DIREITO DE RETENÇÃO
REGISTO DA AÇÃO
REGISTO PREDIAL
RECUSA DE ACTO DE REGISTO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
Sumário

I - Havendo recusa do pedido de inscrição registral, pelo Senhor Conservador, e optando a interessada no mesmo por impugnação hierárquica de tal decisão, indeferido o recurso hierárquico é, ainda, admissível recurso ao outro, tempestivo, meio de impugnação: a impugnação judicial da decisão de qualificação do ato de registo.
II - Sendo taxativo o elenco dos factos jurídicos (relações jurídicas e direitos) sujeitos a registo predial (v. nº1, do art. 2º, do CRP), embora não absolutamente fechado (cfr. al. v) do referido preceito), só é admissível o registo se houver norma a prever seja o facto levado às tábuas (seja inserida no CRP, seja, excecionalmente, em diploma avulso);
III - Tal não afasta a possibilidade de subsunções jurídicas com recurso a interpretação extensiva, se adequada, por justificada e necessária (cfr. art. 9º e segs do CC).
IV - O direito de retenção, um direito real de garantia, atribui ao seu titular a faculdade de executar a coisa imóvel que retém e de ser pago com preferência sobre os demais credores do seu devedor.
V - O direito de retenção é irregistável, pois nem o Código de Registo Predial (arts 2º e 3º) nem lei avulsa preveem o seu registo, que se não se justifica em face do que caracteriza tal direito e dos princípios orientadores que presidem à teoria do registo dos direitos reais, sendo aquele direito, a existir, válido e eficaz, por conferir ao seu titular preferência sobre os demais credores (dada a inerência), sendo oponível erga omnis independentemente de registo (prevalecendo, desde logo, sobre hipoteca levada ao registo - nº2, do art. 759º, do CC).
VI - E não sendo o direito de retenção um facto registável também o não é a ação de reconhecimento de tal direito (cfr. os antecedentes preceitos do CRP).

Texto Integral

Apelação nº 874/21.1T8OBR.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Bairro – Juiz 1

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: Teresa Fonseca

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

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Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: S..., Lda.

S..., Lda., com sede na Rua ..., ..., em Sintra, notificada do despacho da Senhora Presidente do IRN, de 21-10-2021, junto a fls. 23 e seguintes, a indeferir o recurso hierárquico interposto do despacho proferido em 13-04-2021, pela Senhora Conservadora do Registo Civil, Predial e Comercial de Oliveira do Bairro a recusar a inscrição no registo requerida através da apresentação n.º ..., de 1-03-2021, veio, nos termos do preceituado no artigo 142.º, n.ºs 1 e 2, do Código do Registo Predial, a 6-12-2021, apresentar impugnação judicial de tal decisão.
Alega a recorrente que o objeto da impugnação diz respeito ao despacho proferido em 13-04-2021 pela Sra. Conservadora dos Registos Civil, Predial e Comercial de Oliveira do Bairro, que recusou o pedido de inscrição registral por si formulado, através da Apresentação n° ..., de 1/3/2021, pela qual foi pedida a inscrição no registo predial do imóvel sito na Rua ..., ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.° ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., da ação declarativa que intentou contra AA e outros, a qual corre termos sob o processo n.º 2245/21. 0T8SNT, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Cível de Sintra, Juiz 4, tendo aí sido peticionado, entre outros pontos, o reconhecimento do direito de retenção da Recorrente sobre o referido imóvel, o que constitui o fundamento do registo pretendido, nos termos do artigo 2.° n.° 1, alínea v), do CRP.
Desse despacho de recusa foi interposto recurso hierárquico, indeferido por despacho da Exma. Sr. a Presidente do IRN de 21/10/2021, por intempestivo, e a recorrente, não se conformando com a decisão de recusa, por erro de interpretação das disposições legais aplicáveis, traduzindo-se numa preterição ilegal do legítimo interesse da Recorrente em obter a inscrição registral requerida, apresentou-se impugná-lo judicialmente. Discorda a recorrente da decisão da Sr.ª Conservadora que rejeitou o pedido de inscrição registral por si formulado, pela apresentação n.º ... de 1/3/2021, por entender que o direito de retenção representa uma pesada restrição ao direito de propriedade sobre o bem (imóvel, que a Recorrente ocupa, de facto, mas fá-lo a título de arrendatária/locadora de estabelecimento, sendo o título formal e aparente - e, de resto, legítimo - para a ocupação do imóvel o contrato de locação de estabelecimento, mas um outro título concorrente, embora não aparente, é o direito de retenção, enquanto garantia do seu direito à restituição de benfeitorias, nos termos do disposto no artigo 754.° do Código Civil.) que dele é objeto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 2.° n.º 1, alínea v), do CRP.
Na medida em que uma restrição ao direito de propriedade constitui, em si mesma, um elemento relevante da situação jurídica do respetivo bem imóvel, da perspetiva de terceiros interessados, não seria curial extrair do artigo 2.° n.º 1, alínea v), do CRP, que cada uma dessas “restrições”, além de ser como tal qualificável, deva também ser qualificada como um facto registável por um diploma autónomo, sob pena de uma total inutilização do conceito indeterminado presente naquele preceito (“outras restrições ao direito de propriedade").
Conclui a recorrente requerendo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine a inscrição no registo predial, peticionada através da apresentação n.° ..., de 1/3/2021, e se determine a anotação da presente impugnação judicial, termos do disposto no artigo 148.° n.° 1 do CRP.
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A fls. 100 mostra-se junto o despacho de qualificação de 13-04-2021 proferido pela Senhora Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro que recusou o pedido de registo formulado pela recorrente pela apresentação n.º ..., de 1-03-2021, a sustentar:
pedindo a autora que se reconheça o seu direito de retenção sobre o imóvel a título de garantia real de qualquer um dos créditos invocados, não figurando o direito de retenção entre os factos sujeitos a registo enumerados no artigo 2.º do Código do Registo Predial e sendo esta enumeração taxativa, não está sujeito a registo, nem está sujeita a registo a ação que tenha por fim o reconhecimento desse direito”.
