A obrigação de pagamento das rendas da locação financeira prescreve no prazo (ordinário) de 20 anos do art. 309.º do Código Civil.
I. — RELATÓRIO
1. Banco Credibom, SA, intentou acção de execução para pagamento de quantia certa contra AA.
2. O Executado AA deduziu embargos de executado, alegando a prescrição do crédito exequendo e deduzindo a excepção de preenchimento abusivo da livrança.
3. O Exequente Banco Credibom, SA, contestou, pugnando pela improcedência dos embargos.
4. O Tribunal de 1.ª instância julgou improcedentes os embargos.
5. Inconformado, o Executado AA interpôs recurso de apelação.
6. O Exequente Banco Credibom, SA, contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
7. O Tribunal da Relação julgou procedente a excepção de prescrição do crédito exequendo e, em consequência, revogou a sentença recorrida.
8. Inconformado, o Exequente Banco Credibom, SA, interpôs recurso de revista:
9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
A. O Embargado celebrou, em 13.09.2011, com a Executada M..., na qualidade de locatária, e BB, na qualidade de avalista, um Contrato de Locação Financeira, tendo por objeto o veículo de matrícula .. DR .., com início na referida data e termo em 13.09.2018, mediante o pagamento de 84 rendas mensais, no valor de €307,86evalor residual de €4.701,82e demais cláusulas constantes do documento junto com a contestação, que aqui se dá aqui por integralmente reproduzido.
B. O referido Contrato de Locação Financeira apresentava um pacto de preenchimento da livrança, resultando da Cláusula 20.ª que
“1. O Locatário obriga-se a entregar ao Credibom, a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas devidamente subscrita pelo Locatário e assinada pelo (s) Avalista(s) nos termos da livrança anexa a este contrato. (…)
5. Em caso de incumprimento, e após a notificação escrita pelo Credibom, o Locatário autoriza expressamente o Credibom a preencher a livrança caução,(…)”.
C. Entre a data da celebração do contrato de locação financeira em causa e a data da respectiva resolução e preenchimento da livrança executada, e sem prejuízo de atrasos nos pagamentos das rendas que se foram verificando, as rendas foram sendo pagas mensalmente até Agosto de 2018, tendo os pagamentos cessado nessa ocasião.
D. Logo, a cada pagamento mensal verificado desde setembro de 2011 até Agosto de 2018, verificou-se facto interruptivo da prescrição – cfr. Artigos 325.º e 326.º do Código Civil.
E. A ação executiva deu entrada em juízo em junho de 2019, fundada na livrança executada, vencida em 11.05.2019 e o Embargante foi citado em outubro de 2019.
F. No que diz respeito ao prazo de prescrição dos contratos de locação financeira, é aplicável o disposto no artigo 309.º do CC, no qual consta o prazo de prescrição de 20 anos, e o não o de 5 anos, previsto na alínea e), do artigo 310º do Código Civil,
G. uma vez que, as rendas deste tipo contratual se reconduzem a uma única prestação, que engloba a contrapartida da utilização de um bem locado, o custo do bem, a gestão e os riscos próprios e inerentes da dita operação financeira.
H. Ademais, o avalista não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado (neste caso, a obrigação subjacente de pagar as rendas devidas pelo contrato de locação), mas tão-somente ao pagamento da quantia titulada no título de crédito (obrigação cartular e autónoma), constituindo esta uma obrigação autónoma e independente daquela,
I. pelo que o avalista de uma livrança não pode opor ao seu beneficiário as exceções fundadas nas relações imediatas estabelecidas entre este e os subscritores da livrança.
J. Pelo exposto entende-se que mal decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo feito errada aplicação da lei substantiva, concretizada na errada aplicação da norma de direito reguladora da situação jurídica em causa, concretamente, errada aplicação do Artigo 310.º, alínea b) e e) do Código Civil,
K. sendo que deveria ter aplicado a norma contida no Artigo 309.º do Código Civil e, nessa sequência, deveria ter julgado o recurso interpostos pelo aqui Recorrido improcedente, mantendo a douta decisão proferida em Primeira Instância.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente Recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e manutenção da decisão do Tribunal de Primeira Instância, assim se fazendo a requerida e costumada JUSTIÇA!
10. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:
I. — se a dívida exequenda prescreveu, por aplicação do art. 310.º, alínea e), do Código de Processo Civil;
II. — se a excepção de prescrição é oponível pelo avalista ao beneficiário da livrança.
II. — FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
11. As instâncias deram como provados os factos seguintes:
1. — Em 13.09.2011, a exequente, na qualidade de locador, a executada M..., na qualidade de locatária, e BB, na qualidade de avalista, celebraram acordo escrito designado «Contrato de Locação Financeira”, tendo por objeto o veículo de matrícula ..-DR-.., com início na referida data e termo em 13.09.2018, mediante o pagamento de 84 rendas mensais, no valor de € 307,86 e valor residual de € 4.701,82 e demais cláusulas constantes do documento junto com a contestação, que aqui se dá aqui por integralmente reproduzido.
2. — As partes estipularam, no âmbito desse acordo, além do mais, o seguinte:
Cláusula 20.ª
“1. O Locatário obriga-se a entregar ao Credibom, a título de garantia, uma livrança não integralmente preenchida, mas devidamente subscrita pelo Locatário e assinada pelo (s) Avalista(s) nos termos da livrança anexa a este contrato. (…)
5. Em caso de incumprimento, e após a notificação escrita pelo Credibom, o Locatário autoriza expressamente o Credibom a preencher a livrança caução, designadamente no que se refere à data do vencimento, local de pagamento e valor -o qual, após deduzida a quantia entregue a titulo de deposito de caução- corresponderá ao montante que se encontrar em divida até ao limite das responsabilidade assumidas pelo Locatário em consequência do presente contrato, acrescido dos encargos com a emissão e selagem do titulo”.
3. — Por ocasião da celebração do contrato, BB assinou em branco uma livrança, no espaço destinado à subscritora, em representação da executada M... e, no espaço destinado ao avalista, e entregou-a à exequente.
4. — A exequente enviou à executada M... carta datada de 29.04.2019, informando-a da “resolução do contrato (…) com fundamento em incumprimento definitivo e “do preenchimento da livrança-caução pelo montante de € 29.907,29”, conforme doc. junto, que aqui se dá por reproduzido.
5. — A exequente enviou a BB carta datada de 29.04.2019, entregue em 06.05.2019, comunicando-lhe que “não tendo o titular do contrato (..) procedido, dentro do prazo estipulado, ao pagamento das rendas, juros de mora e demais valores vencidos (…) foi efetuado, nos termos do pacto de preenchimento acordado, o preenchimento da livrança-caução avalizada por V. Exa. pelos montantes a seguir indicados (…) Total 29.907,29”, conforme doc. junto, que aqui se dá por reproduzido.
6. — BB, faleceu em .../.../2015, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros o cônjuge falecido e dois filhos CC e o ora embargante.
7. — A ora embargada intentou ação executiva contra a executada M... e os herdeiros de BB, com base na referida livrança, que tem inscritos o valor de € 29.907,29 e a data de vencimento de 11.05.2019.
O DIREITO
12. A primeira questão suscitada pelo Exequente, agora Recorrente, consiste em determinar se a dívida exequenda prescreveu, por aplicação do art. 310.º, alínea e), do Código Civil.
13. Em rigor, a primeira questão analisa-se em duas:
I. — se à obrigação de pagamento das rendas resultantes de um contrato de locação financeira se aplica o prazo ordinário de prescrição de 20 anos do art. 309.º ou o prazo de prescrição de cinco anos do art. 310.º, alínea e), do Código Civil;
II. — caso se entenda que se aplica o prazo de prescrição de cinco anos do art. 310.º, alínea e), do Código Civil, se a acção executiva foi proposta depois de decorridos cinco anos sobre o vencimento da obrigação exequenda.
14. O acórdão recorrido aplica, por analogia, o prazo de cinco anos do art. 310.º, alínea e), do Código Civil, com o argumento de que o prazo de prescrição da obrigação de pagamento das rendas constituída através de um contrato de locação financeira deve coincidir com o prazo de prescrição da obrigação de pagamento das quotas de amortização constituída através de um contrato de mútuo:
“No processo de valoração dos factos e do Direito que temos diante de nós nestes autos, a consideração a dar ao prazo prescritivo aplicável às rendas da locação financeira, caso fosse a do prazo geral de 20 anos do artigo 309.º, dariam ao nosso edifício jurídico uma traça desconforme à que resulta dos prazos aplicáveis a contratos que apresentam muitas similitudes — os que constam da alínea b) e e) do artigo 310.º — pelo que de forma a repô-la, haverá que — também a elas — aplicar o prazo de cinco anos”.
15. O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado constantemente que deve distinguir-se entre os alugueres ou rendas devidos por causa de um contrato de locação e as rendas devidas por causa de um contrato de locação financeira:
I. — Os alugueres ou rendas devidos pelo locatário por causa de um contrato de locação representam simplesmente a contrapartida da utilização de um bem [1]; correspondem a prestações periódicas ou reiteradas [2]. II. — As rendas devidas pelo locatário por causa de um contrato de locação financeira não representam simplesmente a contrapartida da utilização de um bem (da utilização do bem locado), “relevando […] na sua composição, o valor correspondente à amortização do capital investido, isto é, [o] custo do bem, os custos de gestão e os riscos próprios da locação financeira” [3]; correspondem a uma prestação única, “embora possa ser paga por forma repartida por tempo certo” [4].
16. O acórdão recorrido pretende deduzir da relação de dissemelhança entre os alugueres ou rendas devidos por causa do contrato de locação e as rendas devidas por causa do contrato de locação financeira uma relação de semelhança com o contrato de mútuo.
17. Ora, ainda deva admitir-se que “a natureza económica das rendas da locação financeira leva a que elas juridicamente estejam muito mais perto das prestações de uma dívida (no sentido do art. 781.º do Código Civil) do que das rendas da locação comum” [5], a semelhança funcional (económica ou financeira) entre o contrato de locação financeira e o contrato de mútuo é compatível com dissemelhanças estruturais (jurídicas) [6] [7] — daí que da semelhança funcional entre o contrato de locação financeira e o contrato de mútuo não deve deduzir-se, sem mais, a aplicação da alínea e) do art. 310.º do Código Civil ao contrato de locação financeira.
18. Em consonância com a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, deve aplicar-se ao caso o prazo de vinte anos do art. 309.º do Código Civil.
Embora afirmem que deve distinguir-se entre a prescrição dos alugueres ou rendas devidos por causa de um contrato de locação e a prescrição das rendas devidas por causa de um contrato de locação financeira, os acórdãos do STJ de 8 de Maio de 2003 — processo n.º 03B3516 —, de 17 de Março de 2005 — processo n.º 05B378 —, de 12 de Janeiro de 2010 — processo n.º 2843/06.2TVLSB.S1 — e de 23 de Fevereiro de 2010 — processo n.º 589/06.OTVPRT.P1 —confirmam que deve aplicar-se o prazo (ordinário) de 20 anos do art. 309.º do Código Civil à obrigação de pagamento das rendas da locação financeira.
19. Em resposta à primeira questão, deverá dizer-se que a dívida exequenda não prescreveu, por aplicação do art. 310.º, alínea e), do Código Civil
20. Em consequência da resposta dada à primeira questão, fica prejudicada a segunda — se a excepção de prescrição é oponível pelo avalista ao beneficiário da livrança.
III. — DECISÃO
Face ao exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido.
Custas a final.
Lisboa, 13 de Outubro de 2022
Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)
José Maria Ferreira Lopes
Manuel Pires Capelo
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[1] Cf. acórdãos do STJ de 8 de Maio de 2003 — processo n.º 03B3516 —, de 12 de Janeiro de 2010 — processo n.º 2843/06.2TVLSB.S1 — e de 23 de Fevereiro de 2010 — processo n.º 589/06.OTVPRT.P1.
[2] Cf. acórdãos do STJ de 8 de Maio de 2003 — processo n.º 03B3516 — e de 12 de Janeiro de 2010 — processo n.º 2843/06.2TVLSB.S1
[3] Cf. acórdãos do STJ de 8 de Maio de 2003 — processo n.º 03B3516 —, de 12 de Janeiro de 2010 — processo n.º 2843/06.2TVLSB.S1 — e de 23 de Fevereiro de 2010 — processo n.º 589/06.OTVPRT.P1
[4] Cf. acórdão do STJ de 17 de Março de 2005 — processo n.º 05B378.
[5] Cf. Rui Pinto Duarte, “O contrato de locação financeira — uma síntese”, in: Estudos jurídicos vários 2000-2015, Livraria Almedina, Coimbra, 2015, págs. 453-511 (478).
[6] Cf. Diogo Leite de Campos, “Locação financeira (leasing) e locação”, in: Revista da Ordem dos Advogados, ano 62 (2002), págs. 759-775.
[7] Como reconhece o acórdão recorrido: “as rendas da locação financeira não encaixam directamente na previsão da alínea b) do artigo 310.º (porque, desde logo, são diferentes das da locação) e que não cabem na alínea e) (porque são diferentes das do mútuo com juros)”.