I. A acessão industrial enquanto causa de aquisição originária retroativa do direito de propriedade sobre determinada coisa, compreende, na sua noção legal, o conceito de incorporação de uma coisa da titularidade de uma pessoa, numa outra coisa da titularidade de outra, exigindo para o seu reconhecimento o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos substantivos: i) a incorporação da construção em terreno alheio; ii) com materiais pertencentes ao seu autor; iii) de boa fé; iv) e que o valor trazido pelas obras ao prédio seja maior do que o valor que este tinha antes.
II. A construção de uma moradia por ambos os cônjuges, na constância do matrimónio celebrado no regime da comunhão de adquiridos, num prédio composto por terreno destinado à construção, que é propriedade exclusiva de apenas um deles, não se subsume ao regime da acessão imobiliária por claudicar o requisito da boa-fé, mas também, ou sobretudo, porque o terreno não é coisa alheia em relação ao cônjuge que for o seu dono.
III. Edificada construção em terreno, enquanto bem próprio do ex-cônjuge, a expensas de ambos os cônjuges, importa reconhecer que o regime jurídico aplicável à aludida construção não pode ser encontrado à luz do instituto das benfeitorias quando não se demonstre terem sido realizados trabalhos no terreno, com vista a conservá-lo ou melhorá-lo.
IV. Estando em causa uma construção sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, tal importa inovação que altera substancialmente o prédio onde se edifica, provocando uma alteração substancial e jurídica deste, passando a constituir (lote de terreno e moradia) um todo uno e indivisível, dando origem a uma coisa nova, a uma nova realidade material e jurídica, constituindo um prédio urbano.
V. O regime jurídico aplicável à construção de uma moradia, edificada a expensas dos cônjuges, entretanto divorciados, sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, bem próprio de um dos ex-cônjuges, decorre do regime matrimonial do casamento do extinto casal, sem deixar de salvaguardar que estamos perante duas pessoas que foram casadas entre si e que, nessa medida, a relação matrimonial influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando um regime diferente daquele que decorrerá da aplicação isolada do direito comum.
VI. O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os ganhos alcançados pelos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei, daí que, sempre que os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construam uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, impõe-se reconhecer que se a moradia mandada edificar pelos cônjuges for a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio é bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão.
I. RELATÓRIO
1. AA instaurou a presente ação especial de inventário para partilha de bens comuns, subsequente a divórcio, contra, BB, indicando este para o cargo de cabeça de casal em virtude de ser o ex-cônjuge mais velho.
2. Foi nomeado o requerido, CC para o cargo de cabeça-de casal e ordenou-se a sua citação nos termos e para os efeitos do disposto nos artºs. 1100º n.º 2, alínea a) e 1102º, ambos do Código de Processo Civil.
3. Em 3 de fevereiro de 2022, o cabeça de casal apresentou compromisso de honra escrito e apresentou a relação de bens em que relaciona ativo e passivo e onde, em sede de ativo, relaciona, entre outros, o seguinte prédio urbano sob a verba n.º 1:
“1 – Prédio urbano destinado a habitação composto de cave, rés-do-chão e logradouro, situado na Travessa ..., união de freguesias ... e ... (...), concelho ..., inscrito na atual matriz da referida união de freguesias sob o artigo ...37, correspondente ao anterior artigo ...08 da freguesia ... (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, com o valor patrimonial tributável (VPT) de € 117.409,38 (cento e dezassete mil, quatrocentos e nove euros e trinta e oito cêntimos), conforme cópia de caderneta predial urbana e descrição predial, que se juntam como Doc. 1 e Doc. 2, respetivamente, e dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais”.
4. Notificada da relação de bens, a requerente, AA, veio dela reclamar, alegando que o prédio relacionado sob a verba n.º 1 é um bem próprio dela, conforme teor da certidão do registo predial que junta como documento n.º 1.
Requer que esse prédio seja excluído da relação de bens apresentada, por se tratar de uma doação que lhe foi feita exclusivamente a si, tendo o cabeça de casal apenas direito a metade do valor das benfeitorias nele realizadas.
5. O cabeça de casal respondeu sustentando que, por escritura pública de doação realizada pelo pai da requerente, DD, este doou à última uma parcela de terreno destinada à construção; o cabeça de casal e a requerente contraíram empréstimo bancário junto da Banco 1... para construção, nesse terreno, de uma moradia; não pode aceitar que o prédio relacionado sob a verba n.º 1 seja classificado como bem próprio da requerente pelo facto “de que a moradia que consta da descrição da certidão do registo predial é uma benfeitoria comum dele e da sua ex-esposa”.
