MÚTUO BANCÁRIO
PROVA POR ESCRITO PARTICULAR
FORMALIDADE AD SUBSTANTIAM
NULIDADE
RESTITUIÇÃO DO CAPITAL
JUROS DE MORA
Sumário

1.–Não tendo a ação sido contestada, devem os factos alegados na petição inicial pelo Autor ser tidos por confessados, nos termos do Art. 567.º n.º 1 do C.P.C., independentemente de considerações de natureza jurídica sobre a validade formal do negócio aí alegado como fazendo parte da causa de pedir.

2.–Resultando provado, nos termos do Art. 567,º n.º 1 do C.P.C., que o Autor, um banco, concedeu ao Réu €17.956,72, depositando esse montante na conta bancária do mutuário, ficando este obrigado a reembolsar esse valor até 21/3/1999, com uma taxa de juros de 10,5% e sobretaxa de 2%, estabeleceu-se um negócio jurídico de facto que é configurável como um contrato de mútuo bancário, nos termos do Art. 1142.º do C.C. e Art.s 362.º a 365.º e 394.º a 396.º do Cód. Comercial.

3.–Nos termos do artigo único do Decreto n.º 32.765, de 29 de Abril de 1943, os contratos de mútuo, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda que a outra parte não seja comerciante.

4.–A forma escrita exigida para esse tipo de contrato constitui uma formalidade “ad substantiam”, que não pode ser substituída por qualquer outra com força probatória inferior.

5.–Não tendo o Autor feito prova, apesar de convidado para tal, de que esse contrato foi celebrado sob a forma escrita, o contrato é nulo (Art. 220.º do C.C.), o que é de conhecimento oficioso (Art. 286.º do C.C.).

6.–Por força do Assento do STJ n.º 4/95: «Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no número 1 do artigo 289º do Código Civil».

7.–Em consequência, deveria o Réu sempre ser condenado a restituir o capital “mutuado” (Art. 289.º n.º 1 do C.C.), acrescido de juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações civis, contados desde o termo estipulado para o “contrato de mútuo”, porquanto, independentemente da invalidade desse contrato e da própria estipulação do termo, o devedor estava ciente que nessa data estaria de facto sempre obrigado a restituir o capital, sem necessidade de qualquer interpelação (Art. 805.º n.º 2 al. a) o C.C.).

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



IRELATÓRIO


O Novo Banco, S.A. veio intentar a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra B, pedindo a condenação do R. a pagar-lhe a quantia total de €94.024,93, sendo €17.956,72, correspondentes a capital, e €76.068,21, correspondentes a juros vencidos e contabilizados até 10/08/2021, tudo acrescido de juros às taxas por si indicadas, contados desde 10/01/2021 e sobre o capital de €17.956,72, até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alega que, em 21-8-1998, o Banco Espírito Santo, S.A., a quem sucedeu o A., celebrou com o R., um contrato de mútuo no montante de 17.956,72 Euros, que foram creditados na conta do R. e que este se obrigou a reembolsar até 21-3-1999. Esse reembolso não se veio a verificar, apesar das insistências do A.. Pelo que, desde aquela data, o R. está obrigado a pagar ao A. aquele montante, com juros remuneratórios convencionados à taxa anual de 10,500% e sobretaxa de 2%.

Citado, o R. não contestou, tendo os factos alegados na petição inicial sido julgados por confessados e logo de seguida ordenado o cumprimento do disposto no Art. 567.º n.º 2 do C.P.C. (cfr. “Despacho” de 18-10-2021 - Ref.ª n.º 133278524 - p.e.).

No entanto, por despacho de 16 de fevereiro de 2022 (Ref.ª n.º 135466542 - p.e.), foi determinada a notificação do A. para juntar aos autos o documento escrito comprovativo do alegado contrato de mútuo, tendo o A. respondido, por requerimento de 27 de abril de 2022 (Ref.ª n.º 20942390 - p.e.), que não lhe tinha sido possível localizar esse documento.

Nessa sequência, por despacho de 11 de maio de 2022 (Ref.ª n.º 137329677 – p.e.), foi determinada a notificação do A. para o advertir de que, se nada mais fosse comunicando no prazo de 10 dias, os autos prosseguiriam os seus termos com a prolação de sentença, tendo o A. respondido, por requerimento de 26 de maio de 2022 (Ref.ª n.º 21144390 – p.e.), que se conformava com o prosseguimento dos autos para prolação da sentença.

Foi assim que veio a ser proferida sentença que, julgando não poder dar por assente que havia sido celebrado um contrato de mútuo, por falta de prova documental por escrito, nem que consequentemente houve incumprimento pelo R., veio a julgar a ação improcedente por não provada, absolvendo o R. do pedido.

É dessa sentença que o A. vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
I–Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. (…) que decidiu julgar a “ação improcedente e, em consequência, absolver o Réu do pedido”, porquanto “não se mostrando junto aos autos qualquer escrito a titular o invocado contrato de mútuo celebrado entre o Autor e o ora Réu; celebração, essa (do contrato de mútuo, por escrito) que sequer se mostra alegada pelo Autor, não pode o Tribunal, dar como assente a celebração de tal contrato escrito; e não pode, consequentemente, concluir pelo incumprimento de tal contrato escrito, pelo Réu, fazendo recair sobre este as consequências do incumprimento.”
II–O Recorrente não se conforma com a decisão a quo,por entender que, a prova documental produzida nos autos, impunha distinta resposta à matéria de facto e, consequentemente, distinta decisão de facto e de direito.
III–Na perspetiva do Recorrente, a reapreciação/reponderação da matéria de facto conduzirá a diferente conclusão quanto à procedência das presentes oposições.

