ESCRITURAÇÃO MERCANTIL
RECUSA DE APRESENTAÇÃO
SEGREDO COMERCIAL
DIREITO À PROVA
Sumário


I – O segredo da escrituração mercantil não faculta às partes recusar a apresentação dos documentos quando se trate de apurar factos em que tenha interesse ou responsabilidade a pessoa a quem eles pertençam, na medida em que aquele segredo não pode subsistir em tal situação, sendo que, em todo o caso, face a um eventual conflito de interesses, por um lado, o do segredo comercial e, por outro, o do dever geral de colaboração com a administração da justiça, sempre o direito ao segredo deve ceder perante um interesse público superior, que é o da boa administração da justiça.

Texto Integral


ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

X UNIPESSOAL, LDA., sociedade comercial por quotas, número de identificação de pessoa coletiva ………, com sede na Rua …, código postal …, freguesia de … e …, concelho de Esposende, veio instaurar acção de condenação em processo comum, contra …MÉDICA – PRODUTOS MÉDICOS E HOSPITALARES, LDA., sociedade comercial por quotas, número de identificação de pessoa coletiva ………, com sede na Rua …, n.º .., código postal …, freguesia de … (…), concelho de Braga, invocando ter encomendado à ré, em 13.04.2021, entre o mais, 50000 respiradores (EPI), denominados na factura de “máscaras de proteção KN95”6 (semimáscara de protecção respiratória), num total de 8.089,67 euros, correspondente à factura número FA/121/3079, que constatou apresentarem defeitos impeditivos da sua utilização para o fim a que se destinavam, por não apresentarem as características e qualidades asseguradas e legalmente exigíveis, o que a levou a denunciar imediatamente os defeitos, que a ré aceitou e validou, ficando de creditar a quantia facturada à autora, no valor de 7.685,00 e retomar a mercadoria vendida.

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Em sede de contestação, a Ré, para o caso que agora nos interessa, veio invocar que apenas procedeu à importação das máscaras em seu nome, por dispor de licença de impostação deste tipo de produtos hospitalares e demais meios para a realização dessa operação transfronteiriça, o que não sucedia com a autora, que nunca tinha realizado qualquer operação de aquisição transfronteiriça de mercadorias, tendo, como tal, na decorrência desse pedido, sido efectuado o pagamento da mercadoria com recurso a meios financeiros que também eram da propriedade da A.
Em suma, referiu que existiu um negócio de compra de máscaras, que apesar de formalmente titulado em nome da ré, foi realizada a pedido e por conta da autora e pago com dinheiro desta.
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Requereu, nessa sequência, a autora que a ré identificasse a/as sociedade(s), com sede no distrito de Coimbra, a quem vendeu máscaras KN95 após o mês de Janeiro de 2021 e, indicando a ré que não vendeu máscaras KN95 a quaisquer sociedades do referido distrito, após tal período temporal, que esta juntasse aos autos cópia do balancete analítico, designadamente com detalhe completo da “Y” (clientes), por reporte ao ano de 2021.
Sustenta o relevo da junção de tais documentos, com a alegação de que o marido da legal representante da autora teve conhecimento, em conversa informal com o colaborador da ré P. C., que a ré havia vendido máscaras KN95 das que, também, terá vendido à autora, a uma sociedade do referido distrito que terá reclamado da qualidade das mesmas.
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Perante o objecto do litígio nos termos sinteticamente expostos, foi a ré notificada para o indicado efeito, declararando ser falso que empresa alguma tenha denunciado junto da Ré a existência de defeitos das máscaras adquiridas em Espanha.
Defendeu ainda não entender o alcance probatório da documentação solicitada, defendendo que nos autos, sem prejuízo de outras questões colocadas, apenas se a discute o eventual defeito da mercadoria vendida pela ré à autora e não da ré a outros eventuais clientes.
No mais, opõs-se à junção do balancete analítico, designadamente com detalhe completo da “Y” (clientes), por reporte ao ano de 2021, sustentando que autora e ré prosseguem objectos comerciais parcialmente idênticos, sendo, por isso, concorrentes uma da outra, motivo pelo qual a documentação solicitada ofende o sigilo mercantil de que beneficia a escrituração da ré.
Sustenta, por isso, ser legitima a recusa em disponibilizar tal documentação nos termos previstos no artigo 42.º e 43.º do Código Comercial e 417.º do CPC.
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A autora pronunciou-se, sustentando que a recusa em apresentar os documentos é ilegítima já que não pretende o acesso a toda a escrituração da autora, mas apenas e só do balancete analítico, designadamente com detalhe completo da “Y” (clientes), por reporte ao ano de 2021.
Reitera, no mais, que a informação solicitada é relevante para discussão da causa.
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Foi, então, proferida decisão que, considerando que a par da existência do defeito no produto, se discute a própria existência do negócio de compra e venda de máscaras, entendeu ser a informação pertinente e relevante.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando, veio a Ré interpor recurso, nele concluindo nos seguintes termos:

1. A autora no seu requerimento de prova requereu que a apelante juntasse aos autos balancete analítico, com detalhe completo da Y (Clientes) da sua contabilidade, o que fez sob o pretexto de que lhe teria sido “confidenciado” que esta vendeu máscaras para um cliente em Coimbra e que que também teriam sido reclamados defeitos das máscaras;
2. A apelante opôs-se a essa pretensão com fundamento na devassa do segredo mercantil de que beneficia a sua contabilidade, nos termos previstos no artigo 42.º e 43.º do Código Comercial,
3. Mais tendo alegado que era falso que empresa alguma tivesse denunciado junto da apelante a existência de defeitos das máscaras adquiridas em Espanha, sendo igualmente falso que o senhor P. C. tivesse reportado a existência de defeitos em material vendido pela apelante em cuja intermediação tivesse participado,
4. E que não era entendível o alcance probatório da documentação solicitada, pois nos autos, sem prejuízo de outras questões colocadas, apenas se a discute o eventual defeito da mercadoria vendida pela ré à autora e não da ré a outros eventuais clientes.
5. Mais alegou a apelante em favor da não junção desse documento que a autora e a apelante prosseguem objetos comerciais parcialmente idênticos, sendo, por isso, concorrentes uma da outra, motivo pelo qual a documentação solicitada - o detalhe completo da “Y”, sob a rubrica “CLIENTES”, ofendia o sigilo mercantil de que beneficiava a escrituração da apelante, pelo que era legitima a recusa em disponibilizar tal documentação nos termos previstos no artigo 42.º e 43.º do Código Comercial e 417.º do CPC,
6. Com efeito, a disponibilização dessa documentação pela apelante revelaria TODOS OS SEUS CLIENTES, COM INDICAÇÃO DA RESPETIVA IDENTIDADE E VOLUME DE FATURAÇÃO E PREÇOS, o que seria ilegal, pois revela-se absolutamente excessiva e totalmente injustificada face à prova pretendida pela autora, que é exclusivamente apurar a eventual existência de defeitos na mercadoria, tendo à sua disposição outros meios para efetivação desse ónus probatório.
7. O tribunal recorrido considerou que o acesso a essa documentação era pertinente não só para a questão dos defeitos, alegado pela autora, quer para a questão da propriedade das máscaras, alegado pela apelante, tendo consignado que “…a demonstração que a autora pretende fazer, - de que a ré vendeu máscaras KN95 das que, também, vendeu à autora, a uma sociedade do distrito de Coimbra que terá também reclamado da qualidade das mesmas - constitui um facto indiciário de que o negócio entre a ré e a sociedade espanhola aconteceu efetivamente.”
8. A justificação apresentada pelo tribunal recorrido para a exibição desses documentos não encontra respaldo na matéria em discussão nos autos e, acima de tudo, na possibilidade de a autora e o tribunal recorrerem a outros meios de prova sem a afetação do sigilo mercantil da apelante.
9. A junção dos documentos da contabilidade, nos termos solicitados pela autora, não têm qualquer interesse para a boa decisão da causa, pois em nada esclareceria a questão suscitada pela autora, que é saber se a mercadoria vendida padece ou não de defeito.
10. Mesmo que, por mera hipótese académica, a apelante identificasse esse alegado cliente e até que se demonstrasse que teriam sido vendidas máscaras com defeito, que insiste-se, não existe, isso em nada alteraria a obrigação da autora em demonstrar que denunciou tempestivamente os defeitos na mercadoria e que tais defeitos existem.
11. A prova pretendida pela autora pode, e deve, ser obtida por outros meios, designadamente, por perícia ou outros, pelo que a entrega da contabilidade nos termos requeridos é ilegal.
12.Por outro lado, também a questão da propriedade das máscaras, que apenas foi suscitada pela apelante, não poderia, nem pode, ser resolvida com a identificação desse alegado cliente de Coimbra (que não existe), pelo simples facto de que a apelante faz da venda de máscaras KN95 a sua atividade comercial, pelo que não se vislumbra como poderia o tribunal apreciar essa a questão com a simples junção de uma fatura, ainda que dessa fatura resultasse que foram adquiridas em Espanha.
13. Note-se que a autora requereu a junção desse alegado documento não para prova da propriedade das máscaras, mas para prova de alegados defeitos, o sempre pode ser obtido através de outros meios.
14. A junção de toda a contabilidade da ré no que a Clientes diz respeito é manifestamente desproporcional para a prova pretendida pela autora, que é a identificação de um hipotético cliente, cuja existência lhe teria sido “confidenciada” por um terceiro e, por isso, não está sequer confirmada, e não existe.
15.A decisão do tribunal sob recurso não é proporcional em face dos interesses conflituantes de colaboração com o tribunal, a que todas as partes estão sujeitos e devem obedecer, e o de proteção devida à escrituração mercantil da apelante,
16. Pois não se afigura indispensável este meio de prova em função do ónus de prova que impende sobre cada uma das partes, podendo a autora recorrer a outros meios de prova para a descoberta da verdade material.
17. O despacho sob recurso é ilegal, por violação do disposto no artigo 435.º do CPC e artigos 42.º e 43.º do Código Comercial, devendo ser substituído por outro que rejeite o meio de prova requerido pela autora, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.
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Por sua vez, a A. veio apresentar as suas contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:

I. O Douto Despacho proferido em 9 de maio de 2022, com a referência Citius 178793750, não merece qualquer censura, pelo que deve ser confirmado.
II. A argumentação de defesa da ré é alicerçada na inexistência de defeitos, invocando, ainda, que a propriedade das máscaras pertence à autora.
III. A ré, representada por um seu colaborador, assumiu a venda das máscaras adquiridas em Espanha, que alega serem propriedade da autora, a terceiros, e o surgimento de defeitos nas mesmas.
IV. A identificação desses eventuais clientes adquirentes das máscaras é matéria imprescindível nos presentes autos.
V. A ré recusa-se a colaborar com o Tribunal e a juntar a documentação que permita que a autora identifique os seus clientes e que, consequentemente, sejam notificados no sentido de aquilatar se esta lhes vendeu, ou não, máscaras KN95 e, em caso de resposta afirmativa, quando, qual o lote e se as mesmas apresentaram, ou não, defeito.
VI. A prova requerida pela autora é relevante e pertinente para a boa decisão da causa, sendo a única forma de a autora conseguir ter acesso à conta contabilística de clientes da ré e proceder à respetiva notificação de tais clientes nos termos anteriormente expostos. VII. A documentação na posse da ré tem manifesto interesse para a decisão da causa, sendo um meio probatório cuja utilidade e relevância é imprescindível, e a matéria que com tal documentação se pretende provar está, claramente, articulada pelas partes nos autos, sendo pilar da argumentação defensiva da ré.
VIII. O invocado caráter secreto da escrituração comercial implicaria que a autora tivesse requerido que esta juntasse aos autos a “exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro” (artigo 42.º do C. Comercial), esta sim que apenas poderia ser ordenada em casos contados e específicos.
IX. A matéria relativa ao segredo da escrituração mercantil e documentos dos comerciantes prevista nos artigos 41.º, 42.º e 43.º do Código Comercial proíbe que autora requeira o acesso a toda a escrituração contabilística da ré, de forma indiscriminada e não relacionada com a matéria em discussão nos autos, o que não se pretende, como é óbvio.
X. A autora baliza perfeitamente a documentação que pretende, limitando-a material e temporalmente.
XI. Não se verifica, in casu, nenhuma situação de recusa prevista no n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Civil.
XII. Não se verifica, também, uma qualquer questão de violação do sigilo fiscal previsto no artigo 64.º da Lei geral Tributária, inaplicável in casu.
XIII. As justificações dadas pela ré para se recusar a juntar aos autos a documentação solicitada pela autora não têm fundamento legal bastante não se podendo sobrepor uma infundamentada alegação de sigilo mercantil sobre o apuramento da verdade e boa administração da justiça.
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O recurso foi recebido como de apelação, com subida em separado, nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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III- O Direito

Como resulta do disposto nos arts.º 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.
Deste modo, e tendo em consideração o objecto do recurso cumpre apreciar e decidir sobre se a diligência probatória em causa é inadmissível ou desnecessária.
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Fundamentação de facto

- as incidências fáctico-processuais referenciadas no relatório elencado no ponto I.
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Fundamentação jurídica

O direito à prova, enquanto uma das componentes do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos tribunais, implica a possibilidade de as partes utilizarem, em benefício próprio, os meios de prova que escolherem. As partes gozam, pois, de inteira liberdade na escolha dos meios probatórios de que entendam lançar mão para afirmação dos interesses que pretendem tutelar.
Esse poder de iniciativa instrutória, quando regularmente exercitado, só deve ser limitado quando as diligências requeridas sejam inadmissíveis, meramente dilatórias ou manifestamente desnecessárias à obtenção da verdade material.
No tocante à questão suscitada, como é possível apurar-se de uma simples pesquisa na internet, a escrituração mercantil é o registo dos factos relativos aos comerciantes que podem influir na sua situação patrimonial que surgiu da necessidade de os comerciantes conhecerem a sua própria situação patrimonial, os seus ganhos e perdas, os seus direitos e obrigações, acabando por ser utilizada como meio de prova dos factos registados, em litígios entre o comerciante e terceiros.
Por sua vez, a ‘Y – Clientes’ regista os movimentos entre a entidade e os compradores de mercadorias, de produtos e de serviços.
Relativamente à matéria referente à escrituração mercantil, no que refere às situações e condições em que a mesma pode ser exibida judicialmente e em que pode ser objecto de prova pericial, encontra-se a mesma regulada nos arts. 41.º a 44.º do Código Comercial, sem que se considere que tais disposições tenham sido revogadas pelo art. 519.º do C.P.C., face ao decidido no Acórdão do STJ de 22/04/1997, proc. N.º 087158, disponível no site da dgsi, que, uniformizando jurisprudência nesse sentido, enunciou que “o[O] artigo 43.º do Código Comercial não foi revogado pelo artigo 519.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1961, na versão de 1967, de modo que só poderá proceder-se a exame dos livros e documentos dos comerciantes quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”.
Vejamos, então, o que se preceitua nos referidos preceitos.
No art. 41.º do Código Comercial estabelece–se o princípio do segredo da escrituração mercantil ao estatuir que “nenhuma autoridade, juízo ou tribunal pode fazer ou ordenar varejo ou diligência alguma para examinar se o comerciante arruma ou não devidamente os seus livros de escrituração mercantil”.
Com este segredo procura-se proteger “a privacidade do comerciante, de afastar os seus bens da cobiça alheia e de evitar que a sua actividade seja afectada por informações sobre a sua situação e as perspectivas de negócio” – cfr. L.Brito, in ‘Direito Comercial’, I, pg. 309.
Já no que toca à utilização dessa escrituração como meio probatório – quer por via da sua exibição, quer por via do seu exame – esse princípio não tem aplicação absoluta, embora se manifeste nas restrições que são colocadas pelos arts. 42.º e 43.º, já que, como decorre destas normas, a exibição ou exame dessa escrituração apenas é admissível nos casos que aí se encontram previstos, ao permitir, o primeiro, a exibição judicial por inteiro dos livros de escrituração comercial e, o segundo, o exame judicial desses livros.
Concretamente, no art. 42.º, preceitua-se que “a[A] exibição judicial dos livros de escrituração comercial por inteiro, e dos documentos a ela relativos, só pode ser ordenada a favor dos interessados, em questões de sucessão universal, comunhão ou sociedade e no caso de quebra.
Por sua vez, dispõe-se no art. 43.º, que “f[F]ora dos casos previstos no artigo precedente, só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de ofício, quando a pessoa quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida”.
O Juiz Conselheiro Fernando Pereira Rodrigues, in ‘Os meios de prova em processo civil’, 2016, Almedina, pgs. 118 a 120, a respeito da conciliação de tais normas jurídicas, refere que “fora do caso da exibição por inteiro da escrituração, que apenas é facultada nas situações previstas no preceito citado, nada impede a exibição, para exame e/ou junção de cópia, de elementos da escrituração comercial. A lei do processo não admite a recusa de tais elementos, sendo certo que o artigo 43.º do Código Comercial até prevê, com limites, o exame daqueles elementos, ao estabelecer que «fora dos casos previstos no artigo precedente, só poderá proceder-se a exame nos livros e documentos dos comerciantes, a instâncias da parte, ou de oficio, quando a pessoa a quem pertençam tenha interesse ou responsabilidade na questão em que tal apresentação for exigida».
A diferença de regimes tem inteira justificação, pois que enquanto "a exibição por inteiro” envolve o exame completo dos livros, permitindo uma devassa total da atividade profissional do comerciante, e só pode, por isso, ter lugar nos casos, taxativamente, enumerados no artigo 42.º, já a "apresentação" constitui, segundo o artigo 43.º um exame restrito aos elementos da escrituração que interessam à prova de determinado facto concreto, não assumindo, consequentemente, a mesma incomodidade.
Da conjugação dos normativos citados decorre, pois, que o segredo da escrituração mercantil, previsto nos artigos 41.º, 42.º e 43.º do Código Comercial, não faculta às partes recusar a apresentação dos documentos quando se trate de apurar factos em que tenha interesse ou responsabilidade a pessoa a quem eles pertençam, na medida em que aquele segredo não pode subsistir em tal situação, sendo que, em todo o caso, face a um eventual conflito de interesses, por um lado, o do segredo comercial e, por outro, o do dever geral de colaboração com a administração da justiça, sempre o direito ao segredo deve ceder perante um interesse público superior, que é o da boa administração da justiça.
Aliás, como bem se entendeu no douto Acórdão do STJ de 25.11.97, acessível na página da dgsi, a escrituração comercial não é mais secreta que quaisquer outros assentos ou escritos particulares, pelo contrário, e precisamente porque é imposta por lei para permitir conhecer em cada momento o estado do negócio e fortuna do comerciante, isto é, porque se destina a constituir essencialmente um meio de prova, a escrita pode ser objecto de exame, até contra a vontade e os interesses daquele a quem pertence. Tanto na imposição aos comerciantes da obrigação da escrita, como na determinação do modo por que deve ser organizada, também se atendeu ao interesse geral e mal se explicaria que, representando uma prova pré-constituída, quando essa prova se tornasse necessária e oportuna, se impedisse a sua prestação - Cfr., no mesmo sentido, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 21/11/2011, Processo n.º 462/10.8TBVFR-W.P1, de 28/11/2011, Processo n.º 462/10.8TBVFR-V.P1, e de 17/11/2008, Processo n.º 0855318, todos publicados em www.dgsi.pt.

