EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
PACTO DE PREENCHIMENTO
AVALISTA
NULIDADE
REDUÇÃO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
QUESTÃO NOVA
Sumário


I - O aval é uma garantia (pessoal) prestada à obrigação cartular do avalizado, não sendo o avalista sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele o avalizado.
II - Sendo a obrigação do avalista uma obrigação independente e (materialmente) autónoma da do avalizado, a mesma vive e subsiste independentemente da obrigação do último, salvo no caso da obrigação a que este se vinculou ser nula por vício de forma.
III - E daí que o avalista não possa, por via de regra, opor ao portador do título cambiário os meios de defesa (vg. exceções) de que possa lançar mão o avalizado perante aquele portador, e nomeadamente sustentando-os ou filiando-os na relação jurídica material subjacente à emissão do título.
IV - Limitação essa que não é, todavia, absoluta, pois que pode o avalista invocar perante o portador do título cambiário, para além da nulidade por vício de forma da obrigação garantida, a exceção do pagamento da quantia inscrita no título e bem como ainda a exceção do preenchimento abusivo desse título, desde que (neste caso), e encontrando-se no domínio das relações imediatas, tenha intervindo no respetivo pacto de preenchimento do mesmo estabelecido para o efeito.
V - O pacto de preenchimento é o ato através do qual as partes do negócio cambiário acordam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito emitido, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, designadamente quanto ao seu montante, ao seu vencimento, ao lugar do seu pagamento, etc. .
VI - Pacto esse que pressupõe, além do mais, que o título cambiário tenha sido emitido e entregue em branco, isto é, sem que nessa altura se mostrasse preenchido com alguns dos seus elementos essenciais que dele devem constar aquando da sua apresentação a pagamento.
VII - Pacto/acordo de preenchimento esse que pode e deve ser objeto de interpretação à luz dos critérios previstos nos artºs. 236º e sgs. do C. Civil.
VIII - Quem invoca o preenchimento abusivo de um título cambiário, tem o ónus de alegação e prova dos factos integrantes desse abusivo preenchimento, a começar, desde logo, pela existência de um pacto estabelecido para o seu preenchimento.
IX - A posterior inserção no título de uma quantia superior àquela que decorre do acordo realizado para o efeito, não conduz à nulidade do título, mas tão só à redução do quantitativo.
X - Está vedado ao tribunal superior (ad quem) conhecer de questões novas, isto é, que não tenham oportunamente sido invocadas e submetidas à apreciação do tribunal a quo, salvo tratando-se de questões que a lei impõe/permite o seu conhecimento oficioso.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I - Relatório


1. AA, BB e CC deduziram (em 05/12/2021) oposição, mediante embargos, à execução, para pagamento de quantia certa, que a Caixa Geral de Depósitos, SA., contra si instaurou (por requerimento de 14/12/2020), tendo como título executivo uma livrança junta.

Para o efeito, e em síntese, alegaram:

A livrança dada à execução, que assinaram como avalistas, foi subscrita e entregue à exequente, em branco, em 02/05/2000, vindo a ser preenchida, para os fins da execução, somente em 28/10/2020.

Acontece que nessa altura (em 28/10/2020) já haviam dívidas de mais de 20 anos sobre a data em que a livrança foi subscrita, tendo desde essa data e a data daquele seu preenchimento, e a sua apresentação à execução, decorrido o prazo ordinário de prescrição de 20 anos (previsto no artº. 309º do C. Civil).

E desse modo mostra-se prescrito o direito que a exequente pretende fazer valer através da execução.

Por outro lado, a referida livrança foi preenchida abusivamente, por não ter sido dada autorização para tal, e daí também a nulidade desse título dado à execução.

Concluíram pedindo a procedência dos embargos.


2. Contestou a exequente, pugnando pela improcedência de exceções invocadas pelos embargantes, quer no que concerne a prescrição do seu direito (defendendo que o prazo de prescrição, que no seu entender é de 3 anos - à luz do artº. 70º ex vi 77º ambos da LULL -, se conta apenas a partir da data de vencimento da livrança, e não da sua emissão), quer no que concerne ao preenchimento abusivo da mesma, alegando ter sido o mesmo contratualmente autorizado, nomeadamente pelos embargantes, daí a validade o título.

Concluiu pela improcedência dos embargos.

3. Por despacho proferido em 11.10.2021 foi suspensa a instância quanto à embargante CC, por virtude da declaração de insolvência, e determinado que a instância prosseguiria relativamente aos demais embargantes.


4. Realizada a audiência prévia, e saneado o processo, considerando-se a instância válida e regular, o tribunal anunciou às partes disporem já os autos dos elementos necessários para conhecer do mérito da causa, pelo que, em cumprimento do estatuído na al. b) do n°. 1 do art°. 591.° do CPC, foi-lhes concedida a possibilidade de se pronunciarem a esse propósito.


5. Seguiu-se a prolação da sentença que, no final, decidiu julgar “improcedentes os presentes embargos de executado quanto aos Embargantes AA e BB” determinando o prosseguimento da execução quanto aos mesmos.

Foi ainda aí fixado o valor da causa em € 172.327.77.


