CONTRATO DE MANDATO
INCUMPRIMENTO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Sumário

É insusceptível de execução específica, o contrato de mandato sem representação, em que o mandatário, incumprindo-o, não transfere para o mandante os direitos adquiridos na respectiva execução.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Na presente acção de processo ordinário de condenação, proposta pelos AA B.......... e esposa C.........., o Tribunal “a quo”, conhecendo de mérito, veio a proferir sentença no sentido de julgar a mesma procedente, declarando transmitida para estes a propriedade do lote 2 (....) , descrito na Conservatória de Registo Predial de .......... sob o n.º 01977/270296 e, condenando os RR a pagarem aos mesmos AA o montante de Eur. 926,34, acrescido de juros de mora, às taxas de 10%, 7% e 4%, ou outra que venha a vigorar, para além das mais valias que os AA tiveram de suportar pela transferência, para a sua titularidade, do mencionado lote 2, a liquidar em execução de sentença, os RR D.......... e esposa E.........., vêm interpor recurso de Apelação, concluindo:

1. Foi a acção julgada provada e procedente, tendo-se proferido sentença que declara transmitido para os AA a propriedade do lote 2;

2. Acontece que o Réu, ora Apelante, na escritura de 3.07.91, junta aos autos, não adquiriu nenhum lote 2, pelo que não se entende como é possível chegar a essa conclusão;

3. Também não é claro e nessa parte há obscuridade da sentença, porque razão os promitentes vendedores aceitaram outorgar a escritura só a favor do Apelante, sem exigir dos AA uma declaração de autorização nesse sentido. Teria sido o comportamento normal, para evitarem vir a ser responsabilizados pelo não cumprimento dum contrato promessa, celebrado por aqueles AA e RR;

4. Havendo ambiguidade, insuficiência ou obscuridade da matéria de fato impõe-se que a sentença seja declarada nula, para ser ampliada a matéria de facto, nos termos do art.º 712º n.º 4 do CPC;

5. Por outro lado, e na esteira do decidido no Ac. STJ de 11.05.2000, o não cumprimento do art.º 1181º n.º 1 do CC, não confere ao mandante direito à execução específica prevista no art.º 830º do CC, restando apenas a este pedir uma indemnização por perdas e danos;

6. Foram violados os art.ºs 712º n.º 4 do CPC e, 1181º n.º 1, 830º e 9º, do CC.

Nestes termos, deve proceder o recurso e, a acção ser julgada improcedente ou, subsidiariamente, ser o julgamento anulado para ampliação da matéria de facto.

Os AA contra alegaram concluindo, em síntese, pela confirmação da sentença recorrida, atentos os argumentos que a doutrina e jurisprudência têm vindo a invocar em favor da execução específica da obrigação assumida pelo mandatário, no mandato sem representação.

Entre outros, o Tribunal “a quo” considerou como provados os seguintes factos:

a. Em 1 de Novembro de 1986, o A marido e o R. marido, que são irmãos, prometeram comprar a F.......... e outros, que prometeram vender, pelo preço de Esc. 2.800.000$00 (...), um prédio misto, composto, na parte urbana por uma casa de um pavimento e na parte rústica por um terreno, inscrito na matriz urbana sob o art.º 46.836, sito na Rua .........., .........., .........., descrito na Conservatória do Registo Predial de .......... sob o n.º 46836.

b. O objecto do contrato veio a ser reduzido, limitado apenas ao terreno que, no contrato promessa era descrito como parte rústica (...), desistindo AA e RR de adquirir a parte que, no contrato promessa era descrita como urbana que se manteve na propriedade dos promitentes vendedores (..);

c. Ao negociarem com os proprietários a aquisição desse imóvel, o A. marido e o Réu marido, e desde os primeiros contactos, sempre tiveram em vista a aquisição em compropriedade e em partes iguais desse imóvel.

d. E a sua divisão, após o loteamento, em dois lotes.

e. Ainda antes da celebração da escritura relativa ao contrato prometido, os RR, porque viviam em casa arrendada, pretendiam com urgência implantar no terreno uma moradia para sua habitação.

