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FURTO
ENERGIA ELÉCTRICA
VALOR
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Sumário
I - O tribunal a quo não apurou qual o valor da energia elétrica de que o arguido se apropriou, tendo considerado e fazendo constar da factualidade provada a estimativa efetuada pela demandante e decidindo, de direito, atendeu ao valor estimado – 11 655,33€ – condenando o arguido pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. II - A determinação do valor da coisa subtraída, sendo um elemento decisivo para a qualificação jurídica do crime de furto, tem de ser feita, em concreto, ou seja, exige-se que se proceda ao apuramento de um valor exato ou aproximado, em termos objetivos. III - Na impossibilidade de apurar esse valor, deve indagar-se se este é, ou não, superior a uma Unidade de Conta, avaliada no momento da prática do facto e, na dúvida, há que aplicar o princípio in dubio pro reo e considerar ser o mesmo inferior a uma UC, correspondendo a valor diminuto, na definição constante da al. c), do artigo 202.º do CP, com as consequências daí decorrentes, no que concerne à qualificação jurídica do crime de furto. IV - O que cumpria ao tribunal a quo apurar e determinar factualmente era se a energia elétrica de que o arguido/recorrente ilegitimamente se apropriou, no período temporal em que tal se verificou, correspondia, efetivamente, ao valor que a demandante estimou. V - Pese embora a estimativa do valor do consumo de energia elétrica irregular, na impossibilidade de apuramento do respetivo quantum real, deva ser efetuada de acordo com as diretrizes estabelecidas no artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro e com base na Tabela constante do Anexo II da Diretiva 11/2016 da ERSE – Procedimentos previstos no Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados do Setor Elétrico, trata-se, em todo o caso, de um valor estimado ou presumido. VI - Assim sendo, ainda que esse valor possa ser considerado, para efeitos de responsabilidade civil, o mesmo não acontece, quando está em causa a responsabilidade criminal, vigorando no processo penal, o princípio in dubio pro reo. VII - A falta de indagação/investigação, pelo Tribunal a quo, do valor da energia elétrica de que o arguido/recorrente, ilegitimamente se apropriou, estando em causa matéria factual indispensável para se proceder ao correto enquadramento jurídico-penal dos factos, no que ao crime de furto diz respeito e que importará também para a quantificação dos prejuízos patrimoniais sofridos pela demandante, e consequente valor da indemnização a arbitrar-lhe, acarreta que a sentença recorrida enferme do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, al. a), do CPP) e que se imponha o reenvio do processo para novo julgamento (artigo 426.º n.º 1, do CPP), com vista ao apuramento daquele valor, nos termos sobreditos.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo comum n.º 355/18.0T9TVR, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Competência Genérica de Tavira, foi submetido a julgamento, com intervenção do Tribunal Singular, o arguidoAA, melhor identificado nos autos, pronunciado pela prática, em autoria material, em concurso real e na forma consumada, de: um crime de furto qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, als. a) e j), todos do Código Penal; um crime de quebra de marcos e de selos, p. e p. pelo artigo 356.º ex vi artigo 386.º, n.º 2 do Código Penal e de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, por referência ao artigo 255.º, al. b), ambos do Código Penal.
1.2. E-REDES – Distribuição de Eletricidade, S.A. deduziu pedido cível contra o arguido, peticionando a condenação do mesmo no pagamento da quantia de €11.655,33 (onze mil seiscentos e cinquenta e cinco euros e trinta e três cêntimos), a título de indemnização, por prejuízos patrimoniais causados, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal em vigor, de 4%, contados desde a data de notificação até efetivo e integral pagamento.
1.3. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 08/03/2022 – que foi depositada na mesma data –, com o seguinte dispositivo:
«(...), o Tribunal decide: Na parte criminal:
Julgar parcialmente procedente o Despacho de Pronúncia e, consequentemente:
a) Absolver o arguido AA da prática do crime de furto qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, al. por referência à alínea j), todos do Código Penal;
b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma continuada, de um crime de furto qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, por referência à alínea a), todos do Código Penal, na pena de 200 (duzentos) dias de multa;
c) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de quebra de marcos e de selos, p. e p. pelo artigo 356.º ex vi artigo 386.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa;
d) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, por referência ao artigo 255.º, al. b), ambos do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa;
e) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de €1.800,00 (mil e oitocentos euros);
f) Condenar o arguido nas custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s, bem como no pagamento das restantes custas processuais e dos honorários do(a) seu(ua) Ilustre Defensor(a), nos termos da Portaria n.º 1386/2004 de 10 de Novembro, sem prejuízo de eventual benefício de apoio judiciário. Na parte cível:
Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante E-REDES – DISTRIBUIÇÃO DE ELECTRICIDADE, S.A. e, consequentemente:
g) Condenar o arguido/demandando AA no pagamento da quantia de €11.655,33 (onze mil seiscentos e cinquenta e cinco euros e trinta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa civil, contabilizados desde a data de notificação do pedido de indemnização cível até integral e efectivo pagamento;
h) Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, sem prejuízo de eventual benefício de apoio judiciário.
(...).»
1.4. Inconformado, recorreu o arguido para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada as seguintes conclusões:
«A. O presente recurso tem como objecto a matéria de factos constante nos pontos 5º, 6.º, 8º, 9º, 10º, 14, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º a 22º, dos factos provados e os factos b., d. e c., dos factos não provados, e da matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, a qual condenou o Recorrente como autor material de:
B. Um crime de furto qualificado, na forma continuada, previsto e punido nos termos do artigos 30º n.º 2, 203º n.º 1 e artigo 204º n.º 1, por referência à alínea a) todos do Código Penal;
C. Um crime de quebra de marcos e selos, previsto e punido pelos artigo 356.º ex vi 386 n.º 2 do Código Penal;
D. Um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo artigo 258.º, n.º 1 al. b) e n.º 2 por referência ao artigo 255.º al. b) ambos do Código Penal.
E. Na formação da sua convicção o tribunal a quo teve em consideração as declarações do arguido, os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência e todo o acervo documental junto nos autos.
F. Contudo, não foi feita qualquer prova que foi o Recorrente, a proceder à celebração do contrato de fornecimento de energia com a EDP, em nome do seu pai na data de 15/02/2016, conforme vem descrito nos pontos 5 e 6 dos factos provados da douta sentença, negando o Recorrente que tenha procedido à celebração do dito contrato.
G. Aliás, a procuração, que consta nos autos é posterior à data da celebração do supra referido contrato.
H. Por outro lado, nem das declarações do arguido, nem do depoimento das testemunhas se consegue extrair cabal prova que o recorrente foi o autor das alterações/modificações que foram realizadas ao contador, nem que foi o recorrente que retirou os selos, ou se estes estavam colocados.
I. Não quer com isto dizer, que não existissem as alterações que constam nos autos.
J. Simplesmente, o recorrente, não sabe quem as fez, nunca as praticou, nem teve intenção de as praticar, assim como, nunca pediu fossem efectuadas tais modificações ao contador, desconhecendo o que se passou com o dito contador e selos.
K. O Recorrente apenas iniciou a exploração agrícola, no terreno do seu pai no ano de 2015.
L. De facto em declarações prestadas pelo arguido, com no dia 14/02/2022, com início às 09:51:00 e o seu fim às 10:45:00, com a duração de 00:54:35min., e que se encontram gravadas no ficheiro: 20220214095100_4236272_2870879.wma, a Mma. Juiz colocou-lhe a seguinte questão:
“Juiz: Então aquilo que senhor tá no fundo, está a negar tudo aquilo que está na pronúncia? Juiz: Que não foi o senhor que quebrou? Arguido: Eu, nada, nada. Juiz: Não mudou os cabos? Arguido: Não. Juiz: Mas também não consegue explicar como é que isso aconteceu? Arguido: Não, consigo explicar.”
M. Contudo, é vero facto que o Recorrente alega ter pedido que fosse feita uma alteração da localização do contador à EDP, no ano de 2015, devido a furtos que existiram no terreno e que não sabe se os técnicos que foram ao local montaram o contador, se procederam à correcta montagem ou mesmo à instalação dos ditos selos.
N. O Recorrente, simplesmente conformou-se com a situação da instalação realizada pelos técnicos credênciados, não tendo pedido subsequente fiscalização para verificar se estava tudo correctamente instalado.
O. O Recorrente, como referido não tem conhecimento como é que estas alterações foram feitas, assim como, também não sabe se os selos estavam ou não instalados.
P. Da mesma forma, que não possui conhecimentos técnicos de electricidade para fazer as alterações/modificações de cabos que vêm descritas na douta sentença
Q. Por outro lado, da análise documental, nomeadamente, dos registos de contagem do contador, verifica-se que o contador parou a sua contagem muito antes do Recorrente ter iniciado a exploração agrícola no ano de 2015, ou seja, o contador parou em 02/09/2013.
R. Momento em que o Recorrente, ainda não se encontrava na posse ou a explorar o terreno, estando este na exclusiva posse do seu pai.
S. O terreno antes do início da exploração agrícola pelo recorrente, no ano de 2015, encontrava-se abandonado, com as árvores secas, de fácil acesso, sem vedações e estava constantemente sujeito a furtos, conforme se pode verificar através da concatenação das declarações do arguido e do depoimento das testemunhas BB, e CC.
T. Por outro lado, quem era titular do contrato de fornecimento da energia era o pai do recorrente, como se poderá verificar através do confronto com a prova documental que consta nos autos, tendo sido sempre o pai do recorrente quem realmente pagava as facturas relativamente ao consumo de electricidade.
U. Salvo melhor opinião, não foi feita cabal prova que o ora Recorrente foi o Autor das referidas alterações
V. É assim, evidente a insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto provada.
W. O tribunal a quo ao dar como provados os designadamente, os factos que constam no ponto A das conclusões do presente recurso violou, o princípio do “in dubio pro reo” consagrado nos termos do artigo 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, o qual devia ter interpretado no sentido da sua absolvição.
X. Assim, como não foi realizada cabal prova que o autor dos crimes tenha sido o ora recorrente, nem que foi a pedido deste que os selos tenham sido retirados do contador, ou que este ou a pedido deste tenham sido feitas as alterações de cabos no dito contador e que através desta via o contador tenha parado de registar o consumo.
Y. Perante o referido, também o Recorrente devia ter sido absolvido.
Z. Pelo exposto, o Tribunal a quo, ao condenar o recorrente como autor material dos crimes em que foi condenado, interpretou erradamente os artigos 26.º e artigos 30º n.º 2, 203º n.º 1 e artigo 204º n.º 1, por referência à alínea a), artigos 356.º, e artigo 258.º, n.º 1 al. b) e n.º 2 por referência ao artigo 255.º al. b) todos do Código Penal, os quais deviam ter sido interpretados no sentido da sua absolvição.
AA. Sucede, que o Recorrente, sempre foi uma cidadão exemplar e cumpridor das suas obrigações, nunca tendo cometido qualquer ilícito penal.
BB. Consequentemente, o Recorrente foi também condenado no Pedido de Indemnização Civil, também o mesmo deveria ter sido absolvido, devendo este ser julgado improcedente por não provado.
CC. Por outro lado, por uma questão de cautela imposta pelo dever de patrocínio, sempre se dirá que o Recorrente nunca poderia ser condenado na quantia indemnizatória no valor de 11.655,33€ (onze mil seiscentos e cinquenta e cinco euros e trinta e três cêntimos).
DD. O Recorrente, apenas iniciou a exploração em 2015, conforme ficou provado em sentença.
EE. A contabilização, dos danos pela demandante, inicia-se em momento anterior à sua exploração uma vez que o contador parou em 02/09/2013.
FF. Pelo exposto, caso o Recorrente, fosse condenado, este não poderia ser em momento anterior à prática dos factos, ou seja, só poderia ser condenado no pagamento da indemnização, relativamente aos anos de 2015 (momento em que iniciou a exploração e que alegadamente foram praticados os factos), até ao ano de 2016, (momento em que o contador foi regularizado e iniciou a cômputo da electricidade).
GG. Destarte, sempre se dirá que o valor indemnizatório que caso se verifique responsabilidade criminal do recorrente, este ao ser condenado nos termos da sentença do tribunal a quo, foi num montante a título de danos manifestamente excessivo.
Neste termos e nos demais de Direito deve ser concedido provimento ao presente Recurso, e por via dele, ser revogada a sentença recorrida, e em consequência, o Recorrente ser Absolvido dos crimes de furto qualificado, de quebra de marcos e selos e de falsificação de notação técnica em que foi condenado, bem como, do respectivo pedido de indemnização civil.
Fazendo-se assim, a habitual e acostumada Justiça!»
1.5. O Ministério Público, junto da 1ª instância, apresentou resposta, pronunciando-se no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
«1. O ora Recorrente, não se conformando com a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, veio dela recorrer, alegando que o Tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação da prova produzida não podendo dar como provados os pontos 5.º, 6.º, 8.º, 9.º, 10.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º a 22.º e como não provados os factos b. d. e c., tendo violado o princípio da livre apreciação da prova e o princípio do in dúbio pro reo.
2. Contudo, verifica-se que o Tribunal a quo analisou de forma exaustiva todas as fontes probatórias utilizáveis em julgamento efectuando uma súmula do respectivo conteúdo e fundamentou a sua convicção, na conjugação das declarações do arguido, depoimento das testemunhas inquiridas e na prova documental junta aos autos.
3. No que concerne às declarações do arguido e dos testemunhos prestados, verifica-se que o Tribunal a quo analisou e valorou todos os depoimentos prestados, explicitando os motivos e razões porque preteriu uns em relação a outros, sem margem para erro ou dúvida relevante e em termos concordantes com as regras da experiência comum e com a prova indiciária.
4. De forma clara, exaustiva e coerente a douta Decisão discorreu quanto às declarações do arguido e concluiu que “em momento algum as declarações do arguido foram suportadas pela prova produzida. De facto, e à excepção da testemunha BB, que confirmou integralmente a versão avançada pelo arguido, a demais prova aponta no sentido inverso.”
5. A fundamentação do estabelecimento dos factos provados, bem como dos factos não provados é clarae não apresenta qualquer dúvida ou contradição, não merecendo censura a matéria de facto dada comoprovada e a matéria de facto dada como não provada.
6. A Douta Decisão proferida não merece qualquer reparo, nem violou qualquer princípio ou disposição legal.
Pelo que, ressalvada diferente e melhor apreciação de V. Exªs, deverá ser negado provimento ao recurso, por manifestamente improcedente, mantendo-se na íntegra o decidido na douta decisão recorrida.
Porém, Vossas Excelências decidindo farão como sempre a costumada Justiça!»
1.6. O recurso foi regularmente admitido.
1.7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado parcialmente procedente, ainda que com fundamentação diversa e que, em primeira linha, se julgue verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP e, em consequência, se determine o reenvio do processo para novo julgamento, no segmento referente ao ponto 14. da matéria factual provada, não podendo considerar-se como válida e juridicamente relevante “o valor estimado” da energia elétrica de que o arguido se apropriou, tratando-se de factualidade essencial, para aferir do preenchimento, ou não, da circunstância qualificativa do furto, pelo “valor elevado”. Ressalvando a possibilidade de assim não ser entendido, o Exm.º PGA defende que a sentença recorrida deve ser declarada nula e, consequentemente, determinado à 1ª instância que apure o valor da energia elétrica objeto de apropriação por parte do arguido, pelos meios que melhor entenda ou, se for o caso, fazendo aplicação do princípio in dubio pro reo, proferindo-se nova sentença, nessa conformidade.
1.8. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, a demandante E-REDES e o arguido exerceram o direito de resposta, manifestando discordância relativamente ao parecer emitido pelo Exm.º PGA.
1.8.1. A demandante concluiu nos seguintes termos:
1. O Tribunal a quo formulou a sua convicção perante a prova produzida, sendo que, teve em consideração toda a prova documental e testemunhal relevante para a descoberta da verdade, pelo que se conclui que a decisão recorrida não merece reparo e que não tem razão o Senhor Procurador-Geral Adjunto no parecer a que se responde.
2. A sentença recorrida não contém vícios de conhecimento oficioso, encontrando-se com toda a matéria de facto necessária para a decisão que foi tomada, fundamentada e bem formulada.