IV– Assim, desde logo, para efeitos do disposto no artigo 640º do CPC, o Recorrente não se conforma que, não tenha sido fixada matéria de facto e nessa sequência não tenha sido dado como provados os seguintes factos:
1–No exercício da sua atividade, em 21/8/1998 o A. entregou ao R. a quantia de 17.956,72€, que este se comprometeu a restituir em prestações mensais e sucessivas de capital e juro, visando a ulterior contratação de um crédito à habitação para aquisição de imóvel.
2–Para ser pago até 21/03/1999.
3–Ficou estipulado que a taxa de juro anual é de 10,500%, acrescida de sobretaxa de mora em caso de incumprimento.
4–Em cumprimento do acordado, o valor mutuado foi, pelo Autor, colocado à disposição do Réu por crédito na conta do mesmo, com o n.º 2... .... ...1.
5–Todavia o R., apesar das insistências do A., absteve-se de pagar a prestação que era devida em 21/02/1999.
6–Situação que se manteve até ao respetivo termo do contrato – 20/03/1999.
7–A partir da indicada data, ficou o R. obrigado a pagar ao Autor a integralidade do seu saldo credor emergente do identificado contrato.

V–Com efeito, na sua petição inicial o A., ora Recorrente, aduziu a seguinte factualidade:
a)-No exercício da sua atividade bancária, o A., ora Recorrente, celebrou com o R., aos 21/08/1998, um contrato de mútuo no montante de €17.956,72 (dezassete mil novecentos e cinquenta e seis euros e setenta e dois cêntimos), visando a ulterior contratação de um crédito à habitação para aquisição de imóvel, o qual foi efetivamente creditado na conta à ordem n.º 2... .... ...1, de que o R. é titular junto do A..
b)-E que o R. se obrigou a reembolsar ao A, ora Recorrente, até 21/03/1999.
c)-Mais, foi convencionado que o capital mutuado venceria juros à taxa anual de 10,500% .
d)-Todavia, e apesar das insistências do A., o R. absteve-se de pagar a prestação que era devida em 21/02/1999.
e)- Situação que se manteve até ao respetivo termo do contrato - 21/03/1999.
f)-Consequentemente, a partir da indicada data, ficou o R. obrigado a pagar ao Novo Banco S.A. a integralidade do seu saldo credor emergente do identificado contrato.
g)-O capital em dívida emergente do indicado contrato é, portanto, de €17.956,72 (dezassete mil novecentos e cinquenta e seis euros e setenta e dois cêntimos).
h)-Ao montante de capital acrescem juros remuneratórios à taxa de 10,500%, acrescida da sobretaxa de mora de 2% que, calculados até 10/08/2021, perfazem o montante de €76.068,21 (setenta e seis mil sessenta e oito euros e vinte e um cêntimos).

VI–E juntou dois documentos: como doc. 1 a ficha alusiva ao contrato, da qual consta a descrição dos seus elementos, e como doc. 2 o respetivo extrato bancário.
VII–O A., ora Recorrente, não juntou o documento alusivo ao contrato, porquanto não o localizou, pese embora os esforços encetados no sentido da sua localização; o que informou os autos.
VIII–O R. regularmente citado, não contestou a ação.
IX–Fruto da revelia, operou a confissão dos factos, contudo, no entender do tribunal a quo, com efeito um cominatório semipleno.
X–Com o que o Recorrente não se conforma.
XI–No seu entender, os documentos juntos à petição inicial têm a virtualidade de provar a factualidade que deles se extrai.
XII–O doc. 1 consubstancia a ficha do contrato objeto dos autos, da qual consta, designadamente, o nome do mutuário, aqui R., o número do contribuinte fiscal, o número da conta D/O, o fim do empréstimo, a data da sua concessão, o montante mutuado, o prazo, o dia de cobrança, a taxa de juro, a data de pagamento da última prestação e o termo do contrato.
XIII–Já o doc. 2 é o extrato bancário, do qual consta, nomeadamente, a identificação da conta D/O, o nome do mutuário, aqui R., a data do extrato, o valor disponibilizado a título de crédito individual, e saldo em dívida na respetiva conta D/O.
XIV–Logo, o Recorrente cumpriu a forma escrita a que alude o art.º único do Dec. Lei n.º 32.765, de 29 de abril de 1943.
XV–De outro modo, tais documentos que não foram impugnados, sendo que o próprio tribunal a quo não declarou a sua falsidade.
XVI–Pelo que, os mesmos têm eficácia probatória.
XVII–Aqui chegados, conforme resulta do preceituado no Art. 1142º do Cód. Civil o mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
XVIII–O A., ora Recorrente, fez prova cabal do mútuo invocado como causa de pedir, ou seja, fez prova não só da entrega da quantia mutuada (cfr. o doc. 2 junto à petição inicial), mas, ainda, que essa quantia, teria que ser restituída/reembolsada (cfr. o doc. 1 junto à petição inicial).
XIX–Da prova produzida e da revelia operada, resulta, assim, que a quantia de €17.956,72 havia sido entregue a título de empréstimo e que, correlativamente, o R. obrigou-se a restituir o equivalente ao que havia recebido a esse título.
XX–Ora, sendo assim, ter-se-á de concluir que, ao contrário do que sustenta a 1.ª Instância, se mostram reunidos e demonstrados pelo A. os elementos constitutivos do contrato de mútuo.
XXI–Deste modo, cumpre fixar a matéria de facto, constante do ponto IV das presentes conclusões.
XXII–Por seu lado, não ficou sequer demonstrado qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do A., ora Recorrente, sendo certo que era ao R. que incumbia o ónus de o provar (artº 342º nº 2 do Código Civil).
XXIII–Com efeito, o ónus de prova destes factos (impeditivos, modificativos ou extintivos) pertence à parte contra quem é invocada a existência de um determinado direito.
XXIV–Pelo exposto, encontram-se reunidos todos os pressupostos legalmente previstos para ser reconhecido o direito do A., aqui Recorrente.
XXV–Caso assim não se entenda, deve ser ordenada a baixa dos autos à 1.ª Instância para efeitos de realização de julgamento, a fim de, ali, as testemunhas esclarecerem, ou não, a prova escrita junta pelo Autor à sua petição inicial.
XXVI–Subsidiariamente, sempre se diga que, atenta a ausência do documento que consubstancia o contrato propriamente dito, a sanção a aplicar sempre seria a sua nulidade (e não a sua inexistência) (Art. 220.º, ex vi do Art. 1143.º, do CC), com as consequências impostas pelo Art. 289.º, n.º 1, do mesmo Código
XXVII–Com efeito, resultou provado - por documento e por confissão - que, a quantia referida de €17.957,72 havia sido entregue – rectius transferidas – pelo A., a título de empréstimo, ao R. e que este se havia obrigado a restituí-la.
XXVIII–De outro modo, estar-se-ia a gerar uma situação de enriquecimento sem causa (como erradamente fez o tribunal a quo), proibida atento o regime dos Art.ºs 473.º e ss. do CC.
XXIX–Merece, portanto, censura a decisão impugnada, que deverá ser alterada.
XXX–Violou, pois, a douta sentença recorrida o disposto no artigo 342º do CC, 1142º do CC e artigo único do Dec. Lei n.º 32.765 de 29 de Abril de 1943.