6. Inconformados como tal sentença, aqueles embargantes dela apelaram, vindo o Tribunal da Reação de Évora (TRE), por acórdão de 07/04/2022, a negar provimento ao recurso, confirmando aquela decisão recorrida, embora com fundamentos essencialmente diferentes.


7. E daí que os referidos embargantes, novamente irresignados, tenham interposto recurso de revista (normal) daquele acórdão decisório, tendo concluído as respetivas alegações nos seguintes termos (cuja ortografia se respeita):

« 1ª. Estando em causa a execução de uma livrança, subscrita, quando o contrato de mútuo foi assinado, em 02/05/2000 e a execução dessa livrança, apenas deu entrada em Juízo a 28/10/2020, sem que tenha havido qualquer causa, de interrupção ou suspensão do prazo prescricional, a dívida subjacente derivada do contrato de mútuo, está extinta por prescrição extintiva pelo decurso do prazo de mais de 20 anos.

2ª. - Tendo os recorrentes alegado a prescrição extintiva da obrigação subjacente, e o douto acórdão que julgou improcedente o recurso de apelação, entendem os recorrentes, que o douto acórdão apenas apreciou a improcedência da defesa dos avalistas, no sentido de que aos mesmos não lhes é aplicável os direitos e meios de defesa que são atinentes à devedora da obrigação subjacente, sendo que, os recorrentes entendem que a subscrição da obrigação de avalistas, tendo sido constituída, na mesma data, e pelo mesmo documento da obrigação subjacente da obrigação do cumprimento do contrato mútuo, estando esta obrigação extinta pelo decurso do prazo de mais de 20 (vinte) anos, de igual modo, deverá ser entendida como extinta a obrigação dos avalistas constituída na mesma data, por a esta lhe ser aplicável os mesmos fundamentos da obrigação subjacente, no que conserve à aplicação da prescrição extintiva.

3ª. - Quando em 02/05/2000 foi assinado o contrato de mútuo e assinada em branco a livrança pelos avalistas/recorrentes, o preenchimento da livrança seria ao tempo em escudos, mas em 28/10/2020 está preenchida em euros, configurando um preenchimento abusivo dado que tal preenchimento ocorre depois de decorridos mais de 20 (vinte) anos sobre a data em que a livrança foi subscrita pelos avalistas.

4ª. - Tendo a recorrida dado à execução uma livrança em que esta é preenchida, no que concerne ao seu montante, incluindo o capital e todos os juros vencidos, desde a data de emissão do título, até à data em que o mesmo é dado à execução, existe fundamento para declarar que os juros que estão computados, estão erradamente calculados, pois que a quantia exequenda nos termos legais apenas pode abranger, os juros devidos decorridos nos últimos cinco anos anteriores à data da execução da livrança. »


8. Não foram apresentadas contra-alegações.


9. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


***

II - Fundamentação



1. Do objeto do recurso.

Como é sabido, e constitui hoje entendimento pacífico, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se afere, fixa e delimita o objeto dos recursos, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, e 679º do CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do sobredito recurso de revista, verifica-se que as questões que se nos impõe aqui apreciar e decidir são as seguintes:

a) Da prescrição do direito da exequente ao crédito exequendo;

b) Do preenchimento abusivo da livrança dada à execução, como título executivo.


***


2. Os Factos

As instâncias deram como provados os seguintes factos (respeitando-se a ortografia):

1. Na execução de que estes autos constituem um apenso, foi apresentado como título executivo uma livrança, onde foi aposto como valor a quantia de 171.444,71 euros, como data de emissão 2/5/2000 e como data de vencimento 28/10/2020 (cfr. livrança junto aos autos);

2. Na livrança acima referida consta como subscritora "A. V..., Unipessoal, Lda." e no verso da mesma foi aposto o aval, sob a expressão "bom por aval ao subscritor" dos Embargantes AA, BB e CC;

3. A acima referida livrança foi entregue para garantia do cumprimento de todas as responsabilidades emergentes do contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples, a o qual foi atribuído o número PT ...92, que a Embargada Caixa Geral de Depósitos, S.A. celebrou em 2/5/2000 com a sociedade A. V..., Unipessoal, Lda., na qualidade de mutuária, e com os ora Embargantes na qualidade de avalistas (cfr. documento junto com o requerimento executivo que aqui se dá por reproduzido).

4. No contrato acima referido sob a sua cláusula 24.1 consta:

« Para titulação de todas as responsabilidades decorrentes da conta-corrente, o 1o contratante e os avalistas atrás identificados para o efeito entregam à Caixa uma livrança em branco subscrita pelo primeiro e avalizada pelos segundos, e autorizam desde já a Caixa a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria Caixa, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:

a) A data de vencimento será fixada pela Caixa em caso de incumprimento pelos devedores das obrigações assumidas ou para efeitos de realização coactiva do respectivo crédito;

b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes da presente abertura de crédito, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da  própria livrança;

c) A Caixa poderá inserir cláusula "sem protesto" e definir o local de pagamento. »


***


3. O Direito

3.1 Quanto à 1ª. questão.

- Da prescrição do direito da exequente ao crédito exequendo.

Como ressalta do Relatório e dos factos provados, e naquilo que para aqui importa reter, a exequente instaurou contra os executados/embargantes/recorrentes execução, para pagamento de quantia certa, dando como título executivo uma livrança, na qual consta como subscritora a sociedade A. V..., Unipessoal, Lda., e como avalistas aqueles embargantes/recorrentes.

Livrança essa que lhe foi entregue para garantia do cumprimento de todas as responsabilidades emergentes do contrato de abertura de crédito em conta corrente de utilização simples, ao qual foi atribuído o número PT ...92, que a exequente celebrou, em 02/05/2000, com aquela sociedade sua subscritora., na qualidade de mutuária, e com os executados, na qualidade de avalistas.

Livrança da qual consta aquela data (02/05/2000,) como sendo a da sua emissão, e a data de 28/10/2020 como sendo a do seu vencimento, titulando a importância € 171.444,71.

Apreciando a exceção de prescrição aduzida pelos executados/embargantes – nos termos e com os fundamentos que supra se deixaram exarados no ponto 1. do Relatório -, a sentença da 1ª. instância (proferida no despacho saneador), enquadrando a sua análise à luz do prazo de prescrição (da ação/obrigação cambiária) previsto no artº. 70º ex vi artº. 77 da LULL, julgou-se improcedente a mesma, por não ter ainda decorrido o prazo de prescrição, de três anos ali consagrado para o efeito, entre a data do vencimento aposto na livrança (a partir da qual se inicia da contagem de tal prazo) e a data em que a ação executiva foi instaurada.

Por sua vez, o acórdão da Relação (na apreciação do recurso da apelação interposto daquela decisão) discordou do entendimento seguido pela 1ª. instância, e nomeadamente do enquadramento que fez da questão/exceção decidenda, considerando que ela não se reporta, face à forma com foi colocada pelos embargantes, à prescrição do título de crédito cambiário enquanto tal, mas sim à prescrição da relação material (a ele) subjacente.

E à luz desse enquadramento, julgou a exceção de prescrição improcedente, por ter concluído, à luz dos fundamentos ali aduzidos, estar vedado aos avalistas invocar/opor, perante a exequente (na qualidade portadora da livrança), a exceção perentória de prescrição.

Embora concordando com o enquadramento feito pela Relação no que concerne à prescrição em discussão/em causa (reportada à relação/obrigação material subjacente ao titulo executivo), todavia, discordam da solução final encontrada por esse tribunal, defendendo nada impedir no caso que possam (na qualidade de avalistas) invocar a exceção de prescrição da obrigação emergente da relação material subjacente, e nessa medida, tendo em conta que a dívida (para garantia do pagamento da qual foi emitida, nessa mesma altura, a livrança exequenda que avalisaram) foi contraída (pela sociedade subscritora da livrança) - na sequência de um contrato de mútuo sob a forma de conta corrente - em 02/05/2000, verifica-se que quando a exequente veio executar/cobrar a mesma através da ação executiva a que se reportam os presentes autos (dando a execução a sobredita livrança) já havia decorrido, sobre a sua constituição, o prazo ordinário de prescrição de 20 anos (previsto no artº. 309º do C. Civil) – sem que tenha ocorrido, entretanto, qualquer causa suspensiva ou interruptiva -, o que conduz à extinção, no entender dos recorrentes, da obrigação subjacente e também, por consequência, da obrigação que eles próprios assumiram, na mesma data e no mesmo documento, enquanto avalistas.

Quid iuris?

Apreciemos.

Como se sabe, o executado pode opor-se à execução por embargos (artº. 728º do CPC).

Constitui entendimento prevalecente que a oposição à execução mediante embargos funciona como uma contra-ação do devedor contra o credor para impedir a execução ou destruir os efeitos do título executivo. Ou seja, a oposição do executado, por embargos, visa a extinção da execução, mediante o reconhecimento da atual inexistência do direito exequendo ou da falta dum pressuposto, específico ou geral, da ação executiva, competindo, assim, como regra, ao executado a alegação e prova dos factos em que funda os embargos que deduz à execução, com vista a destruir esta (cfr. artº. 732º, nº. 4, do CPC e, por ex., o prof. Lebre de Freitas, in “A Ação Executiva, 7ª ed., GestLegal, pág. 195; o prof. Rui Pinto, in “Ação Executiva, 2020, reimpressão, AAFDL Editora, págs. 365/367” e Ac. do STJ 19/12/2006, proc. 06B417, disponível in dgsi.pt).

Na sua petição de embargos, o executado/embargante deve expor os factos essenciais que constituem/integram a causa de pedir, e bem como as próprias razões de direito, que servem de fundamento a essa sua defesa à execução mediante os embargos que lhe deduz (cfr. artºs. 552º, nº. 1 al. d), ex vi 551º, nº. 1, do CPC).

Por sua vez, e como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva (artº. 10º, nº. 5, do CPC).

O título executivo – que, como também se sabe, não se confunde necessariamente com a causa de pedir -, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume, assim, uma função delimitadora (por ele se determinando o fim e os limites, objetivos e subjetivos), probatória e constitutiva, estando sujeito ao princípio da tipicidade. Todavia, não se confundindo com a causa de pedir e nem sendo conceitos necessariamente coincidentes, costuma-se, porém, ainda afirmar que, como pressuposto processual específico da ação executiva, o título é, grosso modo, uma condição e suficiente da mesma.