Ora, no caso concreto, negando a Ré ter contratualizado directamente com a A. a compra e venda das máscaras, assim se discutindo a própria existência desse negócio, e incidindo o exame apenas sobre os elementos da escrita comercial da apelante que carecem de indagação, por forma a esclarecer qual a concreta relação contratual estabelecida entre as partes que se encontra espelhada, ou não, na sua contabilidade, na ‘Y-clientes’, respeitante a pessoa a quem pertence esse elemento com interesse ou responsabilidade na questão, há que considerar ser esse exame à escrituração comercial da parte relevante e idóneo para fazer a demonstração dos factos sobre os quais vai incidir e que são necessários à boa decisão da causa.
É que, se é verdade que a escrita dos comerciantes deve ser vigorosamente protegida e poupada à devassa injustificada, não é, no entanto, concebível que essa protecção propicie a ocultação de dados que não interessem somente ao comerciante mas também àqueles que com ele alegadamente contrataram – neste sentido também assim se decidiu no Acórdão do STJ de 16.02.2000, no processo n.º 99S260, em www.dgsi.pt.
Julga-se que, por via do elemento requerido, se concilia de forma proporcional quanto possível, atendendo a que a perícia se limitou aos defeitos das máscaras, o direito ao segredo mercantil e as exigências da descoberta da verdade material e da justa composição do litígio, tendo em conta que as partes têm o direito de se socorrer de todos os meios probatórios disponíveis e admissíveis com o objectivo de fornecer ao julgador elementos suficientemente credíveis para a formação da sua convicção.
Nestes termos, forçoso se torna concluir ter de improceder o recurso, por forma a manter-se a decisão proferida.
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IV. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes que integram esta 2.ª Secção Cível em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Notifique.
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Guimarães, 13 de Outubro de 2022
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária sem observância do acordo ortográfico, à excepção das transcrição efectuadas)