f. Tal urgência não se compadecia as necessárias delongas inerentes ao processo de loteamento e posterior registo de cada um dos lotes.

g. Por causa dessa urgência por parte dos RR, que não era extensiva aos AA, estes encarregaram o Réu marido de adquirir, por escritura pública, em nome próprio, a propriedade do imóvel em causa.

h. Incluindo, portanto, a compropriedade dos AA, pelo preço já anteriormente acordado, aquando da celebração do contrato promessa.

i. E obrigando-se os RR a transferir metade, se, por qualquer motivo o pedido de loteamento viesse a ser indeferido.

j. Ou, na inversa, logo que dividido o terreno, por loteamento, a propriedade do lote – a que posteriormente veio a ser atribuído o n.º 2 – e que correspondia parte do terreno onde não existia, nem existe qualquer construção.

k. Vincularam-se também os RR a pagar metade das mais valias (IRS) que os AA tiveram de suportar pela posterior transferência, para a sua titularidade, do citado lote.

l. Na sequência da compra e venda do imóvel sub judice, foi acordado entre AA e RR que o A marido continuaria a acompanhar de perto todas as diligências levadas a cabo em diversos organismos públicos, mormente na C.M. de .........., visando a aprovação do loteamento do terreno.

m. O que ele fez, adjudicando a uma agência imobiliária o pedido de registo do imóvel e, posteriormente dos lotes, resultantes da sua divisão.

n. Os RR obrigaram-se a restituir ao A. marido parte das despesas que dissessem respeito à área do terreno que veio a constituir o lote 1.

o. No lote 2 foi autorizada a implantação da edificação de um prédio de rés do chão e andar, do tipo unifamiliar.

p. Os AA foram aguardando que os RR se disponibilizassem a celebrar a escritura que transferisse para eles a propriedade do lote 2.

q. Em 1995 o A. marido finalmente conseguiu o deferimento do loteamento.

Fundamentos e decisão:

Fundamentalmente e com vista a apreciação do objecto do presente recurso de Apelação tal como vem delimitada a “questão de direito” suscitada entre Apelantes e Apelados, têm interesse a seguinte factualidade:

- Em 1 de Novembro de 1986, o A. marido e R. marido, que são irmãos, prometeram comprar a F.......... e outros, que prometeram vender (o prédio misto identificado em a);

- O objecto do contrato veio a ser reduzido, limitado apenas à parte rústica – nos termos supra referidos;

- O A. marido e o Réu marido, desde os primeiros contactos, sempre tiveram em vista a aquisição em compropriedade e em partes iguais desse imóvel e, a sua divisão, após loteamento, em dois lotes.

- Os AA encarregaram o R. marido de adquirir, por escritura pública, em nome próprio, a propriedade do imóvel em causa;

- Incluindo a compropriedade dos AA, pelo preço já anteriormente acordado, aquando da celebração do contrato promessa;

- E obrigando-se os RR a transferir para os AA, posteriormente, ou essa compropriedade, na proporção de metade, caso o pedido de loteamento viesse a ser indeferido;

- Ou, na hipótese inversa, a propriedade do lote (lote 2), logo que dividido o terreno;

- AA e RR acordaram que o A marido continuaria a acompanhar de perto todas as diligências levadas a cabo em diversos organismos públicos, mormente na C.M. de .........., tendo em vista a aprovação do loteamento do terreno;

- Em 1995 o A. marido finalmente conseguiu o deferimento de loteamento.

Em face de tal factualidade mostra-se inequívoco que o contrato celebrado entre o A. e Réu maridos envolve a natureza de um contrato de mandato, de acordo com a previsão do art.º 1157º do CC, porém, sob a modalidade de mandato sem representação, na medida em que o mandatário, neste caso o Réu marido, se vinculou perante o A. marido, a celebrar a escritura definitiva, objecto do contrato promessa, em nome próprio, (art.º 1180º de CC), com vista aquisição do bem imóvel, objecto mediato deste último acordo e, com a obrigação de ele, Réu marido, mandatário, transferir para os AA o direito sobre esse mesmo bem, em regime de compropriedade e, em partes iguais, ou a propriedade sobre um lote, logo que dividido o terreno, uma vez aprovado e efectuado o loteamento.

Refere expressamente o disposto no n.º 1 do art.º 1181º, do mesmo diploma legal, que “o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato”.

No caso em apreço, está provado que o A. marido conseguiu o deferimento do loteamento, relativamente ao imóvel adquirido pelo mandatário no cumprimento do contrato de mandato, pelo que este se constituiu na obrigação de transferir para o mandante, ou, o direito à titularidade sobre o bem imóvel adquirido, em regime de compropriedade, em partes iguais, ou, a propriedade sobre metade do imóvel uma vez efectuada a operação de loteamento, in casu, a parte designada por lote 2.

Recusa-se, porém, o mandatário a proceder à transferência para o mandante do direito adquirido na execução do mandato, isto é, em formalizar o acordo entre ambos celebrado, por escritura pública, por forma a transmitir para o mandante o direito de propriedade sobre o lote 2.

Assim sendo, a questão que se coloca, traduz-se em saber, se está ao alcance do mandante requerer a execução específica do contrato e, em consequência, que o Tribunal, substituindo-se ao incumprimento do mandatário, declare transferido o direito de propriedade sobre a parte do imóvel designado por lote 2 para o mandante, ao abrigo do disposto no art.º 830º do CC - como defendem os Apelados e como entendeu o Tribunal “a quo”.

Ora, como se decidiu no douto Ac. STJ de 11 de Maio de 2000, CJ, tomo II, págs. 58 e sgs, “não é susceptível de execução específica a obrigação do mandatário sem representação de transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato”.

Para além dos autores citados no douto aresto que defendem a posição no mesmo sufragada, cumpre chamar a atenção para o douto ensinamento transmitido pelo Sr. Prof. Galvão Telles, in Direito das Obrigações, 7ª ed., pág. 135.

Aí, depois de elucidar o que entende por “execução específica”, diz o seguinte:

“Por outro lado, a execução específica, no sentido exposto, aplica-se somente ao contrato promessa, a que a lei associa. É no nosso sistema jurídico, claramente uma providência excepcional e por isso não pode ampliar-se a outras situações, ainda que análogas ou de algum modo análogas. Quer isto dizer que não poderá lançar-se mão da execução específica para efectivar a obrigação ou dever de contratar, fora do âmbito do contrato promessa (salvo se a lei concretamente o estabelecer).
Nas disposições gerais sobre a execução específica a lei apenas prevê que ela recaia sobre prestação de coisa (determinada) ou sobre prestações de facto fungível (art.ºs 827º e 828º). Se quisesse admiti-la, também com carácter genérico, em relação aos factos infungíveis, como a celebração de um contrato, tê-lo-ia dito. Mas não procedeu assim, limitando-a ao facto infungível consistente na outorga de um contrato prometido (art.º 830º). Daí que o disposto neste artigo assuma índole excepcional, conforme se acaba de observar”.

“Dado o carácter excepcional do dispositivo citado ele é insusceptível de aplicação por analogia, sendo certo que é de afastar a interpretação extensiva (art.º 11º CC) quando está em causa a aplicação da norma a casos diferentes daquele para que foi legislado.
A excepção está delimitada para os casos para que foi estabelecida, e não tem elasticidade para abranger novas situações.” – cfr. Ac STJ de16.05.2000, supra mencionado.

Em face do exposto, decidindo, acorda-se em julgar procedente a Apelação e, em consequência, revogar parcialmente a sentença recorrida, ou seja, no que respeita ao primeiro pedido formulado pelos AA, e que esta apreciou e decidiu em termos de declarar transmitido o direito de propriedade para os AA sobre o lote 2, supra identificado.

Custas pelos Apelados.

Porto, 27 de Junho de 2005
António Manuel Martins Lopes
Rui de Sousa Pinto Ferreira
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira