CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO
ERRO
DEVER DE INFORMAR
DIREITOS
CONSUMIDOR
Sumário

I - Tem direito à anulação de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel usado, o comprador que, ao adquiri-lo, informa o vendedor, que também tinha procedido à sua reparação, que apenas concretizaria o negócio por o veículo ter uma certa quilometragem – 108.983 km - de acordo com o que lhe foi indicado pelo vendedor, se após uma revisão vem a verificar que, à data do negócio, a quilometragem real era de 165.846 km.
II - O comprador incorreu em erro sobre os motivos determinantes da vontade, no que respeita ao objecto do negócio, por violação do princípio da boa-fé – dever de informação – por parte vendedor, que não podia ignorar a essencialidade, para o comprador, da efectiva quilometragem da viatura.
III - É nula, por violar direitos irrenunciáveis do consumidor, a declaração feita pelo comprador, no momento da aquisição, segundo a qual, enquanto o veículo não estiver registado em seu nome, prescinde do prazo e renuncia aos direitos conferidos pela Lei de Defesa do Consumidor – DL. 24/96, de 31.7 – seus artigos 4º e 12º – “assumindo toda a responsabilidade pelo estado em que estava a viatura”.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1 – B.......... instaurou, em 17.12.03, na comarca de Vila Nova de Famalicão (com distribuição ao .. Juízo Cível), acção sumária contra C.........., pedindo que, declarado anulado o contrato de compra e venda identificado na p.i., seja o R. condenado a restituir-lhe a quantia de € 8.500,00, acrescida dos respectivos juros de mora, desde a citação até integral pagamento, mais se condenando, ainda, o R. a pagar-lhe, a título de indemnização, quantia a liquidar em execução de sentença.
Fundamentando a respectiva pretensão, alegou, em resumo e essência:

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- É proprietária do veículo automóvel, matrícula ..-..-LA, marca Nissan, modelo .........., o qual adquiriu ao R., no dia 08.06.02, pelo preço de € 8.500,00, na convicção de que o mesmo tinha 108.983 kms;
- Mais tarde, precisamente em Setembro de 2002, a A. veio a descobrir que o mencionado veículo tinha, em 20.07.01, 165.846 kms percorridos;
- O facto de o veículo adquirido pela A. ter apenas 108.983 kms foi determinante para a A. optar pela respectiva aquisição ao R.
Contestando, pugnou o R. pela improcedência da acção, alegando, também em síntese, que desconhece os kms que o referido veículo tinha, na data da respectiva compra e venda, porquanto o havia adquirido num leilão de salvados, certo sendo, porém que a A. aceitou o veículo no estado em que o mesmo se encontrava, incluindo os kms percorridos.
Na respectiva resposta, insistiu a A. em que apenas adquiriu o mencionado veículo ao R., porque este lhe assegurou, quer o seu bom estado, quer os kms que ostentava.
Foi proferido despacho saneador tabelar, omitindo-se a condensação do processo.
Prosseguindo os autos a sua normal tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 26.11.04) sentença que, julgando improcedente a acção, absolveu o R. do pedido.
Inconformada, apelou a A., visando a revogação da sentença e inerente procedência da acção, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes conclusões:
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1ª - A apelante deduziu pretensão com vista à anulação de um contrato de compra e venda, com fundamento em vício da vontade, não estando, porém, o tribunal sujeito à qualificação jurídica propugnada (art. 664º, do CPC);
2ª - Os factos assentes são reveladores de uma actuação dolosa do apelado (art. 253º, do CC);
3ª - O apelado, na qualidade de vendedor de automóveis, com stand aberto ao público, e como proprietário de uma viatura por si reparada, tem a obrigação de conhecer as qualidades do veículo que vendeu;
4ª - Impendia sobre o apelado a obrigação de informar a apelante das aludidas qualidades, designadamente, a veracidade da quilometragem que exibia;
5ª - O apelado não pode ignorar, sendo, aliás, do conhecimento geral, que a quilometragem de uma viatura é determinante para a decisão da sua aquisição e do respectivo valor de venda, facto verificado também com a apelante;
6ª - Ao garantir o bom estado e número de kms que ostentava, em consequência do conhecimento que dispunha da viatura, omitindo quaisquer outras informações, induziu a apelante em erro quanto à sua verdadeira situação;
7ª - O apelado usou, por isso, sugestões e artifícios e silenciou dados – dolo comissivo e omissivo – para que a apelante produzisse a declaração de vontade relativamente à compra que efectuou (art. 253º, do CC);
8ª - O apelado, com tal actuação, violou, ainda, o princípio da boa fé na formação dos contratos e os consagrados direitos do consumidor (arts. 227º, do CC e 8º e 9º da Lei nº 24/96, de 31.07;
9ª - A apelante adquiriu, ainda, a viatura na convicção errónea de estar perante um “veículo ligeiro de passageiros, com 108 983 kms”, qualidade que o apelado assegurou e sem a qual a apelante não realizava o negócio;
10ª - Por se reportar a um factor determinante do valor da viatura – a quilometragem – e se tratar de facto decisivo para o negócio, não podia o apelado ignorar a essencialidade do erro, na perspectiva da apelante (art. 247º, do CC);
11ª - Aliás, só ocorre a viciação da quilometragem para mais facilmente e com maior proveito para o vendedor se realizar a venda;
12ª - O contrato celebrado entre apelante e apelado é, pois, anulável, por duplo vício da vontade, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (arts. 247º, 254º e 289º, do CC).
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2 – Na sentença apelada, tiveram-se por provados os seguintes factos:
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a) – A A. é proprietária de um veículo automóvel, com a matrícula ..-..-LA, marca Nissan, modelo ..........;
b) – Esse veículo foi adquirido pela A. ao R., no dia 08.06.02, pelo preço de € 8.500,00;
c) – O preço de aquisição do referido veículo encontra-se totalmente pago;
d) – A A. adquiriu esse veículo como sendo um veículo ligeiro de passageiros, com 108.983 kms;
e) – De todos os veículos automóveis apresentados pelo R. à A., esta interessou-se pelo “LA”, que acabou por adquirir;
f) – Meses depois, mais concretamente, em Setembro de 2002, a A. deslocou-se à “D.........., S.A.”, representante do fabricante de automóveis de marca Nissan, em .........., a fim de realizar a reparação da bomba de água;
g) – No decurso dessa reparação à bomba de água, foi possível aceder ao “cadastro do veículo” que a A. adquiriu ao R. e, assim, verificou-se que tal veículo, em 20.07.01, já tinha 165.846 kms percorridos, sendo certo que o R. o vendeu à A., em 08.06.02, como tendo, apenas, 108.983 kms;
h) – A A., incrédula com tal facto, dirigiu-se ao stand explorado pelo R. e onde havia adquirido o “LA”, a pedir que lhe fosse dada uma explicação para o facto de, já em 20.07.01, esse veículo ter 165.846 kms percorridos, onde lhe foi comunicado que se estaria perante algum equívoco por parte da empresa representante da marca Nissan, em .........., voltando a confirmar que o veículo tinha percorridos, à data da compra, apenas 108.983 kms;
i) – Se a A., à data da subscrição do documento de declaração de compra e venda do veículo “LA”, soubesse que este, em 20.07.01, já tinha 165.846 kms percorridos, não teria aceite o negócio e a própria viatura;
j) – O R. adquiriu o veículo “LA”, num leilão de salvados, e, depois de reparado e de o submeter à necessária inspecção técnica, que mereceu aprovação, colocou-o à venda, no stand que explora, denominado “E..........”;
k) – A A. dirigiu-se a esse stand, na companhia de um filho, e, de entre diversos veículos que, aí, estavam expostos, optou pela compra do “LA”;
l) – A A. pagou o preço acordado e, de imediato, tomou posse do identificado veículo;
m) – A A., em 08.06.02, assinou o documento nº1, junto aos autos com a contestação (Neste doc., em síntese, a, ora, A. e compradora declarou assumir qualquer responsabilidade relacionada com o veículo adquirido – incluindo a relativa à respectiva destruição/danificação – enquanto o mesmo não se encontrar registado em seu nome, bem como prescindir do prazo e renunciar aos direitos consignados nos arts. 4º e 12º, da Lei nº 24/96, de 31.07, “assumindo toda a responsabilidade pelo estado em que a viatura...lhe foi entregue pelo vendedor”);
n) – A A. apenas adquiriu o veículo “LA” porque o R. lhe assegurou, quer o seu bom estado, quer os kms que ostentava (108.983).
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3 – Como é bem sabido, são as conclusões formuladas pelo recorrente que, em princípio (exceptuando as meras razões de direito e as questões de oficioso conhecimento), delimitam o âmbito e objecto do recurso (Cfr. arts. 660º, nº2, 664º, 684º, nº3 e 690º, nº1, todos do CPC).
Assim, a questão suscitada pela apelante e que demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso consiste em saber se à mesma deve ser reconhecido o direito à anulação do contrato de compra e venda discutido nos autos, com a inerente restituição do por si prestado ao R. – apelado.
Vejamos:
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4 – I – Dispõe-se, além do mais, no art. 913º, nº1, do CC – como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados – que “Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize..., ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor..., observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos arts. seguintes”.
Paralelamente, e não existindo disposição de sinal contrário nos sequentes arts. 914º a 922º, estatui-se no art. 905º (inserido na tal “secção precedente”) que “Se o direito transmitido estiver sujeito a alguns ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, o contrato é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade”.
E, no art. 251º, preceitua-se que “O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do art. 247º”. Neste se estatuindo que “Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.
Finalmente, têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece (art. 287º, nº1), tendo a anulação do negócio efeito retroactivo, com a inerente obrigação de restituição do que houver sido prestado (art. 289º, nº1). Importando, ainda, acentuar que, por não arguida pelo R. e se mostrar estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, não se legitima o conhecimento de eventual caducidade do direito, judicialmente, exercitado pela A. (arts. 287º e 333º).
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II – Não obstante a A. haver subsumido a respectiva alegação à ocorrência de dolo por parte do R. – vendedor, não está o Tribunal impedido de operar tal subsunção jurídica, não já à verificação do mencionado dolo, mas, antes, à ocorrência de erro por parte da A. – compradora e incidente sobre os motivos determinantes da respectiva vontade quanto ao objecto do negócio. Com efeito, nos termos do disposto no art. 664º do CPC e como bem salienta a apelante, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”, desde que só se sirva dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no art. 264º (que ao caso não interessa).
Isto dito, temos para nós como apodíctico que assiste à A. o direito exercitado através da propositura da presente acção.
Na realidade, não sofre dúvida que o veículo adquirido pela A. tinha, já, à data (08.06.02) da respectiva aquisição por esta, pelo menos, 165.846 kms percorridos, em vez dos assegurados 108.983 kms, o que constitui um vício que desvaloriza, indubitavelmente, o veículo adquirido, em termos objectivos, para além de consubstanciar a venda de coisa que não tinha as qualidades asseguradas pelo vendedor, com repercussão directa no estado da coisa vendida (art. 913º, nº1).
Paralelamente, a A. só adquiriu o mesmo veículo porque, erradamente, confiou no seu bom estado e kms pelo mesmo, até então, aparentemente, percorridos (Cfr. al. i) de 2 supra).
Finalmente, o R. – apelado conhecia, perfeitamente, ou, pelo menos, não devia ignorar a essencialidade, para a declarante - A., do elemento – estado e kms, até então, percorridos pelo veículo adquirido – sobre que incidiu o respectivo erro. Bastando, para tanto, trazer à colação o facto provado e acolhido em n) de 2 supra, para onde se remete.
Ou seja, presentes se mostram todos os requisitos condicionantes do exercício, pela A., do respectivo direito a obter, judicialmente, a anulação do questionado negócio, com referência ao preceituado nos já mencionados arts. 913º, nº1, 905º, 251º e 247º, com a implicação constante do art. 289º, nº1, por si sós determinantes da procedência da respectiva pretensão.
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III – Mas esta sempre teria de ser acolhida, judicialmente, com base na invocação e aplicação ao caso do regime (mais favorável) constante da denominada Lei de Defesa do Consumidor, na redacção da Lei nº 24/96, de 31.07, ao caso dos autos aplicável, em tal versão. Com efeito, para os fins prosseguidos por tal Lei considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios (Cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas” – Conformidade e Segurança – do Prof. João Calvão da Silva, págs. 111). Condicionalismo este, sem dúvida, ocorrente, no caso configurado nos autos.
Ora, nos termos do disposto no art. 12º, nº1, da mencionada Lei nº 24/96, na assinalada redacção aqui operante, “O consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato”. Sendo que esta última faculdade – reconhecida ao consumidor adquirente em concorrência electiva com as demais (Cfr. Prof. João Calvão da Silva, in “Obra citada”, págs. 120) – se equipara, em princípio e quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (Cfr. art. 433º).
Finalmente, e apelando, de novo, ao autor e obra citados (Págs. 123), deve sublinhar-se...”o carácter injuntivo dos direitos – os quatro direitos primários e o direito secundário de indemnização –, em nome da ordem pública de protecção ou ordem pública social, irrenunciáveis, portanto, ex ante pelo consumidor, considerando a lei nula qualquer convenção ou cláusula contratual que exclua ou restrinja esses direitos – nulidade atípica, apenas invocável pelo consumidor (art. 16º da Lei nº 24/96)”. Sendo, pois e neste aspecto, desprovida de qualquer eficácia jurídica a declaração contrária emitida pela A. e constante do documento aludido em m) de 2 supra.
Tudo conduzindo pois, à procedência, nos termos expostos, das conclusões formuladas pela apelante.
5 – Em face do exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que, revogando-se a sentença recorrida, se declara anulado o contrato de compra e venda mencionado nos autos, condenando-se o R. a restituir à A. a quantia de € 8.500,00, acrescidos dos respectivos juros de mora, à taxa legal, desde 22.12.03 (data da citação do R.) até integral pagamento.
Custas, em ambas as instâncias, pelo R. – apelado.
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Porto, 27 de Junho de 2005
José Augusto Fernandes do Vale
António Manuel Martins Lopes
Rui de Sousa Pinto Ferreira