No campo dos títulos executivos vigora entre nós, o princípio da legalidade/tipicidade, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução documento a que seja legalmente atribuída força executiva.

As espécies de títulos executivos encontram-se elencadas no artº. 703º do CPC.

Dentre o elenco daqueles ali taxativamente tipificados, são títulos executivos “Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.” (artº. 703º, nº. 1 al. c), do CPC) (sublinhado nosso)

Como é sabido, as livranças (tais com as letras e os cheques) encontram-se entre esses títulos de crédito revestidos de força executiva.

Desde logo, na sua função natural de documentos cartulares ou cambiários, ou seja, enquanto títulos de crédito de natureza cambiária, e podendo agora sê-lo ainda, em determinadas condições, enquanto documento particular ou quirógrafo, ou seja, desde que, nesse caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo. 

Quando a livrança se apresenta à execução, como título executivo, na sua veste cambiária ou cartular é considerado como um título de crédito próprio, porém, se é ali apresentado despido dessa veste cambiária, ou seja, apenas como documento particular, é considerado como um título de crédito impróprio (cfr., por todos, o Ac. do STJ, de 12/09/2019, proc. 125/16. 0T8VLF-A.C1.S1, disponível, em www.dgasi.pt).

Ressalta do requerimento executivo e dos factos provados (cfr. ponto 1.), que a exequente - muito embora tenha alegado a relação causal que esteve subjacente à emissão da mesma (um contrato de mútuo celebrado com a sociedade subscritora) - deu à execução, como título executivo, uma livrança (titulando a quantia exequenda), na sua veste de documento cartular ou cambiário.

Grosso modo, pode dizer-se que a livrança é um título (cambiário) à ordem, sujeito a certas formalidades (artºs. 75º e 76º da LULL), pelo qual uma pessoa (o emitente, subscritor ou passador) se compromete, para com outra (o tomador ou beneficiário), a pagar-lhe determinada quantia (cfr., por todos, Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 4ª. ed. Actualizada, Livraria Petrony, págs. 321/322”).

Como título cautelar que é, a livrança está sujeita a uma disciplina especial, que reflete a preocupação de defender os interesses de terceiros de boa fé, e que é imposta pela necessidade de facilitar a sua circulação, é daí que, constituindo-se como um título de crédito rigorosamente formal, esteja revestida, entre outros, dos princípios da incorporação (a obrigação e o título constituem uma unidade), da literalidade (a reconstituição da obrigação faz-se pela simples inspeção do título cambiário), da autonomia (o direito do portador, que é considerado credor originário), da independência (recíproca das obrigações que estão incorporadas no título) e da abstração (a livrança é independente da sua causa debendi).

Apresentada em tal veste cartular, e porque a obrigação cambiária é, como vimos, uma obrigação literal e abstrata, que decorre do título que a incorpora, o credor que exige o respetivo pagamento não carece, em princípio, de invocar a sua causa (a relação subjacente ou fundamental) e, portanto, poderá limitar-se a apresentar o título que incorpora a obrigação (como vimos, a exequente foi mais longe ainda, sem ter necessidade de o fazer, alegando a relação causal subjacente à emissão e entrega da dita livrança).

Muito embora a abstração seja, como se viu, uma das características dos títulos de crédito cautelares, todavia, a criação da obrigação cartular não aparece por si só, antes pressupõe uma relação jurídica anterior, que constitui a chamada “relação subjacente, fundamental ou causal”, causa remota da assunção da obrigação cambiária, todavia, e como bem se assinala no acórdão recorrido, por força dessa característica/princípio a causa debendi em que se traduz a obrigação subjacente encontra-se separada do negócio jurídico cambiário, decorrendo de uma convenção extra-cartular.

O que isto significa é que a obrigação cartular vincula, independentemente, dos vícios de que padeça a sua causa: as exceções causais são inoponíveis ao portador do título, pois, não assentam nele, sendo-lhes estranhas.

Só assim não será no caso das chamadas relações imediatas, isto é, aquelas que se estabeleçam entre um dos subscritores do título e o sujeito cambiário imediato, dado que entre essas pessoas é conhecido o negócio causal (subjacente à emissão dos títulos de crédito) e os eventuais vícios de que ele padeça.

Isso mesmo decorre do art°. 17°, ex vi art°. 77°, da LULL, o qual dispõe que “As pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador, as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores, a menos que o portador, ao adquirir a letra, tenha procedido conscientemente em detrimento do devedor."

Como vimos, no caso presente a exequente demandou executivamente não a sociedade subscritora da livrança que deu à execução, mas os ora embargantes na qualidade de avalistas da mesma.

Estamos, assim, perante um aval coletivo (pois que é dado por mais que uma pessoa).

A figura ao aval encontra-se, no essencial, regulada nos artigos 30º a 32º da LULL.

Tais dispositivos (especificamente previstos para as letras de câmbio) são também aplicáveis às livranças, por força do disposto no artº. 77º – fine – daquele diploma legal.

Singelamente, pode-se definir o aval como um ato pelo qual um terceiro ou um signatário de uma livrança (neste caso) garante o pagamento da livrança por parte de um dos seus subscritores.

Assim, a sua função específica ou fim próprio é garantir ou caucionar a obrigação de certo obrigado cambiário; sendo essa responsabilidade de garantia primária.