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Foi proferida decisão, em 1ª instância, com a seguinte parte dispositiva:
“Em face do exposto, e com base nos fundamentos supra expendidos, julgo a impugnação do despacho de qualificação proferido pela Sr.ª Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, datado de 13-04-2021, que determinou a recusa do registo com a apresentação n.º ..., de 1-03-2021, improcedente, mantendo-se a referida decisão.
Custas pela impugnante.
Notifique e registe.
Comunique à Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro
Cumpra o disposto no artigo 148.º, n.º 2, do CRP”.
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Apresentou a referida S..., Lda., recurso de apelação, pugnando por que o mesmo seja julgado procedente e, em consequência, se:
i) revogue a decisão recorrida, substituindo-a por outra que determine a inscrição no registo predial, peticionada através da apresentação n.º ... de 1/3/2021, referente a imóvel sito na Rua ..., ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., nos termos do disposto no artigo 148.º n.º 4 do CRP;
ii) determine a manutenção da anotação da presente impugnação judicial, nos termos do disposto no artigo 148.º, n.º 1, do CRP, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
D.1) Introdução
I. A presente acção de impugnação diz respeito ao despacho proferido em 13/4/2021 pela Sra. Conservadora dos Registos Civil, Predial e Comercial de Oliveira do Bairro, que recusou o pedido, correspondente a apresentação n.º ... de 1/3/2021, de inscrição no registo predial de um direito de retenção titulado pela Recorrente sobre um bem imóvel, melhor identificado nos autos.
II. O presente recurso tem por objecto a sentença proferida em 3/4/2022, nos termos da qual o Tribunal a quo julgou “a impugnação do despacho de qualificação proferido pela Sr.ª Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro, datado de 13-04-2021, que determinou a recusa do registo com a apresentação n.º ..., de 1-03-2021, improcedente, mantendo-se a referida decisão”, devendo o mesmo ter subida imediata, nos próprios autos, e efeito suspensivo, nos termos do disposto no artigo 147.º, n.º do 1 do CRP e nos artigos 644.º n.º 1, alínea a) e 645.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPC).
D.2) Da falta de fundamento da sentença recorrida
III. A afirmação, na sentença recorrida, de que o direito de retenção não é registável por decorrer “da lei, e não de negócio jurídico” carece em absoluto de sustento, resultando, pelo contrário, do artigo 2.º n.º 1 do CRP a sujeição a registo de uma multiplicidade de factos e de situações jurídicas que não correspondem nem decorrem de negócio jurídico, mas de outras causas.
IV. Improcede, igualmente, o pretenso paralelismo ensaiado na sentença recorrida entre os privilégios creditórios e o direito de retenção, em vista da respectiva sujeição a registo, porquanto a lei prevê expressamente que os privilégios creditórios operam “independentemente de registo” (artigo 733.º do Código Civil), o mesmo já não se podendo dizer do direito de retenção.
V. Afigura-se irrelevante, além de reveladora de alheamento quanto ao objecto dos autos, a afirmação, em sede de motivação da decisão recorrida, de que o direito de retenção “não constitui, pois, uma providência que afete a livre disposição de bens imóveis”, porquanto a mesma se reporta aos requisitos de aplicação do artigo 3.º n.º 1, alínea d), do CRP, o qual não foi, em momento algum, invocado pelo Recorrente para fundamentar o seu pedido.
VI. A legitima pretensão da Recorrente consiste na inscrição no registo predial do seu direito de retenção sobre bem imóvel identificado nos autos e tem como base normativa o disposto no artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP, sendo certo que a sentença recorrida ignorou por completo o enquadramento do caso à luz desse preceito, e não faz a mais remota alusão ao mesmo.
VII. Também ao contrário do que parece supor o Tribunal a quo, a regra que determina a “ordem de preferências” entre a hipoteca, os privilégios creditórios e o direito de retenção não “soluciona a questão do registo”, na medida em que não satisfaz o escopo do registo, qual seja, a publicidade da situação jurídica dos prédios (artigo 1.º do CRP).
D.3) Da sujeição do direito de retenção a registo
VIII. O registo predial visa conferir segurança ao tráfego de bens imóveis, e o CRP prossegue esse escopo através da publicitação da respectiva situação jurídica, em particular daqueles aspectos que traduzem informações relevantes para terceiros interessados em negociar sobre esses bens.
IX. O CRP estabelece, nos artigos 2.º e 3.º, um elenco taxativo dos factos, situações jurídicas e acções judiciais tidas como relevantes da perspectiva dos referidos terceiros.
X. Importa, in casu, a norma consagrada no artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP: “Estão sujeitos a registo: (…) v) Quaisquer outras restrições ao direito de propriedade, quaisquer outros encargos e quaisquer outros factos sujeitos por lei a registo”.
XI. Em primeiro lugar, estabeleça-se que o direito de retenção, ao permitir que o retentor recuse a entrega do bem visado ao respectivo proprietário, constitui uma limitação absoluta às faculdades deste de usar e fruir desse bem – o que tem plena aplicação ao caso sub judice.
XII. Acresce que a faculdade do retentor de executar o bem em causa, nos termos do artigo 759.º n.º 1 do Código Civil, representa uma inquestionável limitação à faculdade do proprietário de dispor desse bem.
XIII. O que tudo leva a concluir que o direito de retenção traduz uma inegável restrição ao direito de propriedade, ao abrigo do disposto no artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP, tanto em abstracto, como no caso concreto dos autos.
XIV. Em segundo lugar, o requisito da sujeição por lei a registo, previsto na parte final da alínea v) do n.º 1 do artigo 2.º n.º 1 CRP não poderia ser aplicável às restrições ao direito de propriedade, previstas na primeira parte desse preceito, isto é, a sujeição a registo das restrições ao direito de propriedade aí previstas não deve depender cumulativamente de essas restrições estarem legalmente previstas numa disposição autónoma.
XV. Entendimento contrário sempre iria contra o elemento literal do artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP, porquanto separação sintática das expressões “restrições ao direito de propriedade”, “outros encargos” e “outros factos sujeitos por lei a registo” resultante da anteposição a cada uma delas do pronome “quaisquer”, indica que cada uma dessas expressões constitui uma categoria autónoma de situações jurídicas/factos sujeitos a registo.
XVI. Pelo que o mencionado requisito da sujeição por lei a registo apenas se aplica à categoria “outros factos”, prevista no preceito transcrito supra.
XVII. O elemento teleológico do artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP, em vista dos fins do registo predial, permite chegar à mesma conclusão: qualquer “restrição ao direito de propriedade” (bem como qualquer “encargo”) assume, per se, relevância registral, porquanto traduz uma vicissitude da situação jurídica do prédio em causa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 1.º do CRP.
XVIII. Ora, sendo qualquer restrição ao direito de propriedade, por si só, um elemento relevante da situação jurídica do respectivo bem imóvel, da perspectiva de terceiros interessados, não seria curial extrair do artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP que cada uma dessas “restrições”, além de ser como tal qualificável, deva também ser qualificada como um facto registável por um diploma autónomo, sob pena de uma total inutilização do conceito indeterminado presente naquele preceito (“outras restrições ao direito de propriedade”).
XIX. Pelo que não faria sentido algum, à luz dos fins do registo predial, exigir que uma restrição ao direito de propriedade – como é o caso do direito de retenção – para ser registável, houvesse que estar expressamente prevista numa outra disposição legal.
XX. Já o mesmo não se podendo dizer da categoria “outros factos”, que tomada em si mesma se afigura neutra, ou indeterminada, impondo a questão: que outros factos? Em resposta, a parte final da alínea v) do n.º 1 do artigo 2.º n.º 1 CRP esclarece / acrescenta que apenas são registáveis os “outros factos” que sejam “sujeitos por lei a registo”.
XXI. Pelo que a expressão “sujeitos por lei a registo” qualifica apenas a expressão anteposta “outros factos”.
XXII. Em terceiro lugar, considere-se que o regime do registo predial foi sujeito a uma reforma, em 2008, ao abrigo do programa SIMPLEX (v. Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4/7) com o propósito de eliminar uma série de aspectos formais e burocráticos do CRP, a fim de fazer imperar a substância desse regime sobre a forma.
XXIII. O artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP deve ser interpretado, também, tendo em conta os propósitos de simplificação e agilização da mencionada reforma.
XXIV. Também sob essa perspectiva se impõe uma interpretação do artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP que considere registáveis quaisquer restrições ao direito de propriedade – como é o caso do direito de retenção, como vimos – independentemente de uma previsão legal expressa que as contemple.
XXV. Acresce que a referida reforma do SIMPLEX veio alterar o disposto no artigo 3.º n.º 1, alínea a), parte final, do CRP, passando o mesmo a prever expressamente a sujeição a registo da acção de impugnação pauliana, justamente a mesma representar uma restrição ao direito de propriedade sobre determinado bem imóvel.
XXVI. Considere-se então que o direito de retenção assume uma feição muito mais restritiva do direito de propriedade do que a impugnação pauliana, pois que, além de permitir a execução judicial do bem, o direito de retenção ainda assume prioridade sobre a hipoteca (artigo 759.º n.º 1 do Código Civil) e permite ao retentor conservar o bem em seu poder, recusando a devolução ao proprietário.
XXVII. Assim, por maioria de razão, deverá o direito de retenção ser considerado registável, ao abrigo do disposto no artigo 2.º n.º 1, alínea v), do CRP.
XXVIII. Em quarto lugar, a suposição de que o exercício do direito de retenção é aparente – isto é, apreensível por terceiros – nada obsta a que o mesmo seja registável, desde logo, porque o artigo 2.º n.º 1 do CRP prevê a sujeição a registo de outras restrições ao direito de propriedade sobre bens imóveis que são também, normalmente, públicas, como é o caso da mera posse referida na alínea e).
XXIX. Acresce referir que o exercício do direito de retenção nem sempre é apreensível pela comunidade, e o caso dos autos ilustra-o perfeitamente: a Recorrente ocupa, de facto o bem imóvel em questão, mas fá-lo a título de arrendatária / locadora de estabelecimento, sendo impossível a qualquer terceiro discernir qual a causa desse uso / ocupação.
XXX. Sendo de concluir que a publicidade que é apanágio do exercício do direito de retenção, fruto da ocupação / domínio material da coisa, não cumpre o escopo de publicidade que é inerente ao registo predial, porquanto não torna aparente, perante terceiros, qual o título de ocupação em causa.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto, sendo que da sentença proferida no processo de recurso contencioso de impugnação do despacho de qualificação cabe recurso, de apelação, para o Tribunal da Relação, o qual tem efeito suspensivo – nº1, do art. 147º, do Código de Registo Predial[1], abreviadamente CRP, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, a questão a decidir é, apenas, a seguinte:
- Se a sentença a manter a decisão do Senhor Conservador de recusa de registo de ação de reconhecimento do direito de retenção padece de erro, devendo proceder-se ao referido registo, isto é, se o direito de retenção é facto registável e, como tal, se cabe revogar a recusa da prática do ato de registo da ação de reconhecimento do direito de retenção e ordenar a inscrição do mesmo no registo predial.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
FACTOS PROVADOS
Os factos provados, com relevância, para a decisão, vicissitudes processuais, constam já do relatório supra.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Da (ir)registabilidade do Direito de retenção e da ação de reconhecimento de tal direito.

Na falta de procedência do recurso hierárquico, que interpôs, ao abrigo do art. 140º[2], do Código de Registo Predial (considerado intempestivo), apresentou-se a interessada, ora apelante, à luz do nº1, do art. 145º[3], de tal diploma, a exercer o direito de impugnação judicial da decisão de qualificação do ato de registo.
Consagrando o n.º 2 do mesmo artigo, que “A impugnação judicial é proposta mediante apresentação do requerimento no serviço de registo competente, no prazo de 20 dias a contar da data da notificação da decisão que tiver julgado improcedente o recurso hierárquico.”, analisou o Tribunal de 1ª instância “Da tempestividade do presente recurso de impugnação judicial”[4], e concluiu pela tempestividade e admissibilidade deste meio, e, como tal, apreciou do suscitado erro do despacho da Sr.ª Conservadora ao recusar o pedido de registo formulado pela recorrente pela apresentação n.º ..., de 1-03-2021 e, concluindo pela não verificação do mesmo, julgou improcedente o recurso, mantendo a decisão impugnada.
Considerou o referido Tribunal que o pedido de inscrição registral formulado pela apelante pela apresentação n.º ... de 1/3/2021, referente ao imóvel[5], para ser registada a ação declarativa intentada pela Recorrente contra AA e outros, a correr termos sob o processo n.º 2245/21.0T8SNT, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Cível de Sintra, Juiz 4, onde é peticionado o reconhecimento do direito de retenção da Recorrente sobre o referido imóvel, o que constitui o fundamento do registo pretendido, nos termos do artigo 2.° n.º 1, alínea v), do CRP, não tem fundamento legal e manteve o decidido.

Analisemos se se verifica o apontado erro, por, ao invés do considerado, o direito de retenção se tratar de facto sujeito a registo.

Por despacho de qualificação de 13-04-2021, que não sofreu alteração no recurso hierárquico, a Exm.ª Conservadora da Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro recusou o pedido de registo formulado pela recorrente pela apresentação n.º ..., de 1-03-2021, sustentando que, pedindo a autora que se reconheça o seu direito de retenção sobre o imóvel a título de garantia real dos créditos invocados e não figurando o direito de retenção entre os factos sujeitos a registo enumerados no artigo 2.º do Código do Registo Predial, abreviadamente CRP (diploma a que nos reportamos na falta de outra referência) sendo essa enumeração taxativa, não está o mesmo sujeito a registo, nem sujeita a registo está a ação que tenha por fim o reconhecimento desse direito.
A recorrente, que invocou direito de retenção, entendendo que tal direito constitui uma restrição ao direito de propriedade sobre o imóvel em causa e que qualquer terceiro neste interessado terá interesse legítimo em conhecê-la, considera ter a referida situação enquadramento no artigo 2.º, n.º 1, al. v) do CRP.
O Tribunal de 1ª instância, analisando a questão de saber se a ação, em que a autora peticiona que se reconheça o seu direito de retenção sobre o imóvel a título de garantia real de qualquer um dos créditos que invoca, se encontra ou não sujeita a registo, considerou que consagrando o artigo 2.º, n.º 1, os factos que estão sujeitos a registo e não tendo as alterações ao CRP previsto a figura do direito de retenção no elenco taxativo de factos sujeitos a registo, a decisão da Sr.ª Conservadora da Conservatória de Oliveira do Bairro que recusou o pedido de registo formulado pela recorrente pela apresentação n.º ..., de 1-03-2021, não pode deixar de ser considerada correta[6].
Conhecendo.
Estatuem, de modo taxativo [8] [9] [10], como a própria apelante, também, entende, os artigos 2º e 3º, do CRP, consagrando aquele, sob a epigrafe “Factos sujeitos a registo”:
1 - Estão sujeitos a registo:
a) Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão;
b) Os factos jurídicos que determinem a constituição ou a modificação da propriedade horizontal e do direito de habitação periódica;
c) Os factos jurídicos confirmativos de convenções anuláveis ou resolúveis que tenham por objeto os direitos mencionados na alínea a);
d) As operações de transformação fundiária resultantes de loteamento, de estruturação de compropriedade e de reparcelamento, bem como as respetivas alterações;
e) A mera posse;
f) A promessa de alienação ou oneração, os pactos de preferência e a disposição testamentária de preferência, se lhes tiver sido atribuída eficácia real, bem como a cessão da posição contratual emergente desses factos;
g) A cessão de bens aos credores;
h) A hipoteca, a sua cessão ou modificação, a cessão do grau de prioridade do respetivo registo e a consignação de rendimentos;
i) A transmissão de créditos garantidos por hipoteca ou consignação de rendimentos, quando importe transmissão de garantia;
j) A afetação de imóveis ao caucionamento das reservas técnicas das companhias de seguros,
bem como ao caucionamento da responsabilidade das entidades patronais;
l) A locação financeira e as suas transmissões;
m) O arrendamento por mais de seis anos e as suas transmissões ou sublocações, excetuado o
arrendamento rural;
n) A penhora e a declaração de insolvência;
o) O penhor, a penhora, o arresto e o arrolamento de créditos garantidos por hipoteca ou consignação de rendimentos e quaisquer outros atos ou providências que incidam sobre os mesmos créditos;
p) A apreensão em processo penal;
q) A constituição do apanágio e as suas alterações;
r) O ónus de eventual redução das doações sujeitas a colação;
s) O ónus de casa de renda limitada ou de renda económica sobre os prédios assim classificados;
t) O ónus de pagamento das anuidades previstas nos casos de obras de fomento agrícola;
u) A renúncia à indemnização, em caso de eventual expropriação, pelo aumento do valor resultante de obras realizadas em imóveis situados nas zonas marginais das estradas nacionais ou abrangidos por planos de melhoramentos municipais;
v) Quaisquer outras restrições ao direito de propriedade, quaisquer outros encargos e quaisquer outros factos sujeitos por lei a registo;
x) A concessão em bens do domínio público e as suas transmissões, quando sobre o direito concedido se pretenda registar hipoteca;
z) Os factos jurídicos que importem a extinção de direitos, ónus ou encargos registados; aa) O título constitutivo do empreendimento turístico e suas alterações.
2 - O disposto na alínea a) do número anterior não abrange a comunicabilidade de bens resultante do regime matrimonial.” (negrito nosso por ser a alínea apontada como violada).

e dispondo este artigo 3.º que: “Estão igualmente sujeitos a registo”:
“a) As ações que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior, bem como as ações de impugnação pauliana;
b) As ações que tenham por fim, principal ou acessório, a reforma, a declaração de nulidade ou a anulação de um registo ou do seu cancelamento;
c) As decisões finais das ações referidas nas alíneas anteriores, logo que transitem em julgado;
d) Os procedimentos que tenham por fim o decretamento do arresto e do arrolamento, bem como de quaisquer outras providências que afetem a livre disposição de bens;
e) As providências decretadas nos procedimentos referidos na alínea anterior.”.

Elencados se encontram, no referido artigo 2º, todos os factos que “têm acolhimento nas tábuas”, daí a “consagração do princípio da tipicidade do registo ou do numerus clausus”.
Todo o registo depende de prévia existência de norma habilitadora”[11], embora a enumeração dos factos mencionados no artigo 2º não constitua um elenco absolutamente fechado, pois “para além de se admitirem a registo factos jurídicos com eficácia real – constitutivos, modificativos, extintivos e transmissivos de direitos reais – e factos relativos a direitos inerentes a imóveis – em que falha a afetação da própria coisa aos sujeitos -, também se consideram sujeitos a registo “quaisquer outros encargos” a ele submetidos por lei [segundo segmento da alínea v) do nº1 do citado art. 2º]”, podendo “incluir-se nesta categoria certos ónus reais e algumas outras situações propter rem”[12]. Registando-se, também, inter alia, o arrendamento, a hipoteca e a penhora, verifica-se que o legislador quis condensar numa disposição, com designação genérica e exaustiva de factos jurídicos (de relações jurídicas e direitos), todos os casos submetidos a registo, permitindo, contudo, ainda, o registo de “quaisquer outras restrições ao direito de propriedade, quaisquer outros encargos e quaisquer outros factos sujeitos por lei a registo (referida al. v) e sempre podendo haver recurso a interpretação extensiva, a haver razões a justificá-la (v. artigos 9º e segs, do Código Civil)[13].
O registo das ações encontra-se, deste modo, sujeito ao princípio da legalidade, consagrado no art. 68º, sendo que as ações, decisões e providências referidas naquele preceito estão sujeitas a registo obrigatório, com exceção das ações de impugnação pauliana e dos procedimentos referidos na al. d), por força do prescrito na al. b) do nº1 do artigo 8º-A[14].
Verifica-se, neste conspecto, que a aferição da viabilidade do pedido de registo, é feita, tão só, por confronto do pedido formulado na ação (embora interpretado à luz da causa de pedir que a caracteriza) com as disposições legais em matéria registral (do CRP (art. 2º e 3º) e avulsas), sendo que essa aferição é distinta e, completamente, autónoma da apreciação do mérito da causa, não se mostrando, por isso, necessário entrar na apreciação da relação material controvertida, isto a efetuar, apenas, pelo juiz da causa, no âmbito da ação em que tal pedido foi deduzido.
Devido ao sistema respeitante à obrigatoriedade do registo, instituído com vista à coincidência entre a realidade substantiva e a registral e à segurança no comércio jurídico de imóveis, são obrigatoriamente sujeitos a registo as ações, decisões e providências referidas no art. 3º, não excetuadas na lei. Assim, estão sujeitas a registo as ações que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo 2º, bem como as ações de impugnação pauliana, denotando a técnica legislativa usada na al. a), do art. 3º que o legislador está a reconhecer que estas não preenchem os requisitos das referidas na 1ª parte do mencionado preceito, sendo precisamente por isso que sentiu necessidade de expressamente a sujeitar a registo e, simultaneamente, de a excluir do núcleo das ações sujeitas a registo obrigatório (art. 8º-A, nº1, al. b))[15].
Não são quaisquer razões de simplificação ou de desburocratização as que presidem à decisão de sujeição de um facto jurídico a registo, antes esta acrescenta maior transtorno e a oneração do interessado, introduzindo complexidade, contudo justificada se reclamada pelas razões supra referidas, com vista à segurança no comércio jurídico de imóveis.
Pretende a apelante se enquadre o caso, relativo a direito de retenção, na al. v), do nº1, do art. 2º, do CRP, o que nenhum cabimento tem, sendo a ação irregistável, como refere Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, estando “fora do âmbito de aplicação do artigo 3º as ações pessoais, as possessórias e as que não respeitam a prédios determinados (alínea c) do nº2 do artigo 5º). (…) não se encontram sujeitas a registo, inter alia, as ações de petição de herança (artigo 2075º do C.C. e alínea c) do nº2 do artigo 5º), divórcio e possessórias (proc. nº112/89R.P.3) e direito de retenção (proc. nº16/88R.P.3 e acórdãos do STJ de 25 de fevereiro de 1986, in BMJ nº 354, págs. 594 e segs., e do TRE de 4/11/1997, in CJ, 1997, T.V, págs. 277)”[16] (negrito nosso).
Neste acórdão se conclui, no seguimento da jurisprudência[17], não estar sujeita a registo a ação em que se pede o reconhecimento do direito de retenção, pois que nos arts 2º e 3º se não encontra a mais ténue referência a tal direito, sendo que tal basta para se concluir que tal ação não está sujeita a registo e, ainda que dúvida subsistisse a mesma se desvaneceria em face dos princípios orientadores que presidem à teoria do registo dos direitos reais, com prevalência sobre a hipoteca (759º, nº2, do CC).
Com efeito, o direito de retenção não é enquadrável em qualquer alínea do nº1, do artigo 2º, não o sendo concretamente na apontada pela apelante – a v), pois com esta disposição genérica, visou o legislador abarcar todos os factos jurídicos que a lei substantiva sujeite a registo, seja pelo Código de Registo Predial seja por outro diploma legal, e nenhuma lei existe a sujeitá-lo expressamente a registo predial.
Assim, para além dos factos sujeitos a registo pelo Código de Registo Predial, estão sujeitas a registo todas as restrições do direito de propriedade, todos os encargos e outros factos a existir disposição legal expressa a consagrar tal possibilidade. É, pois, sempre o legislador a expressamente afirmar os factos que têm de ser registados, sendo que “A abordagem de novos factos [que encontra o seu suporte especial nesta alínea v)] deve brotar sempre de profunda reflexão do legislador sobre o papel que o registo deve desempenhar na sociedade para proteção dos seus beneficiários. Se o ato é válido e eficaz independentemente do seu registo, então não se vislumbra justificação para onerar o interessado com a obrigação de promover o registo e suportar os inerentes custos. (…) o que a alínea v) prescreve é que para que as restrições ao direito de propriedade e as figuras parcelares desse direito sejam sujeitas a registo é imperioso que exista lei que sujeite tais restrições ou encargos a registo pela simples razão de não figurarem no elenco dos factos expressamente mencionados nas demais alíneas do artigo 2º do CRP como sujeitos a registo.
A permissão da lei de constituição das referidas restrições e encargos não significa que os correspondentes factos sejam automaticamente sujeitos a registo, antes exige que exista uma intervenção legislativa expressa a sujeitar aquelas figuras a registo, só assim passando a integrar o elenco dos factos sujeitos a registo previstos no art. 2º, do CRP. Neste sentido para mais desenvolvimentos, veja-se a doutrina expressa no parecer proferido no proc. nº R.P.87/2009 SJC-CT”[18].
Como se decidiu no Acórdão do STJ, publicado no DR. nº 164/2004, Série A-I, de 14/7, citado in ob. cit.,A enumeração dos atos feita no artigo 2º é taxativa. Só a indicação de outra lei pode levar ao registo. A circunstância de determinado facto jurídico se mostrar descrito ou previsto numa lei especial, em termos que o caracterizam como consubstanciando um determinado encargo ou uma restrição ao direito de propriedade, não basta para que esse facto possa ser admitido ao registo.
De uma coisa estamos certos, ser ou não registável um ato depende da vontade do legislador, quer ela seja vertida no CRP quer em lei avulsa. Não será pela natureza da situação a registar que devemos procurar a registabilidade. Há-de ser pela interpretação da lei que impõe o registo que devemos dar resposta à questão.”.
Ora, no caso, de direito de retenção, nem o Código de Registo Predial nem lei avulsa impõem o registo e sendo que aquele direito, a existir, é plenamente válido e eficaz sem ele, bem se mostra recusado o registo, acertada tendo sido a sentença a manter a decisão do Senhor Conservador, nenhuma interpretação extensiva de outra norma se revelando adequada, justificada, sequer necessária, dado tudo estar cautelado pela lei substantiva.
A alínea v) apenas vem salvaguardar situações expressamente contempladas em diplomas avulsos a impor o registo, nunca podendo ser entendido estar, ela mesma, a impor, diretamente, que o registo tenha lugar.
Assim, e por nenhuma lei, seja o CRP seja diploma avulso, existir a impor o registo do Direito de retenção, que é plenamente eficaz sem ele, impondo-se como veremos erga omnis, também a ação de reconhecimento de direito de retenção se não encontra sujeita a Registo.
Assim vem a ser entendido pela Doutrina, o mesmo acontecendo na jurisprudência, como se cita, o que aqui se reafirma, sendo o negrito nosso, mencionando-se:
- Ac da RL de 16/1/1997, onde entende:
“o direito de retenção prevalece, nos termos do n. 2 do art. 759 CC, sobre qualquer hipoteca, ainda que registada anteriormente” e “como direito real de garantia e garantia especial da obrigação, o direito de retenção não está sujeito a registo, vale erga omnes e o seu detentor "não pode ser expulso do local" (cf., aresto STJ, de 25/02/86, idem, ibidem; M. Cordeiro, idem, ibidem)”[19];
- Ac. da RP de 23/4/2020, onde se decidiu:
I - O direito de retenção consagrado no artigo 754.º do Código Civil, constituindo um direito real de garantia, depende dos seguintes pressupostos:
a) posse e obrigação de entrega duma coisa;
b) existência, a favor do devedor, dum crédito, exigível, sobre o credor;
c) e a existência de uma conexão causal entre o crédito do detentor e a coisa, devendo o crédito achar-se ligado à coisa detida, visando o pagamento de despesas que o detentor com ela efetuou ou a indemnização de prejuízos que em razão dela sofreu - debitum cum re junctum.
(…) III - Tal direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que registada anteriormente.
IV - Essa prevalência, com tutela no n.º 2 do artigo 759.º do Código Civil, não ofende nenhum direito fundamental, nem viola qualquer princípio constitucional”[20].
- Ac. RL de 30/6/2011, onde se decide: “Constituindo o direito de retenção um direito real de garantia, goza o apelante do direito de ser pago com preferência aos demais credores - um poder de sequela -, nomeadamente, goza do direito de prevalência sobre a hipoteca, ainda que o registo desta seja anterior – art. 759 CC”[21].
- Ac. da RL de 29/6/2010, onde se refere: “titular do direito de retenção sobre o imóvel não é seu possuidor, apenas lhe sendo lícito, sob pena de enriquecimento sem causa, reter a coisa como garantia do seu crédito e não gozar ou fruir a mesma”, sendo que “O direito de retenção não constitui uma providência que afecte a livre disposição de bens imóveis, a que alude o art. 3º, n.º 1, al. d) do C.R.P”[22];
- Ac. RC de 15/1/2013, in dgsi, onde se exara:
“As garantias especiais de prestações podem operar por uma de duas vias: por via pessoal; por via real.
Quando, com vista a assegurar certo crédito se procede à afectação de coisas corpóreas, temos uma garantia real.
Inclui-se nesta categoria, sem dúvida, o direito de retenção (artº 754 do Código Civil).
O direito de retenção resolve-se no direito conferido ao credor, que encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de, não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores[31].
O direito de retenção, porque dispõe de sequela – de que a inerência, i.e. inseparabilidade do direito real e da coisa é a noção base – é um verdadeiro real.
É, por isso, dotado, para usar uma terminologia corrente e expressiva, de oponibilidade erga omnes, sendo, portanto, oponível mesmo ao próprio dono da coisa que não seja o titular do direito à entrega dela[32].
O direito de retenção prevalece mesmo sobre o direito de crédito garantido por hipoteca ainda que anteriormente constituída, rectius, registada (artº 759 nº 2 do Código Civil)[33]”[23] (negrito nosso).
E, com efeito, bem se analisa no Ac. da RE de 4/12/1997 “O legislador caracterizou o direito de retenção (arts. 754º a 761º do CC) como um direito real de garantia tal qual como a consignação de rendimentos (arts. 656º a 665º) o penhor (arts 666º a 678º), a hipoteca (686º a 732º), deste modo visando reforçar a obtenção do objetivo próprio de um direito de crédito e que se consegue, essencialmente por duas formas: - pelo aspecto compulsório que envolve, incitando o devedor ao cumprimento e pela especial tutela que confere à posição do credor quando, havendo incumprimento, haja que recorrer aos esquemas da coação jurídica, conferindo-lhe uma posição de privilégio em caso de incumprimento ( arts.758º e 759º do CC) – A. Menezes Cordeiro “Direitos Reais”, vol. I, pág. 568.
Nos termos desta última disposição legal, recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos termos em que o pode fazer o credor hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor e prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente (arts. 751º, nºs 1 e 2, do CC).
Salienta-se também que o direito de retenção não se destina a proporcionar o gozo ou fruição da coisa ao titular desse direito mas antes a permitir-lhe a execução da coisa retida e o pagamento sobre o valor dela com preferência sobre os demais credores (Prof. A. Varela, RLJ 119º, 204/205 e “pode ser actuado onde quer que a coisa se encontre, incluindo nas mãos de terceiro nos termos dos direitos gerais, dada a inerência. Quando não, como judiciosamente observa Vaz Serra, seria uma garantia ilusória” (A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II vol., pág. 1101)”[24].
Neste conspecto, ante a eficácia de que é revestido o direito de retenção, que efetivamente tenha existência, a todos oponível independentemente de registo, nenhuma necessidade foi sentida pelo legislador, sequer existe, de acautelar também este facto e nenhuma imposição de registo estando expressamente consagrada na lei (CRP ou diploma avulso), não contemplado no elenco dos factos sujeitos a registo, designadamente na al. v), do nº1, do art. 2º, e nenhuma interpretação extensiva se justificando, por se não verificarem analogia de razões com as situações previstas, não pode deixar de ser confirmada a sentença que bem manteve a decisão de recusa do registo em causa.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
*
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 10 de outubro de 2022
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Maria Fernanda Fernandes de Almeida
Teresa Fonseca
_________________
[1] V. Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, Código do Registo Predial Anotado e Comentado, 2ª Edição, Almedina, pág. 367.
[2] Estatuindo tal preceito: “A decisão de recusa da prática do ato de registo nos termos requeridos pode ser impugnada mediante a interposição de recurso hierárquico para o conselho diretivo do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., ou mediante impugnação judicial para o tribunal da área de circunscrição a que pertence o serviço de registo.”,
[3] Consagrando a mencionada disposição legal: “Tendo o recurso hierárquico sido julgado improcedente, o interessado pode ainda impugnar judicialmente a decisão de qualificação do ato de registo”, sendo que tal improcedência tem de ser entendida nos termos latos, abarcando quer decisão de forma quer de mérito, por força da qual se mantenha a decisão de recusa do Sr. Conservador.
[4] Considerando: “A 9-11-2021 (cfr. fls. 112 e 113), foi remetido à recorrente o expediente de notificação da decisão da Exm.ª Sr.ª Presidente do Conselho Diretivo do IRN.
Diz-nos o artigo 154.º do CRP o seguinte:
“1- As notificações previstas no presente código, quando não devam ser feitas por via eletrónica nos termos previstos no n.º 2 do artigo anterior, ou por qualquer outro meio previsto na lei, são realizadas por carta registada, podendo também ser realizadas presencialmente, por qualquer funcionário, quando os interessados se encontrem nas instalações do serviço.
2- A notificação postal presume-se feita no terceiro dia posterior ao do registo, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.
3- A notificação não deixa de produzir efeito pelo facto de o expediente ser devolvido, desde que a remessa tenha sido feita para a morada indicada pelo notificando nos atos ou documentos apresentados no serviço de registo.”
E, de acordo com o artigo 155.º do citado diploma legal:
“1 - É havido como prazo de um ou dois dias o designado por 24 ou 48 horas.
2 - O prazo é contínuo, não se incluindo na contagem o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr.
3 - O prazo que termine em sábado, domingo, feriado, em dia com tolerância de ponto ou em dia em que o serviço perante o qual deva ser praticado o ato não esteja aberto ao público, ou não funcione durante o período normal, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte.”
Finalmente, ainda a propósito da contagem dos prazos, preceitua o artigo 156.º do CRP, que “Salvo disposição legal em contrário, aos atos, processos e respetivos prazos previstos no presente código é aplicável, subsidiariamente e com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil.”
Assim, sendo, não tendo a notificação da recorrente sido efetuada por via eletrónica, mas por carta registada, a notificação presume-se feita no 3.º dia posterior ao do registo, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja – artigo 154.º, n.º 2, do CRP.
Pelo que, temos que a recorrente foi notificada da decisão da Exm.ª Sr.ª Presidente do Conselho Diretivo do IRN a 12-11-2021, começando a correr desde então o prazo de 20 dias – 145.º, n.º 2, do CRP.
De acordo com o supra transcrito artigo 155.º, n.º 2, do CRP, O prazo é contínuo, não se incluindo na contagem o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr. “Nestes termos, o prazo para a recorrente apresentar a presente impugnação judicial terminava a 2-12-2021.
Porém, no caso, o presente recurso foi expedido a 3-12-2021 (data em que se deve considerar que o mesmo foi apresentado) – cfr. fls. 21 – tendo sido recebido nos serviços da Conservatória do Registo Predial de Oliveira do Bairro a 6-12-2021 (cfr. fl. 3).
Ou seja, a presente impugnação foi apresentada um dia depois do termo do prazo de que dispunha para tanto.
Coloca-se agora a questão se saber se tem aplicação o disposto no artigo 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil.
Como vimos, nos termos do artigo 156.º do CRP, que “Salvo disposição legal em contrário, aos atos, processos e respetivos prazos previstos no presente código é aplicável, subsidiariamente e com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil.”
Como assim, é-lhe assim aplicável o disposto no artigo 139º, n.ºs 5 e 6, do CPC, podendo o ato de impugnação ser praticado num dos três dias úteis seguintes, mediante o pagamento da multa aí prevista – neste sentido, vejam-se os Acórdãos do TRC de 16-01-2018, processo n.º 192/17.0T8FIG.C1, e do TRL de 9-07-2020, processo n.º 364/19.2T8MTA.L1-2, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Como é sabido, o decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o ato – artigo 139º, nº 3, do CPC.
Preceitua o n.º 5 do artigo 139.º do CPC que “Independentemente de justo impedimento, pode o ato ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos:
a) Se o ato for praticado no 1.º dia, a multa é fixada em 10 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 1/2 UC;
b) Se o ato for praticado no 2.º dia, a multa é fixada em 25 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 3 UC;
c) Se o ato for praticado no 3.º dia, a multa é fixada em 40 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 7 UC. “
Praticado o ato em qualquer dos três dias úteis seguintes sem ter sido paga imediatamente a multa devida, logo que a falta seja verificada, a secretaria, independentemente de despacho, notifica o interessado para pagar a multa, acrescida de uma penalização de 25 % do valor da multa, desde que se trate de ato praticado por mandatário – artigo 139º, nº 6, do CPC.
Assim, concluímos que é aplicável subsidiariamente o disposto no artigo 139º, nºs 5 e 6, do CPC, isto é, a possibilidade de a parte poder praticar o ato para além do termo do prazo, dentro dos três dias úteis subsequentes, mediante o pagamento de uma multa.
No caso, a recorrente comprovou o pagamento da multa pela apresentação no 1.º dia após o termo do prazo para apresentação da presente impugnação judicial.
[5] Sito na Rua ..., ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º ..., pelo qual foi solicitada pela recorrente a inscrição no registo predial do imóvel sito na Rua ..., ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ....
[6] Fundamenta a solução legal referindo: “à semelhança da situação que ocorre com os privilégios creditórios, resultando o direito de retenção da lei, e não de negócio jurídico, o mesmo não está sujeito a registo – neste sentido vide Ac. TRL de 29-06-2010, processo n.º 711/09.5TBPTS.L1-1, acessível em www.dsgi.pt. (…) o direito de retenção não corresponde a uma providência que afeta a livre disposição do imóvel. (…) o titular do direito de retenção sobre um imóvel não é seu possuidor, mas mero detentor, na medida em que o seu direito de retenção não envolve nenhum direito pessoal de gozo sobre o imóvel – cfr. Antunes Varela, RLJ, 124, pag. 352. (…) ao mesmo apenas seja lícito, sob pena de enriquecimento sem causa, reter a coisa como garantia do seu crédito e não gozar ou fruir a mesma (é titular de um direito real de garantia e não de gozo) – vide Antunes Varela, RLJ ano 119, pags. 204 e 205. (…) o direito de retenção não constitui, pois, uma providência que afete a livre disposição de bens imóveis, conferindo apenas ao seu titular o direito de se fazer pagar do seu crédito com a preferência sobre outros credores, nos termos definidos no artigo 759º, do Código Civil. (…) Na verdade, a situação privilegiada decorrente do direito de retenção soluciona a questão do registo, isto porque a anterioridade da garantia não se mede pelo registo que não altera a ordem de preferências legalmente previstas: privilégios, direito de retenção, hipotecas”.
[7] Mouteira Guerreiro, Noções de Direito Registral, pág. 43.
[8] Catarino Nunes, Código de Registo Predial de 1967, pág. 17.
[9] Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, Idem, pág. 41.
[10] Ac. RE de 4/11/1997, in CJ, 1997, T.V, págs. 277 e seg.
[11] Ibidem, pág. 40.
[12] Ibidem, pág 40 e seg e, como aí citado, parecer proferido pelo CT no proc. nº C.P. 20/2001, in BRN nº 8/2001, pág 17 e parecer da PGR nele referido.
[13] Ibidem, pág. 41
[14] Ibidem, pág. 98 e seg.
[15] Ibidem, pág. 99
[16] Ibidem, pág. 101 e seg.
[17] Aí se citando o Ac. do STJ de 25/2/86, BMJ 354, 549 e o Ac da RE de 29/3/1990, CJ V, 1990, 3, 285.
[18] Ibidem, pág. 92
[19] Ac da RL de 16/1/1997, proc. 0008392, in dgsi
[20] Ac. da RP de 23/4/2020, proc. 554/10.3TYVNG-C.P1.,in dgsi
[21] Ac. RL de 30/6/2011, proc. 154/07.5TBOER.L1-8, in dgsi
[22] Ac. da RL de 29/6/2010, proc. 711/09.5TBPTS.L1-1, in dgsi,
[23] Ac. RC de 15/1/2013, proc. 511/10.0TBSEI-E.C1., in dgsi
[24] Ac. RE de 4/11/97, in CJ, 1997, T.V, págs. 277.