XXXI–Pelo que, deve proceder o presente recurso, sendo alterada a decisão sobre a matéria de facto, dando-se como provada a seguinte factualidade e decretando-se, nessa conformidade, a procedência da ação:
1–No exercício da sua atividade, em 21/8/1998 o A. entregou ao R. a quantia de 17.956,72€, que este se comprometeu a restituir em prestações mensais e sucessivas de capital e juro, visando a ulterior contratação de um crédito à habitação para aquisição de imóvel.
2–Para ser pago até 21/03/1999.
3–Ficou estipulado que a taxa de juro anual é de 10,500%, acrescida de sobretaxa de mora em caso de incumprimento.
4–Em cumprimento do acordado, o valor mutuado foi, pelo Autor, colocado à disposição do Réu por crédito na conta do mesmo, com o n.º 2... .... ...1.
5–Todavia o R., apesar das insistências do A., absteve-se de pagar a prestação que era devida em 21/02/1999.
6– Situação que se manteve até ao respetivo termo do contrato – 20/03/1999.
7–A partir da indicada data, ficou o R. obrigado a pagar ao Autor a integralidade do seu saldo credor emergente do identificado contrato.

XXXII–Nestes termos e nos demais de direito, deve, então, o R. ser condenado a pagar ao A. a quantia total de: €94.024,93 (€17.956,72, correspondente a capital e €76.068,21, correspondentes a juros vencidos contabilizados até 10/08/2021), acrescido dos juros às taxas supra indicadas contados desde 10/01/2021 sobre o capital de € 17.956,72, até efetivo e integral pagamento.
XXXIII–Quando menos, deve ser ordenada a baixa dos autos à 1.ª Instância para efeitos de realização de julgamento, a fim de, ali, as testemunhas esclarecerem, ou não, a prova escrita junta pelo Autor à sua petição inicial.
XXXIV–Subsidiariamente, dever-se-á ordenar a restituição da quantia entregue ao R., acrescido dos concernentes juros, ao abrigo do Art. 220.º, ex vi do Art. 1143.º, do CC, com as consequências impostas pelo Art. 289.º, n.º 1, do mesmo Código.
Pede assim a procedência do recurso e, em consequência, ser alterada a decisão da matéria de facto, dando-se como provados os factos supra indicados e, consequentemente, ser a sentença substituída por outra que decrete a procedência da ação. Ou, pelo menos, que seja ordenada a baixa dos autos à 1.ª Instância para efeitos de realização de julgamento, a fim de, ali, as testemunhas esclareçam a prova junta pelo A. à sua petição inicial. Subsidiariamente, pede que se ordene a restituição da quantia entregue ao R., acrescido dos concernentes juros, ao abrigo do Art. 220.º, ex vi do Art. 1143.º do C.C., com as consequências impostas pelo Art. 289.º n.º 1 do mesmo Código.

Não foi apresentada resposta a este recurso.
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II–QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).

Assim, em termos sucintos, as questões essenciais a decidir são as seguintes:
a)-A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
b)-A anulação do julgamento constante da sentença, com vista à produção de prova;
c)-A existência do contrato de mútuo e da dívida dele emergente; e subsidiariamente:
d)-A nulidade do contrato de mútuo e suas consequências.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso não considerou provada qualquer matéria de facto e essa é precisamente uma das questões suscitadas na presente apelação.

Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV–FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1.–Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Conforme foi sumariado no relatório do presente acórdão, o A. instaurou a presente ação de condenação alegando que havia sido celebrado um contrato de mútuo com o R., que assim recebeu a quantia de €17.956,72, que foi creditada na sua conta, ficando aquele obrigado a reembolsar esse valor, até 21-3-1999, com juros remuneratórios de 10,500% e sobretaxa de 2%.