Aval que, desse modo, se apresenta como uma garantia cambiária, e que se destina a garantir ou a caucionar o seu pagamento.

O aval é também um verdadeiro ato cambiário, origem de uma obrigação autónoma. E isso significa que o dador do aval não se limita a responsabilizar-se pela pessoa por honra de quem presta o aval; assume também a responsabilidade abstrata/objetiva pelo pagamento da livrança.

É também sabido, até por força dos princípios acima exarados, que o aval é incondicionável.

Dispõe o artº. 32º da LULL “que o dador do aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”.

Por outro lado, nos termos disposto no artº. 47 daquela Lei (aplicável também às livranças, por força do disposto do já citado artº. 77º), os sacadores, aceitantes, endossantes ou avalistas de uma letra/livrança são todos solidariamente responsáveis para com o portador, tendo este o direito de acionar todas essas pessoas, individualmente ou coletivamente, sem estar adstrito a observar a ordem porque eles se obrigaram.

Da conjugação de tais normativos, resulta, antes de tudo, que o avalista fica na situação de devedor cambiário perante aquele portador/beneficiário em face do qual o avalizado é responsável, e na mesma medida em que ele o seja.

Tal como vem constituindo hoje entendimento dominante, também dali resulta que se, por um lado, essa responsabilidade é solidária com a do avalizado - e não subsidiária ou sequer acessória do mesmo -, já, por outro, essa responsabilidade é própria, autónoma e independente da do avalizado, de tal modo que ela se mantém mesmo que a obrigação deste último seja considerada nula (por motivos que nada a tenham a ver com vícios de forma).

Autonomia essa da obrigação do avalista em relação à do avalizado que deflui, aliás, do AUJ nº. 4/13, publicado no DR, Iª. S., nº. 14, de 21/01/2013.

Do exposto ressalta:

Que o aval é apenas uma garantia (pessoal) prestada (pelo avalista) à obrigação cartular do avalizado, não sendo o avalista sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o subscritor da livrança, mas apenas da relação subjacente à obrigação cambiária estabelecida entre ele o avalizado.

Sendo a obrigação do avalista uma obrigação independente e (materialmente) autónoma da do avalizado, vive e subsiste independentemente da obrigação do último, salvo no caso da obrigação a que este se vinculou ser nula por vício de forma.

E daí que o avalista não possa, por regra, opor ao portador do título os meios de defesa (vg. exceções) de que possa lançar mão o avalizado perante aquele portador, e nomeadamente sustentando-os ou filiando-os na relação jurídica material subjacente à emissão do título, representando essa relação para o avalista uma res inter alios acta. A garantia que o avalista presta é, repete-se, à obrigação cambiária e não, diretamente, à obrigação causal subjacente que levou á emissão do título cambiário.

Limitação essa que não é, todavia, absoluta, pois que, como vem constituindo entendimento dominante, pode o avalista invocar perante o portador do título cambiário, para além da nulidade por vício de forma da obrigação garantida, a exceção do pagamento da quantia inscrita no título (que avalizou) - considerando que esse facto interfere diretamente na relação cambiária, já que nesse caso o portador é obrigado a entregar ao título ao seu pagador - e bem como a exceção do preenchimento abusivo do título cambiário, no caso de, encontrando-se no domínio das relações imediatas, aquele ter também subscrito, nele intervindo, respetivo pacto de preenchimento do mesmo estabelecido para o efeito.

No sentido do que se acabou de deixar exposto vide - embora podendo aqui e ali apresentarem-se com algumas ligeiras nuances -, ao nível da jurisprudência Acs. do STJ de 11/05/2022, proc. nº. 703/20.3T8SNT-B. L1.S1, de 28/04/2016, proc. nº. 1106/12.9YYPRT-B.P1.S1, de 15/05/2013, proc. nº. 3057/11.5TBGDM-A.P1.S1, de 03/11/2020, proc. nº. 1429/14.2T8CHV-A.G1.S1, de 04/05/2017, proc. nº. 206/14.5T2STC-A.E1.S1.S1, de 26/02/13, de 10/05/2011, de 11/02/2010, de 10/09/2009, de 02/12/2008, de 05/12/2006, de 11/07/2004 e de 01/07/2003, disponíveis em www.dgsi.pt, e ao nível da doutrina, os profs. Vaz Serra (in “RLJ ano 113, pág. 187”), Ferrer Correia (in “Lições de Direito Comercial, Vol. III, Letra de Câmbio, Universidade de Coimbra, 1975, pág. 215”), Pinto Furtado (in “Títulos de Crédito, págs. 153/154”), Carolina Cunha (in “Manual de Letras e Livranças, págs. 40 e 123”), Paulo Sendin e Evaristo Mendes (in “in “A Natureza do Aval e a Questão da Necessidade ou não de Protesto para Accionar o Avalista, págs. 27 a 45”) e França Pitão (in “Letras e Livranças, 3ª. Ed., Almedina, págs. 208/209”).

Aqui chegados, e tendo presente o que se deixou expendido, é altura de, de forma mais incisiva, darmos resposta à questão acima colocada.

Encontrando-nos no domínio das relações cambiárias, em que o título executivo dado à execução é uma livrança, é patente, tendo em conta que entre a data do vencimento nela constante e a data da instauração da ação que visou executá-la não decorreram mais de três anos), que obrigação cambiária nela inserta não se encontrava então (à data da instauração da ação executiva) prescrita e nem o direito de a fazer valer através dessa ação (cfr. artº 70º ex vi artº. 77º, e isto independente de se considerar que a prescrição a que se alude no primeiro normativo se reporta à obrigação cambiária, como parece ser o entendimento dominante, ou à caducidade do direito à ação).

Porém, como ressalta o que atrás se deixou exposto, não é esse nível que os avalistas/embargantes/ora recorrentes invocam a prescrição, mas sim ao nível da obrigação emergente da relação material subjacente à emissão da aludida livrança e do correspondente direito de crédito nascido dessa relação.

Com tal pretendem ver extinta aquela obrigação (e concomitantemente a sua própria obrigação cambiaria nascida do aval que prestaram à subscritora da livrança), e o correspondente direito de crédito exequendo, com o fundamento no decurso do prazo ordinário de prescrição de 20 anos (artº. 309º do CC).

Porém, como ressalta do que acima deixámos expendido, e não obstante nos encontrarmos no domínio das relações imediatas (ao nível do subscritor e do sacador avalizado), está-lhes vedado, na qualidade de avalistas, servir-se desse específico meio de defesa, por se filiar/fundamentar na relação jurídica material subjacente à emissão da livrança que avalizaram, ou seja, por esse invocado específico meio de defesa ter a ver e assentar exclusivamente naquela relação jurídica material subjacente em relação a qual se apresenta para si , como vimos, como uma res inter alios acta.

E nessa medida, nenhuma censura nos merece o acórdão recorrido, ao não conhecer do mérito da invocada exceção de prescrição.


***

3.2 Quanto à 2ª. questão.

- Do preenchimento abusivo da livrança dada à execução, como título executivo.

Como deixámos expresso na análise da questão anterior, o preenchimento abusivo de um título cambiário (vg. de uma livrança) é um dos meios de defesa que o avalista pode opor, como exceção, ao portador do mesmo, desde que, encontrando-se no domínio das relações imediatas, aquele ter também subscrito, nele intervindo, o respetivo pacto de preenchimento do mesmo estabelecido para o efeito.

Esse preenchimento abusivo pressupõe, desde logo, que o título tenha sido entregue em branco.

Vem sendo cada vez mais usual, na nossa hodierna sociedade mercantil, o recurso às chamadas letras/livranças em branco, por forma a facilitar o comércio, como modo de aumentar a garantia daqueles (vg. instituições financeiras ou outras) que vão creditando, ao longo certo período temporal, a favor de outrem, quantias em dinheiro cujo concreto montante não fica logo pré-definido (vg. contratos de abertura de créditos em conta-corrente) ou através de fornecimento de bens ou quantias em dinheiro cujo pagamento (vg. através de prestações) se protela no tempo.

A admissibilidade da letra ou da livrança em branco, apesar de não estar expressamente contemplada na respetiva Lei Uniforme (LULL), é indiscutida à luz do preceituado no artigo 10º da citada LULL.

Segundo este inciso “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.”

Como refere o prof. Ferrer Correia, é o próprio artigo 10º da LULL a admitir (ao menos, implicitamente) que a letra (ou a livrança – cfr. artigo 77º da LULL) possa ser emitida ou passada em branco, isto é, sem conter, desde logo, os requisitos essenciais previstos nos artigos 1º (letra) e 75º (livrança), desde que a mesma venha a ser posteriormente preenchida nos termos fixados no artigo 1º (e no artigo 75º, tratando-se de livrança), passando então, após o preenchimento desses elementos, a produzir os efeitos próprios do título de crédito.

Em suma, como escreve o ilustre professor (in “Ob. cit., pág. 482/483”) “pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efectivar-se desde que no momento do vencimento o título se mostre preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os arts. 1º. e 2º..”

Com efeito, nenhum obstáculo existe à perfeição da obrigação cambiária quando a livrança (ou letra), incompleta, contém uma ou mais assinaturas destinadas a fazer surgir tal obrigação, ou seja, quando as assinaturas nela apostas exprimam a intenção dos respetivos signatários de se obrigarem cambiariamente, quer se entenda que a obrigação surge apenas com o preenchimento, quer se entenda que nasce antes, ou seja, logo no momento da emissão, a ele retroagindo a efetivação constante do título por ocasião do preenchimento.

Por conseguinte, como refere J. Engrácia Antunes (in “Títulos de Crédito – Uma Introdução”, Coimbra Editora, 2ª. Ed., 2012, pág. 65”), a letra (ou livrança) em branco corresponde ao documento (sujeito ao modelo normalizado de letra ou, ao menos, que contenha a palavra “letra” ou “livrança”) que, não contendo todas as menções obrigatórias essenciais previstas nos artigos 1º ou 75º da LULL, possua já a assinatura de, pelo menos, um dos signatários cambiários (com a consciência e a intenção de assumir uma vinculação cambiária), acompanhado de um acordo ou pacto de preenchimento futuro das menções em falta. (Vide, ainda Pinto Furtado, in “144-145” e Ferrer Correia, in “Ob. cit., pág. 482”. Em sentido não inteiramente coincidente, vide Carolina Cunha, (in Ob. cit., págs. 168, 170, 171 e 178”,) para quem a letra em branco apenas exige a emissão voluntária de um título incompleto - com ou sem pacto de preenchimento -, com intenção de deixar o seu posterior preenchimento a outrem.

Nestes termos, o pacto de preenchimento pode definir-se como o ato pelo qual as partes no negócio cambiário ajustam os termos ou as condições em que deve vir a ser posteriormente completado o título de crédito, definindo a obrigação cambiária, ou seja, as condições relativas ao seu conteúdo, como sejam o montante, o vencimento, o lugar de pagamento, etc. (cfr. Abel Pereira Delgado, in “Ob. cit., 6ª edição, pág. 7”), ou, nas expressivas palavras do Ac. do STJ de 25/05/2017 (proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), como “o contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária.”

Acordo de preenchimento que não está sujeito a forma, podendo ser expresso (por escrito ou acordo verbal) ou tácito (artº. 217º do CC), mormente quando resulta concludentemente do negócio ou relação subjacente à emissão do título (cfr., por todos, Ac. do STJ de 04/05/2004, disponível em www.dgsi.pt.)

De facto, como resulta do já expendido, a livrança (ou letra) em branco é um título de formação sucessiva, na estrita medida em que, enquanto não se mostrarem preenchidos os seus elementos essenciais previstos no artigo 75º da LULL, a mesma, não obstante a sua emissão, não produz ainda efeitos como livrança.

A livrança em branco é, portanto, um documento que pode vir a ser um título de crédito, que aspira a sê-lo, desde que os intervenientes hajam assumido essa intenção ou possibilidade futura, mas que no momento da sua emissão em branco não adquire logo essa qualidade e continua a não possuir enquanto aqueles elementos não forem preenchidos.

Todavia, uma vez preenchidos esses elementos essenciais, a obrigação cambiária já incorporada no título considera-se constituída (deixando, pois, de ser um título incompleto, destituído de valor cambiário), sem prejuízo da questão atinente aos termos desse (posterior) preenchimento e da sua eventual desconformidade.

Diga-se ainda, que existindo pacto/acordo de preenchimento o mesmo deve ser objeto de interpretação à luz dos critérios previstos nos artºs. 236º e ss. do Código Civil.

Refira-se, por fim, e enfatizando aquilo que supra já deixámos referido, a esse respeito, constituindo entendimento claramente prevalecente entre nós que, por um lado, intervindo no pacto de preenchimento e encontrando-se o título no domínio das relações imediatas o executado/embargante/subscritor ou avalista pode opor ao exequente/beneficiário a violação desse pacto/acordo de preenchimento, ou seja, a exceção material (perentória) do preenchimento abusivo do título e que, por outro, é sobre ele (opoente) que incumbe/incide (nos termos do artº. 342º, nº. 2, do CC), o ónus de alegação e prova desse abusivo preenchimento. Sobre matéria temática acabada de expandir, e no mesmo sentido, vide ainda, entre outros, os Acs. do STJ de 13/07/2022, proc. nº. 2784/20.0T8STB.B.E1.S1, de 19/06/2019, proc. nº. 1025/18.5T8PRT.P1.S1, de 13/11/2018, proc. nº. 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1; de 25/05/2017, proc. n.º 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1; de 20/10/2015, proc. nº. 60/10.6TBMTS.P1.S1; e de 08/10/2009, proc. nº. 475/09.2YFLSB, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Como explica Carolina Cunha (in “Ob. cit., págs. 184/186”), o preenchimento abusivo apresenta duas categorias fundamentais de desconformidade por referência à vontade manifestada pelo subscritor do título cambiário. A primeira compreende as discrepâncias consubstanciadas num preenchimento injustificado ou extemporâneo, com destaque para a falta de verificação da ocorrência à qual o completamento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental) e para a extinção satisfatória da relação fundamental garantida pelo título. A segunda abrange as discrepâncias relacionadas com a configuração das menções introduzida no título, com destaque para a inserção de uma quantia superior à que decorre dos acordos realizados.

Além de facilitar a compreensão do fenómeno, esta divisão tem consequências práticas assinaláveis: só no primeiro grupo de hipóteses a invocação bem sucedida da exceção de desconformidade significa o afastamento da pretensão cambiária; já no segundo grupo apenas conduz à reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos.

Postas estas considerações de cariz teórico-técnico, para melhor enquadramento da questão, apreciemos.

Com ressalta do que se deixou exarado no Relatório, no articulado da sua petição de embargos, e como sua defesa por exceção, os executados/embargantes alegaram/invocaram ainda que a referida livrança, que foi entregue à exequente em branco contendo apenas as suas respetivas assinaturas (e bem como a da subscritora), veio depois a ser preenchida abusivamente (pela exequente), por não ter sido dada ou obtida a devida autorização para tal, e daí também, em conclusão que extrai, a nulidade desse título dado à execução.

Na sentença da 1ª. instância, jugou-se improcedente tal exceção, após se ter concluído - face ao que consta da cláusula 24.1 do contrato que foi celebrado entre as partes e que está vertida no ponto 4 da matéria de facto acima descrita como provada – mostrar-se provada/demonstrada a autorização concedida por aqueles para o preenchimento da dita livrança.

Nas suas conclusões do recurso de apelação interposto dessa sentença – das quais, diga-se, desde já, as do presente recurso são uma réplica fiel – os recorrentes invocaram esse preenchimento abusivo que fundamentaram, tal como agora nesta revista, na alegação de a livrança ter sido preenchida em euros e não em escudos e ainda de a quantia nela inscrita apenas dever comportar os juros referentes aos últimos 5 anos.

O acórdão da Relação, ora recorrido, pronunciou-se a esse respeito da seguinte forma (que se transcreve):

« (…) Advogam os apelantes que se verifica um preenchimento abusivo da livrança, porquanto a mesma foi preenchida em euros e não em escudos.

Mais sustentam que apenas seria viável incluir na livrança os juros vencidos nos últimos 5 anos. Sucede, porém, que nenhuma destas questões, foi expressa ou implicitamente suscitada na petição inicial (ou, sequer, em momento algum da tramitação dos autos no tribunal recorrido) sendo que esse era, sob pena da preclusão do respectivo conhecimento (Neste sentido, o Ac. do STJ de 08.03.2005, proferido no proc. n.° 05A373e acessível em www.dgsi.pt) o momento processualmente adequado para o fazer.

É ainda seguro que não se tratam de questões de conhecimento oficioso ou de fundamentos supervenientes de oposição.

É consabido que os recursos destinam-se a reapreciar as decisões dos tribunais recorridos que incidiram sobre questões que por estes hajam sido (ou devessem ter sido) apreciadas.

Os recursos não servem, pois, para conhecer e decidir questões novas, ou seja, aquelas que não tenham sido atempadamente submetidas à apreciação dos tribunais de grau de jurisdição inferior, com ressalva, naturalmente, das questões que são de conhecimento oficioso.

Ora, sendo os recursos meios de impugnação e de correcção de decisões judiciais e não meios para obter decisões novas, não pode o tribunal de recurso ser chamado a pronunciar-se sobre questões sobre as quais o tribunal recorrido não se pronunciou.

Aliás, a jurisprudência é unânime neste sentido, já que os recursos, como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas, não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso. Despistam erros injudicando, ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente.

Os recursos destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pp. 23), constituindo, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas e não para conhecer questões novas, não apreciadas e discutidas nas instâncias (cfr. art.° 676.° n.° 1 do CPC. Neste sentido, vide Ac. STJ de 28.04.2010, proferido no proc. n.° 2619/05.4TTLSB, acessível em www.gde.mj.pt, Abrantes Geraldes, op. cit., pp. 23, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.a ed., pp. 566 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em processo Civil, 9.ª ed., pp. 153 a 158), sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso.

Daí que, não tendo os apelantes suscitado oportuna e tempestivamente as questões que agora expõem nas conclusões 3. e 4. e não sendo estas de conhecimento oficioso (na medida em que a aplicação do direito aos factos no sentido pretendido pelos recorrentes dependia, primeiramente, da tempestiva alegação destes últimos), seja legalmente inviável, por ocorrência da preclusão, o respectivo conhecimento em sede de apelação.

Destarte, é de meridiana clareza, que está vedado a este tribunal ad quem pronunciar-se sobre as aludidas questões

Consequentemente, decide-se não se conhecer, nesse segmento, do mérito do recurso.  (…) »

Que dizer?

Estamos em inteira sintonia com a decidido pelo ora tribunal a quo.

Como atrás já se deixou referido, as conclusões das alegações do presente recurso são uma fiel réplica daquelas do recurso de apelação.

Constitui entendimento pacífico ao nível da nossa jurisprudência (e particularmente neste mais alto tribunal), os recursos são meios de impugnação de decisões, que visam proceder ao reexame de questões precedentemente submetidas pelas partes à apreciação do tribunal a quo (e por este, em principio resolvidas/decididas), estando vedado ao tribunal superior (ad quem) conhecer de questões novas, isto é, que não tenham sido invocadas e submetidas à referida apreciação do tribunal a quo, salvo tratando de questões que a lei impõe/permite o seu conhecimento oficioso (cfr. artº. 608º, nº. 2, do CPC).

Ora, como bem se referiu no acórdão recorrido, estamos perante concretas questões novas (que não são de conhecimento oficioso), nunca antes alegadas e submetidas à apreciação da 1ª. instância, e que só no recurso de apelação foram alegadas/invocadas, sob a mesma “capa” do preenchimento abusivo da livrança.

Desse modo, e sem necessidade de outras considerações, nenhuma censura nos merece o ora tribunal a quo ao não ter conhecido da referida questão.

Em passant, e mesmo que porventura assim não fosse de entender, diga-se, tão só, ser patente, face às considerações teóricas que acima se deixaram expendidas e à matéria de facto apurada, que, facilmente, a nosso ver, se chegaria à conclusão que os recorrentes não só não lograram demonstrar (como lhes competia) o alegado preenchimento abusivo, como inclusive se chegaria à conclusão do contrário.

Termos, pois, em que se nega provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


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III - Decisão



Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso (de revista), confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos embargantes/recorrentes (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


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Lisboa, 2022/10/11


Relator: cons. Isaías Pádua

Adjuntos:

Cons. Aguiar Pereira

Cons. Maria Clara Sottomayor