3. É falso o que é dito no parecer, que, “O enunciado constante do facto provado 14, na sentença, não pode considerar-se como facto provado, porque não é facto juridicamente válido e eficaz para a decisão.” O enunciado constante do facto provado 14, assim se deverá manter.
4. A forma de cálculo do valor em causa no pedido de indemnização cível dos autos teve por base normas legais, como a tabela constante no Anexo II da Diretiva 11/2016 da ERSE - Procedimentos previstos no Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados do Setor Elétrico -, publicada em Diário da República, 2.ª série, n.º 111, 9 de junho de 2016. Nos termos da lei, uma vez que a potência utilizada na instalação, regulada fraudulentamente, era de 10,35 kVA, foi considerado o consumo médio anual, fixado pela ERSE em 4.096 kWh, a que foi adicionado o desvio padrão fixado legalmente em 4.211 kWh. De acordo com a Diretiva 5/2016 “[q]uando não existirem evidências claras nem registos fiáveis nos equipamentos de medição da energia elétrica consumida associada ao procedimento fraudulento, o seu valor será estimado com base no consumo anual por escalão de potência contratada, nos termos do ponto 33.1.2, adicionado do respetivo desvio padrão.”.
5. Não é de considerar o entendimento do parecer a que se responde, pois não pode o Direito, deixar de regular as circunstâncias em apreço e garantir a justiça do caso concreto. A adulteração do equipamento de medição e contagem, bem como o consumo ilícito de energia elétrica, só beneficiou o arguido, pelos factos e montantes provados na sentença recorrida, pelo que não pode ser afastada a qualificação do crime em apreço.
6. No caso dos autos não há dúvida razoável que permita aplicar o princípio do in dúbio pro reu, por não ter existido, à sentença recorrida, dúvida relativamente à prova produzida em audiência. Não tem pois razão o parecer a que se responde, devendo manter-se a qualificação do crime, pois embora o Sr. Procurador-Adjunto entenda, sem razão, que o Tribunal deu como provado o meio de prova e não o facto que integra a previsão do tipo de ilícito, o valor de energia furtada à data dos factos será sempre superior a 50 unidades de conta, o que leva a que se mantenha a qualificação do crime, nos termos do artigo 202.º, al. a) do Código Penal.
Termos em que e nos mais de Direito, com o douto suprimento de V/Exa., deverá improceder o entendimento do parecer a que se responde, mantendo- se o facto provado 14 da sentença recorrida, a qual igualmente se deverá manter,
Com o que será feita a costumada JUSTIÇA..»
1.8.2. Por sua vez, o arguido reiterou o alegado na motivação de recurso e concluiu nos mesmos termos, manifestando que o entendimento expresso no parecer do Exm.º PGA deve improceder relativamente à al. a), respeitante à impugnação da matéria de facto, por não ter sido produzida cabal prova quanto à autoria do crime, com a consequente absolvição do arguido da prática dos crimes por que foi pronunciado e condenado em 1ª instância e proceder quanto à al. b), no tocante aos vícios decisórios de que enferma a sentença recorrida.
1.9. Feito o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
Cumpre agora apreciar e decidir:
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artº. 428º do CPP).
As conclusões da motivação recursiva balizam ou delimitam o respetivo objeto do recurso (cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do CPP), delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Tal não impede o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados no n.º 2 do artigo 410º do CPP, bem como das causas de nulidade da sentença, a que se refere o artigo 379º, n.º 1, do CPP e de outras nulidades insanáveis, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelo arguido/recorrente da motivação de recurso apresentada, são as seguintes as questões suscitadas;
- Impugnação da matéria de facto dada como provada nos pontos 5º, 6.º, 8º, 9º, 10º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º a 22º e como não provada nas alíneas b., d. e c., por erro de julgamento e violação do princípio da livre apreciação da prova;
- Violação do princípio in dubio pro reo.
2.2. Para que possamos apreciar as questões suscitadas no recurso, importa ter presente o teor da sentença recorrida, que se passa a transcrever:
«(…) II. FUNDAMENTAÇÃO:
(i) FACTOS PROVADOS:
Discutida a causa, e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
Da Acusação Pública/Pronúncia:
1. A sociedade “EDP - Distribuição Energia, S.A.” exerce a actividade de operador de rede de distribuição de eletricidade, estando-lhe acometido o estabelecimento e exploração, em regime de concessão de serviço público exclusivo, da Rede Nacional de Distribuição e das redes de distribuição de electricidade em baixa tensão.
2. Na qualidade de concessionária, a referida sociedade efectua a ligação à rede eléctrica de serviço público das instalações de consumo, cujos titulares tenham celebrado um contrato de fornecimento de energia eléctrica com um comercializador que opere no mercado regulado ou no mercado livre.
3. Também na qualidade de operador de rede, a “EDP - Distribuição Energia, S.A.” fornece e instala nos locais de consumo contratados, um equipamento de medição (contador), destinado a registar os consumos efectuados, no qual os seus trabalhadores apõem selos para evitar a respectiva violação e a adulteração dos registos, devidas a intervenções realizadas por pessoas não autorizadas para o efeito.
4. Por contrato de fornecimento de energia eléctrica, celebrado a 01.07.1988, entre a “EDP -Distribuição Energia, S.A.” com DD, progenitor do arguido, foi efectuada ligação à rede pública de energia eléctrica e colocado um contador desta numa edificação destinada a armazém agrícola no prédio daquele localizado no ..., ..., em ..., tendo-lhe sido atribuído o número de local de consumo ...22.
5. Tal contrato perdurou até 15.02.2016, altura em que o arguido AA, enquanto representante legal do seu progenitor, DD, celebrou um novo contrato de fornecimento de energia eléctrica para o mesmo local de consumo, com o comercializador EDP Comercial – Comercialização de Energia, SA, que entrou em vigor a 16.02.2016.
6. Neste contrato foi fixado um nível de tensão BT e contratada uma potência de 10,35KVA ( 3x 15 amp), tal como sucedia no contrato anteriormente em vigor.
7. O arguido, pelo menos a partir do início do ano de 2015, é a única pessoa que explora o prédio acima descrito, onde exerce actividades agrícolas, destinando-se a energia eléctrica contratada para o local ao funcionamento dos equipamentos de rega ali colocados, assim como a uma habitação de campo sita no local.
8. Desde então, foi o arguido quem passou a receber as facturas com os consumos de electricidade ali registados e realizou o pagamento das quantias inscritas nas mesmas.
9. Em data não concretamente apurada do ano de 2015, o arguido, por si ou por interposta pessoa cuja identidade não foi concretamente apurada que agiu a mando daquele, alterou a localização do contador de electricidade existente no local e realizou alterações no referido equipamento de medição de molde a incrementar o valor da potência contratada fornecida e a diminuir o registo dos consumos de electricidade efectivamente realizados.
10. Assim, e de molde a concretizar tal desiderato, o arguido, por si ou por via de pessoa, que contratou para o efeito, retirou os selos colocados por trabalhadores da “EDP - Distribuição Energia, S.A.”, no contador existente no local, na respectiva tampa dos bornes e no disjuntor de controlo de potência, logrando por essa via, manipular os cabos e as ligações originárias.
11. Seguidamente, trocou os cabos de ligação da fase L1, colocou aquele que estava previamente
ligado no respectivo ponto de entrada no ponto de saída e aquele que estava ligado a este no ponto de entrada, assim como regulou o nível de potência para um valor superior ao originário, procedimentos que passaram a permitir que uma parte da energia efectivamente consumida não fosse registada e contabilizada pelo contador destinado a esse efeito, o que causou uma subfacturação de energia consumida e da potência tomada.
12. Em virtude de tais condutas, o arguido, sem o conhecimento e autorização da "EDP- Distribuição Energia, S.A.", apropriou-se ilegitimamente de energia eléctrica fornecida ao prédio que explorava, a qual consumiu, sem pagar o respetivo preço, e usufruiu de uma potência superior à contratada e que pagava de 3x15 amp, uma vez que o dispositivo de controlo de potência foi ilegitimamente regulado a uma potência de 3x 30 amp.
13. Tal situação manteve-se até ao dia 31 de Agosto de 2016, data em que foi realizada uma vistoria à instalação eléctrica do referido local de consumo, por parte de técnicos especializados da lesada EDP SA, os quais detetaram a inexistência dos selos apostos originariamente no contador colocado no local por trabalhadores da referida sociedade, assim como a troca das ligações dos respectivos cabos de fornecimento de energia e a alteração do valor da potência contratada, nos moldes supra referidos.
14. Com as referidas condutas, o arguido actuou com o propósito concretizado de, mediante a quebra dos selos colocados no contador e as alterações realizadas, se apoderar de energia eléctrica, em quantidade e valor monetário não concretamente apurados, mas que a lesada estimou em € 11.655,33 (onze mil seiscentos e cinquenta e cinco euros e trinta e três cêntimos), valores que que consumiu e fez seus, sem proceder ao respectivo pagamento, integrando-os no seu património,
15. Agiu o arguido ciente de que tais valores não lhe pertenciam, que agia sem autorização e contra a vontade da dona dos mesmos, a "EDP- Distribuição Energia, S.A.", que não consentia na descrita actuação.
16. Ao quebrar e destruir os selos que se encontravam colocados no aparelho de medição existente no local de consumo acima descrito, o arguido actuou com o propósito de, por essa via, lograr aceder ao respectivo interior e manipular as ligações ali existentes, ciente de que tais selos haviam sido colocados por pessoas devidamente autorizadas para o efeito, por serem trabalhadoras da “EDP – Distribuição SA” que, apenas estas têm autorização para manipular os mesmos, e que tais selos se destinavam a impedir o acesso ao interior do referido equipamento técnico.
17. Agiu ainda ciente que ao destruir e fazer desaparecer os referidos selos, estava a colocar em crise o fim a que os mesmos se destinam de, mediante a respectiva colocação por trabalhadores de uma entidade concessionária de um serviço público e universal se preservar a integridade e a manipulação indevida dos equipamentos técnicos que regulam e controlam o fornecimento de um bem essencial, frustrando por aquela via a confiança pública e do Estado na aplicação dos mesmos.
18. Ao manipular os cabos de entrada e de saída de energia apostos no contador acima descrito e ao regular a respectiva potência de energia para um valor superior ao que havia contratado, o arguido actuou ciente de que por essa via estava a subverter a contagem do consumo de electricidade realizada pelo referido aparelho que passou a registar consumos inverídicos, inferiores aos efectivamente realizados, assim como a beneficiar de uma potência de energia superior àquela que havia contratado.
19. Ao actuar pela forma descrita o arguido agiu com o propósito concretizado de obter um benefício patrimonial que sabia não lhe ser devido, consubstanciado no valor da energia que efectivamente consumiu e que não era contabilizada pelo contador eléctrico ali colocado para o efeito, ciente de que os valores de energia que tal aparelho passou a registar eram inferiores aos consumos reais e que por isso, tais valores eram falsos.
20. O arguido actuou ainda ciente de que a assumir tal conduta esta colocava em crise a confiança e fiabilidade da população em geral, do Estado e da sociedade lesada, nos resultados e nas funções acometidas a um equipamento técnico destinado a um registo fidedigno das medidas e valores de energia eléctrica fornecida e efectivamente consumida, ciente de que este se trata de um serviço público e universal.
21. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei e que, ao agir do modo descrito, incorria em responsabilidade criminal.
22. A apropriação ilegítima de energia eléctrica por parte do arguido perdurou durante pelo menos um ano e seis meses, favorecida pela circunstância de a lesada "EDP- Distribuição Energia, S.A." não realizar habitualmente e com carácter periódico vistorias técnicas para fiscalização dos locais de fornecimento/ consumo da energia eléctrica que fornece, por carecer de meios técnicos e humanos para o efeito. Dos antecedentes criminais dos arguidos:
23. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta; Das condições socioeconómicas do arguido:
24. O arguido é agricultor, trabalhando por conta própria e auferindo cerca de €800,00 mensais;
25. É casado, a sua esposa também trabalha na área da agricultura e residem em casa própria;
26. Não têm filhos menores de idade;
27. Despende cerca de €180,00 com as despesas de fornecimento de água, luz e gás, tendo ainda
um crédito anual, cujo valor não soube concretizar;
28. Estudou até ao 9.º ano de escolaridade. Do pedido de indemnização cível
29. Na sequência dos factos descritos em 1. a 12, a Demandante gerou a ordem de serviço n.º ...33 para detecção do procedimento fraudulento;
30. No dia 31 de agosto de 2016, os técnicos da Demandante deslocaram-se ao local de consumo para a execução da ordem de serviço e detectaram que a instalação se encontrava ligada, tendo verificado que o equipamento de medição e contagem estava desselado, com as ligações trocadas e o disjuntor de controlo de potência (DCP) estava regulado a uma potência superior à contratada, o que permitia o consumo
de energia pela instalação superior aos valores registados;
32. Perante a manipulação e adulteração do equipamento, foi elaborado o auto de vistoria no dia e
local mencionados e foram recolhidas fotografias;
33. Com a conduta do arguido, a Demandante sofreu um prejuízo de € 11.655,33;
(ii) FACTOS NÃO PROVADOS:
Com relevância para a decisão, não resultaram provados os seguintes factos: Da Acusação Pública/Pronúncia:
a. Com os factos descritos em 1 a 14., o arguido interferiu no serviço de fornecimento e distribuição de energia eléctrica realizado no local e noutros locais de consumo sitos nas imediações. Da contestação
b. Antes de o arguido iniciar a exploração do terreno agrícola, o mesmo encontrava-se abandonado e isento de qualquer actividade agrícola, sendo um sítio ermo e sem qualquer vedação;
c. Por ser um sítio ermo e desprotegido, foi alvo de diversos furtos e vandalismo, nomeadamente o próprio contador, onde o cabo de ligação que levava a electricidade para o local de consumo tinha sido furtado, motivo esse que levou à paragem do consumo de energia no dito contador;
d. O arguido não tem conhecimentos ou competências técnicas para proceder às alterações que vêm descritas na acusação.
*
(iii) MOTIVAÇÃO:
Nos termos do art. 374.º, n.º 2 do C.P.P., o tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua
convicção.
No que respeita à valoração da prova, rege o disposto no art. 127.º C.P.P., que prevê que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (apenas afastada nos casos expressamente previstos na lei, como o art. 163.º e 169.º C.P.P.).
Assim, o tribunal formou a sua convicção à luz das regras da experiência comum e da lógica do homem médio, fazendo a análise crítica e conjugada dos documentos juntos aos autos e da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
Concretizando,
Quanto aos factos provados:
Os factos 1 a 3 resultaram provados por serem do conhecimento geral, não carecendo de prova (cfr. art. 412.º, n.º 1 do C.P.C.).
Os factos 4 a 14, 22 e 29 a 33, resultaram provados, desde logo, através da análise dos seguintes documentos:
- Doc. de fls. 10 e 11, correspondentes à identificação do contrato de fornecimento ora objecto dos
autos;
- Auto de vistoria de fls. 12;
- Fotografias de fls. 13 a 17, correspondente à forma como o contador e o disjuntor foram encontrados aquando da vistoria;
- Doc. de fls. 18 a 19, correspondente ao cálculo da indemnização e outros danos;
- Cópia de carta de fls. 20, de interpelação para pagamento da quantia de €11.655,33;
- Cópia de procuração de fls. 79 a 82, subscrita pelos progenitores do arguido a favor deste;
- Contrato de fls. 109 a 116, relativo ao contrato datado de 15.02.2015;
- Docs. de fls. 177 a 180 e 197, relativos às leituras efectuadas no contador em causa, assim como da informação de que, no ano de 2015, não foi realizada qualquer intervenção ao local. O arguido prestou declarações, negando a prática dos factos pelos quais veio acusado. Referiu que
o contrato de fornecimento nunca foi alterado, continuando o mesmo desde 1988 e que nunca celebrou qualquer contrato em 2016. As facturas foram sempre emitidas em nome do seu pai, falecido em .../.../2020. Adiantou ainda que o terreno esteve 3 ou 4 anos abandonado, porquanto o seu pai não tinha mobilidade, nem se encontrava psicologicamente bem de saúde. A partir de 2015, o arguido passou a explorar o terreno em causa, sendo que, nessa altura, atenta a existência de um furto dos cabos de tensão, decidiu mandar instalar umas caixas e mudar o contador de local, isto é, de junto do armazém para junto da via pública (mas ainda no interior do imóvel), por ser um local mais exposto. Foi à EDP de ... comunicar a intenção de mudança de contador e, nessa sequência, a EDP deslocou-se ao local, ficando com os dados do contratante, mas não deixando qualquer comprovativo. Referiu desconhecer o que se passou com a quebra dos selos e com a troca dos cabos de ligação. Confirmou ter recebido uma carta para pagamento de cerca de €11.000, mas que não lhe deu grande importância, dado que o nome nela aposto não correspondia ao nome correcto do seu pai. Só mais tarde, e perante a insistência, é que pediu uma vistoria, embora não sabendo a que conclusão chegaram.