O R. não contestou a ação, apesar de regularmente citado para o efeito. Pelo que, com esse fundamento, ao abrigo do Art. 567.º n.º 1 do C.P.C., os factos alegados na petição foram inicialmente julgados por confessados, por despacho de 18 de outubro de 2021 (Ref.ª n.º 133278524 – p.e.). No entanto, porque o A. não juntou prova documental que comprovasse a celebração por escrito do contrato de mútuo que alegou, apesar de convidado para esse efeito, veio a ser proferida sentença na qual se expressou o entendimento de que, nessas condições, não se poderia dar por assente sequer que foi celebrado um contrato de mútuo, uma vez que não foi observada a formalidade ad substantiam constante do Artigo único do Dec.Lei n.º 32.765, de 29 de abril de 1943.

O A., aqui Recorrente, não concorda com este julgamento, considerando que deveriam ter sido julgados por provados todos os factos alegados na petição inicial.
E, adiante-se desde já, que o faz com toda a razão.
A sentença acabou por confundir os processos decisórios em causa, não separando as razões próprias relativas à convicção estabelecida para a fixação da matéria de facto, com razões de natureza substantiva relativas à validade formal do contrato celebrado, desconsiderando o efeito cominatório estabelecido no Art. 567.º n.º 1 do C.P.C., assente na “confissão legal ficta” de todos os factos alegados na petição inicial, por força da sua não contestação por parte daquele a quem os mesmos foram opostos.
Em primeiro lugar, há que ter em atenção que há um conjunto de factos alegados na petição inicial, igualmente não impugnados, que nada têm sequer a ver com a forma do contrato e que poderiam, e deveriam ser dados por assentes.

É esse o caso dos seguintes factos:
1.º–O que foi alegado no artigo 1.º da petição, nos seguintes termos: «O Conselho de Administração do Banco de Portugal, deliberou, no dia 03 de Agosto de 2014, aplicar ao Banco Espírito Santo S.A., uma medida de resolução, mediante a qual “a generalidade da atividade e do património do Banco Espírito Santo S.A., é transferida, de forma imediata e definitiva, para o Novo Banco S.A.”.
2.º–E, ainda o artigo 3.º da petição, onde se pode ler: «O NOVO BANCO S.A., tem por objeto social a “administração dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos do Banco Espírito Santo S.A., para o NOVO BANCO S.A., e o desenvolvimento das atividades transferidas (…) com objetivo de permitir uma posterior alienação dos referidos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito.”- cfr. certidão permanente com o código de acesso 5702-3835-4874 in www...............pt.

Em segundo lugar, seguem-se depois os factos relativos ao contrato de mútuo propriamente dito.

Assim, no artigo 6.º da petição foi alegado textualmente o seguinte: «Aos 21/08/1998, A. e R. celebraram um contrato de mútuo no montante de €17.956,72 (dezassete mil novecentos e cinquenta e seis euros e setenta e dois cêntimos), visando a ulterior contratação de um crédito à habitação para aquisição de imóvel, o qual foi efetivamente creditado na conta à ordem n.º 2... .... ...1, de que o R. é titular junto do A. cfr. documentos n.ºs 1 e 2 que se juntam e se dão por reproduzido para os devidos efeitos legais.

No artigo 7.º foi alegado: «E que o R. se obrigou a reembolsar ao A, até 21/03/1999».
No artigo 8.º foi alegado: «Mais, foi convencionado que o capital mutuado venceria juros à taxa anual de 10,500% - idem, doc. 1»
No artigo 9.º é invocado ainda que: «(…) apesar das insistências do A., o R. absteve-se de pagar a prestação que era devida em 21/02/1999». Acrescentando no artigo 10.º que: «Situação que se manteve até ao respetivo termo do contrato - 21/03/1999».

Dito isto, refira-se ainda que, em momento algum, foi alegado na petição inicial que o contrato de mútuo foi celebrado por escrito. Pelo que, para efeitos de apreciação valorativa estritamente fáctica, não vemos qualquer razão para que não fiquem dados provado, porque admitidos por acordo, todos estes factos agora reproduzidos, assentes na alegação desta concreta relação jurídica estabelecida entre as partes, nas transmissões patrimoniais consideradas e demais condições estabelecidas, independentemente de o “contrato” não ter sido formalizado por documento escrito assinado pelas partes. Pelo menos sempre teríamos de concluir que uma “relação de facto” existiu e ela foi admitida por acordo, independentemente doutras razões de natureza jurídica, que por ora ainda não interessariam considerar.
Nestas condições, o Tribunal da Relação poderia sempre, mesmo que oficiosamente, operar este tipo de alterações à matéria de facto, nos termos do Art. 662.º n.º 1 do C.P.C., fundada exclusivamente em “erro de julgamento” por deficiente interpretação do Art. 567.º n.º 1 do C.P.C..

Assim devem efetivamente ser dados por assentes os seguintes factos, tendo em atenção o disposto no Art. 567.º n.º 1 do C.P.C.:
1–O Conselho de Administração do Banco de Portugal, deliberou, no dia 3 de Agosto de 2014, aplicar ao Banco Espírito Santo S.A., uma medida de resolução, mediante a qual “a generalidade da atividade e do património do Banco Espírito Santo S.A., é transferida, de forma imediata e definitiva, para o Novo Banco S.A.”. (Por referência ao alegado no artigo 1.º da petição inicial);
2–O Novo Banco, S.A., tem por objeto a “administração dos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão transferidos do Banco Espírito Santo S.A., para o Novo Banco, S.A., e o desenvolvimento das atividades transferidas, com objetivo de permitir uma posterior alienação dos referidos ativos, passivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão para outra ou outras instituições de crédito.”- cfr. certidão permanente com o código de acesso 5702-3835-4874 in www.................pt. (Por referência ao alegado no artigo 3.º da petição inicial);
3–Aos 21/08/1998, A. e R. acordaram no mútuo do montante de €17.956,72, visando a ulterior contratação de um crédito à habitação para aquisição de imóvel, o qual foi efetivamente creditado na conta à ordem n.º 2612 6518 0001, de que o R. é titular junto do A. - cfr. documentos n.ºs 1 e 2 que se juntam e se dão por reproduzido para os devidos efeitos legais. (Por referência ao alegado no artigo 6.º da petição inicial);
4–O R. obrigou-se a reembolsar esse valor ao A. até 21/3/1999 (Por referência ao alegado no artigo 7.º da petição inicial);
5–Ficou acordado que o capital mutuado venceria juros à taxa anual de 10,500% - idem, doc. 1 (Por referência ao alegado no artigo 8.º da petição inicial);
6–Apesar das insistências do A., o R. absteve-se de pagar em 21/02/1999, situação que se manteve até 21/3/1999 (Por referência ao alegado nos artigos 9.º e 10.º da petição inicial).