Conclui propondo que a verba n.º 1 do ativo da relação de bens que apresentou seja subdivida em duas descrições para efeitos de avaliação, nos termos do art.º 1114º do Código de Processo Civil, nos seguintes termos:
“- Parcela de terreno destinada a construção (lote) doado a AA;
- Construção de moradia tipologia T3, benfeitoria comum do cabeça de casal e de AA, sobre o terreno a esta doado”.
Alterou a verba n.º 1 do ativo da relação de bens que antes tinha apresentado, a qual passou a constar do seguinte teor:
“1 – Prédio urbano destinado a habitação composto de cave, rés-do-chão e logradouro, situado na Travessa ..., união de freguesias ... e ... (...), concelho ..., inscrito na atual matriz da referida união de freguesias sob o artigo ...37, correspondente ao anterior artigo ...08 da freguesia ... (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...28, com o valor patrimonial tributável (VPT) de € 117.409,38 (cento e dezassete mil, quatrocentos e nove euros e trinta e oito cêntimos), que deverá ser subdividido em duas descrições:
1.1 - Parcela/lote de terreno destinada a construção doada a AA cujo valor real se fixa em 45.000,99 euros (quarenta e cinco mil euros);
1.2 - Construção de moradia tipologia T3, casa de cave e rés-do-chão, benfeitoria do cabeça de casa BB e AA, no valor de 229.000,00 euros (duzentos e vinte e nove mil euros)”.
6. A requerente AA opôs-se à divisão operada pelo cabeça de casal relativamente à verba n.º 1 do ativo, reafirmando que esse ativo “é um bem próprio da requerente, pelo que deve ser retirado da relação de bens. A construção pelos cônjuges em comunhão de adquiridos em um prédio de um só deles, deve ser considerado uma benfeitoria que deve ser relacionada como bem comum, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum”.
Conclui pedindo que na verba n.º 1 sejam relacionadas as benfeitorias construídas no terreno da requerente. Impugna o valor das benfeitorias indicado pelo cabeça de casal, no valor de 229.000,00 euros, sustentando que estas não têm um valor superior a 100.000,00 euros. Requer que se proceda à avaliação de tais benfeitorias, por perito a designar pelo tribunal. Impugna o valor dos bens móveis que compõem o recheio do prédio, relacionado sob a verba n.º 2, requerendo a respetiva avaliação por perito a designar pelo tribunal.
7. O cabeça de casal respondeu mantendo a sua posição anterior e citando vária doutrina e jurisprudência, sustentando que, “seria artificial e forçada a qualificação da construção de uma casa como benfeitoria”; que “com a construção da moradia o terreno deixou de ter existência jurídica autónoma, tendo ficado integrado no prédio urbano, entretanto constituído e registado como tal, passando o terreno e a edificação a formar uma unidade jurídica indivisível”.
8. Por decisão proferida em 6 de abril de 2022, a 1ª Instância julgou parcialmente procedente a reclamação à relação da bens apresentada pela requerente AA e, em consequência, determinou a eliminação da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal da verba n.º 1 e determinou que, nessa relação de bens, fosse relacionada como benfeitoria a construção edificada por requerente e cabeça de casal, durante a constância do respetivo casamento, e indeferiu o pedido de avaliação das benfeitorias realizadas pelo ex-casal nesse prédio relacionado sob a verba n.º 1 (edificação da casa que nele foi erigida por requerente e cabeça de casal durante a constância do matrimónio no lote de terreno doado à requerente AA pelo pai desta) e, bem assim, do recheio dessa casa relacionado sob a verba nº 2 da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, relegando “para a conferência de interessados as questões suscitadas quanto ao valor da benfeitoria e dos bens móveis que compõem o recheio da mencionada construção”, constando essa decisão do seguinte teor:
“Nos presentes autos de inventário para separação de meações nos bens comuns do casal constituído por BB e AA, em que aquele desempenha as funções de cabeça-de-casal, apresentou a relação de bens.
A requerente, nos termos do disposto no art. 1104º, nº 1, al. d) do CPCivil, reclamou da relação de bens alegando que: a) o imóvel descrito na verba nº 1 é um bem próprio da interessada; b) o recheio da casa de morada de família deve ser discriminado.
O cabeça de casal, notificado nos termos do art. 1105º, nº 1 do CPCivil, confirmou terem procedido à construção de um imóvel numa parcela de terreno pertencente à interessada e discriminou os bens móveis que constituem o recheio da casa de morada de família.
A requerente impugnou o valor das benfeitorias e dos bens móveis.
Cumpre decidir.
No que respeita à parcela de terreno, uma vez que se trata de bem próprio da interessada deve a mesma ser eliminada da relação de bens.
Por outro lado, resulta demonstrado que existem construções e edificações pertença comum do casal dissolvido mas efetuadas no terreno de que é único proprietário a ex-cônjuge mulher.
Na esteira do entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, consideramos que tais construções constituem meras benfeitorias, nos termos do art. 216º do CCivil.
Ora, tratando-se de benfeitorias, o art. 1273º, nº 2 do CCivil apenas atribui ao seu autor um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada, na impossibilidade de separar a construção do terreno onde está implantada, e não um direito de propriedade sobre a coisa.
Assim sendo, o prédio urbano deverá ser relacionado como benfeitoria.
No que respeita ao alegado pela requerente quanto ao valor da benfeitoria e dos bens relacionados cumpre referir que qualquer discordância quanto ao respetivo valor deverá ser objeto de acordo ou deliberação em sede de conferência de interessados, nos termos do disposto no artº. 1111º, nº 1, al. b) do CPCivil, sendo certo que, mantendo-se o desacordo, eventuais licitações poderão contribuir para a correção do apontado valor.
Pelo que nada há a determinar a tal respeito, remetendo-se tal questão para a conferência de interessados tal como a questão relativa ao compressor e à máquina de lavar à pressão uma vez que a requerente não põe em causa a sua existência, apenas contesta o valor atribuído a tais bens.
Por tudo o exposto, julgo parcialmente procedente a reclamação apresentada e, em consequência, decido:
a) eliminar da relação de bens a parcela de terreno;
b) relacionar, como benfeitoria a construção existente no bem próprio da requerente;
c) relegar para a conferência de interessados as questões suscitadas quanto ao valor da benfeitoria e dos bens móveis que compõem o recheio da mencionada construção”.
9. Inconformado com o assim decidido, apelou o cabeça de casal, EE, outrossim, a requerente, AA interpôs recurso de apelação.
10. A Relação, conhecendo dos interpostos recursos, proferiu acórdão em cujo dispositivo consignou: “Decisão:
Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da ... Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar o recurso de apelação interposto por BB totalmente procedente e, em consequência, revogam o despacho recorrido e ordenam:
a - o relacionamento do prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...07, da freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o art. ...37º (conforme certidões matricial e predial de fls. 11 verso a 14), a fim deste ser partilhado, por ser bem comum do extinto casal;
b - o relacionamento como dívida do património comum conjugal, o valor, devidamente atualizado, da compensação devida por aquele património comum do extinto casal ao ex-cônjuge AA, da parcela de terreno destinada a construção, que lhe foi doada pelo seu pai, por escritura pública de 21/11/2006, junta ao presente apenso a fls. 31 e 32.
Custas da apelação interposta por BB, pela apelada AA (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Mais acordam, quanto ao recurso de apelação interposto por AA, em:
1 - julgar extinta a presente instância recursiva, por inutilidade superveniente da lide, na parte relativa ao pedido de avaliação da benfeitoria (casa edificada pelo então casal constituído pela própria apelante e pelo seu ex-marido, o apelado BB, no prédio composto por parcela de terreno destinado a construção);
2 - no mais, julgam a presente apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, na parte em que indeferiu a avaliação do recheio (verba n.º 2 da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal), e ordenam que se proceda a essa avaliação.
Custas da apelação interposta pela apelante AA, a cargo desta, atento o critério do proveito, uma vez que o apelado BB, não se opôs à avaliação por ela requerida, nem sequer contra-alegou, não sendo, portanto, vencido (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.”
11. É contra esta decisão que Recorrente/Requerente/AA se insurge, interpondo revista, aduzindo as seguintes conclusões:
“1. O valor da construção de um prédio urbano realizada por ambos os cônjuges, na vigência do seu casamento, celebrado no regime de bens de adquiridos, em imóvel pertencente a um só deles, deve ser relacionado, no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum;
2. Em sentido concordante com esta tese, se pronunciaram os acórdãos do Supremo Tribunal, proferidos em 17.9.2009, na Revista nº 1130/04.5TBABF, da 7ª secção, em 10.9.2009, na revista nº 713.05.0TBAVR.C1.S1, da 7ª secção, em 3.2.2009, na Revista nº 3240/08, da 6ª secção e em 13.2.2014, na Revista nº 1007/03.1TBSCR.L2.S1, da 2ª secção, não publicados, em que, em casos semelhantes ao presente, se afastou expressamente o regime da acessão, considerando, antes, que se estaria em presença de uma benfeitoria.
3. Esta mesma orientação tem sido recorrentemente reafirmada por este
Supremo Tribunal, designadamente nos acórdãos de 30.4.2019, na revista nº 5967/17.7T8CBR.S1, disponível em www.dgsi.pt, e de que foi Relator o Cons. Ilídio Sacarrão Martins, e de 06/05/2021, no proc. 2124/15.0T8LRA.C1.S1;
4. Todos os arestos referidos se debruçaram sobre a questão em causa nos autos, pelo que esta corrente jurisprudencial não deverá deixar de ser especialmente ponderada, designadamente por força do disposto no art.º 8.º, n.º 3, do Código Civil, segundo o qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito;
5. Esta corrente jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, sedimentada há vários anos, é de manter pela seguinte ordem de razões:
a. O regime da acessão só será chamado à colação quando o interventor seja juridicamente estranho ao prédio, isto é, sempre que, a ele, não esteja ligado em consequência de qualquer relação jurídica;
b. Os ex-cônjuges não podem ser estranhos relativamente ao prédio (parcela de terreno para construção) bem próprio de um deles onde, na vigência do casamento, ambos construíram a casa (cfr. art.º 1576.º Código Civil);
c. O art.º 1726.º dispõe sobre “aquisição de bens” e não sobre edificação de construções em terreno bem próprio de um dos cônjuges;
d. O art.º 1726.º, tal como interpretado por Rita Lobo Xavier e pelo douto acórdão recorrido, conduz à alteração do estatuto de um bem que era próprio e que passa a ser comum, o que suscita sérias reservas quanto à sua compatibilidade com o princípio da imutabilidade do regime de bens;
e. O Princípio da Tipicidade (do “numerus clausus” ou da taxatividade), que é um dos princípios estruturantes na área dos Direitos Reais, segundo o qual não é possível constituir direitos reais diferentes daqueles que se encontram expressamente previstos na lei;
6. O prédio que é bem próprio da Interessada (ora Recorrente) já tinha natureza urbana, concretamente era uma parcela de terreno destinada à construção, pelo que com a construção da casa não foi alterado o seu destino e nem a sua substância.
7. Um cônjuge deve poder anuir na aplicação de bens comuns, por exemplo, para a conservação ou para a ampliação de um prédio próprio que seja, por hipótese, a casa de morada de família, sem se expor ao risco de assim perder a propriedade exclusiva do bem, deixando de ser próprio (o que seria reintroduzir por esta via algo de muito próximo nos seus resultados da acessão industrial);
8. No caso em discussão, as obras de construção realizadas pelos cônjuges no prédio (parcela de terreno para construção) doado à Interessada (ora Recorrente), à luz do critério legal plasmado no art.º 216.º, devem ser qualificadas como benfeitorias úteis, pois configuram despesas que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, aumentam o valor objectivo do bem;
9. Tal solução corresponde “à preocupação básica do nosso direito de obstar ao enriquecimento sem causa”, já que impede que um dos cônjuges fique beneficiado no momento da partilha e, por outro lado, assenta num princípio básico do direito patrimonial da família que encontra expressão em várias normas (cfr. art.ºs 1697.º, 1722.º, n.º 2, 1726.º, 1727.º e 1728.º, todos do Código Civil).
10. Assim não decidindo, o douto acórdão recorrido violou o art.º 1273.º, n.º 2 do Código Civil.
Termos em que requer a V.as Ex.as, Venerandos Conselheiros, que por via do provimento da presente revista, se dignem revogar o douto acórdão recorrido na parte em que julgou procedente o recurso interposto pelo cabeça-de-casal, substituindo-o por douto acórdão que confirme a decisão proferida pela 1.ª instância e ordene que: a-) Seja excluído da relação de bens o prédio urbano composto por ..., ..., tipo ..., com logradouro, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...07, da freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o art.º ...37.º; e b-) Seja relacionada como bem comum o valor da benfeitoria (moradia de tipologia ...) realizada pelo extinto casal no aludido prédio urbano.
Assim, decidindo, farão V.as Ex.as, Venerando Conselheiros, a habitual, JUSTIÇA.”
12. O Recorrido/Requerido/BB apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência da interposta revista.
13. Foram dispensados os vistos.
14. Cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. A questão a resolver, recortada das alegações de revista interposta pela Recorrente/Requerente/AA consiste em saber se: (1) tendo uma construção sido realizada por ambos os cônjuges, na vigência do seu casamento celebrado no regime de bens de adquiridos, em imóvel pertencente a um só deles, tal construção deve ser relacionada no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum, ou, deve o prédio ser relacionado na sua totalidade enquanto bem comum, relacionando-se simultaneamente como divida do património comum conjugal o valor da compensação devida pela parcela de terreno que é pertença de apenas um dos cônjuges?
II. 2. Da Matéria de Facto
Com relevância e interesse para a decisão do mérito da causa, da instrução e discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:
“A - Encontra-se descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...07, da freguesia ... (...), o prédio urbano composto de casa de cave e rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, inscrito provisoriamente a matriz sob o art. ...98 e no atual artigo matricial ...27º - cfr. docs. de fls. 12 verso a 14.
B - Esse prédio encontra-se com propriedade inscrita em nome de AA, por doação feita por DD, pela ap. ...9 de 2006/12/18 – cfr. doc. de fls. 13 verso a 14.
C - A parcela/lote de terreno que compõe o prédio urbano referido em A) foi doado pelo pai de AA, DD, à última, então casada com BB, sob o regime da comunhão de adquiridos, por escritura pública outorgada em 21 de novembro de 2006 – cfr. doc. de fls. 30 verso a 32.
D - AA e BB, durante a constância do casamento, construíram a casa de cave e rés-do-chão, tipo T3, que se encontra edificada no prédio urbano identificado em A), mediante recurso a um empréstimo bancário, no montante de 90.000,00 euros (por admissão).”
II. 3. Do Direito
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da Recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil - artºs. 635º, n.º 4, e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.
II. 3.1. Tendo uma construção sido realizada por ambos os cônjuges, na vigência do seu casamento celebrado no regime de bens de adquiridos, em imóvel pertencente a um só deles, tal construção deve ser relacionada no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum, ou, deve o prédio ser relacionado na sua totalidade enquanto bem comum, relacionando-se simultaneamente como divida do património comum conjugal o valor da compensação devida pela parcela de terreno que é pertença de apenas um dos cônjuges? (1)
1. A exegese seguida no acórdão recorrido concluiu que, sendo a parte mais valiosa a despendida por ambos os ex-cônjuges na construção da moradia, durante a constância do casamento celebrado no regime da comunhão de adquiridos, mediante a utilização de meios financeiros de ambos, edificada num terreno, bem próprio de um dos cônjuges, adquirido por doação, antes da celebração do casamento, é aquela um bem comum do extinto casal, e, como tal, impõe-se o respetivo relacionamento pelo cabeça de casal a fim de ser partilhado, conquanto o património conjugal a partilhar tenha de compensar o ex-cônjuge pelo valor, atualizado, do prédio composto pela parcela de terreno que lhe foi doado e onde foi implantado o aludido prédio urbano.
Na verdade, respigamos do aresto em escrutínio: “(…) construção de uma moradia sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, como é o caso dos autos, não se traduz em trabalhos de simples melhoramento ou de conservação desse lote, mas antes transforma esse prédio rústico (art. 204º, n.º 2, 1º parte do CC), provocando uma alteração substancial e jurídica deste, mediante a incorporação nele da moradia que nele foi edificada, que passa a constituir (lote de terreno e moradia) um todo uno e indivisível, dando origem a uma coisa nova, a uma nova realidade material e jurídica, passando a constituir um prédio urbano (art. 204º, n.º 2, parte final do CC).