As declarações do arguido não mereceram, porém, credibilidade, quer porque contraditória com a
demais prova produzida, quer porque inverosímil, por referência às regras da experiência comum.
Desde logo, a invocada mudança do contador da zona do armazém para local mais visível do imóvel não se encontra suportada em qualquer prova documental. Não se demonstrou, assim, que a única intervenção do arguido relacionada com o contador em causa foi a de mudança de local onde o mesmo se encontrava, para outro.
Por outro lado, se, na tese do arguido, a mudança do contador se fundamentou no furto dos cabos de tensão, os quais, porque furtados, deixaram de proceder à contagem da electricidade, então, logo que se procedeu à referida mudança e os cabos foram (re)colocados, então, a contagem teria necessariamente iniciar, e de forma regular, o que, de acordo com os documentos de fls. 178 e 179, não sucedeu, dada a inexistência de contagem entre 25.10.2012 e 31.08.2016.
Ademais, se o arguido, pelo menos desde 2015, era a única pessoa que fazia uso do terreno, não pode o mesmo alegar desconhecer ter existido quebra de selos e troca dos cabos de ligação. Ainda que o mesmo tenha sugerido que qualquer pessoa poderia aceder ao imóvel, a verdade é que não só tal não resultou demonstrado, como nenhuma pessoa teria interesse em proceder à quebra dos selos e à mudança dos cabos de ligação, pois nenhum benefício daí retiraria. É manifesto que só o próprio utilizador da electricidade retiraria um benefício de uma contagem indevida e incorrecta. Importa, portanto, fazer apelo às regras da experiência comum para desconsiderar a versão avançada pelo arguido. Ainda que pudesse existir algum interesse no furto dos cabos eléctricos, admitindo-se como possível (ainda que não demonstrado) que antes de 2015 tenha existido algum furto, tal situação diverge da dos autos, porquanto o que aqui está em causa não é o furto dos cabos eléctricos, mas sim, para além da quebra dos selos, a mudança dos cabos, a fim de obter um benefício para a única pessoa beneficiária do fornecimento de energia eléctrica.
A testemunha EE, electricista de profissão, esclareceu que entre 2010 a 2018 trabalhou para a empresa J..., que prestava serviços para a EDP. Na sequência de autos por esta levantados por suspeita de potência e contadores desregulados, deslocou-se ao local em causa, tirando fotografias e fazendo o respectivo auto de vistoria. Embora não se tendo recordado da vistoria em concreto, confirmou que as mesmas eram efectuadas mediante ordens de serviço da EDP (o que se confirma pelo documento de fls. 197 verso). Foi confrontado com o documento folhas 12 e seguintes, confirmando a sua assinatura. Mais adiantou que através do referido documento se constata que o problema então detectado respeitava ao «contador desselado, diferencial regulado para 30 amp, trocados cabos». Adiantou ainda que os trabalhos eram executados pela já referida ordem de serviço, nunca sendo directamente contactados pelo cliente. Mais esclareceu que quando os cabos estão trocados, e dependendo da antiguidade do contador, o mesmo não anda ou anda para trás, o que, em qualquer um dos casos, acaba por resultar numa contagem de electricidade inferior à devida. Concluiu ser de fácil tarefa regular a potência para 30 amperes, pois basta mexer nas caixas que se encontram acima do disjuntor e do contador. Referiu que, por regra, não procedem à mudança de contadores de lugar (ao invés do referido pelo arguido). Se, eventualmente, houver necessidade dessa mudança, fazem constar por escrito, o que aqui não sucedeu. Foi ainda confrontada com as fotografias de fls. 13 e seguintes, esclarecendo a que cada um reportava. Também confrontado com folhas 170 e 171, respeitante ao histórico de leituras, esta testemunha verificou que, desde 2015, o histórico permanece o mesmo. Só em 25.10.2016 é que começa novamente a contagem. Concluiu, referindo que após os trabalhos voltaram a proceder à selagem do contador e do disjuntor e que, pela experiência da função que exerce, a irregularidade detectada só beneficia quem consome electricidade. O seu depoimento revelou-se credível e imparcial, não tendo a referida testemunha qualquer interesse directo no desfecho de processo.
A testemunha FF, técnico superior da demandante, referiu não ter ido ao local, mas que o cálculo relativamente à electricidade efectivamente consumida entre 02.09.2012 a 31.08.2016, data do auto de vistoria, foi efectuado de acordo com as directivas europeias nessa matéria, as quais só permitem o cálculo de 36 meses. Também referiu que de acordo com a sua experiência não faz qualquer sentido a mudança de DCP em instalações abandonadas. Nesse caso, os clientes devem rescindir (e rescindem) o contrato, pois caso contrário há sempre gastos, pelo menos relativos à potência, ao IVA e às taxas contratadas. Também referiu que para a mudança verificada não é preciso ter especiais conhecimentos.
A testemunha CC, conhecido do arguido, referiu ter sido trabalhador da EDP. O mesmo confirmou que uma vez roubaram um cabo de electricidade ao arguido, tendo sido por este chamado para o aconselhar sobre o que fazer. Esta testemunha sugeriu então que o arguido mudasse o contador do sítio, ou seja, do local onde o mesmo se encontrava para um local mais perto da estrada, o que julga que este fez. Esta testemunha poucos conhecimentos tinha quanto aos factos em apreço, não podendo, por isso, prestar especial contributo para a descoberta da verdade. O mesmo ainda sugeriu que no âmbito das suas funções verificou existirem muitos contadores sem selos, assim procurando confirmar a versão avançava pelo arguido no sentido de que não foi o mesmo que procedeu à desselagem do contador e do disjuntor. Porém, adiante do seu depoimento, a mesma acabou por referir que no âmbito das suas funções só ia a obras novas ou a postos de transformação, não realizando vistorias aos clientes (reportando-se, por conseguinte, a situações distintas às dos autos). Por fim, e com relevância (recordando-se ser a mesma electricista de profissão), acabou por confirmar não ser difícil proceder à troca dos cabos, a fim de evitar a contagem de electricidade.
A testemunha BB, cônjuge do arguido, veio confirmar a versão por este avançada, no sentido de que o seu marido explora o terreno há cerca de 5 anos, que antes disso mesmo estava abandonado, que se procedeu à mudança do contador para junto da entrada do terreno devido ao furto verificado e que o seu marido não tem conhecimentos técnicos de electricidade. Porém, atenta a relação de familiaridade aqui em causa, as suas declarações não mereceram suficiente crédito para infirmar a restante prova produzida.
A testemunha GG, conhecido arguido, referiu conhecer a propriedade em causa e que a mesma não tem vedação, mas tão só um vedado circundante à entrada.
Esclareceu não ter existido nenhum ano em que o terreno estivesse abandonado, mais confirmando que naquele local não se verificam muitos furtos. Nada soube esclarecer em concreto quanto aos factos ora em questão, mas, com relevância, o seu depoimento acabou por infirmar a versão do arguido, no sentido de que o terreno esteve abandonado e que havia muitos furtos na zona.
Temos, por fim, o depoimento da testemunha HH, electricista de profissão, que de forma perfeitamente coincidente com a testemunha EE, escorreita e desinteressada, referiu ter exercido funções para a empresa J..., que trabalhou para a EDP. Nesse âmbito, fazia fiscalizações através de ordens de trabalho que a EDP solicitava. Não se recordou dos factos ora em questão, razão pela qual foi confrontado com as declarações prestadas em sede de inquérito (fls. 40), confirmado que o seu teor. Atestou de forma convicta e convincente que tudo quanto consta do auto de vistoria de fls. 12 corresponde àquilo que na altura verificaram. Confirmou que os contadores da EDP têm todos selos e tampa, a fim de evitar que se mexa nos mesmos e que, por conseguinte, se inviabilize a contagem correcta da electricidade consumida. Ainda esclareceu que o DCP corresponde ao disjuntor que controla a potência, o qual, no caso concreto, se encontrava sem selo, estando regulado para 3 x 30 amperes e que a entrada dos cabos de ligação se encontrava trocada. Confirmou que, quando terminaram o serviço, recolocaram a potência que havia sido contratada, ou seja, 3 x 15 amperes. Afirmou que para fazer a alteração em causa é preciso retirar os selos apostos, pois só assim é possível retirar a tampa. Esclareceu ainda que se as entradas dos cabos de ligação estiverem trocadas não é possível proceder à contagem correcta da electricidade, pois o contador não contabiliza toda a energia consumida, embora esta passe de igual forma. Também de acordo com os seus conhecimentos, o único propósito para este tipo de acção consiste em pagar o mínimo possível ao fornecedor. Mais esclareceu que dificilmente os técnicos se esquecem de colocar os selos, pois o serviço prestado é sempre fiscalizado posteriormente por outros colegas. Concluiu adiantando ser fácil regular a intensidade do disjuntor, tanto mais quando pelo mesmo não passa electricidade. No que ao contador respeita, embora já se esteja em contacto com a energia, não é difícil proceder a tal alteração, sendo apenas necessário ter algum conhecimento pelo risco de electrocussão e não pela dificuldade da tarefa em causa.
Do exposto, em momento algum as declarações do arguido foram suportadas pela prova produzida.
De facto, e à excepção da testemunha BB, que confirmou integralmente a versão avançada pelo arguido, a demais prova aponta no sentido inverso.
Em primeiro lugar, repete-se, não faz qualquer sentido que um terceiro proceda a desselagem do
contador e do disjuntor e à troca dos cabos de ligação porquanto dali não retiraria qualquer benefício. É unânime a conclusão de que o único beneficiário de tal alteração é quem consome e paga a correspondente electricidade que, aqui, é exclusivamente o arguido.
Em segundo lugar, as mesmas testemunhas confirmaram não ser necessários especiais conhecimentos técnicos para as alterações em causa, podendo, eventualmente, e no que o contador respeita, existir algum risco de eletrocussão.
Não estando demonstrado nos autos que alguém tenha acedido ao terreno agrícola em causa, mas já se tendo demonstrado, pelas suas próprias declarações, que o arguido, pelo menos desde o ano de 2015, foi o único a dele fazer uso, então, outra conclusão não se pode chegar que não a de que o arguido foi o único a aceder ao contador e ao disjuntor e a de neles fazer as alterações encontradas. Também não se demonstrou que o local alguma vez tenha estado abandonado e que fosse usual a ocorrência de furtos naquela zona.
No que ao contrato de fls. 111 diz respeito, se é certo que o mesmo não se encontra assinado, certo é igualmente que hoje em dia este tipo de contrato contratos é efectuado por via telefónica e não presencialmente. Também consta dos autos (fls. 79 a 82) uma procuração emitida pelos pais do arguido a seu favor, ao invés do que a mesma invocou na sua contestação. De todo o modo, as irregularidades aqui detectadas reportam-se, na sua maioria, a datas anteriores à celebração daquele contrato, pelo que este documento não constitui prova essencial e capital para os factos ora em equação.
Nesta sede, cumpre referir que o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão proferido em 03.07.2012, Proc. n.º 443/09.4PEOER.L1-5, disponível in www.dgsi.pt ensina o seguinte: «(…) está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Quer a prova directa, quer a prova indirecta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum: pela primeira via ou método, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, 79).
Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal), delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções (prevista, como noção geral, no artigo 349.º do Código Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal) em que se parte de um facto conhecido (o facto baseoufactoindiciante,quefuncionacomoindício)paraafirmarumfactodesconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.
Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de
formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.» (sublinhado nosso).
Vejam-se também neste sentido os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 28.01.2009, do
Tribunal da Relação de Coimbra, de 30.03.2010 e do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.07.2007 (todos
disponíveis em www.dgsi.pt) e o muito bem sintetizado texto do Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Santos Cabral, «Prova directa e indirecta», E-book do CEJ intitulado «Direito Probatório, substantivo e processual penal», 2019, disponível em www.cej.mj.pt/cej, pág. 25 e seguintes, consultado em 04.12.2012.
Aplicando tais ensinamentos ao caso concreto, para além de tudo quanto supra aduzido e na esteira do já avançado no despacho de pronúncia, não se olvide que a irregularidade detectada é composta por duas
desconformidades verificadas no contador: por um lado, os cabos estavam mal ligados, o que significava que a energia consumida não era toda contabilizada, por outro, o disjuntor de controlo de potência estava regulado para uma potência superior à contratada, assim permitindo que fosse realizado um maior consumo de energia não contabilizado. Há, portanto, dois comportamentos activos e distintos por parte do perpetrador. Perante tal, torna-se altamente inverosímil que a irregularidade detectada pudesse ter resultado de uma eventual falha da EDP na alteração da localização do contador, falha essa que, aliás, nem se poderia considerar provada, atendendo a que inexiste qualquer registo da ocorrência de uma intervenção da EDP neste local, no ano de 2015, ao contrário do afirmado pelo arguido.
Por outro lado, a conjugação destas duas irregularidades também não terá resultado, de acordo com as regras da normalidade e da experiência comum, de qualquer acto de vandalismo, tanto mais quanto nada foi destruído, estragado ou furtado (aliás, se a mudança de local do contador resultou de repetidos furtos naquele local, também não se compreende porque é que o arguido não tentou proteger o contador, limitando-se a aproximar o mesmo da habitação, o que não evitaria qualquer intervenção ilegítima junto do mesmo). Ao invés, estas irregularidades foram conjugadas precisamente para beneficiar, em dobro, o utilizador da energia, permitindo-lhe consumir ainda mais energia do que a inicialmente contratada sem que a mesma fosse devidamente registada.
Os factos 15 a 21 (elemento subjectivo) resultaram provados através do cotejo da matéria objectiva
dada por provada com as regras da experiência comum.
Com efeito, o comum dos cidadãos medianamente inteligente e sagaz, como se presume ser o arguido, não poderia deixar de conhecer o desvalor das suas condutas, nem de saber que o seu comportamento constituía um ilícito criminal, não se inibindo, contudo, de actuar.
O arguido não podia deixar de ter consciência de que o seu comportamento activo era de molde a
obter um benefício indevido, à custa alheia, logo, consubstanciadora de um ilícito criminal.
O facto 23 (antecedentes criminais) resultou provado através da análise do certificado de registo
criminal do arguido junto a fls. 344.
Os factos 24 a 28 (condições socioeconómicas) resultaram provados pelas declarações do arguido,
que nesta parte se revelaram credíveis.
*
No que diz respeito aos factos não provados, os mesmos foram assim seleccionados por ausência de prova que impusesse decisão diversa.
No que respeita ao facto a., não foi carreada para os autos qualquer prova de que a conduta do arguido tenha interferido no serviço de fornecimento e distribuição de energia noutros locais de consumo sitos nas imediações. A única prova produzida respeitou ao consumo não contabilizado por parte do arguido, mas já não quanto à existência de problemas noutros fornecimentos. Ainda que, em teoria, a conduta do arguido possa conduzir à perturbação na exploração do serviço de electricidade, nomeadamente sobrecarga da rede de distribuição eléctrica existente e diminuição da qualidade da onda de tensão da energia fornecida, nada resultou demonstrado em concreto a este respeito.
Os factos b. a c. não resultaram provados porquanto as testemunhas inquiridas sobre esta matéria
não foram bastantes para criar a convicção positiva do tribunal, dado que se limitaram a alegar que o terreno,
previamente a 2015, tinha árvores secas, o que, embora possa levar à conclusão que naquele período o mesmo não foi alvo de exploração agrícola, já não pode levar à conclusão de que o mesmo se encontrava abandonado, desprotegido e alvo de diversos furtos e vandalizações (tanto mais quando, no que a este último facto refere, não foi demonstrada a existência de qualquer participação criminal relativamente aos invocados furtos).