É nestes termos que julgamos dever proceder a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

2.–Da anulação do julgamento para produção de prova.
O Recorrente veio sustentar que, de todo o modo, deveria ser-lhe dada oportunidade de fazer prova dos factos que alegou em audiência final. Mas, com o devido respeito, percebendo-se as razões de cautela que estavam subjacente a esta pretensão recursiva, julgamos que, em função do decidido no ponto 1., esta questão está definitivamente prejudicada.
Não faria qualquer sentido produzir prova testemunhal, ou outra, relativamente a factos que deveriam ser dados por assentes, na medida em que não foram especificadamente impugnados e que, por força da lei processual aplicável, deveriam ser dados como confessados por admissão por acordo.

3.–Do contrato de mútuo e da dívida dele emergente.
Fixados os factos relevantes para o conhecimento do mérito da causa, cumpre então debruçarmo-nos sobre as questões de fundo.
Em causa está nesta ação uma alegada dívida emergente de contrato de mútuo bancário.
O contrato de mútuo é definido no Art. 1142.º do C.C. como aquele pelo qual uma das partes empresta à outra, dinheiro ou outra coisa fungível, ficando esta última obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Trata-se, portanto, nos termos da letra da lei, de um contrato real quoad constitutionem, que exige a tradição da coisa mutuada para a constituição do próprio contrato.
É também um contrato unilateral, pois dele emerge uma obrigação principal a cargo apenas do mutuante, que consiste na restituição da coisa mutuada, nas condições convencionadas.

Como referiam Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, vol. II, 4.ª Ed. Revista e atualizada, pág.s 761 a 762): «O mútuo é, de sua natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa pela entrega (empréstimo) da coisa. É o que resulta deste artigo 1142.º. A solução defendida por Vaz Serra (Notas acerca do contrato de mútuo, na Ver. Leg. Jur. Ano 93.º pág.s 65 e segs), da admissibilidade de mútuo consensual, como figura intermédia entre a promessa de mútuo, sujeito ao regime dos artigos 410.º e seguintes, e o mútuo real, não apresenta para o comércio jurídico qualquer interesse prático. Ou se empresta a coisa, ou se promete emprestá-la. No primeiro caso, há um contrato de mútuo; no segundo, um contrato-promessa».

Menezes Leitão (in “Direito das Obrigações - Vol. III – Contratos Em Especial”, 3.ª Ed. Pág. 392), discutindo a questão do mútuo consensual, também escreve: «A tese do cariz consensual do contrato de mútuo contradiz claramente o disposto na nossa lei, que o qualifica como um contrato real quoad constitutionem e não prevê qualquer obrigação de entrega das coisas que constituem o seu objeto. Efetivamente, a definição do mútuo, constante do art. 1142º é idêntica às definições de outros contratos reais quoad constitutionem, como a parceria pecuária (art. 1121º), o comodato (art. 1129º), e o depósito (art. 1185º), afastando-se das fórmulas definitórias dos contratos consensuais, onde se prevê uma obrigação de entrega, como a compra e venda (arts. 874º e 879º b)) e a locação (arts. 1022º e 1031ºb)). As qualificações jurídicas podem ser afastadas pelo intérprete, mas não quando delas resulte a aplicação de determinado regime, como é aqui o caso. (…) O mútuo é assim claramente entre nós um contrato real quoad constitutionem, exigindo a tradição das coisas mutuadas para a sua constituição. Essa tradição não tem, no entanto, que corresponder a uma entrega material das coisas mutuadas, podendo considerar-se suficiente que o mutuante atribua ao mutuário a disponibilidade jurídica das quantias mutuadas, como sucederá, por exemplo, se a soma for creditada na conta-corrente do mutuário.» (No mesmo sentido escreve também Santos Justo in “Manual de Contratos Civis”, pág. 357).

Mas outros há que entendem que a entrega da coisa mutuada não teria a função de elemento constitutivo do contrato, sendo um mero ato executivo que poderia não ser contemporâneo à celebração do negócio (Vide: Castro Mendes in “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. II, 1985 (1979), pág. 309 a 310). Havendo também quem considere que é admissível o mútuo meramente consensual, ao lado do mútuo real e da promessa de mútuo (neste sentido: Vaz Serra in R.L.J. n.º 93, pág. 65 a 69; Mota Pinto in “Cessão da Posição Contratual”, pág. 13 e ss. em nota e “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 398 a 399; e Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil I – Parte Geral, Tomo I”, 2.ª Ed., pág. 314).

Mas mesmo Menezes Cordeiro, um dos principais autores que defendem a autonomia conceptual do mútuo consensual, parece reconhecer que o contrato de mútuo regulado no Código Civil é um contrato real quoad constitutionem (in “Tratado de Direito Civil” – Vol. XII – pág. 233).