Ora, porque assim é, se a construção de uma moradia por ambos os cônjuges, na constância do matrimónio celebrado no regime da comunhão de adquiridos, num prédio composto por terreno destinado à construção, que é propriedade exclusiva de apenas um deles, não se subsume ao regime da acessão imobiliária por, conforme salienta a tese jurisprudencial acima enunciada, claudicar o requisito da boa fé do n.º 1 do art. 1340º do CC, mas também, ou sobretudo, porque o terreno não é coisa alheia em relação ao cônjuge que for o seu dono, essa construção também não se subsume a uma simples benfeitoria, na medida em que a edificação de uma moradia sobre um prédio composto por lote de terreno, propriedade de apenas um deles, não se traduz numa simples obra de conservação ou melhoramento desse lote, mas leva à alteração da substância deste, ao nele ser incorporada a moradia, dando lugar a uma coisa nova, a uma nova realidade jurídica.
Destarte, a situação sobre que versam os presentes autos não se reconduz à acessão imobiliária, nem é uma benfeitoria, mas antes deve ser solucionado à luz do regime matrimonial do casamento do extinto casal, “não convindo esquecer que estamos perante duas pessoas que foram casadas entre si e que, nessa medida, a relação matrimonial influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando, pois, um regime diferente daquele que decorrerá da aplicação isolada do direito comum”.
Estatui o art. 1724º do CC que, no regime da comunhão de adquiridos, fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos por estes na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei. Por sua vez, estabelece o art. 1726º do mesmo Código que, “os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e outra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações” (n.º 1), mas “fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão” (n.º 2).
Debruçando-se sobre estes preceitos, defende Rita Xavier que, “o espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os ganhos alcançados pelos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei” e que, dentro dessa filosofia, sempre que os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construam uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, por aplicação do disposto no n.º 1 do art. 1726º, se a moradia erigida pelos cônjuges for a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio é bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão. (…) a parte mais valiosa é a despendida por ambos os ex-cônjuges (apelante e apelada) na construção da moradia, durante a constância do casamento celebrado no regime da comunhão de adquiridos, mediante a utilização de meios financeiros de ambos, pelo que, nos termos do disposto no art. 1726º, n.º 1 do CC, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...07, da freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o art. ...37º (conforme certidões matricial e predial de fls. 11 verso a 14) é bem comum do extinto casal formado por apelante e apelado e, como tal, impõe-se o respetivo relacionamento pelo cabeça de casal a fim de ser partilhado. No entanto, o património conjugal a partilhar terá de nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1726º, compensar a apelada AA, pelo valor do prédio composto por parcela de terreno, que lhe foi doado, onde foi implantada a dita casa, valor esse que naturalmente será sujeito a atualização, pelo que, deverá ser relacionado o valor do terreno no qual foi implanta a moradia como compensação devida pelo património conjugal ao património do ex-cônjuge AA.”.
2. A propósito do regime jurídico aplicável à construção de um prédio pelos ex-cônjuges, na vigência do seu casamento, celebrado no regime de comunhão de adquiridos, em terreno rústico, reconhecidamente bem próprio de um dos ex-cônjuges, adquirido por doação antes da celebração do casamento, importa considerar os títulos de aquisição do direito de propriedade, concretamente, a acessão industrial enquanto causa de aquisição originária retroativa do direito de propriedade sobre determinada coisa, compreendendo na sua noção legal o conceito de incorporação de uma coisa da titularidade de uma pessoa, numa outra coisa da titularidade de outra, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 1316º, 1317º al. d), 1325º e 1326º, todos do Código Civil, e respetivos requisitos substantivos cumulativos: a) a incorporação da construção em terreno alheio; b) com materiais pertencentes ao seu autor; c) de boa fé; d) e que o valor trazido pelas obras ao prédio seja maior do que o valor que este tinha antes - art.º 1340º do Código Civil - .
No caso sub iudice está adquirido processualmente que no prédio (rústico) ou terreno, doado a um dos membros do casal, no caso à ex-cônjuge mulher, revestindo a natureza de bem próprio dela, face ao regime de bens do seu casamento, os então cônjuges edificaram um prédio urbano, donde, não se poderá reconhecer o ex-cônjuge marido um estranho relativamente ao terreno onde foi construído o prédio urbano, uma vez que, tendo a construção sido realizada por ambos os cônjuges, não era, dada a sua relação matrimonial, um terceiro em relação ao prédio, o que necessariamente, e sem outros considerando, torna inverificados os pressupostos da acessão, sublinhando-se a ausência da boa-fé, dai que não possamos falar de acessão industrial imobiliária, enquanto título de aquisição do direito de propriedade, traduzindo uma derrogação do princípio geral consagrado na expressão latina, “superficies solo cedit”.
3. Todavia, à semelhança do reconhecido em 1ª Instância, realizada a construção, enquanto prédio urbano, edificado no terreno, bem próprio do ex-cônjuge mulher, poder-se-á equacionar se o regime jurídico aplicável à construção levada a cabo a expensas de ambos os cônjuges, poderá ser encontrado à luz do instituto das benfeitorias, enquanto valorização de prédio já existente.
Cremos, porém, que o regime jurídico aplicável à construção do ajuizado prédio também não poderá ser encontrado ao abrigo do instituto das benfeitorias, na medida em que, desde logo, não está demonstrado nos autos terem sido realizados trabalhos no terreno, bem próprio do ex-cônjuge mulher, com vista a conservá-lo ou melhorá-lo.
Na verdade, o que está em causa nos autos é nada mais que uma construção de uma moradia sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, que importa inovação, de tal modo que altera substancialmente o prédio onde se edifica, provocando, assim, sublinhamos, uma alteração substancial e jurídica deste, mediante a incorporação nele da moradia que nele foi erigida, passando a constituir (lote de terreno e moradia) um todo uno e indivisível, dando origem a uma coisa nova, a uma nova realidade material e jurídica, constituindo um prédio urbano.
Como bem se adianta no acórdão sob escrutínio: “Ora, porque assim é, se a construção de uma moradia por ambos os cônjuges, na constância do matrimónio celebrado no regime da comunhão de adquiridos, num prédio composto por terreno destinado à construção, que é propriedade exclusiva de apenas um deles, não se subsume ao regime da acessão imobiliária por (…) claudicar o requisito da boa fé do n.º 1 do art. 1340º do CC, mas também, ou sobretudo, porque o terreno não é coisa alheia em relação ao cônjuge que for o seu dono, essa construção também não se subsume a uma simples benfeitoria, na medida em que a edificação de uma moradia sobre um prédio composto por lote de terreno, propriedade de apenas um deles, não se traduz numa simples obra de conservação ou melhoramento desse lote, mas leva à alteração da substância deste, ao nele ser incorporada a moradia, dando lugar a uma coisa nova, a uma nova realidade jurídica.”
4. Assim, como também se argumenta e conclui no acórdão recorrido e este Tribunal ad quem sufraga: “a situação sobre que versam os presentes autos não se reconduz à acessão imobiliária, nem é uma benfeitoria, mas antes deve ser solucionado à luz do regime matrimonial do casamento do extinto casal, “não convindo esquecer que estamos perante duas pessoas que foram casadas entre si e que, nessa medida, a relação matrimonial influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando, pois, um regime diferente daquele que decorrerá da aplicação isolada do direito comum”.
Estatui o art. 1724º do CC que, no regime da comunhão de adquiridos, fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos por estes na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei. Por sua vez, estabelece o art. 1726º do mesmo Código que, “os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e outra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações” (n.º 1), mas “fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão” (n.º 2).”
5. Revertendo ao caso em apreço, demonstrado que a parte mais valiosa é a despendida por ambos os ex-cônjuges na construção da moradia, durante a constância do casamento celebrado no regime da comunhão de adquiridos, mediante a utilização de meios financeiros de ambos, impõe-se reconhecer que o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...07, da freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o art.º ...37º (conforme certidões matricial e predial de fls. 11 verso a 14) é bem comum do extinto casal, e, como tal, importa o respetivo relacionamento pelo cabeça de casal a fim de ser partilhado - art.º 1726º n.º 1 do Código Civil - todavia, o património conjugal a partilhar terá de compensar o ex-cônjuge mulher pelo valor atual do prédio composto pela parcela de terreno que lhe foi doado, e onde foi implantada a construção - art.º 1726º n.º 2 do Código Civil - donde, deverá ser relacionado o valor do terreno no qual foi implanta a moradia como compensação devida pelo património conjugal ao património do ex-cônjuge mulher, AA.
6. Pelo exposto, na improcedência das conclusões retiradas das alegações, trazidas à discussão pela Recorrente/Requerente/AA, não reconhecemos à respetiva argumentação, virtualidade no sentido de alterar o destino da demanda.
III. DECISÃO
Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em julgar improcedente o recurso interposto, e, consequentemente, nega-se a revista, mantendo, nos seus precisos termos, a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente/Requerente/AA.
Notifique.
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 13 de outubro de 2022
Oliveira Abreu (Relator)
Nuno Pinto Oliveira
Ferreira Lopes