O facto d. não resultou provado porquanto embora as testemunhas tenham referido que o arguido
não possui conhecimentos técnicos de electricidade, referiram igualmente que, ainda assim, a conduta descrita na acusação não é de difícil realização, ainda que não isenta de riscos para a segurança de quem os executa. Ademais, tal facto corresponde a um facto negativo, porque inerente a falta de conhecimentos pessoais do arguido, cuja prova dificilmente poderia ser efectuada por testemunhas.
*
III. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Estando já indicada a matéria de facto provada e não provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
O arguido vem acusado da prática do seguinte:
- Um crime de furto qualificado, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, als. a) e j), todos do Código Penal;
- Um crime de quebra de marcos e de selos, p. e p. pelo artigo 356.º ex vi artigo 386.º, n.º 2 do Código Penal;
- Um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, por referência ao artigo 255.º, al. b), ambos do Código Penal.
*
(i) Do crime de furto qualificado
Dispõe o art. 203.º, n.º 1 do Código Penal
«Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
Mais resulta do art. 204.º do Código Penal, para o que ora importa, que:
«1 - Quem furtar coisa móvel ou animal alheios: a) De valor elevado; (…) j) Impedindo ou perturbando, por qualquer forma, a exploração de serviços de comunicações ou de fornecimento ao público de água, luz, energia, calor, óleo, gasolina ou gás; é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.»
Não existe consenso quanto ao bem jurídico tutelado pela incriminação sob escrutínio.
Efectivamente, parte da doutrina, porventura maioritária, considera que o bem tutelado é a propriedade, incluindo a posse e a detenção legítimas, abrangendo o conceito penal de propriedade o poder
de disposição sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma – neste sentido, José Faria de Costa, in Comentário Conimbricense do Código de Penal, Vol. II, Coimbra Editora, 1999, anotação 23.ª ao art. 203.º e, também na mesma obra, Maria da Conceição Ferreira da Cunha, anotação 13.ª ao art. 210.º do CP. Também neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 2ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2010, p. 628.
Diferente é, todavia, o entendimento, v.g., de Pedro Caeiro - in Sobre a Natureza dos Crimes Falenciais (O Património, A Falência, a sua Incriminação e a Reforma dela), Coimbra Editora, 1996, pág. 63, que considera que o património assume o papel principal, passando o direito de propriedade a ser um elemento do património, ao lado dos restantes direitos patrimoniais.
Trata-se este de um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico) e de resultado (quanto
à forma de consumação do ataque ao objecto da acção).
Como se extrai do preceito legal, o elemento objectivo do tipo de ilícito em causa consiste:
- Na subtração;
- Que a mesma incida sobre coisa móvel alheia.
A subtracção consiste na violação do poder de facto que tem o detentor de guardar o objecto do crime ou dispor dele e a substituição desse poder pelo do agente. A subtracção caracteriza-se, assim, pela finalidade prosseguida, a qual consiste no fazer entrar no domínio de facto do agente da infracção as utilidades da coisa que estavam anteriormente no sujeito que a detinha. E para que se consiga este resultado final são absolutamente indiferentes e irrelevantes as modalidades e os meios de realização da conduta. O furto é, neste sentido, um crime de execução livre.
Quanto à noção de coisa móvel alheia, esclarecem Leal Henriques e Simas Santos (in Crimes Contra o Património, Universidade Lusíada, pág. 22), que a mesma corresponde, para efeitos penais, «a toda a substância corpórea, material, susceptível de apreensão, pertencente a alguém e que tenha um valor qualquer, mas juridicamente relevante», incluindo-se, nesta noção, a energia eléctrica.
Por outras palavras, a coisa móvel é um conceito distinto do que vigora no direito civil, sendo mais
lato e abarcando toda a coisa corpórea ou incorpórea que tenha existência física autónoma quantificável e possa ser fruída ou utilizada por uma pessoa – vide Paulo Pinto de Albuquerque, in ob. cit., pág 629.
No que respeita ao furto de energia eléctrica, como é o caso dos autos, o Acórdão do Tribunal da
Relação de Guimarães, de 20.02.2018, Proc. n.º 1111/16.6T9BCL.G1, consultável em www.dgsi.pt decidiu
que: «Relativamente ao furto de electricidade, importa considerar que no Código Penal Português não existe um tipo autónomo e específico que preveja e puna a apropriação ilícita, ou a fraude na utilização de energia eléctrica. Pela Doutrina e por alguma Jurisprudência tem sido considerado que essas condutas (ou, pelo menos, parte delas) seriam susceptíveis de se integrar no tipo do crime de furto. Assim é que, já em 1906, Caeiro da Matta, (Do furto – esboço histórico e jurídico, Coimbra, Imprensa da Univ., 1906), sintetizava as posições doutrinais a esse respeito, concluindo que na previsão do crime de furto se deveriam incluir “todas as cousas móveis que, tendo existência material ou jurídica, estão sujeitas à contrectatio (apropriação, roubo), e reclamam, consequentemente, a tutela do respectivo direito de propriedade”. Mais recentemente, em 1988, Carlos Alegre, Crimes contra o património, Rev. MP, 3, p. 23, refere que: “Na categoria de coisas móveis estão incluídas as forças ou energias naturais, como a electricidade, o gás, o vapor ou ainda a energia nuclear. Eduardo Correia acrescenta a este rol exemplificativo de coisas móveis também as ondas hertzianas”. Também Saragoça da Mata, Rev. O Direito, “Subtracção de Coisa Móvel Alheia”, p. 635, considera que a electricidade ou o gás são, inequivocamente, coisas corpóreas, além de serem autónomas e subtraíveis, “coisas dotadas de valor”, “susceptíveis de apropriação individual”, “que mal se compreenderia se se dissesse que caem fora da intencionalidade normativa dos tipos penais do furto”. Faria Costa, CCCP, Coimbra Editora, 1999, p. 39/40, esclarece, porém, que noutras Legislações se sentiu necessidade de incluir norma expressa a esse respeito: “o novo Código Penal francês, para punir o furto de electricidade ainda sentiu a necessidade de contemplar legalmente uma norma de equivalência (art. 311-2; “la soustraction frauduleuse d’energie au préjudice d’autrui est assimilée au vol”). Da mesma forma é preciso não esquecer, ainda a este propósito, que o próprio art. 624º do CP italiano consagra que para “efeitos da Lei Penal considera-se também coisa móvel a energia eléctrica e qualquer outra energia que tenha valor económico”. A nível Jurisprudencial, já no Acórdão do TRC, de 24/02/1988 (relator Pinto Bastos), considerou-se que “a energia eléctrica é uma coisa susceptível de apropriação e valiosa, cuja subtracção integra a autoria de crime de furto”. Assim, toda esta análise se centra na inclusão, ou não, da energia eléctrica (à semelhança de outro tipo de energias), no conceito de “coisa móvel”. (…)
Regressando ao caso, e à nossa ordem jurídica, debruçando-se, mais concretamente, sobre as formas do cometimento do crime, encontramos o Acórdão do Tribunal da relação do Porto, datado de 23/05/1990 (relator Hernâni Esteves), a seguinte jurisprudência: “O arguido que a seu mando, ou por si próprio, procede à abertura de um furo na carcaça instalada pela Electricidade de Portugal na sua residência, por contrato de fornecimento de energia eléctrica, de forma que lhe era possível fazer introduzir, através do mesmo, corpo estranho ao funcionamento do aparelho, e com ele fazer parar o disco metálico do referido contador, que se destina, pelas revoluções que efectua, a marcar a contagem das quantidades de energia eléctrica consumida, desse modo, em seu proveito, foge efectivamente ao controlo efectivo e real da empresa fornecedora de energia eléctrica e prejudicando-a na medida em que os gastos contados são, por aquele modo, inferiores aos realmente realizados. Tal conduta constitui um crime de furto, de subtracção de coisa alheia, energia eléctrica, e é prevista e punida pelos arts. 296º e 299º do CP”. No caso dos autos, é indubitável existir uma utilização ilícita de energia eléctrica. Essa utilização ilícita surge concretizada através da subtracção da energia realizada pela alteração do contador, que determinou a diminuição da contagem da electricidade utilizada, e da alteração do disjuntor, com o aumento da potência disponível. Tal subtracção foi ilegítima e efectuada contra a vontade da entidade fornecedora que a detinha. Em conclusão, o arguido praticou uma subtracção ilícita da energia eléctrica, tipificada como crime de furto pelo art. 203º, nº 1, do C.P., tomando-se como acertado o entendimento predominante, na nossa ordem jurídica, de que se trata de coisa móvel, susceptível de subtracção. Finalmente, considerando o valor da energia subtraída (superior às 50 UC, pois que se fixa em € 11.444,15, incluindo valor do aumento da amperagem), mostra-se preenchido o tipo qualificativo previsto na al. a) do nº 1 do art. 204º do Código Penal, por força do disposto na al. a) do art. 202º do mesmo diploma legal.»
Também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 29.04.02009, Proc. n.º 0847824, consultável em www.dgsi.pt, decidiu no sentido de que:
«A conduta de quem, tendo o fornecimento de energia eléctrica à sua habitação suspenso, por falta de pagamento de anteriores consumos, consegue, pelos seus próprios meios e contra a vontade do fornecedor, continuar a retirar energia da rede preenche o tipo objectivo do crime de furto.»
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Depois de definido o crime matricial, surgem os elementos que determinam a sua qualificação.
No que ora nos importa, a agravação decorre do facto de o furto ter por objecto coisa de valor elevado (art. 204.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal) e impedir ou perturbar, por qualquer forma, a exploração de serviços de comunicações ou de fornecimento ao público de água, luz, energia, calor, óleo, gasolina ou gás (art. 204.º, n.º 1, alínea j) do Código Penal).
O elenco das circunstâncias do tipo qualificado, ao contrário do que sucede com o crime de homicídio e a técnica dos exemplos-padrão, é taxativo e de funcionamento automático (neste sentido, PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, pág. 802 e Acórdão do TRP de 01-07-2015, proc. nº 5159/13.4TAMTS.P1, consultável em www.dgsi.pt), entendimento que saiu reforçado com a criação de dois escalões de penas de acordo com a natureza dessas circunstâncias.
No que respeita ao valor elevado, dispõe o art. 202.º, alínea a) do C.P. que se considera «valor elevado» aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do acto.
No que à previsão constante na alínea j) respeita, entende-se que tal ocorre quando o furto perturbe
ou impeça, de modo relevante, o fornecimento ao público (cfr. Miguez Garcia e Castela Rio, in Código Penal, parte geral e especial, Almedina, pág. 958.
No que concerne ao tipo subjectivo do ilícito, é comummente referido pela doutrina e jurisprudência que, para ser cometido o crime de furto, é necessário que o agente tenha actuado com um determinado dolo específico, para além do dolo genérico, o qual se traduz na ilegítima intenção de apropriação da coisa para si ou para terceiro. De facto, defende Maia Gonçalves – in Código Penal Anotado, 16ª edição, 2004, pág. 664 – que o dolo no crime de furto trata-se de «um dolo específico que se preenche com a intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, se passar a comportar relativamente a ela «animo sibi rem habendi», integrando-a na sua esfera patrimonial ou de outrem».
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Baixando ao caso dos autos, dúvidas não existem de que o arguido praticou o crime de furto, porquanto apoderou-se da electricidade pertencente à ofendida, através da troca dos cabos de ligação e da
contagem de electricidade inferior à efectivamente consumida, desde data não concretamente apurada do ano de 2015 até 31.08.2016, no valor de € 11.655,33.
Quanto ao dolo, encontra-se demonstrado que o arguido integrou a electricidade no seu património, não obstante a saber alheia e que agia contra a vontade da respectiva proprietária (dado que, não obstante a existência de um contrato de fornecimento, o valor pago ficou aquém do devido, caso a contagem tivesse sido correctamente efectuada). Encontra-se assim preenchido o elemento intelectual e o volitivo do dolo que, nos termos do n.º 1 do art. 14º do Código Penal é directo. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
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No que respeita ao valor em causa, de acordo com o disposto no artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro, «a unidade de conta é fixada em um quarto do valor do indexante dos apoios sociais (IAS) vigente em Dezembro do ano anterior, arredondada à unidade Euro, sendo actualizada anualmente com base na taxa de actualização do IAS». De acordo com o n.º 2 do artigo 5.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, «2 - A UC é actualizada anual e automaticamente de acordo com o indexante dos apoios sociais (IAS), devendo atender-se, para o efeito, ao valor de UC respeitante ao ano anterior.»
Nos anos de 2015 (por força da Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro) e 2016 (por força da (Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março), a unidade de conta ascendeu a €102,00. Multiplicando tal quantia por 50, resulta um valor de €5.100,00, pelo que é manifesto que o furto ora perpetrado pelo arguido é de valor elevado.
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Não obstante, não resultou demonstrado que a conduta do arguido tenha impedido ou perturbado,
por qualquer forma, a exploração de serviços de comunicações ou de fornecimento ao público de água, luz,
energia, calor, óleo, gasolina ou gás.
Efectivamente, a propósito da introdução da alínea j) do n.º 1 do art. 204.º do C.P., operada pela Lei 19/2013 de 21 de Fevereiro, refere António Latas, in http://www.tre.mj.pt/docs/ESTUDOS%20%20MAT%20CRIMINAL/Alter_Cod_Penal_Lei%2019-2013.pdf: «(…) A presente alteração consistiu no aditamento da nova j) ao nº1 do art. 204º. 5.1. - Reportando-se a esta alteração, diz a exposição de motivos:” A constatação de que são inúmeros os furtos que têm provocado dificuldades, ou mesmo impossibilidade, de distribuição de energia elétrica às populações determina que se preveja uma agravação para os casos em que o furto causa perturbação no fornecimento de bens essenciais”. O motivo próximo da presente alteração parece encontrar-se no grande número de furtos de metais não preciosos presentes em cabos utilizados na prestação de serviços de telecomunicações e energia elétrica em que, para além de dano patrimonial não despiciendo, se tem verificado perturbação do respetivo serviço. 30 No entanto, a nova circunstância qualificativa vai além desses fenómenos criminais, aplicando-se à interrupção ou perturbação de todos os outros serviços enumerados na al. d) do nº1 do art. 277º (“Infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços),decujaredaçãoanovaalíneaestámuitopróxima,-fornecimentodeágua,luz,calor, energia (não necessariamente elétrica) - a que acrescem os serviços de fornecimento ao público de óleo, gasolina e gás não mencionados naquela al. d), mas incluídos na al. c) do mesmo art. 277º nº1. Parafraseando Paula Ribeiro de Faria, em anotação ao art. 277º do C.Penal (Comentário Conimbricense ao C.Penal, Tomo II-1999 pp.925-6), pode dizer-se que o interesse protegido pela nova qualificativa é a exploração regular de serviços que garantam necessidades básicas da população em geral, entendendo-se por exploração de serviços a atividade destinada a retirar utilidades desses mesmos serviços. Nas palavras de F. Palma (estudo citado e referenciado infra) “O fundamento da qualificação destes casos de furto e da consequente agravação das respetivas penas, assenta nos danos sociais causados, que podem pôr em causa infraestruturas estratégicas, e na importância dos bens jurídicos protegidos. O legislador ter-se-á motivado pela prevenção do perigo de lesão de outros bens jurídicos essenciais para a população, para além dos protegidos pelo crime de furto, normalmente decorrente do impedimento ou perturbação da exploração dos serviços de interesse público enumerados, dispensando, porém, a concreta verificação do perigo de lesão desses outros bens jurídicos, contrariamente ao que se verifica com a al. d) do nº1 do art. 277º que exige perigo concreto para a vida, a integridade física ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.»
Assim, não estando provada a efectiva perturbação do serviço de distribuição de electricidade, a conduta do arguido, no que respeita aos factos constantes nos arts. 1.º a 10.º da matéria de facto provada, não cabe na previsão constante da alínea j), mas tão só na alínea a), atento o elevado valor do bem furtado.
Assim, mostrando-se preenchido quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo do tipo e não havendo ainda qualquer causa de justificação ou desculpação, deve o arguido ser condenado pelo crime pelo qual veio acusado, ainda que somente por referência à alínea a) do referido preceito legal.
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Concluindo-se que o arguido é penalmente responsável pela prática do crime de furto qualificado,
cumpre apurar se o mesmo foi praticado de modo continuado, nos termos do disposto no art. 30.º, n.ºs 1, e 2 do CP.
De facto, dispõe o referido preceito legal que: «1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. 2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. 3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.»
O concurso de crimes e o crime continuado não dispensam uma certa conexão temporal entre os
actos criminosos, executados de forma substancialmente homogénea, visando a protecção do mesmo bem
jurídico, a coberto de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
A conexão entre o crime e o «ambiente» pode traduzir-se em que este crie uma disposição exterior
para a prática do crime, uma oportunidade favorável. De facto, a decisão de executar um crime pressupõe
sempre uma certa situação ambiente constituída por todas aquelas circunstâncias e acontecimentos exteriores que arrastam a pessoa para ele, facilitando-o ou dificultando-o, determinando a sua execução ou de algum modo interferindo no seu «se», «como», «onde» e «quando».
A atenuação da culpa resulta de uma conformação especial do momento exterior da conduta, devendo estar sempre condicionada pela circunstância de esta ter concorrido para o agente renovar a prática do crime.
A este respeito, o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão proferido em 03.10.2007, Proc. n.º
07P2576, e ainda que a respeito do crime de roubo, concluiu que: «(…) IV - Para que funcione a unificação das condutas sob a forma de crime continuado há que se estar perante vários actos, entre os quais haja uma certa conexão temporal, sendo por esta que se evidenciará uma diminuição sensível da culpa, mercê de factores exógenos que facilitaram a recaída ou recaídas. V - Como exemplo de circunstâncias exteriores que arrastam o agente para a repetição do crime, Eduardo Correia (Unidade e Pluralidade de Infracções, pág. 338) identifica as seguintes situações: voltar a verificar-se a mesma oportunidade que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta; perdurar o meio apto para a realização do crime, que se criou ou adquiriu com vista a realização da primeira conduta, verificar o agente, depois de executar a resolução que tomara, que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa. VI - Verifica-se um crime continuado quando se provem plúrimas violações da mesma norma pelo agente, proximidade temporal das respectivas condutas parcelares e também a manutenção da mesma situação exterior, a proporcionar as subsequentes repetições e a sugerir uma menor censurabilidade.»
São, assim, requisitos da existência de uma continuação criminosa:
a) Realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico;
b) Homogeneidade da forma de execução;
c) Lesão do mesmo bem jurídico;
d) Persistência de uma “situação exterior” que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente.
A execução de forma essencialmente homogénea supõe «a similitude do modus operandi do agente e, designadamente, dos meios utilizados na prática do crime» enquanto que «a execução no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior supõe a proximidade espacio-temporal das violações plúrimas» – que necessariamente hão de ter sido objecto de distintas resoluções criminosas, pois caso contrário não haverá crime continuado, mas um só crime - «(…) A mediação de um período de tempo (…) dilatado entre os factos criminosos permite ao agente mobilizar os factores críticos da sua personalidade para avaliar a sua anterior conduta de acordo com o Direito e distanciar-se da mesma. Não o fazendo, já não se depara com uma culpa sensivelmente diminuída, mas com um dolo empedernido no crime.» (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 138.).
Da matéria de facto dada como provada é ainda possível descortinar que o arguido agiu ao longo de mais de um ano, ao abrigo de uma multiplicidade de resoluções criminosas, renovando o dolo quanto à
intenção de subtracção da aludida energia eléctrica, que bem sabia não lhe pertencer, em cada utilização, o que fez, de forma absolutamente homogénea, confiando na aparente impunidade resultante da inércia das autoridades competentes para a realização da fiscalização, o que terá facilitado a prossecução da actividade criminosa durante esse período, circunstância que não poderá deixar de ser entendida como justificativa de uma diminuição sensível da culpa do agente.
De acordo como artigo 79.º do Código Penal, o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação. Daqui não decorre que vigore no nosso ordenamento um
princípio da absorção, segundo o qual se deveria determinar a pena concreta a aplicar a cada uma das condutas dos arguidos e destas aplicar-lhe a mais grave. Antes se deverá interpretar aquela norma como consagrando um princípio da exasperação – o crime continuado deve ser punido recorrendo-se à moldura penal abstracta mais grave das que correspondem aos factos praticados pelo arguido, determinando-se a pena concreta dentro dessa moldura de acordo com os princípio gerais, neste momento se valorando a pluralidade de actos praticados pelos arguidos - cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, Parte Geral, II, As consequências jurídicas do crime, página 296, §433.
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(ii) Do crime de quebra de marcos e de selos
Dispõe o artigo 356.º do Código Penal que «Quem abrir, romper ou inutilizar, total ou parcialmente, marcas ou selos, apostos legitimamente, por funcionário competente, para identificar ou manter inviolável qualquer coisa ou animal, ou para certificar que sobre estes recaiu arresto, apreensão ou providência cautelar, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias».
Acrescenta o artigo 386.º, n.º 2 do Código Penal que «Ao funcionário são equiparados os gestores, titulares dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos.»
O bem jurídico protegido pela incriminação é a autoridade das decisões de colocação de coisas sobreo domínio público.
Trata-se de um crime cujo tipo objectivo consiste na inutilização do selo ou da marca que tenham sidocolocados pelos funcionários competentes a fim de, neste caso, manter uma coisa inviolável.
Por outro lado, o tipo subjectivo admite qualquer modalidade de dolo.
Ora, realizado este enquadramento jurídico e atendendo à factualidade enunciada, resultou provadoque o arguido, por si ou através de interposta pessoa, inutilizou os selos apostos no aparelho de medição deelectricidade que lhe foi atribuído pela empresa prestadora do serviço, o qual servia para manter inviolável tal aparelho e, assim, assegurar, designadamente, que o mesmo apenas garantia ao consumidor a prestação da potência contratada, contabilizando-a integralmente.
Por sua vez, bem sabia o arguido, e não podia ignorar, que actuando deste modo estava a quebrar
um selo que tinha as sobreditas finalidades, legítimas, tal como sabe qualquer pessoa de média sagacidade.
É, portanto, inegável que se encontra preenchido o tipo objectivo e subjectivo do crime cuja prática é imputada ao arguido, não tendo resultado provada a verificação de quaisquer causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa.
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(iii) Do crime de falsificação de notação técnica
O crime de falsificação de notação técnica encontra-se previsto no artigo 258.º, n.º 1, al. b) e 2 do
Código Penal, nos quais se dispõe que:
«1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo: (…) b) Falsificar ou alterar notação técnica; (…) é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. (…) 2 - É equiparável à falsificação de notação técnica a acção perturbadora sobre aparelhos técnicos ou automáticos por meio da qual se influenciem os resultados da notação.»
A definição de notação técnica decorre do preceituado no artigo 255.º, al. b) do Código Penal, do
qual resulta que a mesma constitui «a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente».
Assim, a notação permite reconhecer ao seu destinatário um facto juridicamente relevante, sendo que para efeitos do crime de falsificação o que constitui “documento” não é a notação, mas o valor, peso, medida ou decurso de um acontecimento que aquela representa.
Esta incriminação visa tutelar os bens jurídicos da segurança e credibilidade na notação técnica destinada ao tráfico jurídico-probatório, sendo de precisar, como refere HELENA MONIZ, Comentário Conimbricense do Código Penal, Coimbra Editora, 1999, pp. 701 e 702, “que a confiança não está tanto na notação em si, mas no aparelho que forneceu a informação (…)” não se visando proteger a “veracidade ou a autenticidade do conteúdo da notação (…)” mas antes a sua exactidão formal “garantindo que a produção da notação é ‘livre’ de qualquer manipulação humana”.
Assim, no crime sub judice, o bem jurídico protegido pela norma é a segurança e credibilidade na
informação fornecida exclusivamente por aparelhos técnicos e que a acção não incide sobre a própria notação como seria no caso de um crime de falsificação, mas sim sobre o aparelho que, depois, de forma automática, gera a notação técnica onde constará o facto falso e juridicamente relevante.
Do exposto resulta que este ilícito configura um crime de perigo abstracto, no que respeita ao grau de lesão dos bens jurídicos, porquanto o próprio acto de falsificação ou alteração da notação atenta contra aquele bem jurídico, e de mera actividade, quanto à forma de consumação dessa lesão, já que se prescinde da produção do resultado pretendido pelo agente.
Acerca deste crime, veja-se a seguinte passagem do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29.02.2012, Proc. n.º 24/11.2GTCTB.C1, consultável em www.dgsi.pt:
«Como sucede com o documento, não é o objecto material onde se realiza a notação técnica o relevante no domínio jurídico-penal; «o que importa para efeitos do crime de falsificação de notação técnica é a interferência em qualquer processo automático de notação que acabe por dar origem a um registo de notação falsa de um valor, de um peso, de uma medida, de um decurso de acontecimento e, por conseguinte, de uma notação técnica falsa. Aquela notação o constitui prova de um facto juridicamente relevante que devido à manipulação do processo automático está desvirtuada» O crime de notação técnica tem em vista a protecção de um específico bem jurídico-criminal, qual seja a autenticidade do modo de produção automática da notação. Com adverte Helena Moniz, «não se trata da veracidade ou a autenticidade do conteúdo da notação; o que se pretende é a “protecção da exactidão formal” garantindo que a produção da notação é “livre” de qualquer manipulação humana» O objecto da acção típica no crime de falsificação de notação técnica é o objecto material que, total ou parcialmente, de forma automática, criou o registo técnico relevante. No específico domínio da al. c) do n.º 1 do artigo 258.º do Código Penal, para a existência do crime é indispensável que se verifique, deforma automática, através de um aparelho técnico, o registo de um valor falso, de um peso falso, de uma medida falsa ou de um decurso falso de um acontecimento, devendo a notação técnica assim produzida ser adequada objectivamente para ter efeitos probatórios ou algum tipo de relevância jurídica. No que tange à previsão do n.º 2 do artigo 258.º, para que o crime ocorra é indispensável a acção perturbadora sobre um aparelho técnico ou automático e uma actuação posterior do agente para desencadear a produção da notação, constituindo tentativa a acção de manipulação do aparelho técnico quando a notação decorre automaticamente daquela acção.»
O tipo objectivo apresenta várias modalidades e pressupõe a intencionalidade prevista na norma,
sendo que, no caso dos autos, releva apenas a modificação de uma notificação técnica já existente, prevista
na sobredita alínea b) do artigo 258.º, n.º 1 do Código Penal, realizada através da manipulação do aparelho e do seu sistema próprio de realização da notação.
Por fim, o tipo subjectivo pode ser integrado por qualquer modalidade de dolo, que pressupõe que o agente tenha conhecimento do conceito de notação técnica e da respectiva relevância jurídica.
Neste contexto, apreciando a factualidade considerada provada, decorre da mesma que o arguido,
ou alguém a seu mando, manipulou o aparelho de medição de electricidade que lhe foi atribuído pela empresa prestadora do serviço, alterando a potência contratada e efectivamente concedida ao arguido (de 3x15 amp para 3x30 amp) e, ainda, o mecanismo de contabilização da energia consumida, impedindo-o de funcionar devidamente.
O arguido agiu bem sabendo, como o sabe qualquer pessoa de média diligência, que apenas ostécnicos habilitados para o efeito (da prestadora do serviço) estão autorizados a proceder a alterações desta natureza no aparelho de medição da electricidade e que, agindo desta forma, alterava os dados registados pelo aludido aparelho, conduta que é proibida e punida por lei penal.
Encontrando-se, pois, preenchido o elemento objectivo e subjectivo do crime cuja prática é imputada ao arguido e não havendo causas de justificação ou desculpação, deve o arguido ser igualmente condenado pela prática deste crime.
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IV. ESCOLHA E MEDIDA DA PENA
Nos termos do art. 40.º, n.º 1 e 2 do CP, a aplicação das penas visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa
do agente.
Conforme ensina Figueiredo Dias, in «Direito Penal Português – Parte Geral – As consequências
Jurídicas do Crime II», Coimbra Editora, Reimpressão, 2005, p. 198, a determinação da medida da pena
obedece a 3 fases, que consistem:
- Na determinação da moldura penal (medida legal ou abstracta da pena) aplicável ao caso;
- Na escolha da espécie da pena que efectivamente deve ser imposta;
- Na determinação da medida judicial ou concreta da pena.
Na determinação da medida da pena, têm-se em contra critérios de prevenção geral e especial.
Pela prevenção geral (positiva) faz-se apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado e ao restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal dos bens tutelados. Com a prevenção especial, pretende-se a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa) – cfr., a título meramente exemplificativo, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10.03.2010, in www.dgsi.pt.
Feito este introito, cumpre decidir.
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a) Da moldura legal ou abstracta
O crime de furto qualificado é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias (cfr. art. 204.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal).
O crime de quebra de marcos e de selos é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de
multa até 240 dias (cfr. art. 356.º do Código Penal).
O crime de falsificação de notação técnica é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (cfr. art. 258.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2 do Código Penal), a qual, nos termos do art. 47.º, n.º 1 do CP, deverá ser fixada entre 10 e 360 dias.
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b) Da escolha da natureza da pena
Prevendo os preceitos incriminadores a punição com pena de prisão ou com pena de multa, a primeira questão que se coloca é a da escolha da pena, de harmonia com os parâmetros do art. 70.º do CP, o qual prescreve que, sendo ao crime aplicável, em alternativa, pena privativa da liberdade e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Deve, assim, a pena de prisão ser reservada para situações de maior gravidade e que provoquem mais alarme social, designadamente a criminalidade violenta e/ou organizada, bem como a acentuada inclinação para a prática de crimes revelada por certos agentes (neste sentido, cfr. preâmbulo do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março).
No momento em que elege a pena principal, o Tribunal articula as necessidades de prevenção geral
e de prevenção especial, atendendo a um critério de adequação e suficiência face às necessidades de punição. Ou seja, a opção por uma medida privativa da liberdade só deverá ser tomada por uma razão de prevenção especial de socialização, ligada à prevenção do cometimento de futuros crimes, ou por razões fundadas em exigências inultrapassáveis de tutela do ordenamento jurídico.
No caso ora em apreço, as exigências de prevenção geral são particularmente elevadas, verificando-se a necessidade de desincentivar eficazmente a sua comissão, atendendo à sua frequência destes tipos de crimes. De facto, não sendo rara a prática de crimes esta natureza, em que os cidadãos procuram defraudar a contagem de electricidade através do acesso que têm aos respectivos contadores e disjuntores, importa fazer ver aos cidadãos que estas condutas têm consequências penais.
As exigências de prevenção especial são, porém, medianas, pois embora o arguido não tenha reconhecido o desvalor da sua conduta, negando os factos em questão e imputando-os a terceiros, o mesmo
não tem antecedentes criminais, pelo que se pode concluir que o mesmo pauta a sua vida de acordo com o direito. Ademais, os factos remontam já a 2015 e 2016.
Assim, afigura-se adequada à manutenção da confiança da comunidade na vigência das normas infringidas, à reprovação e à prevenção do crime, assim como à ressocialização do arguido, a aplicação de
uma pena de multa em relação a cada um dos crimes.
*
c) Da medida concreta da pena
No que concerne à determinação da medida das penas concretamente a aplicar, nos termos do disposto no art. 71.º, n.º 1, do CP, as mesmas serão feitas em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do
elemento do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.
Constituindo a culpa o limite inultrapassável da medida da pena (art. 40.º, n.º 2, do CP), e decorrendo o seu limite mínimo de considerações ligadas à prevenção geral, a medida exacta da pena será fruto das exigências de prevenção especial.
O bem jurídico protegido pela norma violada, a necessidade de resposta a essa violação e a personalidade do agente, manifestada no facto, hão-de influir – e decisivamente – na medida concreta da pena.
No caso sub judice, cabe ponderar globalmente:
- O grau de ilicitude – que é elevado em relação a todos os crimes, dado que o arguido actuou de
forma premeditada e planeada, ao quebrar os selos e ao proceder à troca dos cabos, a fim de se apropriar
ilegitimamente da electricidade. As consequências do crime foram igualmente elevadas, atento o elevado valor da electricidade que deveria ter pago, mas não foi. – art. 71.º, n.º 2, alínea a);
- A intensidade do dolo - que é elevado, dado que o arguido actuou com dolo directo quanto a todos os crimes, tendo actuado por motivos torpes, qual seja a obtenção de um benefício patrimonial à custa alheia -71.º, n.º 2, alínea b);
- Os sentimentos manifestados pelo arguido no cometimento do crime - que militam contra si, não havendo qualquer causa de justificação ou desculpação - art. 71.º, n.º 2, alínea c);
- As condições pessoais do arguido - o arguido tem actualmente 60 anos de idade e encontra-se social, profissional e familiarmente inserido– art. 71.º, n.º 2, alínea d);
- A conduta anterior ao facto e posterior a este – o arguido não tem antecedentes criminais e não se conhecem outros ilícitos criminais após os factos ora em julgamento, militando ainda a seu favor a circunstância de os factos remontarem a 2015/2016 e o crime de furto ter sido praticado de forma continuada – art. 71.º, n.º 2, alínea e);
- A preparação para manter uma conduta lícita – que ainda se afigura existir, não havendo conhecimento de outras condutas ilícitas posteriormente a estes, considerando-se que os factos em questão resultaram de um acto único e isolado da sua vida. – art. 71.º, n.º 2, alínea f).
Nestes termos, face às molduras abstractamente aplicáveis aos crimes praticado pelo arguido, temos por adequadas as seguintes penas concretas:
- Para o crime de furto qualificado, a pena de multa de 200 dias;
- Para o crime de quebra de marcos e de selos, a pena de 80 dias de multa;
- Para o crime de falsificação de notação técnica, a pena de 120 dias de multa.
*
d) Do cúmulo jurídico
Resulta da matéria fáctica a prática plúrima de factos criminais – crime de condução sem habilitação legal e crime de falsificação de documento - descontinuada, sem unicidade e existindo uma autonomização de desvalores de acção.
Tal concurso afigura-se real, por não existir qualquer relação de especialidade, consunção ou subordinação entres os crimes que se interseccionam (cfr. EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, Vol. II, Coimbra, 1971, pp. 204 e ss), verificando-se, pois, concurso de infracções criminais (art. 30.º, n.º 1 do CP), impondo-se a punição do respectivo agente de acordo com as suas regras específicas (art. 77.º do CP).
Nos termos dos artigos 30.º, n.º 1 e 77.º, n.s 1 e 2, ambos do Código Penal, tendo o arguido cometido três crimes, estamos perante um concurso real efectivo de crimes, cujas regras de punição conduzem à condenação do agente numa pena única.
O art. 77.º CP prescreve que: «1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. (…)» In casu, a pena tem como limite mínimo 200 dias de multa e como limite máximo 400 dias de multa.
Cumprirá, agora, convocar a factualidade específica inerente ao concurso, ou seja, aqueles pontos
factuais relacionados com o carácter plúrimo da conduta do agente que entre si convergem e demonstram o particular impacto social ou as especiais necessidades de ressocialização que o seu cariz múltiplo revela.
Deste juízo ficarão de fora os itens já valorados na elaboração da norma incriminatória (v.g. como
Pressupostos da punição ou como factores qualificativos) bem como os que foram chamados na determinação concreta das penas individuais: trata-se, agora, de aferir a visão de conjunto que resulta do comportamento infraccional, não da realização de uma dupla valoração do mesmo item (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20.10.2010, Proc. n.º 78/07.6JAFAR.E2.S1, disponível in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, os crimes foram praticados na mesma altura e lugar e no interior de um mesmo
contexto fáctico, de onde deriva um acantonamento temporal do evento que permite compartimentar o fenómeno delitual a um único trecho de vida do arguido.
Deste modo, atendendo à visão global dos factos, que assumem especial gravidade, atentas as exigências de prevenção geral e especial, à personalidade manifestada nos factos, às condições pessoais apuradas e à personalidade do arguido, considera-se adequado aplicar a pena única de 300 (trezentos) dias de multa.
*
e) Do quantitativo diário da multa aplicada
No que respeita ao quantitativo diário da pena de multa aplicada, o mesmo deverá ser determinado
dentro dos limites definidos na lei (de acordo com o art. 47.º, n.º 2 do CP e entre € 5,00 e € 500,00), considerando a situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais.
Na aferição desse quantitativo diário, o Tribunal deve não só ter em conta os rendimentos mensais do arguido, sejam próprios ou de que o mesmo beneficie, mas toda a situação económica e financeira de que aquele disponha, designadamente o património que se lhe apresente disponível e os seus encargos.
Neste apuramento, deve-se atender igualmente a que a multa é uma verdadeira reacção criminal de índole económica, devendo, por isso, na sua aplicação, ser submetida a critérios de igualdade de sacrifícios e ónus, pelo que se devem reservar os quantitativos mínimos para aquelas pessoas que vivem no limiar da subsistência, escalonando-se a partir daí todos os demais (neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18.02.2009, Proc. nº 617/06.0 TAPBL.C1, disponível in www.dgsi.pt.
Quer isto dizer que a fixação do montante diário da pena de multa não deve ser doseada de forma a que tal sanção não represente qualquer sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a descreditar esta
pena, gerando um sentimento de inutilidade e impunidade.
Pelo exposto, ponderadas as necessidades de prevenção geral e especial supra expostas, a culpa do
arguido e a sua situação económica, entende-se adequado aplicar a taxa diária €6,00 (seis euros), perfazendo
um montante total de 1.800,00 (mil e oitocentos euros).
*
V. DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
A Demandante deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, peticionando o pagamento de €11.655,33, a título de danos patrimoniais.
De acordo com o disposto no art. 129.º do CP, «A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil». Porém, o princípio da adesão constante do art. 71.º do CPP impõe que o
mesmo seja deduzido no processo penal, com excepção dos casos previstos no art. 72.º do CPP.
A fonte da indemnização será, naturalmente, a responsabilidade civil extracontratual, regulada no art. 483.º, n.º 1 do CC, fundada na prática de crime, nos termos do qual a obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil implica:
(i) A existência de um facto voluntário do agente;
(ii) Que o facto do agente seja ilícito, por violação de um direito subjectivo de outrem ou pela
violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
(iii) A verificação de um nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante (culpa);
(iv) Que à violação do direito subjectivo ou da lei sobrevenha um dano e, por último,
(v) Que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela
vítima (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª. Ed., pág. 471).
No caso:
- O arguido actuou voluntariamente, pois a sua conduta–quebra dos selos, alteração da notação técnica e furto da electricidade - constituiu uma forma de conduta humana, controlável e dominável pela vontade;
- O facto ilícito é a prática dos crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 30.º, n.º 2, 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal; de quebra de marcos e de selos, p. e p. pelo artigo 356.º ex vi artigo 386.º, n.º 2 do Código Penal e de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, por referência ao artigo 255.º, al. b) do Código Penal.
- No que respeita à culpa, está provado que o arguido actuou com dolo directo;
- Relativamente aos danos, está demonstrado que a demandante sofreu danos patrimoniais, correspondente ao custo da electricidade que forneceu ao arguido e que este não pago;
- Por último, é necessária a existência de nexo de causalidade entre a conduta do agente e os danos, o que se verifica, pois a conduta do arguido foi causa directa e necessária dos danos sofridos pela demandante.
A regra geral, em sede de obrigação de indemnizar, é a reconstituição natural (art. 566.º, n.º 1 do CC) e, quando não for possível a reconstituição natural, é a indemnização fixada em dinheiro, tendo como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (art. 566º, n.º 2 do CC).
No caso concreto, não é possível a reconstituição natural dos danos, impondo-se a fixação de uma
indemnização.
De acordo com o disposto no art. 564.º, n.º 1 do CC, no cálculo da indemnização por danos patrimoniais deve incluir-se o prejuízo causado (danos emergentes), bem como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes).
Tal valor corresponde ao valor apurado do bem furtado pelo arguido, ou seja, €11.655,33, correspondente ao valor da electricidade efectivamente consumida pelo arguido e cujo pagamento o mesmo
deveria ter efectuado.
Pelo exposto, e considerando-se totalmente procedente pedido de indemnização civil, impõe-se
condenar o arguido a pagar à demandante a quantia de €11.655,33.
A esta quantia acrescem juros de mora legais, calculados à taxa civil aplicável em cada momento
(sendo a mesma, actualmente, de 4% ao ano, de acordo com a Portaria 291/2003, aplicável ex vi do art. 559.º, n.º 1 do CC), desde a data da notificação do arguido do pedido de indemnização cível até efectivo e integral pagamento.
(...).»
2.3. Apreciação do mérito do recurso
2.3.1. Da impugnação da matéria de facto
O arguido/recorrente impugna a matéria de facto dada como provada nos pontos 5º, 6.º, 8º, 9º, 10º, 14, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º a 22º e como não provada nas alíneas b., d. e c., por erro de julgamento.
Alega o recorrente que a prova produzida, na audiência de julgamento, considerando as declarações por si prestadas e os depoimentos das testemunhas, bem como a prova documental junta aos autos, não permite levar a considerar ter sido ele o autor dos factos dados como provados e que ao decidir em sentido diverso, o tribunal violou os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de que a prova a que o Tribunal a quo atendeu para dar como provado ter sido o arguido, ora recorrente, o autor dos factos em apreço, ainda que indireta, é bastante para que assim decidisse, mostrando-se as inferências retiradas da conjugação dos elementos de prova a que atendeu, respeitadoras das regras da lógica e da experiência comum, não existindo erro de julgamento, nem violação dos princípios da livre apreciação da prova ou do in dubio pro reo, devendo manter-se inalterada a matéria de facto fixada na sentença recorrida.
Vejamos:
Antes de passarmos a apreciar a questão referenciada, importa tecer algumas considerações sobre a impugnação da matéria de facto em sede recursiva, com fundamento no erro de julgamento e sobre os princípios da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo:
A impugnação ampla da matéria de facto a que alude o artigo 412º, n.º 3, do CPP, visa a correção do erro de julgamento, que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Diversamente do que sucede quando são invocados os vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP, essa reapreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada/gravada) produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP, sem prejuízo de poder ouvir outras passagens que não as indicadas no recurso (n.º 6 do artigo 412º do CPP).
Todavia, conforme jurisprudência uniforme dos nossos Tribunais Superiores, o recurso da matéria de facto, não visa a realização de um segundo e novo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse. O que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objeto do recurso, cabendo ao tribunal da Relação confrontar o juízo sobre eles que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (cfr. al. b) do n.º 3 do artigo 412º do CPP)
É que a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tem de respeitar o princípio da livre apreciação da prova do julgador, previsto no artigo 127º do Código de Processo Penal e a sua relação com os princípios da imediação e a oralidade, sobretudo quando tem de se debruçar sobre a valoração efetuada na 1ª instância da prova testemunhal.
O princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do CPP, estabelece que, «salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.»
A livre apreciação da prova, conforme bem refere o Prof. Germano Marques da Silva[1], deve ser entendida como «valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão.»
Existirá violação do princípio da livre apreciação da prova se, na apreciação da prova e nas ilações extraídas, o julgador não respeitar os princípios em que se consubstancia o direito probatório e as regras da experiência comum, da lógica e de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório[2].
O princípio in dubio pro reo, que é decorrência do princípio constitucional da presunção da inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2 da CRP, constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre a veracidade dos factos, ou seja, impõe ao julgador que, quando confrontado com a dúvida, razoável e fundada, em matéria de prova, resolva tal dúvida em sentido favorável ao arguido.
E constitui entendimento jurisprudencial pacificamente aceite, o de que o tribunal de recurso apenas pode censurar o não uso do princípio in dubio pro reo se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, perante essa dúvida, optou por decidir em sentido desfavorável ao arguido[3] ou se, apreciando a impugnação ampla da matéria de facto, por erro de julgamento, for levado a considerar que, em face da prova produzida, essa dúvida – razoável e fundada – deveria suscitar-se no espírito do julgador, impondo-se que a resolvesse em sentido favorável ao arguido.
Tendo presentes as considerações que se deixam expendidas e baixando ao caso dos autos:
O arguido/recorrente sustenta não ter sido produzida prova que permitisse ao Tribunal a quo concluir ter sido ele a praticar os factos em causa nos autos, assentando a sua condenação apenas na circunstância de ter sido ele a única pessoa que desde meados de 2015, explora o terreno onde está instalado o contador de eletricidade em apreço.
Lida a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, supra transcrita, é incontroverso, não ter sido feita, na audiência de julgamento, prova direta da prática pelo arguido/recorrente, dos factos que lhe são imputados.
A convicção formada pelo Tribunal a quo, no sentido de ter sido o arguido a praticar aqueles factos, baseou-se em prova indireta. E, desde já se dirá, que a fundamentação expendida na sentença sob recurso em sustentação da decisão de facto nesse sentido, obedece aos cânones e rigor que devem de ser observados, quando o tribunal sustente a sua convicção, no tocante à culpabilidade do arguido, em prova indireta.
Neste domínio, importa salientar os seguintes aspetos:
Constitui entendimento jurisprudencial consolidado, que a prova da prática pelo arguido de factos que constituem crime, não depende da existência de prova direta, nem a convicção do tribunal tem, obrigatoriamente, de se alicerçar nesse tipo de prova, podendo sustentar-se em prova indireta, também chamada indiciária, que conjugada entre si e com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, permita extrair ilações, que revelando-se lógicas e conformes àquelas regras, levem a inferir a factualidade imputada e permitindo fundamentar a condenação do arguido.
Como se decidiu no Acórdão do STJ de 23/11/2006[4]: «As normas dos artigos 126.º e 127.º do CPP podem ser interpretadas de modo a que possam ser provados factos sem que exista prova direta deles. Basta a prova indireta, conjugada e interpretada no seu todo», interpretação esta que «não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade ou das garantias de defesa, ou da presunção da inocência e do contraditório, consagrados no artigo 32º, n.ºs 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria de facto para efetivo controlo da decisão».
O Tribunal Constitucional chamado a pronunciar-se sobre a interpretação normativa dos artigos 127º e 125º, ambos do CPP, no sentido de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal, decidiu, nos Acórdãos n.º 391/2015[5] e n.º 521/2018[6], pela sua conformidade à Constituição, designadamente, ao seu artigo 32º, n.ºs 2 e n.º 5, que consagram, respetivamente, o princípio da presunção da inocência e a estrutura acusatória do processo penal, não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador permite o recurso a presunções judiciais em processo penal e a norma constante do artigo 125º do CPP, na interpretação de que a prova indiciária e a prova por presunções judiciais são admissíveis em direito penal e em direito processual penal.
Conforme refere o Cons. Santos Cabral[7] «Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervêm a inteligência e a lógica do juiz. A prova indiciária pressupõe um facto, demonstrado através de uma prova directa, ao qual se associa uma regra da ciência, uma máxima da experiência ou uma regra de sentido comum. Este facto indiciante permite a elaboração de um facto-consequência em virtude de uma ligação racional e lógica (…).»
Por outro lado, não se pode olvidar que, como vem sendo reiteradamente afirmado na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, a prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada, ao invés, as provas devem ser «analisadas e valoradas de forma concatenada, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, de modo a que, ainda que sendo as provas de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear e racionalmente apreensível, fazendo o julgador inferências (ou deduções, ou presunções), a partir de factos conhecidos para firmar factos “desconhecidos”, desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica das coisas (as máximas da experiência comum).[8]»
Quando a prova valorada pelo tribunal recorrido seja prova indireta, como faz notar Paulo Saragoça da Matta[9] «cabe ao tribunal de recurso determinar se entre o facto conhecido (básico) e a consequência apurada existe um nexo lógico a partir do qual se possa concluir pela probabilidade ou acerto dos facta probanda». Ou seja, nessa situação «o Tribunal de recurso limitar-se-á a aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se não o for, então, a decisão recorrida merece alteração.[10]»
Tendo presentes estas considerações, que acolhemos, e volvendo ao caso dos autos, transcrevem-se aqui os segmentos da motivação da decisão de facto consignada na sentença recorrida, com especial relevância, para a questão que agora nos ocupa:
«(...)
O arguido prestou declarações, negando a prática dos factos pelos quais veio acusado. Referiu que
o contrato de fornecimento nunca foi alterado, continuando o mesmo desde 1988 e que nunca celebrou qualquer contrato em 2016. As facturas foram sempre emitidas em nome do seu pai, falecido em .../.../2020. Adiantou ainda que o terreno esteve 3 ou 4 anos abandonado, porquanto o seu pai não tinha mobilidade, nem se encontrava psicologicamente bem de saúde. A partir de 2015, o arguido passou a explorar o terreno em causa, sendo que, nessa altura, atenta a existência de um furto dos cabos de tensão, decidiu mandar instalar umas caixas e mudar o contador de local, isto é, de junto do armazém para junto da via pública (mas ainda no interior do imóvel), por ser um local mais exposto. Foi à EDP de ... comunicar a intenção de mudança de contador e, nessa sequência, a EDP deslocou-se ao local, ficando com os dados do contratante, mas não deixando qualquer comprovativo. Referiu desconhecer o que se passou com a quebra dos selos e com a troca dos cabos de ligação. Confirmou ter recebido uma carta para pagamento de cerca de €11.000, mas que não lhe deu grande importância, dado que o nome nela aposto não correspondia ao nome correcto do seu pai. Só mais tarde, e perante a insistência, é que pediu uma vistoria, embora não sabendo a que conclusão chegaram.
As declarações do arguido não mereceram, porém, credibilidade, quer porque contraditória com a
demais prova produzida, quer porque inverosímil, por referência às regras da experiência comum.
Desde logo, a invocada mudança do contador da zona do armazém para local mais visível do imóvel não se encontra suportada em qualquer prova documental. Não se demonstrou, assim, que a única
intervenção do arguido relacionada com o contador em causa foi a de mudança de local onde o mesmo se encontrava, para outro.
Por outro lado, se, na tese do arguido, a mudança do contador se fundamentou no furto dos cabos de tensão, os quais, porque furtados, deixaram de proceder à contagem da electricidade, então, logo que se procedeu à referida mudança e os cabos foram (re)colocados, então, a contagem teria necessariamente iniciar, e de forma regular, o que, de acordo com os documentos de fls. 178 e 179, não sucedeu, dada a inexistência de contagem entre 25.10.2012 e 31.08.2016.
Ademais, se o arguido, pelo menos desde 2015, era a única pessoa que fazia uso do terreno, não pode o mesmo alegar desconhecer ter existido quebra de selos e troca dos cabos de ligação. Ainda que o mesmo tenha sugerido que qualquer pessoa poderia aceder ao imóvel, a verdade é que não só tal não resultou demonstrado, como nenhuma pessoa teria interesse em proceder à quebra dos selos e à mudança dos cabos de ligação, pois nenhum benefício daí retiraria. É manifesto que só o próprio utilizador da electricidade retiraria um benefício de uma contagem indevida e incorrecta. Importa, portanto, fazer apelo às regras da experiência comum para desconsiderar a versão avançada pelo arguido. Ainda que pudesse existir algum interesse no furto dos cabos eléctricos, admitindo-se como possível (ainda que não demonstrado) que antes de 2015 tenha existido algum furto, tal situação diverge da dos autos, porquanto o que aqui está em causa não é o furto dos cabos eléctricos, mas sim, para além da quebra dos selos, a mudança dos cabos, a fim de obter um benefício para a única pessoa beneficiária do fornecimento de energia eléctrica.
A testemunha EE, electricista de profissão, esclareceu que entre 2010 a 2018 trabalhou para a empresa J..., que prestava serviços para a EDP. Na sequência de autos por esta levantados por suspeita de potência e contadores desregulados, deslocou-se ao local em causa, tirando fotografias e fazendo o respectivo auto de vistoria. Embora não se tendo recordado da vistoria em concreto, confirmou que as mesmas eram efectuadas mediante ordens de serviço da EDP (o que se confirma pelo documento de fls. 197 verso). Foi confrontado com o documento folhas 12 e seguintes, confirmando a sua assinatura. Mais adiantou que através do referido documento se constata que o problema então detectado respeitava ao «contador desselado, diferencial regulado para 30 amp, trocados cabos». Adiantou ainda que os trabalhos eram executados pela já referida ordem de serviço, nunca sendo directamente contactados pelo cliente. Mais esclareceu que quando os cabos estão trocados, e dependendo da antiguidade do contador, o mesmo não anda ou anda para trás, o que, em qualquer um dos casos, acaba por resultar numa contagem de electricidade inferior à devida. Concluiu ser de fácil tarefa regular a potência para 30 amperes, pois basta mexer nas caixas que se encontram acima do disjuntor e do contador. Referiu que, por regra, não procedem à mudança de contadores de lugar (ao invés do referido pelo arguido). Se, eventualmente, houver necessidade dessa mudança, fazem constar por escrito, o que aqui não sucedeu. Foi ainda confrontada com as fotografias de fls. 13 e seguintes, esclarecendo a que cada um reportava. Também confrontado com folhas 170 e 171, respeitante ao histórico de leituras, esta testemunha verificou que, desde 2015, o histórico permanece o mesmo. Só em 25.10.2016 é que começa novamente a contagem. Concluiu, referindo que após os trabalhos voltaram a proceder à selagem do contador e do disjuntor e que, pela experiência da função que exerce, a irregularidade detectada só beneficia quem consome electricidade. O seu depoimento revelou-se credível e imparcial, não tendo a referida testemunha qualquer interesse directo no desfecho de processo.
(...).
A testemunha BB, cônjuge do arguido, veio confirmar a versão por este avançada, no sentido de que o seu marido explora o terreno há cerca de 5 anos, que antes disso mesmo estava abandonado, que se procedeu à mudança do contador para junto da entrada do terreno devido ao furto verificado e que o seu marido não tem conhecimentos técnicos de electricidade. Porém, atenta a relação de familiaridade aqui em causa, as suas declarações não mereceram suficiente crédito para infirmar a restante prova produzida.
(...).
Temos, por fim, o depoimento da testemunha HH, electricista de profissão, que de forma perfeitamente coincidente com a testemunha EE, escorreita e desinteressada, referiu ter exercido funções para a empresa J..., que trabalhou para a EDP. Nesse âmbito, fazia fiscalizações através de ordens de trabalho que a EDP solicitava. Não se recordou dos factos ora em questão, razão pela qual foi confrontado com as declarações prestadas em sede de inquérito (fls. 40), confirmado que o seu teor. Atestou de forma convicta e convincente que tudo quanto consta do auto de vistoria de fls. 12 corresponde àquilo que na altura verificaram. Confirmou que os contadores da EDP têm todos selos e tampa, a fim de evitar que se mexa nos mesmos e que, por conseguinte, se inviabilize a contagem correcta da electricidade consumida. Ainda esclareceu que o DCP corresponde ao disjuntor que controla a potência, o qual, no caso concreto, se encontrava sem selo, estando regulado para 3 x 30 amperes e que a entrada dos cabos de ligação se encontrava trocada. Confirmou que, quando terminaram o serviço, recolocaram a potência que havia sido contratada, ou seja, 3 x 15 amperes. Afirmou que para fazer a alteração em causa é preciso retirar os selos apostos, pois só assim é possível retirar a tampa. Esclareceu ainda que se as entradas dos cabos de ligação estiverem trocadas não é possível proceder à contagem correcta da electricidade, pois o contador não contabiliza toda a energia consumida, embora esta passe de igual forma. Também de acordo com os seus conhecimentos, o único propósito para este tipo de acção consiste em pagar o mínimo possível ao fornecedor. Mais esclareceu que dificilmente os técnicos se esquecem de colocar os selos, pois o serviço prestado é sempre fiscalizado posteriormente por outros colegas. Concluiu adiantando ser fácil regular a intensidade do disjuntor, tanto mais quando pelo mesmo não passa electricidade. No que ao contador respeita, embora já se esteja em contacto com a energia, não é difícil proceder a tal alteração, sendo apenas necessário ter algum conhecimento pelo risco de electrocussão e não pela dificuldade da tarefa em causa.
Do exposto, em momento algum as declarações do arguido foram suportadas pela prova produzida.
De facto, e à excepção da testemunha BB, que confirmou integralmente a versão avançada
pelo arguido, a demais prova aponta no sentido inverso.
Em primeiro lugar, repete-se, não faz qualquer sentido que um terceiro proceda a desselagem do
contador e do disjuntor e à troca dos cabos de ligação porquanto dali não retiraria qualquer benefício. É unânime a conclusão de que o único beneficiário de tal alteração é quem consome e paga a correspondente electricidade que, aqui, é exclusivamente o arguido.
Em segundo lugar, as mesmas testemunhas confirmaram não ser necessários especiais conhecimentos técnicos para as alterações em causa, podendo, eventualmente, e no que o contador respeita, existir algum risco de eletrocussão.
Não estando demonstrado nos autos que alguém tenha acedido ao terreno agrícola em causa, mas já se tendo demonstrado, pelas suas próprias declarações, que o arguido, pelo menos desde o ano de 2015, foi o único a dele fazer uso, então, outra conclusão não se pode chegar que não a de que o arguido foi o único a aceder ao contador e ao disjuntor e a de neles fazer as alterações encontradas. Também não se demonstrou que o local alguma vez tenha estado abandonado e que fosse usual a ocorrência de furtos naquela zona.
No que ao contrato de fls. 111 diz respeito, se é certo que o mesmo não se encontra assinado, certo é igualmente que hoje em dia este tipo de contrato contratos é efectuado por via telefónica e não presencialmente. Também consta dos autos (fls. 79 a 82) uma procuração emitida pelos pais do arguido a seu favor, ao invés do que a mesma invocou na sua contestação. De todo o modo, as irregularidades aqui detectadas reportam-se, na sua maioria, a datas anteriores à celebração daquele contrato, pelo que este documento não constitui prova essencial e capital para os factos ora em equação.
(...)
Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, quese encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e deformação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
(...)
Aplicando tais ensinamentos ao caso concreto, para além de tudo quanto supra aduzido e na esteira do já avançado no despacho de pronúncia, não se olvide que a irregularidade detectada é composta por duas
desconformidades verificadas no contador: por um lado, os cabos estavam mal ligados, o que significava que a energia consumida não era toda contabilizada, por outro, o disjuntor de controlo de potência estava regulado para uma potência superior à contratada, assim permitindo que fosse realizado um maior consumo de energia não contabilizado. Há, portanto, dois comportamentos activos e distintos por parte do perpetrador. Perante tal, torna-se altamente inverosímil que a irregularidade detectada pudesse ter resultado de uma eventual falha da EDP na alteração da localização do contador, falha essa que, aliás, nem se poderia considerar provada, atendendo a que inexiste qualquer registo da ocorrência de uma intervenção da EDP neste local, no ano de 2015, ao contrário do afirmado pelo arguido.
Por outro lado, a conjugação destas duas irregularidades também não terá resultado, de acordo com as regras da normalidade e da experiência comum, de qualquer acto de vandalismo, tanto mais quanto nada foi destruído, estragado ou furtado (aliás, se a mudança de local do contador resultou de repetidos furtos naquele local, também não se compreende porque é que o arguido não tentou proteger o contador, limitando-se a aproximar o mesmo da habitação, o que não evitaria qualquer intervenção ilegítima junto do mesmo). Ao invés, estas irregularidades foram conjugadas precisamente para beneficiar, em dobro, o utilizador da energia, permitindo-lhe consumir ainda mais energia do que a inicialmente contratada sem que a mesma fosse devidamente registada.
Os factos 15 a 21 (elemento subjectivo) resultaram provados através do cotejo da matéria objectiva dada por provada com as regras da experiência comum.
Com efeito, o comum dos cidadãos medianamente inteligente e sagaz, como se presume ser o arguido, não poderia deixar de conhecer o desvalor das suas condutas, nem de saber que o seu comportamento constituía um ilícito criminal, não se inibindo, contudo, de actuar.
O arguido não podia deixar de ter consciência de que o seu comportamento activo era de molde a
obter um benefício indevido, à custa alheia, logo, consubstanciadora de um ilícito criminal.
(...)»
Como decorre da motivação transcrita, o Tribunal a quo não atribuiu credibilidade, pelas razões que devidamente explicitou, às declarações prestadas pelo arguido e ao depoimento da testemunha BB, sua mulher, na versão que o primeiro apresentou e a última corroborou, no sentido de que o arguido não praticou os factos que lhe são imputados e desconhece quem o fez.
A atribuição de credibilidade, ou não, à prova testemunhal ou por declarações, assenta numa opção do julgador na base da imediação e da oralidade, decidindo de acordo com a livre convicção, que tribunal de recurso só poderá censurar se for contrária às regras da experiência comum e lógica[11].
Entendemos que a decisão do Tribunal a quo, ao dar como como provado que o arguido, ora recorrente, praticou os factos agora impugnados, sem prejuízo do que infra se dirá relativamente ao ponto 14) – no que respeita ao valor da energia elétrica que foi objeto de ilegítima apropriação, que a lesada estimou em € 11.655,33 (onze mil seiscentos e cinquenta e cinco euros e trinta e três cêntimos) – mostra-se fundamentada, com rigor, decorrendo do raciocínio explanado, que o julgador acolheu uma solução consentânea com as regras da experiência comum, suportada pelas provas que enuncia e a cujo exame crítico procedeu, decidindo de acordo com a sua livre convicção, nos termos do artigo 127º do CPP.
Na verdade, tendo o arguido/recorrente, nas declarações que prestou, na audiência de julgamento, admitido ser ele a única pessoa que a partir de 2015, passou a explorar o terreno agrícola que pertencia a seu pai, onde estava instalado o contador destinado ao registo dos consumos de eletricidade efetuados e ter sido o próprio quem, nesse ano de 2015, decidiu mandar mudar esse contador de local – o que o próprio teria comunicado à EDP, referindo ter-se deslocado, para o efeito, à loja de ... e que, nessa sequência, funcionários desta entidade, aí se teriam deslocado, ficando com os dados do contratante, versão esta que não foi corroborada por qualquer prova produzida e que o Tribunal a quo não valorou –, sendo a energia elétrica destinada, essencialmente, ao funcionamento do sistema de rega colocado naquele terreno, não se vislumbra que outra pessoa, que não o arguido, pudesse ter interesse em que o aludido contador sofresse as alterações que nele foram efetuadas – descritas nos pontos 10 e 11 da matéria factual provada –, por forma a aumentar a potência em relação à que fora contratada – de 3x15 amp para 3x30 amp – e a diminuir os registos, nesse equipamento de medição, dos consumos de eletricidade efetivamente realizados, com a consequente subfacturação da energia consumida e da potência regulada, com o benefício económico daí decorrente e o inerente prejuízo para o fornecedor/distribuidor de energia elétrica.
De salientar, ainda, os seguintes aspetos: Primeiro: Não é credível/verosímil que um terceiro, que não o arguido ou sem que fosse a mando deste, única pessoa, como o próprio admitiu, que explorou, a partir de 2015, o terreno onde estava instalado o dito contador, procedesse às alterações que no mesmo foram realizadas, para o que foi necessário retirar os selos nele apostos, de modo a beneficiar, exclusivamente, quem efetuava os consumos da energia elétrica, a cuja medição aquele equipamento era destinado, ou seja, no caso, o arguido; Segundo: Passando o arguido a explorar o terreno em causa, a partir de 2015, admitido ter, nesse mesmo ano, providenciado pela mudança do contador para local diferente daquele onde antes estava instalado, o que foi concretizado, em data que não soube precisar, mas que situou, no final de 2015, estando até aí, segundo o que referiu, aquele terreno abandonado, não se alcança que relevância possa ter a circunstância convocada pelo recorrente de que não poderia ter sido ele a celebrar o novo contrato de fornecimento de energia elétrica, em representação de seu pai, datado de 15/02/2016, cuja cópia se mostra junta a fls. 109 a 116 e aludido no ponto 5 dos factos provados, em virtude de a procuração subscrita pelos seus progenitores, em 13/09/2018, junta a fls. 79 a 82 dos autos, apenas ter sido outorgada em data posterior à da celebração daquele contrato. Terceiro: A circunstância de figurar no aludido contrato, como titular/cliente, o pai do arguido e de ser indicada a respetiva morada, tal não significa, ao contrário do que pretende o recorrente que fossem os seus progenitores, a rececionar e a tratar do pagamento das faturas respeitantes ao fornecimento da energia elétrica ao prédio em questão, no período compreendido entre 2015 e 13/09/2018. Era o arguido quem explorava o aludido terreno e efetuava os consumos de eletricidade na atividade agrícola que aí desenvolvia, sendo os seus pais pessoas de idade avançada e já com algumas limitações, como foi referido pelo arguido, à luz das regras da experiência comum, o que é normal é que fosse este último a efetuar o pagamento das ditas faturas, como concluiu o Tribunal a quo, não tendo atribuído credibilidade à versão apresentada pelo arguido e corroborada pela testemunha BB, sua mulher, de que eram os pais do arguido quem liquidava as ditas faturas. Quarto: Independentemente de o arguido ter, ou não, conhecimentos técnicos de eletricidade, tendo o Tribunal a quo dado como não provado que não os tenha (cfr. alínea c. da matéria de facto não provada), fundamentando as razões pelas quais assim decidiu, sem que as provas especificadas pelo recorrente – as suas declarações e os depoimentos das testemunhas BB e CC – imponham decisão em sentido diverso, mesmo na hipótese de não ter esses conhecimentos, tal não afastaria a prática pelo arguido dos factos que lhe são imputados, na medida em que, mesmo que tivesse sido outra pessoa a efetuar as alterações no equipamento/contador em questão, tendo em conta o desiderato com que o fez, beneficiando exclusivamente quem consumia a energia elétrica, nos termos sobreditos, sem margem para qualquer dúvida, que atuaria a mando do arguido. Em qualquer das situações, sempre seria de imputar ao arguido a autoria dos factos/crimes de que se trata, considerando a definição legal de autoria estabelecida no artigo 26º do Código Penal. Quinto: Inexiste qualquer contraindício ou elemento de prova que leve a equacionar outra hipótese de probabilidade contrária ou alternativa àquela que o Tribunal a quo deu como provada, em termos de poder gerar a dúvida – que teria de ser fundada e razoável –, quanto a ter sido o arguido a praticar os factos dados como provados.
Por todo o exposto, entendemos que a ilação extraída pelo Tribunal a quo, de que o arguido/recorrente praticou os factos que deu como provados – nomeadamente, incumbindo outrem, eletricista ou pessoa com conhecimentos nessa área, de proceder à alteração do aludido contador, não podendo, para esse efeito, deixar de serem retirados os selos, destinados a garantir a inviolabilidade do equipamento em questão –, mostra-se lógica, racional e consentânea com as regras da experiência comum e, por isso conforme ao princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no artigo 127º do CPP, não merecendo qualquer censura deste tribunal de recurso.
Não foi, pois, violado pelo Tribunal a quo o princípio da livre apreciação da prova.
2.3.2. Do mesmo modo, não foi violado o princípio in dubio pro reo
Tendo presentes as considerações que se deixaram expendidas supra sobre a possibilidade de controlo, em sede de recurso, do não uso, pelo tribunal recorrido, do princípio do in dubio pro reo, lida a motivação da decisão de facto exarada, na sentença recorrida, é inequívoco que da mesma não resulta que o julgador se tivesse confrontado com qualquer dúvida sobre os factos que deu como provados e, designadamente, em relação àqueles que são impugnados pelo recorrente, isto sem prejuízo do que infra se decidirá relativamente ao ponto 14, da matéria factual provada, no tocante ao valor da energia elétrica que foi objeto de ilegítima apropriação.
E atentando-se nas razões que presidiram à valoração da prova produzida, enunciadas na motivação da decisão de facto, que se revelam consentâneas com a regras da experiência comum e não se descortinando a violação de quaisquer normativos ou princípios relativos ao direito probatório, fica afastada a possibilidade de a prova produzida determinar que o Tribunal a quo, devesse ter sido confrontado com dúvida razoável e fundada, em termos de valoração da prova, que devesse resolver em sentido favorável ao arguido/recorrente.
Deste modo, impõe-se concluir não ter sido violado o princípio in dubio pro reo.
*
Consequentemente, sem prejuízo do que infra se decidirá relativamente ao ponto 14, dos factos provados e que poderá ter implicações no ponto 33, tem de improceder a impugnação da matéria de facto.
Perante a matéria de facto que resulta provada, dúvidas não existem de que a atuação do arguido/recorrente integra a prática, na forma consumada, de crime de quebra de selos p. e p. pelos artigos 356º e 386º, n.º 2, ambos do Código Penal e de um crime de falsificação de notação técnica, p. e p. pelo artigo 258º, n.º 1, al. b) e n.º 2, por referência ao artigo 255º, al. b), do Código Penal, conforme se decidiu, na sentença recorrida.
Já no que se refere ao crime de furto, se bem que a apurada conduta do arguido seja suscetível de o preencher – sendo hoje pacificamente entendido que a energia elétricase integra, no conceito de “coisa” suscetível de apropriação –, não existe suporte factual provado que permita decidir sobre se integra o crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Código Penal ou o crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por cuja prática o arguido/recorrente foi condenado, em 1ª instância.
Neste ponto, tal como bem refere o Exm.º PGA, no Parecer que emitiu, a sentença recorrida enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a), do n.º 2, do artigo 410º do CPP.
Vejamos:
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando os factos provados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou de dispensa da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto, porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda, porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência[12].
De entre a pluralidade de situações que se reconduzem ao enunciado vício decisório, releva para o caso vertente a que «reside em se não terem considerado provados factos, imprescindíveis para se poderem ter por preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime, ou para se considerarem verificados outros factores que moldaram a condenação[13]», existindo uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito proferida.
A questão prende-se com valor da energia elétrica de que o arguido/recorrente ilegitimamente se apropriou.
Trata-se de matéria decisiva para a decisão da causa, mormente, para a qualificação jurídica dos factos, no que ao crime de furto respeita.
Na sentença sob recurso, foi o arguido/recorrente condenado pela prática de um crime de furto qualificado, considerando-se verificada a circunstância prevista na al. a), do n.º 1, do artigo 204º, do valor elevado, o qual é definido na al. a) do artigo 202º, do Código Penal, como sendo aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto.
O valor elevado, com referência ao momento em que o arguido praticou os factos, é aquele que exceder os €5.100,00.
Sucede que da matéria factual dada como provada, na sentença recorrida, decorre não ter resultado apurado o valor da energia elétrica de que o arguido ilegitimamente se apropriou, durante o período de tempo em que adotou essa conduta.
Explicitando:
Foi dado como provado, no ponto 14, que: «Com as referidas condutas, o arguido actuou com o propósito concretizado de, mediante a quebra dos selos colocados no contador e as alterações realizadas, se apoderar de energia eléctrica, em quantidade e valor monetário não concretamente apurados, mas que a lesada estimou em € 11.655,33 (onze mil seiscentos e cinquenta e cinco euros e trinta e três cêntimos[14]), valores que que consumiu e fez seus, sem proceder ao respectivo pagamento, integrando-os no seu património.»
No ponto 33, respeitante ao pedido de indemnização civil, deu-se como assente que: «Com a conduta do arguido, a Demandante sofreu um prejuízo de € 11.655,33».
Na motivação da decisão de facto o Tribunal a quo enuncia as provas que valorou para considerar o referido valor. E essas provas foram os documentos de fls. 19 e 20 [quais sejam, a cópia de uma carta de interpelação dirigida pela EDP Distribuição – Energia, S.A. a DD, datada de 29/03/2017, para pagamento da quantia de €11.655,33 e um “mapa explicativo” que seguiu em anexo a essa carta, onde consta o cálculo da indemnização e outros danos, totalizando o indicado valor de €11.655,33] e o depoimento da testemunha FF [técnico superior, funcionário da demandante que referiu que a eletricidade consumida entre 02.09.2012 e 31.08.2016, data do auto de vistoria, foi efetuado de acordo com as diretivas europeias nessa matéria].
Em sede de fundamentação de direito, operando a subsunção jurídica dos factos provados, ao crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1, al. a), ambos do CP, por cuja prática condenou o arguido, ora recorrente, o Tribunal a quo, consignou o seguinte: «Baixando ao caso dos autos, dúvidas não existem de que o arguido praticou o crime de furto, porquanto apoderou-se da electricidade pertencente à ofendida, através da troca dos cabos de ligação e da contagem de electricidade inferior à efectivamente consumida, desde data não concretamente apurada do ano de 2015 até 31.08.2016, no valor de € 11.655,33.»
E na parte em que apreciou o pedido de indemnização civil, no tocante à indemnização arbitrada à demandante, para ressarcimento dos prejuízos patrimoniais sofridos, em consequência da atuação do arguido/demandado e a cujo pagamento condenou este último, o Tribunal a quo, escreveu que: «Tal valor corresponde ao valor apurado do bem furtado pelo arguido, ou seja, €11.655,33, correspondente ao valor da electricidade efectivamente consumida pelo arguido e cujo pagamento o mesmo.».
Do que se deixa exposto decorre que o Tribunal a quo não apurou qual o valor da energia elétrica de que o arguido se apropriou, tendo considerado, como resulta do ponto 14 da factualidade provada a estimativa efetuada pela demandante E-Redes e decidindo, de direito, atendeu ao valor estimado.
Sucede que na estimativa que foi feita pela demandante, de acordo com o teor do documento de fls. 19, que o Tribunal a quo valorou, estão abrangidos “encargos administrativos com a deteção e tratamento da anomalia”, “equipamento e mão de obra” e “encargos de potência e energia”, sendo estes últimos referentes ao período de 2 de setembro de 2013 a 31 de agosto de 2016, contemplando período muito anterior ao momento a partir do qual se deu como provado ter existido apropriação ilegítima de energia elétrica, por parte do arguido.
Por conseguinte, nunca poderia o valor estimado de €11.655,33, ser considerado pelo Tribunal a quo, ao decidir de direito.
A determinação do valor da coisa subtraída, sendo um elemento decisivo para a qualificação jurídica do crime de furto, tem de ser feita, em concreto, ou seja, exige-se que se proceda ao apuramento de um valor exato ou aproximado, em termos objetivos.
Na impossibilidade de apurar esse valor, deve indagar-se se este é, ou não, superior a uma Unidade de Conta, avaliada no momento da prática do facto e, na dúvida, há que aplicar o princípio in dubio pro reo e considerar ser o mesmo inferior a uma UC, correspondendo a valor diminuto, na definição constante da al. c), do artigo 202º do CP, com as consequências daí decorrentes, no que concerne à qualificação jurídica do crime de furto[15].
Conforme elucidativamente se refere no Acórdão desta Relação de Évora, de 07/02/2017[16], «O “valor da coisa” é um dado objectivo, não subjectivo,devidamente quantificado e, se possível, concretamente determinado; não um valor estimado ...».
Dizer-se na matéria de facto provada que a coisa tem o “valor estimado de …”, não é um facto, mas antes constitui matéria/objeto de prova.
O que cumpria apurar e determinar factualmente era se a energia elétrica de que o arguido/recorrente ilegitimamente se apropriou, no período temporal em que tal se verificou, correspondia, efetivamente, ao valor que a lesada estimou.
Acontece que essa matéria não foi indagada pelo Tribunal a quo, como se impunha que o tivesse sido.
Importa referir o seguinte:
Como alega a demandante, na resposta ao parecer do Exm.º PGA, a estimativa do valor do consumo de energia elétrica irregular, na impossibilidade de apuramento do respetivo quantum real, deve ser efetuada de acordo com as diretrizes estabelecidas no artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 328/90, de 22 de outubro e com base na Tabela constante do Anexo II da Diretiva 11/2016 da ERSE – Procedimentos previstos no Guia de Medição, Leitura e Disponibilização de Dados do Setor Elétrico[17].
Trata-se, em todo o caso, de um valor estimado ou presumido.
Assim sendo, ainda que esse valor possa ser considerado, para efeitos de responsabilidade civil, o mesmo não acontece, quando está em causa a responsabilidade criminal, tendo em conta o que supra se referiu, vigorando no processo penal, o princípio in dubio pro reo.
Na falta de indagação/investigação, pelo Tribunal a quo, do valor da energia elétrica de que o arguido/recorrente, ilegitimamente se apropriou, no período temporal em que resultou provado que tal ocorreu, estando em causa matéria factual indispensável para se proceder ao correto enquadramento jurídico-penal dos factos praticados pelo arguido, ora recorrente, no que ao crime de furto diz respeito e que importará também, com referência ao ponto 33 da factualidade dada como provada, para a quantificação dos prejuízos patrimoniais sofridos pela demandante, e consequente valor da indemnização a arbitrar-lhe, há que concluir que a sentença recorrida enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude o artigo 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal.
Tratando-se de um vício que é de conhecimento oficioso, não dispondo este Tribunal da Relação de elementos que permitam supri-lo, havendo que produzir prova, impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto nos artigos 426º n.º 1, Código de Processo Penal, restrito ao apuramento do valor da energia elétrica de que o arguido ilegitimamente se apropriou.
De notar que, resultando da matéria factual provada ter a apropriação ilegítima de energia elétrica, por parte do arguido, se verificado a partir de data não concretamente apurada do ano de 2015, por imposição do princípio do in dubio pro reo, o apuramento a efetuar terá de considerar a data de 31/12/2015 e até 31/08/2016.
No julgamento a realizar, com o objeto que se deixa definido, deverá determinar-se a produção de prova tida por pertinente e, se necessário, cumprindo-se o disposto no artigo 358º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, com a subsequente prolação de nova sentença, decidindo-se de direito, em conformidade.
No presente caso, tendo em conta os concretos contornos do vício decisório de que enferma a sentença recorrida e prevenindo a eventual necessidade de atender a prova já produzida, a par daquela que venha a ter lugar no novo julgamento, havendo que proceder ao respetivo exame crítico, conjugadamente, entendemos que o novo julgamento, deverá ser realizado pela Mm.ª Senhora Juiz que presidiu ao anterior julgamento.
3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:
a) Julgar improcedente a impugnação da matéria de facto dada como provada e como não provada na sentença recorrida, sem prejuízo do que possa ser apurado no novo julgamento, com referência ao valor da energia elétrica de que o arguido/demandado se apropriou, com as decorrentes implicações nos pontos 14 e 33 dos factos provados;
b)Declarar que a sentença recorrida enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e, consequentemente, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto no artigo 426º, n.º 1, do Código de Processo Penal, restrito à questão supra assinalada e subsequente prolação de nova sentença, em conformidade, nos termos sobreditos.
Sem tributação.
Notifique.
Évora, 25 de outubro de 2022
Fátima Bernardes
Fernando Pina
Beatriz Marques Borges
__________________________________
[1] In Curso de Processo Penal, II, Lisboa, Verbo, 1993, pág. 111.
[2] Cfr. Ac. da RC de 01/10/2008, proferido no proc. 3/07.4GAVGS.C2, acessível in www.dgsi.pt
[3] Cfr. entre outros, Ac. da RE de 02/02/2016, proc. 114/13.7TARMR.E1 e Ac. da R.C. de 03/06/2015, proc. 12/14.7GBRST.C1, acessíveis in www.dgsi.pt.
[4] Proferido no proc. 06P4096, disponível no endereço www.dgsi.pt
[5] De 12/08/2015, Proc. n.º 526/2015, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150391.html
[6] De 17/10/2018, Proc. n.º 321/2018, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180521.html
[7] “Prova indiciária e as novas formas de criminalidade”, in Revista Julgar, n.º 17 - 2012, Coimbra Editora, página 13.
[8] Cfr, por todos, Ac. da RE de 19/02/2019, proc. 112/14.3GDSTR.E1, acessível in www.dgsi.pt.
[9] A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 253.
[10] Idem.
[11] Cfr., por todos, Ac. do STJ de 29/05/2019, proc. 200/08.5PAESP-C.S1, in www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo penal, 6ª edição, Editora Rei dos Livros, 2007, págs. 77 e 78.
[13] Cfr. Ac. do STJ de 09/09/2010, proc. 1795/07.6GISNT.L1, acessível in www.dgsi.pt.
[14] Nosso sublinhado.
[15] Neste sentido, cfr., entre outros, Ac. do STJ de 23/06/2021, proc. 42/20.0JAGRD.C1.S1, Ac. da RL de 28/2/2012, proc. 318/10.4PAAMD.L1-5 e Ac. da RE de 12/06/2012, proc. 330/10.3GDPTM.E1, todos acessíveis in www.dgsi.pt
[16] Proferido no proc. n.º 1468/14.3PAPTM.E1, acessível in www.dgsi.pt.
[17] Publicada in DR, 2ª Série, de 9/06/2016.