Na mesma linha, Carlos Ferreira de Almeida (in “Contratos II – Conteúdo. Contratos de Troca”, 2012, 3.ª Ed., pág. 137), reconhece que o tipo social regulado no Código Civil comtempla apenas a modalidade real quoad constitutionem, embora ressalve que hoje já ninguém conteste a admissibilidade duma modalidade consensual de mútuo, em que o mutuante se obriga a entregar o capital, numa ou mais prestações.

Assim, o contrato de mútuo, tal como definido no Código Civil, é um contrato unilateral, pois a entrega da quantia mutuada não é uma prestação autónoma, fazendo parte da génese constitutiva do contrato, dele só nascendo obrigações para o mutuário, designadamente a de restituição do valor mutuado.

A possibilidade de existir um contrato de mútuo meramente consensual, ou seja em que a entrega seja estabelecida como uma mera obrigação do mutuante, não está afastada no quadro da autonomia privada e da liberdade de estipulação (Art. 405.º do C.C.), mas isso não depõe quanto à conclusão de que contrato de mútuo regulado no Código Civil é um contrato real quoad constitutionem e, por isso, não há regulação típica para uma obrigação de entrega autónoma.

É isso que vem sendo sustentado pela grande maioria da doutrina, com base não só na raiz histórica desse contrato (vide: A. Santos Justo in “Manual de Contratos Civis – Vertente Romana e Portuguesa”, pág. 357 e ss.), mas também em fundadas razões de necessidade certeza e segurança jurídica (neste sentido, entre outros: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. II, pág. 761 a 762; Galvão Telles in “Manual dos Contratos”, pág.s 464 a 465; e Menezes Leitão in “Direito das Obrigações – Vol. III - Contratos em Especial”, 3.ª Ed. pág.s 388 a 394).

No caso dos autos, em face da factualidade provada, não há dúvida que houve entrega da quantia mutuada por parte do Banco, tendo sido estabelecida a obrigação de restituição da mesma, a cargo do R., em determinado prazo certo e mediante o pagamento de juros remuneratórios.

Estamos assim perante um típico contrato de mútuo bancário, oneroso por natureza, o qual está subordinado ao disposto nos Art. 1142.º e ss. do C.C., Art.s 394.º e ss. do Cód. Comercial e demais legislação avulsa bancária aplicável.

No caso concreto dos autos, sobrelevam muito em particular as regras sobre a forma do contrato de mútuo.

Assim, nos termos do Art. 1143.º do C.C. o contrato de mútuo (civil) de valor superior a 3.000 contos só seria válido se celebrado por escritura pública e o de valor superior a 200 contos se fosse celebrado por documento assinado pelo mutuário. Tudo isto tendo em atenção a redação dada pelo Dec.Lei n.º 163/95 de 3/7, que era a que estava em vigor à data em que foi estabelecida a relação contratual dos autos (em 21/08/1998) – cfr. facto provado 3.

No caso, como o valor mutuado foi de €17.956,72, tal corresponderia a Esc.: 3.600.000$00 (3.600.000$00:200,482=17,956,72). Portanto, estivéssemos nós perante um mútuo civil e este contrato só poderia ter por forma legal uma escritura pública.

No entanto, o Art. 396.º do Cód. Comercial veio estabelecer a regra de que o contrato de empréstimo mercantil, entre comerciantes, seja qual for o seu valor, admite todo o género de prova.

Mas, entre a legislação avulsa bancária aplicável encontra-se, ainda o Dec.Lei n.º 32.765 de 29 de abril de 1943, que no seu artigo único estabelece que: «os contratos de mútuo ou usura, seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda mesmo que a outra parte contratante não seja comerciante».

Conforme escreve Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português - I Parte Geral - Tomo I”, 2.ª Ed., 2000, pág. 376): «A tradição jurídica distingue entre forma ad substantiam e ad probationem. A forma ad substantiam seria exigida pelo direito para a própria consubstanciação do negócio em si; na sua falta, ele seria nulo. A forma ad probationem requerer-se-ia, apenas, para demonstrar a existência do negócio; na sua falta, o negócio não poderia ser comprovado, por o Direito não admitir qualquer outro modo de prova quanto à sua existência.

«A distinção poderia ser redundante, uma vez que o negócio válido, que não pode ser provado por qualquer outra via, ficaria em tudo assimilado ao negócio nulo. O artigo 364.º/2 dá, no entanto, uma certa proteção prática à distinção: quando resulte claramente da lei que uma certa forma é, apenas, ad probationem, é possível demonstrar o negócio atingido “… por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório».

Assim, poderíamos dizer que a letra da lei parece inculcar a ideia de se ter estabelecido uma mera formalidade “ad probationem”, pois fala-se apenas em “podem provar-se” e não “devem ser celebrados” por escrito particular.

Aliás, esse diploma de 1943, no seu considerando terceiro, diz mesmo que por ele se visou «restabelecer a suficiência de documento particular como meio de prova de contratos de mútuo ou usura de estabelecimentos bancários, tenham ou não a natureza de mercantis, sejam ou não comerciantes as outras partes contratantes».

A questão tornou-se então premente, porque havia sido revogado o Art. 150.º § 5.º do Código de Processo Comercial, permitindo-se afastar a exigência de escritura pública para o mútuo superior a determinado montante, prevista então no artigo 1534.º do Código Civil de 1867, correspondente ao atual Art. 1143.º do C.C.C., facilitando-se a prática do mútuo bancário.

A preocupação foi, portanto, não só facilitar a prova, mas também no sentido de se manter alguma certeza e segurança jurídica. Por isso, tem-se vindo a assentar na conclusão de que a prova por documento particular ficou sujeita a um princípio de tipicidade mínima, que não pode ser substituída por outra de valor formal inferior e, nessa medida, o legislador acabou por estabelecer de facto uma formalidade “ad substantiam”.

