teor da referida escritura junta com a petição sob o número 8 (documento autêntico, que faz prova plena do declarado), para assim ficarem expostas na matéria de facto, como se impõe, as declarações dos outorgantes no referido acto. [4] Não se desconhece que actualmente se mostra atenuado o espartilho tradicional, assente na clássica e, por vezes, esotérica divisão entre matéria de facto/matéria de direito (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), p. 722), tendo a opção legislativa ‘subjacente a admissibilidade de uma metodologia em que, com mais maleabilidade, se faça o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito’, não sendo excluído (e sem prejuízo de se buscar uma descrição factual e não juízos conclusivos - Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2014, 2ª edição, p. 587) o recurso a expressões de conteúdo mais genérico ou até conclusivo, desde que as mesmas permitam percepcionar a realidade invocada e estejam concretizadas e substanciadas nos demais factos que as contêm ou que a elas se reportam em ordem à concretização da realidade subjacente ao litígio (acautelado o exercício do contraditório - Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), p. 27 - e circunscrita a realidade a apreciar jurisdicionalmente para efeitos de delimitação do caso julgado material); a proibição de uso de expressões conclusivas (‘proibição dos factos conclusivos’) não ‘corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre matéria de facto e matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos’, já que o ‘objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto’ (Teixeira de Sousa, apud Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), p. 26 e 721/722) – estando a realidade a retratar exposta nos factos a que os ‘factos conclusivos’ ou ‘jurídicos’ se reportam, e não resolvendo o ‘facto conclusivo’, atento o objecto do litígio, a questão jurídica (a sorte da acção) senão com a consideração da realidade a que se reporta e acompanha (e que se limita a adjectivar, qualificar, valorizar – sem substituir ou prescindir da enunciação concretizadora daquela realidade objectiva), permitindo-se sobre a matéria o integral e efectivo cumprimento do contraditório (respeitando-se, pois, os limites materiais da acção e da defesa) e alcançando-se a circunscrição/delimitação da realidade a apreciar jurisdicionalmente para efeitos de delimitação do caso julgado material, não poderá censurar-se o uso de juízos conclusivos/valorativos no estrito âmbito da matéria de facto. [5] A. Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4ª edição, p. 434. [6] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2ª edição revista e aumentada, p. 155. [7] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana (…), p. 172. [8] A expressão é de A. Varela, Das Obrigações em Geral, (…), p. 435. [9] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana (…), pp. 180/181. [10] A. Varela, Das Obrigações em Geral (…), p. 438 e João Cura Mariano, Impugnação Pauliana (…), p. 157. [11] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana (…), p. 164. [12] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral (…), p. 438 (em nota) e João Cura Mariano, Impugnação Pauliana (…), p. 164 (em nota). [13] Acórdãos do STJ de 9/12/2014 (Pinto de Almeida) - citando Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Lopes de Sousa, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 111 - e de 16/04/2013 (Nuno Cameira), ambos no sítio ww.dgsi.pt. [14] A. Varela, Das Obrigações em Geral (…), p. 439. [15] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana (…), pp. 185/186. [16] Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Volume I, 3ª Edição (1990), pp. 52/53 e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume VI, 1998, pp. 19 a 21. A jurisprudência é, a propósito do tema, uniforme, como bem refere o apelado nas suas contra-alegações, citando, ‘o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08/11/2007, proferido no âmbito do processo n.º 07B3586, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Dr. Salvador da Costa; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/04/2013, proferido no âmbito do processo n.º 1744/05.6TBAMT.P1 S1, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Dr. Nuno Cameira; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 09/12/2002, proferido no âmbito do processo n.º 0250239, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. Sousa Lameira; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02/02/2010, proferido no âmbito do processo n.º 4179/07.2TBPRD.P1, relatado pela Exma. Senhora Juíza Desembargadora Dr.ª Anabela Dias da Silva; o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11/10/2012, proferido no âmbito do processo n.º 1744/05.6TBAMT.P1, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. Pinto de Almeida; acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25/05/2017, proferido no âmbito do processo n.º 186.14.7TBMR.E.G1, relatado pelo Exmo. Senhor Juiz Desembargador Dr. Espinheira Baltar’ e ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12/01/2017, proferido no âmbito do processo n.º 91/15.0 T8BRG.G1, relatado pela Exma. Senhora Dr.ª Maria Cristina Cerdeira, todos disponíveis em www.dgsi.pt. [17] Citado Acórdão do STJ de 16/04/2013 (Nuno Cameira). [18] V. g., Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição actualizada, 1983, pp. 400 e 401. [19] João Cura Mariano, Impugnação Pauliana (…), p. 199.