José Maria Pires (in “Direito Bancário”, vol. 2.º, pág. 205), complementando e até corrigindo Vaz Serra (in RLJ 112.º, pág.s 151 e ss.), entende que o Dec.Lei n.º 32.765 de 29 de abril de 1943 exige a sua celebração por forma escrita, não sendo possível a prova do contrato por outro meio de prova que não tenha força probatória superior, quando em causa estejam contratos de mútuo celebrados por instituição financeira autorizada com não comerciantes e independentemente do seu valor.

Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil”, vol. XII, pág. 244 e in “Direito Bancário”, 1998, pág. 533) também entende que esse diploma exige a forma escrita para os mútuos bancários, a qual se estende, pelas regras gerais, aos seus diversos elementos acessórios.

Calvão da Silva (in “Direito Bancário”, 2001, pág. 361) reconhece a natureza formal do contrato de mútuo bancário, para o qual é suficiente a existência de escrito particular, nos termos do Dec.Lei n.º 32.765 e 29 de abril de 1943.

Veja-se a este respeito, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/5/2011 (Proc. n.º 6684/09.7TVLSB.L1-8 – Relatora: Catarina Arêlo Manso, disponível em www.dgsi.pt), de cujo sumário destacamos: «I-No artigo único do Decreto n.º 32.765, de 29 de Abril de 1943, determina-se que «os contratos de mútuo [...], seja qual for o seu valor, quando feitos por estabelecimentos bancários autorizados, podem provar-se por escrito particular, ainda que a outra parte não seja comerciante».
II-A forma escrita exigida para esse tipo de contrato constitui uma formalidade ad substantiam, que não pode ser substituída por qualquer outra».

Aprofundando esta última ideia, nesse mesmo acórdão é dito ainda na sua fundamentação o seguinte: «Tratando-se, pois, de uma formalidade ad substantiam, não pode esta ser substituída por
qualquer outra.

É pacífica a doutrina e dominante e a jurisprudência no sentido de que o contrato de mútuo bancário tem de ser titulado por escrito particular, não podendo este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior (cf., o acórdão deste STJ de 6.12.78, anotado favoravelmente pelo Prof. Vaz Serra na RLJ 112º, pág. 151 e sgs)».

Por isso, nesse caso concreto decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa nos seguintes termos: «Ora, o apelante foi notificado para juntar o documento que titulava o empréstimo e suas condições. Não o juntou e veio informar que se extraviou. Ora, não o fazendo e exigindo a lei forma escrita, não se pode dar como provado o contrato nos termos requeridos. Nada há escrito pelos réus a pedir o crédito ou a aceitar as condições. Nem temos prova do depósito desse montante no extrato que foi junto. Sendo certo que a existir, faltava o escrito a pedir esse montante e as condições acordadas.
Defende o apelante que não se exige que o mútuo bancário seja celebrado por escrito, exige-se sim que o mesmo se prove por documento escrito. Ora, mesmo admitindo esse entendimento o apelante não juntou qualquer documento escrito onde conste o pedido por banda dos apelados do empréstimo e sem esse documento não se pode aceitar esta posição de modo algum.

«Nem se trata de mero documento probatório que pudesse ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório nos termos do art. 364/2 do CC.

Neste sentido o Ac. do STJ, de Uniformização de 11-10-1994 – O contrato de desconto bancário tem natureza formal, para cuja validade e prova é exigida a existência de um escrito que contenha a assinatura do descontário, embora tal escrito possa ter a natureza de documento particular» (fim de citação).

No caso dos autos a situação é evidentemente semelhante à assim exposta.

Não é certo que alguma vez tenha existido um “contrato escrito”, subsistindo apenas a evidência de que o A. nos confronta com a constatação de que não encontra tal documento, quando foi especificamente notificado para o juntar.

No final, o único documento que o A. juntou aos autos foi uma “ficha de empréstimo” (doc. n.º 1), de difícil leitura, mas da exclusiva autoria do banco, donde consta identificado o R. e são mencionados alguns aspetos do alegado “contrato”, como sejam: o número do empréstimo, o valor mutuado, a taxa de juro, prestações e o termo do prazo. Mas nada do que aí consta é imputável diretamente à autoria ou vontade do R., que não assina esse documento (aliás, tal como o próprio A., que também não o faz).
É certo que o A. ainda juntou um extrato de conta integrado na conta de depósitos à ordem do R. (doc. n.º 2), mas trata-se de mais um documento elaborado exclusivamente pelo Banco, que pode servir de princípio de prova de que o dinheiro mutuado terá sido disponibilizado pela A. ao R.. No entanto, diga-se, que o facto desse dinheiro ter sido efetivamente disponibilizado já está assente neste processo, porque foi admitido por acordo, por força do Art. 567.º n.º 1 do C.P.C..

Desta prova documental, e dos factos admitidos por acordo, só resulta a conclusão de que existe um crédito, emergente da disponibilização monetária que o A. fez por depósito em conta à ordem em nome do R., mas o contrato, propriamente dito, não se mostra celebrado sequer por escrito particular, não havendo efetiva prova de que tenha sido cumprida essa formalidade ad substantiam.

Em suma, não há prova de que o R. tenha pedido, ou sequer que tenha aceito, um contrato de mútuo nos termos que constam da “ficha de empréstimo” junta como documento n.º 1 com a petição inicial.

Assim sendo, em face dos elementos disponíveis nos autos, efetivamente, não poderia ser o R. condenado a reembolsar o empréstimo, nas condições alegadamente acordadas, porque essa pretensão funda-se em contrato formalmente nulo (cfr. Art. 220.º do C.C. conjugado com o artigo único do Dec.Lei n.º 32.765 e 29 de abril de 1943). Vício que é de conhecimento oficioso (Art. 286.º do C.C.), sendo que o A. foi notificado a fazer prova do cumprimento dessa forma legal, e não o fez, conformando-se, aliás, com essa contingência.

Foi precisamente com estes argumentos que a sentença recorrida entendeu absolver o R. do pedido, porque não tinha como demonstrável o incumprimento do mutuário, em face dos indícios de que não teria sido celebrado qualquer contrato de mútuo.
Por nós limitamo-nos a concordar apenas com a verificação no caso duma situação típica de nulidade formal do contrato de mútuo bancário, por falta de observância da forma legal estabelecida no Artigo único do o Dec.Lei n.º 32765 de 29 de abril de 1943. Consequentemente, por força dos Art.s 220.º e 286.º do C.C., sendo esse contrato inválido, dele não podem emergir qualquer possibilidade de exigibilidade de cumprimento, porquanto todas as suas disposições contratuais são nulas. Só nesta estrita medida concordamos com a sentença recorrida, não podendo a ação proceder nos estritos termos como a mesma foi configurada na petição inicial.

4.–Da nulidade do mútuo e suas consequências.
Sucede que, o Apelante chama muito justamente a atenção para o facto de que, mesmo sendo nulo o contrato, daí não decorreria a necessária improcedência total da ação, porquanto sempre haver de ter em consideração o disposto no Art. 289.º do C.C. e o A. teria direito a receber tudo o que foi prestado, pelo menos segundo as regras do enriquecimento sem causa.

Só podemos concordar com esta posição.

De facto, nos termos do Assento do STJ n.º 4/95: «Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no número 1 do artigo 289º do Código Civil».

Assim, por força desse Assento, a obrigação de restituição do capital mutuado sempre existirá, ao abrigo do Art. 289.º n.º 1 do C.C., não se justificando, por razões de celeridade e economia processual, obrigar o A. a ter de deitar mão a nova ação declarativa para obter essa prestação, que sempre seria devida.

Não pode é o A. exigir, neste quadro legal, o pagamento de juros remuneratórios à taxa de 10,5%, nem a sobretaxa de 2%, porque essas estipulações contratuais são nulas, por incumprimento da forma legal de todo o contrato de mútuo (Art.s 220.º e 286.º do C.C.).

A obrigação de restituição do capital existe, mas porque o R. deve restituir tudo o que recebeu com base em contrato inválido (cfr. Art. 289.º n.º 1 do C.C.), podendo ainda aquele ficar obrigado a restituir todos os benefícios que recebeu na medida do enriquecimento injustificado verificado na sua esfera jurídica (Art. 289.º n.º 2 do C.C.).

Veja-se que, quanto à obrigação de juros, ela também sempre teria de ser formalizada por escrito (cfr. Art. 102.º § 1.º e § 2.º do Cód. Comercial, que remete para o Art. 559.º do C.C.). De facto, a estipulação de juros a taxas superiores à legal, se não for estabelecida por acordo escrito, implica que apenas sejam devidos juros (civis) legais (Art. 559.º n.º 2 do C.C.).

Mas, sendo as convenções relativas a juros remuneratórios e sobretaxa nulas, por falta de forma legal, apenas poderão estar agora em causa juros de mora legais relativos ao atraso no cumprimento da obrigação de restituição de tudo o que o R. recebeu por força de contrato nulo (cfr. Art.s 289.º, 804.º, 805.º, 806.º e 559.º do C.C.).

No que se refere ao “dies a quo” a partir do qual deverá ser considerada a mora do devedor, julgamos que, apesar da nulidade formal do mútuo bancário abranger igualmente a estipulação do “termo” do contrato, entendemos ter de relevar que, pelos menos em termos de “relação jurídica de facto”, o R. estava ciente que tinha de restituir a quantia que lhe havia sido creditada em sua conta no dia 21/3/1999 (cfr. facto provado 4), independentemente de qualquer interpelação para esse efeito.

Assim sendo, julgamos que se deve considerar a existência de mora a partir de 21/3/1999, independentemente de interpelação ou da validade formal da cláusula que fixou o termo do mútuo (cfr. Art. 805.º n.º 2 al. a) do C.C.).

Em suma, concordamos com as conclusões que sustentam que a sentença recorrida deveria ser revogada, devendo a decisão de absolvição do R. do pedido ser substituída pela decisão de julgar a ação parcialmente procedente por provada, condenando o R. a restituir ao A. a quantia de €17.956,72, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde o dia 21/3/1999 até integral pagamento, sendo à taxa de 10% até 16/4/1999 (Portaria n.º 1.171/95 de 25/09), à taxa de 7% desde 17/4/1999 até 30/4/2003 (Portaria n.º 263/99 de 12/4) e à taxa de 4% desde 1/5/2003 (Portaria n.º 291/2003 de 8/4).

VDECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, por provada, fixando-se a factualidade provada, tal como constante do ponto 1. do presente acórdão, e revogando a sentença recorrida na parte que absolveu o R. do pedido, a qual é substituída pela decisão de julgar a ação parcialmente procedente por provada, condenando o R. a restituir ao A. a quantia de €17.956,72, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde o dia 21 de março de 1999 até integral pagamento, sendo à taxa de 10% até 16/4/1999 (Portaria n.º 1.171/95 de 25/09), à taxa de 7% desde 17/4/1999 até 30/4/2003 (Portaria n.º 263/99 de 12/4) e à taxa de 4% desde 1/5/2003 (Portaria n.º 291/2003 de 8/4). Absolvemos o R. do demais pedido.
- Custas por apelante e apelado, na proporção do respetivo decaimento (Art. 527º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).



Lisboa, 25 de outubro de 2022



Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva