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CONTRATO FIDUCIÁRIO
SIMULAÇÃO RELATIVA
FRAUDE À LEI
PACTO COMISSÓRIO
Sumário
“I - Entende-se que o objecto do negócio é contrário à lei sempre que viole regras imperativas (art. 280º do CC). No entanto, há contrariedade à lei, não só quando o objecto do negócio viola directamente uma disposição legal imperativa, como também quando o objecto, sem ofender frontalmente a lei, tenta contornar uma proibição por esta imposta, chegando por outros meios ao resultado proibido (fraude à lei). II - Para além das garantias previstas na lei – garantias tout court –, sejam pessoais ou reais, pode surgir a utilização de outros institutos ou figuras jurídicas com finalidade diversa prevista na lei, que as partes utilizam, por acordo, para desempenhar funções de garantia. III - Dentro do género, surge a figura da alienação fiduciária em garantia, a qual constitui um negócio fiduciário nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade. IV - O contrato fiduciário, que não se confunde com a simulação relativa (art. 241º do CC), visto a transmissão da propriedade do bem do vendedor para o comprador ser querida, tem associado o risco de abuso do fiduciário em resultado da evidente desproporção entre o meio, em abstracto excessivo para o fim considerado, mas necessário, e o fim visado. V - A respeito da validade dos negócios fiduciários, na vigência do actual CC, é dominante, na doutrina e na jurisprudência, a tese da sua admissibilidade, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respectivo objecto em face do disposto no artigo 280.º do CC, em particular, na vertente de fraude à lei. VI - Assim, tal situação de fraude à lei tem-se por verificada, quando da venda fiduciária em garantia resulta uma qualificada desproporção entre o valor do crédito garantido e o valor do bem dado em garantia, devendo-se entender que, nessas circunstâncias, o objecto da venda fiduciária em garantia deve ser considerado ilícito, em face do disposto no citado artigo 280.º do CC, por o negócio jurídico em causa defraudar as regras da proibição do pacto comissório – art. 694º do CC – aqui aplicáveis por extensão teleológica”.
Texto Integral
APELAÇÃO Nº 1276/18.2T8VLG.P1
Sumário (elaborado pelo Relator- art. 663º, nº 7 do CPC):
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Comarca do Porto - Juízo Central Cível do Porto – Juiz 2
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Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto.
I. RELATÓRIO. Recorrente(s): - T..., Lda. Recorrida: AA;
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AA veio intentar a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra T..., Lda.
Foi requerida e deferida a intervenção de BB, como sucessor do falecido marido da autora.
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Objecto do litígio
Veio a autora pedir que se declare a nulidade do negócio de compra e venda que celebrou com a ré por simulação ou (pedido subsidiário) por fraude à lei e, em consequência, que se condene a ré a entregar à autora o imóvel objecto do mesmo.
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Regularmente citada, a ré apresentou contestação e deduziu reconvenção, pedindo que se condene a autora a entregar o imóvel à ré ou subsidiariamente a restituir-lhe todos os valores suportados pela ré com o dito imóvel, na quantia de €50.067,64, acrescido de juros desde a data da escritura pública até efectivo e integral pagamento.
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A ré invocou ainda que a autora litiga com má-fé e pediu a condenação da mesma em multa e indemnização.
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Na réplica, a autora manteve o alegado na petição inicial e pugnou pela improcedência da reconvenção.
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Decidido o incidente de intervenção de terceiros, foi dispensada a realização da audiência prévia e proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância, tendo ainda sido proferido despacho a fixar o objecto do litígio e a enunciar os temas de prova.
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Apreciados os requerimentos probatórios, e realizada a prova pericial, procedeu-se a julgamento com observância de todo o formalismo legal, conforme resulta das respectivas actas.
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De seguida, foi proferida a sentença, que constitui o objecto do presente Recurso, onde o Tribunal de 1ª Instância conclui com a seguinte decisão:
“…IV. Decisão:
Em face do exposto:
A. julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência:
- declara-se a nulidade do negócio de compra e venda celebrado entre as partes em 16.03.2012, por fraude à lei;
- ordena-se o cancelamento do registo da propriedade da ré sobre o imóvel objecto do aludido contrato de compra e venda;
- absolve-se a ré do restante peticionado;
- condena-se a ré nas custas da acção, nos termos previstos no art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC.
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B. julgo a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência:
- condena-se a autora e o interveniente, na qualidade de sucessor de CC, a pagar à ré a quantia de € 48.466,47 (quarenta e oito mil, quatrocentos e sessenta e seis euros e quarenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, a contar da data de notificação do pedido reconvencional e até efectivo e integral pagamento;
- absolve-se os reconvindos do restante peticionado;
- condena-se a autora, o interveniente, na qualidade de sucessor de CC, e a ré, nas custas da reconvenção, na proporção do respectivo decaimento, de harmonia com o disposto no art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC.
Registe e notifique… “.
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É justamente desta decisão que a Ré/Recorrente veio interpor o presente Recurso, apresentando as seguintes conclusões:
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Devidamente notificados, os AA. vieram apresentar contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso (sem apresentação de conclusões).
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cf. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
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Questão prévia: Admissibilidade da junção da prova documental em sede da instância de recurso.
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Além disso, no seguimento da referida orientação, a Ré/Recorrente coloca as seguintes questões que importa apreciar:
I) nulidade da sentença (art. 615º do CPC):
1.1 por excesso de pronúncia
1.2. por falta de fundamentação de facto e de direito;
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(altera-se a ordem de conhecimento das questões, tendo em conta a sua prejudicialidade)
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II)- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
- Saber se os factos provados constantes dos nºs 2, 3, 4, 5 dados como provados devem ser considerados não provados;
- saber se o ponto 6 dos factos provados deve ser alterado para a seguinte redacção: “Por título de compra e venda, realizado em 16.03.2012 na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, a autora, por si e na qualidade de procuradora do seu marido CC, vendeu à ré, representada por DD, que declarou comprar, pelo preço de € 47.500,00, já recebido, a fracção autónoma, designada pela letra “B”, correspondente ao primeiro andar, compartimento B.1 na cave para garagem e arrumos, logradouro na parte lateral e nas traseiras quintal, descrito sob o ......, da freguesia ... da Conservatória do Registo Predial ... e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., encontrando-se registada à data da favor da autora e do seu marido pela Ap. ..., de 23.06.1993, conforme documento de fls. 4v a 6-A e cujo teor se dá por integralmente reproduzido”.
- saber se deveria ter sido dado como provado no ponto 20º dos factos provados que: “a ré exigiu à autora a entrega do imóvel e face à recusa desta, promoveu junto das respectivas entidades fornecedoras de água e luz, o cancelamento de tais serviços no imóvel.”
- saber se o facto nº 15 dos factos provados deveria ter sido dado como não provado
- saber se a al. e) dos factos não provados deve ser considerada provada (prova documental superveniente) - “a ré pagou o valor de €896,17 a título de IMT por não ter procedido à revenda da fracção autónoma aludida em 6 no prazo de isenção”.
(não tendo o tribunal recorrido requisitado o documento violou o princípio do inquisitório e o princípio da descoberta da verdade material (cfr. artigos 411º, 417º, 436º e 590º, nº 2, todos do Código Processo Civil).
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III)- Saber se, sendo modificada a matéria de facto no sentido propugnado pela Recorrente, a acção deve ser julgada improcedente.
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A) - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença proferida em 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
“II. Fundamentação
A. Factos provados:
Tendo em consideração o acordo das partes, os documentos juntos aos autos, a prova produzida em audiência final e o disposto no art.º 5º, do NCPC, o tribunal considera provados os seguintes factos, com interesse à boa decisão da causa:
1. A ré é uma empresa que se dedica à indústria de construção civil e obras públicas, por empreitada e por conta própria, a compra e venda de imóveis, revenda dos adquiridos para esse fim, construção de prédios para venda, no todo ou em fracções ou para outros fins e a urbanização de terrenos para esse fim, conforme documento de fls. 48 a 52v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos.
2. Devido a dificuldades financeiras para solver dívidas contraídas no exercício da sua actividade comercial, a autora, por indicação de terceiros, abordou o sócio-gerente da ré solicitando que o mesmo lhe emprestasse dinheiro.
3. Ao que este respondeu que o empréstimo poderia ser concedido na condição da propriedade da fracção autónoma pertencente à autora ser transferida para a ré, por um valor próximo do respectivo valor patrimonial.
4. Como as dificuldades financeiras da autora se foram agravando, a autora acordou com a ré, na pessoa do seu sócio gerente, que aquela procederia à entrega da quantia global de €47.500,00, com obrigação da autora restituir a aludida quantia, acrescidas de juros e, para garantir a restituição dessa quantia, a autora vendia à ré o imóvel referido em 2., pelo preço correspondente ao valor assim entregue.
5. Mais acordaram as partes que a autora e o seu marido poderiam continuar a viver no imóvel, sem o pagamento de qualquer contrapartida a favor da ré.
6. Em conformidade com o assim acordado, por título de compra e venda, realizado em 16.03.2012 na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, a autora, por si e na qualidade de procuradora do seu marido CC, declarou vender à ré, representada por DD, que declarou comprar, pelo preço de €47.500,00, já recebido, a fracção autónoma, designada pela letra “B”, correspondente ao primeiro andar, compartimento B.1 na cave para garagem e arrumos, logradouro na parte lateral e nas traseiras quintal, descrito sob o ......, da freguesia ... da Conservatória do Registo Predial ... e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., encontrando-se registada à data da favor da autora e do seu marido pela Ap. ..., de 23.06.1993, conforme documento de fls. 4v a 6-A e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. No aludido título de compra e venda, a autora declarou ainda que vendia o referido imóvel livre de quaisquer ónus ou encargos, designadamente da hipoteca voluntária registada pela Ap. ..., de 23.06.1993, conforme documento de fls. 4v a 6-A e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
8. E, por sua vez, a ré declarou que o prédio se destinava a revenda, conforme documento de fls. 4v a 6-A e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
9. No dia da outorga do titulo de compra e venda, a pedido da autora, a ré emitiu a favor do credor hipotecário do imóvel, o Banco 1..., um cheque bancário no valor de €10.534,45, o qual foi pago.
10. Emitiu ainda, a pedido da autora, um cheque bancário a favor de IGCP – Instituto de Gestão Tesouro e Crédito Público, um cheque no valor de € 10.462,61, o qual foi pago.
11. E ainda outros seis cheques (um deles bancário), estes todos a favor da autora, nos valores de €17.000,00, €4.000,00, €12.502,94, €3.325,00, €4.175,00 e de €800,00, respectivamente.
12. Os referidos cheques foram pagos, à excepção do cheque no valor de €800,00, o qual, igualmente a solicitação da autora, foi devolvido à ré contra a entrega à autora do respectivo valor em numerário.
13. A ré liquidou igualmente os custos e os impostos relativos à celebração da aludida compra e venda, no valor global de €705,00.
14. Desde a aquisição do imóvel, é a ré quem paga anualmente o IMI, tendo despendido nos anos de 2015 a 2017 a quantia global de €966,47.
15. À data da celebração do dito titulo de compra e venda, o imóvel valia cerca de €160.000,00.
16. E actualmente tem um valor de mercado que ronda o montante de €165.000,00.
17. Em 25.10.2013, a autora e o marido foram declarados insolventes, por sentença proferida no processo que correu termos sob o nº 941/13.5TYVNG, no Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 3, conforme certidão de fls. 78 a 81v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
18. No referido processo, em 21.04.2020, foi proferido despacho final de exoneração do passivo restante, e, em 27.05.2020, os autos foram remetidos à conta, conforme informação de fls. 98 a 99 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
19. O marido da autora veio a falecer em 15.08.2017, conforme documento de fls. 2v a 3 do processo apenso e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
20. A autora não procedeu à restituição à ré da quantia entregue aquando da realização do negócio aludido em 6, pelo que, a partir de 2016, a ré começou a exigir à autora a entrega do imóvel e face à recusa desta, promoveu junto das respectivas entidades fornecedoras de água e luz, o cancelamento de tais serviços no imóvel.
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B. Factos Não Provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa, designadamente, que:
a. o negócio em causa foi realizado entre a autora e o sócio gerente da ré, a título pessoal;
b. as partes não tiveram a intenção de vender nem de comprar o referido imóvel;
c. a autora e a ré celebraram a aludida compra e venda com a intenção de enganar os credores da autora;
d. não foi liquidado pela ré o valor declarado no título de compra e venda;
e. a ré pagou o valor de €896,17 a título de IMT por não ter procedido à revenda da fracção autónoma aludida em 6 no prazo de isenção.
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B) - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Cumpre apreciar as questões atrás enunciadas.
Comecemos por apreciar a questão da admissibilidade da junção de prova documental.
Alegam os Recorrentes que tal junção ainda seria admissível, alegando o seguinte:
“u) Ora, à Meritíssima Juiz a quo compete o princípio do inquisitório e o princípio da descoberta da verdade material, podendo, se mais não for requisitar documentos ou ordenar o aperfeiçoamento nos termos dos artigos 411º, 417º, 436º e 590º, nº 2, todos do Código Processo Civil.
v) Assim, conforme se constata facilmente do documento junto, o mesmo tem sobreposto o comprovativo do pagamento, podendo e devendo a Meritíssima Juiz a quo ter ordenado a junção aos autos do mesmo documento de forma visível.
w) Pelo que a Meritíssima Juiz a quo violou o princípio do inquisitório e o princípio da descoberta da verdade material e o disposto nos artigos 411º, 417º, 436º e 590º, nº 2, todos do Código Processo Civil.
x) Contudo, a Recorrente junta agora aos autos o documento totalmente visível, pelo que deveria ter sido dado como provado que “a ré pagou o valor de € 896,17 a título de IMT por não ter procedido à revenda da fracção autónoma aludida em 6 no prazo de isenção”.”.
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Julga-se liminarmente que a recorrente tem razão.
Na verdade, compulsados os documentos em análise, não podem restar dúvidas que o ora junto corresponde exactamente àquele que já havia sido junto a fls. 57, v. e 58 dos autos, sendo que a diferença decorre apenas de se ter retirado da cópia do documento, a cópia do talão de multibanco (comprovativo do pagamento do IMT) que ocultava parcialmente o teor do documento (e que tinha sido fotocopiado em cima do documento a cujo pagamento se reportava).
Nessa medida, não será difícil concluir que o documento junto com as alegações não é, em bom rigor, um novo documento, mas sim o mesmo documento já junto oportunamente, apenas com a diferença de se ter retirado a referida sobreposição do talão de multibanco que ocultava parcialmente os seus dizeres.
Tendo em conta o que se acaba de concluir, obviamente que a junção da nova versão do documento já junto oportunamente não deve obediência às regras processuais estabelecidas no art. 691º do CPC quanto à admissibilidade da junção da prova documental em sede de recurso.
É certo que “Como resulta de jurisprudência uniforme e reiterada, os recursos são meios processuais de impugnação de anteriores decisões judiciais e não ocasião para julgar questões novas… Em princípio, não pode alegar-se matéria nova (ius novorum; nova) nos tribunais superiores, em recurso, não obstante o tribunal ad quem dever apreciar das questões de conhecimento oficioso (…). Daí que, em princípio, não devam ser juntos documentos novos na fase de recurso”[1].
Sendo esta a regra geral, o legislador previu, no entanto, algumas excepções à mesma. “Artigo 651º Junção de documentos e de pareceres 1 - As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância”.
E dispõe o artigo 425º do CPC para o qual remete o texto da norma acabada de transcrever:
“Artigo 425º Apresentação em momento posterior Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
E importará ter presente, enfim, enquanto norma contendo o “princípio geral” que referencia, na dinâmica do processo, o momento da apresentação de prova por documentos, o artigo 423º do CPC: “Artigo 423º Momento da Apresentação 1 - Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes. 2 - Se não forem juntos com o articulado respectivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado. 3 - Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”.
Da aplicação conjugada destas normas decorre que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é positivamente considerada apenas a título excepcional) depende da alegação (e da prova) pelo interessado nessa junção de uma de duas situações:
a) A impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso, valendo aqui a remessa do artigo 651º, nº 1 para o artigo 425º do CPC;
b) O ter o julgamento da primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.
Ora, salvo o devido respeito pela opinião contrária, estas disposições processuais não têm aplicação ao caso concreto, pois que o documento junto com as alegações não é um documento novo no sentido exigido pelo legislador.
O documento já estava junto aos autos. A sua nova junção ou a junção da sua nova versão (integral) teve em vista apenas apresentar uma versão do mesmo que permitisse visualizar o seu teor integral (ocultado, como se disse, pelo talão de multibanco).
Nesta conformidade, considera-se que, desde logo, por esta via, ter-se-á de admitir a junção do referido documento nesta fase processual, pois que, conforme referimos, tratando-se de uma nova versão (versão integral) de documento já junto, não são aplicáveis as restrições do citado dispositivo processual.
A estas considerações acresce também o facto de, como bem refere a recorrente, face ao teor do(s) documento(s) que se mostrava(s) junto(s), sempre o tribunal recorrido, no caso de o mesmo lhe oferecer dúvidas (como sucedeu), deveria ter efectivamente no uso dos poderes inquisitórios de que dispunha, solicitar os esclarecimentos necessários, desde logo, à própria parte (que juntaria os documentos sem a sobreposição do talão de multibanco), ou, inclusivamente, à entidade fiscal competente.
Não o tendo efectuado, não poderia depois concluir que os factos, para cuja prova se dirigia a junção da prova documental, afinal não deveriam ser considerados provados.
Não podia, pois, ter permanecido numa atitude de inércia (aguardando a eventual iniciativa da parte, que não se apercebeu da existência da dúvida constatada pelo tribunal na sentença sob recurso) pois que, actualmente, o legislador processual civil impõe ao juiz que assuma, ele próprio, a iniciativa de pedir esclarecimentos, ou inclusivamente, requisitar documentos a entidades terceiras (cfr. art. 436º do CPC).
Esta prevalência da verdade material sobre a forma é a razão de ser da opção feita pelo legislador pela consagração do princípio do inquisitório em matéria da instrução do processo em detrimento (“com forte compressão”) do princípio do dispositivo - é significativo disso mesmo a expressão sistemática da inserção do artigo 411.º do Código de Processo Civil, logo nas disposições gerais do Título V, Instrução do processo, na actual redacção.
Como referem A. Geraldes/ P. Pimenta/Luís Sousa[2], o artigo 411º do CPC faz apelo à realização de diligências probatórias que importem a justa composição do litígio, cumprindo ao juiz exercitar a inquisitoriedade, preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objectividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade.
Como refere Paulo Pimenta[3], “o equilíbrio do nosso quadro legal resulta da intersecção das duas dimensões: por um lado, o ónus da iniciativa probatória das partes; por outro, o poder-dever do juiz em sede instrutória. Daqui resulta o seguinte: jamais as partes podem encontrar naquele poder-dever um pretexto para negligenciarem a sua iniciativa probatória; jamais o juiz pode ver naquela iniciativa probatória um alibi para a sua própria inércia. O critério firmado no art. 411º coloca a questão ao nível da necessidade das diligências probatórias para o apuramento da verdade e para a justa composição do litigo. Verificando-se o pressuposto da necessidade, o juiz tem um dever oficial de agir. Não se verificando o pressuposto, inexistirá aquele dever”.
Ora, no caso concreto, como se referiu, surgindo dúvidas, tinha, pois, o tribunal recorrido que, no exercício dos poderes inquisitórios de que dispõe, diligenciar no sentido de esclarecer as aludidas dúvidas, notificando a parte para juntar uma versão da prova documental integralmente legível ou inclusivamente solicitando as informações às entidades fiscais (se assim considerasse necessário)- exercício de poderes que ainda poderia ter efectuado, mesmo depois do encerramento da Audiência Final- cfr. 2ª parte do art. 607º do CPC.
Pelo exposto, julga-se que por qualquer uma destas considerações, ter-se-á de admitir a junção do referido documento nesta fase processual, pois que, conforme referimos, tratando-se de uma nova versão (versão integral) de documento já junto pelo que não são aplicáveis as restrições do art. 691º do CPC, a que acresce o facto de tal junção dever ter sido determinada no âmbito dos poderes inquisitórios de que o tribunal recorrido dispunha (cfr. art. 411º do COC).
Admite-se, pois, a junção da prova documental (que irá ser ponderada mais à frente).
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Entremos, agora, na apreciação das nulidades da sentença invocadas pela recorrente.
Entende a recorrente que a sentença seria nula por padecer dos seguintes vícios:
- excesso de pronúncia (al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC);
- falta de fundamentação de facto e de direito (al. b) do nº 1 do art. 615º do CPC);
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Como é sabido, as nulidades da sentença são vícios formais, intrínsecos de tal peça processual, taxativamente consagrados no nº 1, do art. 615º, sendo tipificados vícios do silogismo judiciário, inerentes à sua formação e à harmonia formal entre premissas e conclusão, não podendo ser confundidas com hipotéticos erros de julgamento (error in judicando) de facto ou de direito[4].
Daí que estas nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, tenham que ser apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito.
Assim, os referidos vícios respeitam à estrutura ou aos limites da sentença.
Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação), c) (oposição entre os fundamentos e a decisão).
Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum)[5].
A recorrente imputa à sentença proferida, em primeiro lugar o vício de nulidade, consubstanciado no alegado excesso de pronúncia em que teria incorrido o tribunal recorrido.
Para tanto alega que “não foi alegado, nem muito menos provado, pela A. qualquer “venda fiduciária em garantia” ou qualquer “contrato de compra e venda usurário”, ou qualquer facto contrário à lei que fira de nulidade o contrato de compra e venda nos termos do art. 280º Código Civil”.
Julga-se que não tem razão.
Segundo o disposto no art. 615º, n.º 1, al. d) (2ª parte) do CPC é nula a sentença “…quando o juiz … conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
A previsão deste art. 615º, n.º 1 al. d) está em consonância com o comando do n.º 2 do art. 608.º do mesmo Código, em que se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Do mesmo modo, estabelece o art. 609º, nº 1 que “… a sentença não pode condenar… em objecto diverso do que se pedir…”.
Como refere Lebre de Freitas[6], este preceito legal “fala apenas em condenação, mas o preceito que consagra vale também para a absolvição: o Réu não pode ser absolvido dum pedido que o autor contra ele não deduziu, o que teria a consequência, por via da formação do caso julgado (art. 619º, nº1) de impedir o autor de, em nova acção pedir aquilo que o Réu fosse absolvido de reconhecer ou prestar (art. 580º, nº1 e 2) embora não tivesse constituído objecto da primeira acção…”.
A questão que se coloca é, pois, a de saber se a decisão aqui posta em crise se pronunciou sobre questão que não havia sido colocada pelo Autor no pedido que formulava na petição inicial.
Ou dito de outra maneira, a questão se coloca é a de saber se o Tribunal Recorrido ao condenar a Ré no pedido subsidiário ultrapassou o objecto do processo (do litigio) proposto pelas partes.
Ora, salvo o devido respeito, julga-se que tal não sucede, pois que o tribunal recorrido – como mais à frente referiremos - ao invocar a existência de uma “venda fiduciária em garantia” limitou-se a proceder ao enquadramento jurídico dos factos alegados, movendo-se dentro da causa de pedir e do pedido formulado pelos AA..
Na verdade, pretendendo os autores, a título principal que fosse declarada a nulidade do contrato de compra e venda em questão, com base em simulação e tendo tal pretensão sido julgada improcedente, nada impedia que o tribunal recorrido, por referência ao pedido subsidiário também formulado, pudesse qualificar juridicamente, com plena autonomia, a matéria de facto considerada provada, enquadrando-a, normativamente, na figura ou instituto jurídico que entendesse estar preenchido (independentemente da qualificação jurídica que os AA. tivessem propugnado na petição inicial). “Na verdade, a causa de pedir não é o nome que a parte dá ao facto, mas o próprio facto jurídico, sendo que o tribunal não altera a causa de pedir invocada pelo autor se julgar procedente a acção com base nos factos que ele lhe oferecer, embora qualifique ou enquadre juridicamente tais factos de forma diferente. Trata-se aí de uma questão de enquadramento legal ou de qualificação jurídica, a respeito da qual o tribunal se move livremente”[7].
Assim, foi justamente esta a operação efectuada pelo tribunal recorrido, na decisão sob recurso, quando subsumiu os factos apurados no âmbito da figura da venda fiduciária em garantia.
Nesta sequência, cabe referir que a decisão proferida, e ora sob censura, não padece de excesso de pronúncia, não sendo por isso nula, na estrita medida em que, limitando-se a proceder a um novo enquadramento jurídico dos factos considerados provados, se manteve dentro do pedido e causa de pedir apresentados pelos AA, nomeadamente, em sede do pedido subsidiário formulado.
Nessa medida, conclui-se, sem necessidade de mais alongadas considerações, que não existe este vício de nulidade que a Recorrente aponta à decisão proferida.
Esta, no entanto, aponta ainda que a sentença seria nula por falta de fundamentação de facto e de direito – vicio a que alude a al. b) do art. 615º do CPC.
Para tanto alega que “em nenhuma parte da sentença a Meritíssima Juiz fundamenta no presente caso qualquer norma imperativa que tenha sido contrariada ou que se verifique no presente caso um “negócio cuja realização material se não pode impedir, mas que a lei reprova, considerando-o ferido de nulidade”.
Como é sabido, uma coisa é a falta de fundamentação da decisão da matéria de facto, outra coisa é a nulidade da sentença quando não especifique os fundamentos, de facto e de direito que justificam a decisão (al. b) do citado artigo 615.º nº 1 do CPC).
A nulidade decorrente da falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o comando do artigo 607º, nº 3 do CPC, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.
Como é entendimento pacífico da doutrina, nestes casos só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artigo 615º.
A fundamentação deficiente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade[8].
Portanto, para que haja falta de fundamentação, como causa de nulidade da sentença, torna-se necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão[9].
Nessa medida, trata-se de uma situação que não se verifica, no caso concreto, quanto à questão que aqui é colocada.
Por outro lado, importa dizer que a Recorrente também não tem razão quando invoca a falta de fundamentação de direito.
Desde logo, porque, como se referiu, só se pode entender que a decisão recorrida se encontra viciada por falta de fundamentação no sentido aqui exigido, quando se constata existir total ausência de fundamentação - o que não é seguramente o caso concreto da decisão aqui questionada.
Importa dizer que, quanto à arguição deste vício de nulidade, à excepção dos actos meramente ordenadores do processo e dos despachos de mero expediente, compete, efectivamente, ao juiz fundamentar todas as decisões tomadas: art. 154º, nº 1 do CPC (“As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre justificadas”).
Mesmo que o CPC não o referisse, essa necessidade de fundamentação resultaria por imposição directa do art. 205º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP): “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Será esta fundamentação que assegura ao cidadão o controlo da decisão e permitirá ao Tribunal de recurso a sindicância do bem ou mal julgado.
Essa fundamentação deve ser expressa e, ainda que sucinta, deve ser suficiente para permitir o controlo do acto.
Ora, compulsado o teor da decisão aqui posta em crise, não há dúvidas – como decorre do que mais à frente referiremos - que o Tribunal recorrido fundamenta (amplamente) a sua decisão, pelo que não se verifica o vício de falta de fundamentação que a Recorrente invoca (sem prejuízo, de tal fundamentação poder ser objecto de criticas, o que denuncia justamente a sua existência).
Não pode, pois, o presente Tribunal reconhecer o vício imputado à decisão pela Recorrente.
De qualquer forma, mesmo que se reconhecesse a eventual nulidade da decisão, por falta de fundamentação de direito, sempre tal nulidade poderia/teria de ser suprida pelo presente Tribunal- que aqui interviria como Tribunal de Substituição (cfr. art. 665º do CPC)[10] - uma vez que dispomos de todos os elementos que nos permitem pronunciar sobre a questão enunciada.
Improcede a nulidade arguida.
*
Entremos agora na seguinte questão que contende com a impugnação da matéria de facto deduzida pela Recorrente.
Compulsado o Recurso interposto, pode-se concluir que, como resulta do corpo das alegações e das respectivas conclusões, a Ré/ Recorrente, quanto aos pontos da matéria de facto que indica, deu cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1, als. a), b) e c) do CPC, pois que faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, indica os meios de prova que imporão uma decisão diferente e a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, há que verificar, pois, se se pode dar razão à Recorrente, quanto aos aludidos pontos da matéria de facto.
Importa, antes de entrar directamente na apreciação das discordâncias alegadas, referir qual deve ser o âmbito de apreciação da matéria de facto que incumbe ao Tribunal da Relação em sede de Recurso.
Na verdade, o âmbito dessa apreciação não contende com a ideia de que o Tribunal da Relação deve realizar, em sede de recurso, um novo julgamento na 2ª Instância, prescrevendo-se tão só “ … a reapreciação dos concretos meios probatórios relativamente a determinados pontos de facto impugnados… “[11].
Assim, o legislador, no art. 662º, nº 1 do CPC, “ … ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios… pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise… “[12].
Destas considerações, resulta, de uma forma clara, que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros:
a) o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b) sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c) nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes)[13].
Dentro destes parâmetros, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição[14], está em posição de proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua actuação é praticamente idêntica à do Tribunal de primeira Instância, apenas cedendo nos factores da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
“O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”[15].
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPC).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância[16].
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”[17].
Importa, porém, não esquecer porque, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada- quando nessa prova se funde o recurso-, conclua, com a necessária segurança[18], no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.
Como voltam a reiterar na sua última obra os Profs. Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre[19], a posição que exige a existência de “razões fortes para a modificação da decisão de facto”, “é preferível e assenta na observação realista de que, sendo verdade um conceito de relação entre a realidade e a mente que a capta, o reconhecimento da subjectividade da convicção, ainda que com limites, implica que a uma convicção razoável não deve a Relação substituir uma outra, igualmente possível, mas formada na ausência dos elementos presenciais que podem ter levado à formação da primeira. O princípio da imediação é um princípio processual geral a respeitar e as consequências dele extraídas só devem ser afastadas quando tenha sido mal usado, não quando a Relação pareça, ouvida a gravação, que outra é mais plausível. Neste caso o que a Relação pode – deve – fazer é determinar a renovação dos meios de prova, nos termos do art. 662º, nº 2, al. a) CPC, a fim de, sem ofensa do princípio da imediação, resolver as dúvidas que tenha quanto ao apuramento da verdade. A Relação não deixa assim de actuar como tribunal de substituição; mas para se substituir à 1ª instância na nova apreciação critica da prova, tem de criar condições de igualdade com esta na observação directa da fonte da prova” (bold dos próprios Autores)”.
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Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão à Ré apelante, neste segmento do recurso da impugnação da matéria de facto, nos termos por ela pretendidos.
Conforme já se referiu, importa que o Tribunal se pronuncie sobre a impugnação da matéria de facto, fundada no alegado erro na apreciação da prova[20].
*
Importa, pois, que o presente Tribunal se pronuncie sobre a seguinte matéria de facto:
- Saber se os factos provados constantes dos nºs 2, 3, 4, 5 dados como provados devem ser considerados não provados;
- saber se o ponto 6 dos factos provados deve ser alterado para a seguinte redacção: “Por título de compra e venda, realizado em 16.03.2012 na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, a autora, por si e na qualidade de procuradora do seu marido CC, vendeu à ré, representada por DD, que declarou comprar, pelo preço de €47.500,00, já recebido, a fracção autónoma, designada pela letra “B”, correspondente ao primeiro andar, compartimento B.1 na cave para garagem e arrumos, logradouro na parte lateral e nas traseiras quintal, descrito sob o ......, da freguesia ... da Conservatória do Registo Predial ... e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ..., encontrando-se registada à data da favor da autora e do seu marido pela Ap. ..., de 23.06.1993, conforme documento de fls. 4v a 6-A e cujo teor se dá por integralmente reproduzido”.
- saber se deveria ter sido dado como provado no ponto 20º dos factos provados que: “a ré exigiu à autora a entrega do imóvel e face à recusa desta, promoveu junto das respectivas entidades fornecedoras de água e luz, o cancelamento de tais serviços no imóvel.”
- saber se o facto nº 15 dos factos provados deveria ter sido dado como não provado
- saber se a al. e) dos factos não provados deve ser considerada provada (prova documental superveniente) - “a ré pagou o valor de €896,17 a título de IMT por não ter procedido à revenda da fracção autónoma aludida em 6 no prazo de isenção”.*
*
Quanto a esta matéria de facto, o Tribunal Recorrido apresentou a seguinte fundamentação:
“C. Motivação do Tribunal:
O Tribunal formou a sua convicção com base na livre apreciação de toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e junta aos autos, analisada de forma crítica e conjugada à luz das regras da experiência e critérios de normalidade e razoabilidade nos termos que a seguir se expõem.
Assim, e para além dos factos que estão assentes por acordo das partes, nos termos do art.º 574º, nº 2, NCPC e que resultam demonstrados por documento bastante (pontos 1, 6 a 8 e 17 a 19), a prova produzida relevante reconduziu-se na essência à prova pericial e documental, a qual veio a ser alvo do escrutínio das partes, bem como das testemunhas ouvidas em sede de audiência final.
(…)
Diga-se que quanto ao comprovativo do pagamento do Imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis, do documento junto aos autos a fls. 57v a 58 não pode se minimamente concluir que o pagamento ali referenciado se refere ao imóvel objecto do presente processo. Em primeiro lugar, a identificação do imóvel a que se refere o dito pagamento está parcialmente oculta, sendo que na parte que se pode ler, constata-se que o mesmo documento se reportar a um “- Prédio urbano destinado a comércio, ...”. Deste modo, e na falta de qualquer outra prova demonstrativa do pagamento de qualquer valor a título de IMT, por força do negócio relativo à fracção autónoma dos autos, a qual se destina à habitação, tivemos forçosamente que considerar tal factualidade não provada (e daí a sua inserção no elenco dos factos não provados sob a al. e.).
No que respeita ao valor do imóvel (pontos 15 e 16 do elenco dos factos provados) tivemos como particularmente relevante o relatório pericial constante de fls. 136 a 142, o qual aliás não mereceu sequer qualquer impugnação pelas partes, bem como os registos fotográficos anexos ao mesmo, em conjugação com o depoimento da testemunha EE, agente imobiliário, que se deslocou ao imóvel e procedeu à avaliação do mesmo a pedido da autora e cuja apreciação não se afastou muito da avaliação realizada pelo perito.
Diga-se, ainda, que no referido relatório o perito explicou e fundamentou a metodologia utilizada para responder à questão objecto da perícia, revelando ter examinado a aludida fracção autónoma, ter consultado toda informação constante do processo e toda a documentação disponível sobre a dita construção, bem como à pesquisa dos valores praticados no mercado relativos a diversos imóveis com idênticas características, apresentando conclusões precisas sobre os valores que atribuiu a cada um dos componentes do imóvel em questão (teve o perito não só em consideração o valor da fracção propriamente dita, mas também o valor do respectivo logradouro).
Saliente-se ainda ser absolutamente evidente que nenhuma das partes, nomeadamente a ré, logrou carrear para os autos qualquer prova que colocasse em seriamente em crise a referida prova pericial e as suas conclusões.
O juízo técnico-cientifico foi emitido pelos peritos indicados pelas partes e pelo tribunal em observância do devido e necessário contraditório, pelo que com garantia de maior imparcialidade, tendo infalivelmente de prevalecer sobre os depoimentos prestados pelo legal representante da ré e pelas testemunhas FF e GG, a este propósito; sendo que estas últimas revelaram nem sequer saber com exactidão o valor que a ré pagou pela compra do imóvel.
(…)
Neste conspecto, resta ainda referir que, encontrando-se a aludida fracção autónoma integrada numa moradia e dispondo a mesma de cave e logradouro, o valor da mesma tem que ser necessariamente mais elevado do que um qualquer apartamento integrado num prédio com maior número de fracções autónomas, os quais desde logo não dispõem daqueles cómodos, pelo que o valor referenciado como corrente à data para um T3 pelas testemunhas FF e GG não podem só por si servir de referência.
(…)
Posto isto, e no concerne à matéria de facto inserta nos pontos 2 a 5 do elenco dos factos provados, o verdadeiro nó gordio destes autos, teve o tribunal em atenção toda a prova produzida, tendo sido absolutamente determinantes o depoimento de parte do legal representante da autora e as declarações de parte da autora, à luz da prova documental coligida nos presentes autos, tendo-nos merecido maior credibilidade a versão dos factos carreada para os autos pela autora.
Na verdade, tendo resultado profusamente demonstrado que a autora se encontrava com dificuldades económicas, em consequência de um investimento mal sucedido no âmbito da sua actividade profissional, conforme foi asseverado pela própria e pela testemunha HH, que trabalhou a autora – dificuldades essas que vieram inclusive a culminar na declaração de insolvência da autora e do seu marido; o valor quase irrisório pelo qual o negócio da compra e venda foi efectuado, bem como e sobretudo pelo facto da autora ter permanecido a viver na casa por um largo período de tempo sem que a ré tenha manifestado qualquer séria e lhe tenha exigido a entrega da mesma, conforme também resultou cabalmente demonstrado, leva-nos a concluir com segurança que a venda da fracção autónoma à ré serviu apenas de garantia para a restituição do valor emprestado e que foi liquidado pela ré aquando da formalização do negócio.
Veja-se que o legal representante da ré perguntado expressamente sobre a negociação do preço do negócio disse de forma desassombrada que na sua avaliação teve em consideração o valor patrimonial do imóvel (o que não colhe, pois o mesmo encontrava-se manifestamente desactualizado, desde logo se compararmos com o valor patrimonial que atribuído à outra fracção do mesmo prédio, conforme decorre do auto de apreensão de bens realizada no processo de insolvência em que figuraram como devedores a autora e o seu falecido marido – cfr. fls. 144 a 147) e que disse à autora que só podia dar o valor de €47.500,00 e que “era pegar ou largar”.
Deste modo, não temos dúvidas que face à necessidade da autora e à falta de poder negocial desta, o legal representante da ré logrou realizar o negócio nos termos por si exigidos e claramente vantajosos para a sua empresa.
Por outro lado, analisada a certidão relativa ao processo interposto pela aqui autora contra o legal representante da ré já acima referenciado, bem como a certidão do procedimento cautelar intentado pela autora contra a empresa abastecedora da água concluímos que só em 2016 a ré enviou uma carta à autora a exigir a entrega da fracção autónoma, certamente porquanto se aproximava o final do prazo de isenção do IMT e perante a recusa de entrega só dois anos mais tarde é que mudou a titularidade dos contratos de fornecimento de água e luz e solicitou o cancelamento de tais serviços. Tal modo de proceder – evitando o recurso aos meios próprios para obter a entrega da fracção autónoma, nomeadamente, os judiciais -, inculca a ideia de que a ré e o seu legal representante não queriam discutir os exactos termos em que efectivamente foi realizado.
As testemunhas ouvidas em sede de audiência final pouco ou nada puderam de relevante puderam acrescentar, revelando, pois, não ter qualquer conhecimento directo dos factos em questão, ressaltando do depoimento das testemunhas EE e HH que a demandante se encontrava numa situação algo desesperada em resultado do negócio se ter revelado desastroso para si.
Por seu lado, as testemunhas II e FF também apenas confirmaram que a autora conheceu o legal representante da ré através da imobiliária onde os mesmos colaboravam e que a mesma estava necessitada de dinheiro, aludindo de forma vaga à forma como o negócio foi tratado, mas nada dizendo saber à forma como foi liquidado o preço ou à razão pela qual a autora permaneceu na casa.
A testemunha GG, apesar de ser filho do legal representante da ré, também demonstrou não ter conhecimento seguro e cabal do que foi negociado entre o pai e a autora, sendo que disse não saber o motivo pelo qual acordaram que esta permanecesse na habitação, nem a razão para a inércia da ré perante a ocupação do imóvel, acrescentando até que aquele negócio foi o único da empresa a ser realizado daquela forma.
Do que deixamos dito, bem como da análise das certidões dos processos judiciais acima elencados resultou abundantemente demonstrada a factualidade descrita no ponto 20 do elenco dos factos provados. Veja-se que a própria autora admitiu que não teve, nem tem ainda capacidade financeira para pagar o valor emprestado, sendo, pois, natural que ao fim de alguns anos, a ré começasse a exigir que a mesma entregasse a habitação face a tal incumprimento.
Por outro lado, podemos ainda concluir, da prova produzida que não resultou qualquer prova segura ou cabal que nos permitisse concluir, ainda que com recurso às presunções judiciais, existir um conluio entre a autora e a ré para enganar os eventuais credores daquela e que os mesmos não tiveram intenção de comprar e vender. Pelo contrário, resultou que a vontade das partes foi essa, mas com o fito de garantir o crédito da ré.
Acresce que, como vimos acima consta dos autos prova documental suficientemente ilustrativa e comprovativa de que a ré procedeu efectivamente ao pagamento do preço declarado no respectivo título de compra e venda e ainda que custeou todos os encargos inerentes ao negócio.
Deste modo, a prova produzida foi exígua e incompetente para que se pudesse concluir que a compra e venda tenha sido simulada ou sequer com intenção de prejudicar os credores da autora, conforme alegado por esta, decidindo-se, pois, contra a parte sobre a qual incidia o respectivo ónus de prova.
As respostas negativas relativas aos restantes factos, e para além do que já ficou dito, deveram-se à ausência e/ou insuficiência de prova sobre os mesmos, nomeadamente, testemunhal ou documental.
Finalmente, importa ainda dizer que, por consubstanciar matéria de direito, conclusiva ou repetitiva, ou ainda que factual, cuja prova seria inócua para a decisão da causa, não relevaram para a apreciação da presente acção os restantes factos dos articulados oferecidos pelas partes que não foram seleccionados acima, em sede de factos provados e não provados.”.
*
Cumpre decidir.
Comecemos por apreciar a resposta negativa dada à matéria de facto constante da al. e), por ser simples a resposta que pode ser dada a essa impugnação.
Na verdade, e salvo o devido respeito pela opinião contrária, não se justificavam as dúvidas avançadas pelo tribunal recorrido quanto a esta factualidade, tendo em conta inclusivamente a falta de impugnação da parte contrária (no articulado de réplica posteriormente apresentado pelos AA.).
Mas independentemente disso, a verdade é que esta factualidade deve ser considerada provada em face da prova documental junta aos autos a fls. 57 v e 58 (tanto mais que a recorrente, entretanto, apresentou em sede do presente recurso uma nova versão de tal mesmo documento que esclarece totalmente estes factos no sentido de os mesmos merecerem antes resposta positiva).
Procede, pois, esta parte da impugnação devendo os factos constantes da al. e) passar a constar dos factos provados como ponto 21.
*
Avancemos agora para a fase pré-negocial que precedeu a celebração do contrato aqui em discussão, fase essa que contende a matéria de facto constante dos pontos 2 a 6 dos factos provados (este último também se inclui nesta fase pois o que a recorrente questiona na redacção do ponto 6 é apenas a primeira parte da factualidade aí mencionada “Em conformidade com o assim acordado”).
Além disso, podemos ainda juntar a esta ponderação, a factualidade do ponto 15 dos factos provados (que a recorrente pretende que seja considerada como não provada) e do ponto 20 (a recorrente pretende eliminar a sua primeira parte: “20. A autora não procedeu à restituição à ré da quantia entregue aquando da realização do negócio aludido em 6, pelo que, a partir de 2016”).
Aí ficaram mencionados os seguintes factos:
“2. Devido a dificuldades financeiras para solver dívidas contraídas no exercício da sua actividade comercial, a autora, por indicação de terceiros, abordou o sócio-gerente da ré solicitando que o mesmo lhe emprestasse dinheiro.
3. Ao que este respondeu que o empréstimo poderia ser concedido na condição da propriedade da fracção autónoma pertencente à autora ser transferida para a ré, por um valor próximo do respectivo valor patrimonial.
4. Como as dificuldades financeiras da autora se foram agravando, a autora acordou com a ré, na pessoa do seu sócio gerente, que aquela procederia à entrega da quantia global de €47.500,00, com obrigação da autora restituir a aludida quantia, acrescidas de juros e, para garantir a restituição dessa quantia, a autora vendia à ré o imóvel referido em 2., pelo preço correspondente ao valor assim entregue.
5. Mais acordaram as partes que a autora e o seu marido poderiam continuar a viver no imóvel, sem o pagamento de qualquer contrapartida a favor da ré.
6. Em conformidade com o assim acordado, por título de compra e venda, realizado em 16.03.2012 na Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, a autora, por si e na qualidade de procuradora do seu marido CC, declarou vender à ré, representada por DD, que declarou comprar, pelo preço de €47.500,00, já recebido, a fracção autónoma, designada pela letra “B” (…)
15. À data da celebração do dito título de compra e venda, o imóvel valia cerca de €160.000,00.
20. A autora não procedeu à restituição à ré da quantia entregue aquando da realização do negócio aludido em 6, pelo que, a partir de 2016, a ré começou a exigir à autora a entrega do imóvel e face à recusa desta, promoveu junto das respectivas entidades fornecedoras de água e luz, o cancelamento de tais serviços no imóvel.
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A Ré não concorda com o julgamento destes pontos da matéria de facto, considerando que os mesmos devem ser considerados não provados (nos pontos 6 e 20 só a aludida primeira parte), apelando aos seguintes meios de prova:
- os depoimentos do Legal representante da R. DD; da A. AA, da testemunha II e da testemunha FF;
- ao relatório de avaliação feito por perito indicado pelo Tribunal (que refere na página 6 do mesmo que: “Considerando que o valor do mercado de habitações usadas que estão à venda pelo valor entre a média/mediana de referência na ordem dos 1.200,00€/m2 , tendo também em linha de conta o próprio desvio padrão, pelo que poder-se-á dizer que é uma referência de mercado, atendendo à amostra de 14 imóveis, que se considera uma amostra de confiança, não sendo contudo seguro que sejam transaccionadas as habitações por aquele valor, uma vez que estão sujeitas à lei da oferta e da procura e demais contingências de mercado.”)
Como se pode verificar as questões fácticas colocadas contendem no essencial com duas questões que se podem configurar da seguinte forma:
- saber se subjacente à compra e venda celebrada esteve um acordo celebrado entre as partes no sentido de, em contrapartida de um empréstimo a ser concedido pela Ré, os Autores declarariam vender o prédio a esta última, ficando ainda acordado que, no momento em que estes restituíssem a quantia emprestada, a compra e venda seria revertida (funcionando o prédio como garantia do pagamento do empréstimo até ao momento da restituição) – sendo que a Ré defende que não existiu esse acordo e que se tratou de um típico contrato de compra e venda.
- saber qual era o valor do prédio no momento da celebração do contrato.
O Tribunal recorrido, efectuando a análise crítica e conjugada de todos os meios de prova, conclui no primeiro sentido, dando especial credibilidade ao depoimento de parte prestado pela Autora (e negando tal credibilidade à versão apresentada pela Ré).
Julga-se que o tribunal recorrido julgou bem a factualidade aqui em discussão, uma vez que a versão fáctica apresentada pela Autora (no seu depoimento) mostra-se corroborada por um conjunto de outros elementos probatórios que permitem atribuir-lhe essa maior credibilidade, sendo que o depoimento do legal representante da Ré não logrou obter igual confirmação dos demais meios de prova apresentados.
Com efeito, da prova produzida resulta, de uma forma inequívoca, que a autora por ocasião da negociação estabelecida com a Ré se encontrava com dificuldades económicas (o que decorre directamente do depoimento da testemunha HH) - dificuldades essas que não podem, aliás, ser postas em causa pois que inclusivamente levaram posteriormente à declaração de insolvência dos AA..
Essas dificuldades económicas e a necessidade de obter liquidez monetária, encontram também apoio nas condições em que o negócio de compra e venda foi realizado, nomeadamente, tendo em conta o preço estabelecido no mesmo (que conforme iremos ver, era inferior ao valor do mercado).
Mas não só por isso, é que não se pode deixar de relevar o facto de a Autora, apesar de ter declarado vendido o prédio, ter continuado a residir no prédio, sem qualquer contrapartida e sem que a Ré tivesse exercido qualquer oposição a essa permanência (oposição essa só começou a surgir no ano de 2016).
No que concerne à prova testemunhal produzida, julga-se também que é certa a análise que o tribunal recorrido efectuou sobre a mesma quando considerou que as testemunhas ouvidas em sede de audiência final pouco ou nada puderam de relevante puderam acrescentar, revelando, pois, não ter qualquer conhecimento directo dos factos em questão.
Estas conclusões, aliás, não chegam a ser postas em causa pela recorrente, pois que se limita a indicar, no recurso que apresentou, curtos excertos dos depoimentos testemunhais que invoca, apresentando uma versão parcial dos factos e não pondo em causa a análise crítica e global apresentada pelo tribunal recorrido (por ex., entre outros indícios atrás indicados, não apresenta qualquer justificação para o facto da Autora ter permanecido no prédio, depois de ter alegadamente vendido o prédio à Ré).
Nesta conformidade, efectuando uma análise global da prova produzida, compulsada a prova produzida em Audiência final, não se vislumbra que tenha existido, da parte do Tribunal Recorrido, qualquer erro no julgamento desta factualidade aqui impugnada, não podendo ser acolhida a interpretação aduzida pela recorrente quanto aos depoimentosdo legal representante da Ré e o depoimento da Autora e das testemunhas indicadas, pois que, salvo o devido respeito pela opinião contrária, os pontos 2 a 6 e 20 retractam com fidedignidade o que resulta da prova produzida, nomeadamente, se ao ponderar essa prova, se fizer – como efectuou o tribunal recorrido -, a exigida análise crítica e conjugada de todos os meios de prova.
Quanto ao valor do imóvel indicado no ponto 15, a recorrente não logrou pôr em causa, com os argumentos que apresentou, a pertinente fundamentação apresentada pelo tribunal recorrido.
Desde logo, importa referir que tal factualidade acaba por ser corroborada pelo que consta do ponto 16 da matéria de facto (que não foi impugnado), ou seja, está provado que “… actualmente tem um valor de mercado que ronda o montante de €165.000,00”.
Mas mais do que isso, não se pode deixar de reconhecer que, neste âmbito, não pode deixar de ter relevância decisiva a prova pericial realizada - tanto mais que, como salienta o próprio tribunal recorrido, o respectivo relatório não mereceu sequer qualquer impugnação das partes (leia-se, também pedido de esclarecimento).
Como é sabido, “a prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando seja necessário conhecimentos especiais que os julgadores não possuam”.
Deste modo, a prova pericial “traduz-se na percepção, por meio de pessoas idóneas para tal efeito designadas, de quaisquer factos presentes, quando não possa ser directa e exclusivamente realizada pelo juiz, por necessitar de conhecimentos específicos ou técnicos especiais (…); ou na apreciação de quaisquer factos (na determinação das ilações que deles se possam tirar acerca de outros factos), caso dependa de conhecimentos daquela ordem, isto é, de regras de experiência que não fazem parte da cultura geral ou experiência comum que pode e deve presumir-se no juiz, como na generalidade das pessoas instruídas e experimentadas”[21].
Assim, a “nota típica, mais destacada, da prova pericial consiste em o perito não trazer ao tribunal apenas a perspectiva de factos, mas poder trazer também a apreciação ou valoração de factos, ou apenas esta”[22].
O perito é, assim, uma “pessoa qualificada”, e exerce a sua actividade “sobre dados técnicos, sobre matéria de índole especial”, por isso se afirmando que “o perito maneja uma experiência especializada”, dando ao “juiz critérios de valoração ou apreciação dos factos, juízo de valor, derivados da sua cultura especial e da sua experiência técnica”. A sua função é a de “mobilizar os seus conhecimentos especiais em ordem à apreciação dos factos observados”[23].
Reitera-se, deste modo, que o “traço definidor da prova pericial é, de facto, o de se chamar ao processo alguém que tem conhecimentos especializados em determinados aspectos de uma ciência ou arte para auxiliar o julgador, facultando-lhe informações sobre máximas de experiência técnica que o julgador não possui e que são relevantes para a percepção e apreciação dos factos controvertidos. Em regra, além de facultar ao julgador o conhecimento dessas máximas de experiência técnica, o perito veicula a ilação concreta que se justifica no processo, construída partir de tais máximas da experiência”[24].
Aqui chegados, e ficando assim, julga-se, bem delineada a importância da prova pericial realizada nos autos, sendo que, como decorre do art. 389º do CC, a “força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal”; acrescentando o art. 489º do CPC que a “segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal”.
Pondera-se, a propósito, que “o juiz, colocado, como está, num posto superior de observação, tendo em volta de si todo o material de instrução, todas as provas produzidas, pode e deve exercer sobre elas as suas faculdades de análise crítica; e bem pode suceder que as razões invocada pelos peritos para justificar o seu laudo não sejam convincentes ou sejam até contrariadas e desmentidas por outras provas constantes dos autos ou adquiridas pelo tribunal”[25].
Mas, se por força desse princípio da livre convicção, o juiz não está obrigado a acatar as conclusões retiradas da perícia, também não pode deixar de entender-se que terá de justificar tal entendimento, rebatendo os argumentos nela expostos.
Na verdade, uma coisa será uma perícia para constatação de factos, os quais podem eventualmente ser confirmados e/ou refutados por outros elementos de prova; outra, bem diferente, será o caso de uma perícia destinada a exprimir um juízo técnico, científico ou artístico, o qual, pela sua própria natureza, só poderá ser infirmado ou rebatido com argumentos de igual natureza, ou seja, de ordem técnica, científica ou artística; e com sujeição aos mesmos métodos[26].
Ora, é justamente isto que sucede no caso concreto.
A relevância probatória da prova pericial realizada nos presentes autos atinge precisamente este patamar probatório.
Com efeito, a mesma, sendo inequivocamente uma perícia destinada a exprimir um juízo técnico-científico, pela sua própria natureza, só poderia ser infirmado ou rebatido com argumentos de igual natureza, ou seja, de ordem técnica ou científica e com sujeição aos mesmos métodos de obtenção dos resultados.
Ora, conforme resulta do respectivo relatório pericial junto aos autos, o Sr. perito, utilizando o “Método Comparativo ou de Mercado”, depois de explanar os parâmetros e pressupostos que fundaram a sua avaliação, apresentou a seguinte conclusão: “(…) atendendo ao método de avaliação aplicado e à pesquisa de mercado imobiliário local efectuada, o perito considera que o valor mais adequado e que reflecte o PVT de mercado desta habitação objecto da presente avaliação, é de forma ponderada e por ser o resultado dos cálculos da avaliação efectuada, reflectindo a sensibilidade do mercado ajustado ao local, de 165.700,00€ (cento e sessenta e cinco mil e setecentos euros), atendendo às suas áreas de habitação, dependências, terreno de logradouro, tipo e qualidade dos materiais empregues nos acabamentos da habitação, e ainda tendo em conta as características da construção, o estado de conservação do prédio, vetustez, infraestruturas urbanas e equipamentos da zona, acessibilidades, localização e qualidade ambiental”.
Já quanto ao valor do prédio reportado à data da celebração do contrato apresentou a seguinte conclusão: “VALIAÇÃO DO IMÓVEL REPORTADO A 16.03.2012 Para se reportar o valor da avaliação de um imóvel, a uma determinada data, como é o caso, tendo efectuado uma avaliação actualizada, a mesma poderá ser reportada a 16 de Março de 2012, com o recurso ao sistema de Actualização de Valores com Base no IPC do INE, através da aplicação do factor de actualização fixado oficialmente entre meses, nas datas pretendidas, dá o seguinte resultado: 165.700,00€x1/1,02819538270776 = 161.156,14€ (…)”.
Ora, importa referir que, em face de toda a prova produzida, as conclusões apresentadas no relatório pericial, não só não foram infirmadas por qualquer outro meio de prova que assumisse aquela natureza, como até foram corroboradas pelo depoimento da testemunha EE, que, pela funções que exerce (agente imobiliário), denotou ter conhecimentos pertinentes para emitir o seu parecer quanto ao valor do prédio (tendo em conta a sua experiência profissional).
Daí que bem andou o tribunal recorrido em valorizar estes elementos probatórios em detrimento de outros de menor valor probatório, seja por força da razão de ciência invocada, seja pela forma como prestaram os seus depoimentos, seja ainda pela falta de credibilidade que deles decorre, tendo em conta a sua parcialidade e a proximidade à Ré.
Improcede, pois, esta parte da impugnação.
Aqui chegados, por força de todas estas considerações não podemos deixar, assim, de acolher aqui a fundamentação do Tribunal Recorrido.
Na verdade, contrariamente ao defendido, ponderados os aludidos depoimentos invocados e a restante prova produzida não se pode acompanhar a Recorrente quanto pretende concluir que deles decorreria que a factualidade aqui questionada deveria ser considerada não provada (pontos 2 a 5 e parte inicial dos pontos 6 e 20 e ponto 15).
Como é sabido, na análise crítica da prova que se tem que efectuar, a valoração dos depoimentos prestados deve ser efectuada em função da maior ou menor credibilidade que pode ser atribuída a cada um deles[27].
Ora, uma das formas de graduar essa credibilidade pode resultar justamente da corroboração que pode ser encontrada nos outros meios de prova produzidos.
Isto é, um depoimento merecerá maior credibilidade que outro, por exemplo, se os factos declarados pelo depoente ou pela testemunha encontrarem apoio na prova documental.
Ora, importa dizer que caberia à Recorrente contrariar a apreciação crítica de toda a prova produzida (pessoal e documental), realizada pelo Tribunal a quo, e a verdade é não o logrou fazer com êxito, porque as razões apresentadas para o efeito não encontram o apoio pretendido nos citados meios de prova produzidos.
De todas estas considerações decorre, assim, a conclusão de que não se pode reconhecer a existência de qualquer erro de julgamento quanto a esta matéria impugnada, já que a fundamentação apresentada pelo Tribunal recorrido não foi posta em causa pela recorrente, ou pelo menos, não o foi de forma a que tal erro possa aqui ser reconhecido.
Como é consabido, os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos; se assim fosse, como refere o Prof. Antunes Varela[28], “…se a prova em juízo de um facto reclamasse a certeza absoluta da verificação do facto, a actividade jurisdicional saldar-se-ia por uma constante e intolerável denegação de justiça”, o que, obviamente, implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
Destarte, como incontornável se impõe a conclusão de que a prova, enquanto demonstração efectiva, segundo a convicção do juiz, da realidade de um facto “não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)”[29].
Ora, em face da fundamentação de facto atrás reproduzida, torna-se evidente, como já referimos, que o Tribunal Recorrido ponderou devidamente a prova produzida.
Nesta conformidade, conclui-se, pois, que a decisão da matéria de facto proferida pela Primeira Instância não merece censura quanto a esta factualidade, na medida em que não só cumpriu as regras de prova que se impunham cumprir, como também porque procedeu de acordo com o disposto no art. 607º do CPC, a uma análise bem fundamentada e crítica dos meios de prova produzidos no sentido já explanado, análise crítica essa que o presente Tribunal aqui renovou, quanto aos pontos da matéria de facto postos em crise pela Recorrente, e que aqui se confirmam no sentido do decidido pelo Tribunal de Primeira Instância.
Pelo exposto, a única alteração que deverá ser introduzida na matéria de facto provada é a resultante do aditamento do ponto 21 da matéria de facto correspondente à matéria de facto que constava da al. e) como factos não provados.
Procede, apenas nessa medida, a impugnação deduzida.
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Aqui chegados, e uma vez que a matéria de facto se manteve inalterada (excepto quanto ao ponto 21/al e)), importa agora ponderar as questões jurídicas que a recorrente não deixa de levantar (além daquelas invocadas em sede nulidade da sentença já atrás decididas), respeitantes ao enquadramento jurídico efectuado pelo tribunal recorrido, considerando a recorrente que, mesmo que se entendesse que tinha sido celebrada a venda fiduciária em garantia, tal contrato, contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido, não pode ser considerado nulo, com a invocação de fraude à lei (art. 280º do CC).
Efectivamente, o Tribunal recorrido, depois de efectuar este enquadramento jurídico (venda judiciária com garantia), quanto à nulidade do contrato celebrado, referiu o seguinte:
“…Não estando a venda fiduciária regulada na lei relativamente aos contratos de compra e venda em geral, será prudente uma apreciação casuística, sendo de admitir em princípio o instituto, ao abrigo da autonomia contratual e com vantagens ao comércio jurídico, nomeadamente nos casos em que o bem venha a ser transmitido a terceiros de boa fé (como era o caso objecto do ac. STJ de 16.11.2011, acima citado).
Mas deverá ser considerada inválida a venda fiduciária sempre que no caso concreto se revele não só usurária, mas por qualquer forma abusiva e contrária à lei, segundo os critérios dos arts. 280º, 282º, 294º e 334º do CC, tendo em atenção que a sua falta de parametrização poderá proporcionar uma situação que estes artigos visam impedir.
No presente caso, ficou provado que
- o representante legal da ré tinha conhecimento do endividamento da autora e da fragilidade da sua situação e claramente disso se quis aproveitar, pretendendo ficar com a fracção autónoma transmitida por um preço substancialmente inferior ao seu valor real.
Isto porque o valor do prédio vendido que ascendia, à data da celebração do negócio, a cerca de €160.000,00 (e actualmente avaliado em €165.000,00) é ostensiva e consideravelmente superior ao valor da quantia mutuada e dos juros que legalmente a ré poderia cobrar (cfr. art.º 1146º, do CC). Ver ainda a este propósito, os acs. do STJ de 22.11.2012 e de 26.04.2018, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
Conclui-se, portanto, que o contrato de compra e venda impugnado é usurário e contrário à lei e, como tal, nulo nos termos do art.º 280º do CC..”.
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A questão que se coloca, pois, é a de saber se, em face da matéria de facto considerada provada, se pode concluir que o contrato celebrado entre as partes é nulo por fraude à lei (art. 280º do CC) – como entendeu o tribunal recorrido com os fundamentos que se acabam de transcrever.
A recorrente insiste em defender que não, argumentando que o contrato de compra e venda em discussão nos autos é válido, sendo que “não foi alegado, nem muito menos provado, pela A. qualquer “qualquer “contrato de compra e venda usurário”, ou qualquer facto contrário à lei que fira de nulidade o contrato de compra e venda nos termos do art. 280º Código Civil”.
Acresce que “a “usura” com que o tribunal recorrido fundamenta a sua sentença está prevista no art. 282º Código Civil pelo que que, a verificar-se, conduziria à anulabilidade do negócio jurídico e não à sua nulidade”. “Em nenhuma parte da sentença a Meritíssima Juiz fundamenta no presente caso qualquer norma imperativa que tenha sido contrariada ou que se verifique no presente caso um “negócio cuja realização material se não pode impedir, mas que a lei reprova, considerando-o ferido de nulidade (por ex. venda da herança de pessoa viva; certas cláusulas testamentárias consideradas restritivas da liberdade do chamado; assunção de obrigações contrárias a deveres impostos por lei: não educar o filho, não conviver com a mulher, etc.) – cfr. Código Civil Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, anotação ao art. 280º Código Civil.
Conclui que “não há qualquer ilicitude, proibição legal, “burla de lei”, resultado proibido ou ilicitude no contrato celebrado entre as partes”.
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Vejamos, então, o caso concreto.
Como decorre do exposto, as partes, ao abrigo do princípio da liberdade contratual consagrado no artigo 405º, nº 2, do CC, que confere às partes a possibilidade de modelarem livremente o conteúdo dos contratos, juntaram, uniram ou coligaram dois contratos, o de empréstimo e o de compra e venda, relacionando-os funcionalmente à luz de um nexo ou escopo de garantia (tendo por referência o prédio alienado).
Com efeito, pretenderam, primeiramente, transmitir a propriedade do imóvel dos AA. para a 2ª Ré para garantir o reembolso do empréstimo que esta, por sua vez, concedeu à Autora. Ficou ainda acordado que, uma vez cumprido o empréstimo e esvaziada de sentido útil a garantia constituída, se operaria a retransmissão da propriedade do imóvel novamente para a Autora[30].
Da junção destes dois tipos de contrato “…resulta a celebração de um negócio fiduciário, contrato atípico, construído geralmente por referência a um tipo contratual conhecido, susceptível de ser adaptado a uma finalidade diferente da sua própria, através de uma convenção de adaptação (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Colecção Teses, Almedina, 1995, pág. 259) e, mais concretamente, dentro do género, uma alienação fiduciária ou venda em garantia, isto é, um negócio nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito, com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade (in Catarina Pires, Alienação em Garantia, Coimbra, Almedina, 2010, pág. 99). Efectivamente, para além das garantias previstas na lei – garantias tout court –, sejam pessoais ou reais, pode surgir a utilização de outros institutos ou figuras jurídicas com finalidade diversa prevista na lei, mas que as partes utilizam, por acordo, para desempenhar funções de garantia. A doutrina destaca, como exemplos de aproveitamento para fins de garantia, de figuras a cujo delineamento não presidiu a consideração de tal função, a «alienação em garantia, a cessão em garantia, a promessa de aquisição de créditos, o depósito “in escrow” e a procuração irrevogável. Na alienação em garantia há a utilização de um tipo contratual de alienação (normalmente a compra e venda) como tipo de referência, para um fim indirecto de garantia. Mais especificamente, estamos perante um contrato construído através da adjunção ao negócio de alienação de um patum fiduciae, que disciplina os termos em que o fiduciante-alienante e o fiduciário-adquirente adaptam a operação realizada aos fins de garantia – fidúcia cum creditore –» (Januário Gomes, in Assunção Fidejussória de Dívida, Colecção Teses, Almedina 2000, pág. 86)[31]. O contrato fiduciário, que não se confunde com a simulação relativa (artigo 241º do Código Civil), visto a transmissão da propriedade do imóvel do vendedor para o comprador ser querida, tem associado o risco de abuso do fiduciário em resultado da evidente desproporção entre o meio, em abstracto excessivo para o fim considerado, mas necessário, tendo em vista esse mesmo fim”[32].
A circunstância de o fiduciário ficar investido numa situação jurídica que excede em muito o necessário para o fim visado – em concreto, a Ré ficou investida, por força da escritura de compra e venda, na propriedade plena de um bem imóvel com o valor de mercado de €160.000,00 para garantia de um empréstimo de €47.000,00 – suscita a questão da validade do negócio fiduciário – como bem entendeu o tribunal recorrido.
Como se refere no ac. do STJ de 26.4.2018 atrás citado e que vimos seguindo de perto: “A tese da inadmissibilidade absoluta dos negócios fiduciários no direito português prevalecia na vigência do Código Civil de 1867, sendo preconizada na doutrina, nomeadamente, por Beleza dos Santos, (Simulação, Coimbra Editora, 1921, págs. 120 e sgs.), e Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, Coimbra 1983, págs. 177-178), e assumida na jurisprudência no Acórdão deste Supremo Tribunal de 04-05-1956 (in BMJ 57, págs., 342-345). Assentava (assenta), no que concerne ao contrato de compra e venda com o fim de garantia, no argumento de que a causa da compra e venda, traduzida na permuta da prestação preço pela prestação entrega da coisa vendida, não corresponde à causa que determinou a sua celebração, isto é, a garantia do crédito, traduzindo tal divergência a incompatibilidade estrutural do contrato positivo de transmissão e do pacto fiduciário que o desfigura, merecedora da negação da sua validade. A tese da admissibilidade, seguida na doutrina, entre outros, por Pedro Paes de Vasconcelos (ob cit. pág. 280), Castro Mendes (Direito Civil (teoria geral), III, 1973, págs. 296), Carvalho Fernandes (Teoria Geral do Direito Civil, II, 3ª ed, revista e actualizada, Universidade Católica Editora, pág. 317) e Pestana de Vasconcelos (Direito das Garantias, 2015, 2.ª Edição, Almedina, pág. 568) e na jurisprudência pelos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11-05-2006 (proc. n.º 06B1501) e de 23-02-2012 (proc. n.º 1942/06.5TBMAI.P1.S1), acessíveis em www.dgsi.pt, é dominante na vigência do actual Código Civil de 1966 e baseia-se: (i) no disposto nos artigos 405.º e 1306.º, n.º 1, do Código Civil, o primeiro, por consagrar o “princípio da autonomia da vontade”, o segundo, por prever que aos direitos reais se aportem, por negócio jurídico, restrições de natureza obrigacional, prevendo assim como legítima a fidúcia; (ii) no apelo à confusão do argumento central da tese contrária entre a questão da divergência entre a causa (função) concreta do contrato e a causa (função) típica do tipo de referência, que tem como consequência a negação da qualificação do contrato fiduciário como correspondente ao tipo de referência (compra e venda), e a questão da apreciação da tutela jurídica da causa (função) concreta do contrato fiduciário, juízo de mérito relativo à licitude do mesmo, e (iii) no acolhimento expresso pelo D.L. n.º 105/2004, de 8 de Maio, enquanto modalidade dos contratos de garantia financeira, da alienação fiduciária em garantia, espelho da abertura do ordenamento jurídico a tal realidade negocial, por princípio, axiologicamente neutra. No acolhimento dos argumentos desta segunda tese, mormente do disposto nos artigos 405.º e 1306.º e no D.L. n.º 105/2004, de 8 de Maio, diploma que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva nº 2002/47/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho relativa aos acordos de garantia financeira, temos por acertado o entendimento de que a celebração de negócios jurídicos fiduciários enquanto negócios atípicos é, em abstracto, válida no ordenamento jurídico português, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respectivo objecto em face do disposto no artigo 280.º do Código Civil, em particular, na vertente de fraude à lei”.
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A essa mesma conclusão chegou o acórdão do STJ de 16.3.2011 (relator: Lopes do Rego), in dgsi.pt: “(…) Não tem sido pacífica a admissibilidade de tal negócio jurídico. No domínio do Código de Seabra era prevalente a tese da invalidade. Escreveu a propósito o Prof. Manuel de Andrade - "Teoria Geral da Relação Jurídica", Almedina, 1972, II, pág. 178, que "Não sendo válidos entre nós, portanto, os negócios fiduciários, segue-se que os interessados para realizarem objectivos semelhantes àqueles que seriam atingidos mediante esse negócio, terão de utilizar - sempre ou quase sempre - a simulação, fingindo concluir alguns dos negócios translativos causais previstos na lei (venda, doação, etc.)". Não é esse hoje o entendimento dominante. O princípio da autonomia privada, que é uma ideia fundamental do nosso ordenamento jurídico-civil, tem como meio de actuação privilegiada o negócio jurídico. É evidente que se a "fiducia", designadamente a "fiducia com creditore", envolver fraude à lei ou não se demarcar suficientemente da simulação relativa, existirá uma invalidade, mas por esse motivo e não pela causa "fiduciária". É evidente também que a autonomia privada sofre limitações várias, desde logo a formação do contrato deve ser feita dentro dos limites da lei (artigo 405º do C. Civil), não sendo ainda despiciendo lembrar os artigos 280º e 294º do mesmo Código, entre outros. Não existindo nenhum desses obstáculos, parece nada impedir a admissibilidade dos negócios fiduciários. Ora, o que está em causa no presente litígio é precisamente a questão de apurar se – através do «pactum fiduciae», apendiculado à celebração de uma (aparentemente normal e definitiva) compra e venda de imóvel, as partes não terão precisamente actuado em fraude à lei, contornando, no caso, a proibição do pacto comissório que o art. 694º estabelece imperativamente em sede de direitos reais de garantia. E é esta precisamente a tese do douto parecer apresentado pelo recorrente, ao sustentar que a venda com fim indirecto de garantia, com o circunstancialismo que reveste a hipótese dos autos, atrás descrito, envolveria as consequências próprias do pacto comissório, proibido pelo sistema jurídico português, implicando a consequente nulidade por fraude a lei imperativa (…)”.
Aqui chegados, podemos assim concluir que, como vem sendo entendido em termos doutrinais e jurisprudenciais, a venda fiduciária em garantia, em princípio, poderia ser válida.
Mas isso não impede, como a seguir iremos ver, que se possa sindicar a licitude do objecto da fidúcia, em face do disposto no artigo 280.º do Código Civil, em particular, na vertente de fraude à lei (por violação da proibição do pacto comissório – art. 694º do CC).
Ora, é justamente esta última sindicância que importa realizar no caso concreto na sequência do acolhimento dessa invocação por parte do tribunal recorrido.
Antes de entrarmos no caso concreto, importa esclarecer, em termos gerais, o que se pode entender, à luz do disposto no art. 280º do CC, como sendo um negócio jurídico nulo, por ter sido celebrado em fraude à lei.
Ora, “entende-se que o objecto do negócio é contrário à lei sempre que viole regras imperativas (art. 280º do CC). Da conjugação deste artigo com o artigo 294º do CC retira-se que o desvalor regra da contrariedade à lei é a nulidade do negócio, "salvo nos casos em que outra solução resulte da lei”. Há contrariedade à lei não só quando o objecto do negócio viola directamente uma disposição legal, como também quando o objecto, sem ofender frontalmente a lei, tenta contornar uma proibição por esta imposta, chegando por outros meios ao resultado proibido. Numa palavra, há contrariedade à lei, tanto nos negócios contra legem, como nos negócios concluídos em fraude à lei. Nestes, as partes celebram um negócio diverso daquele previsto na norma proibitiva, que, todavia, conduziria exactamente ao mesmo resultado do negócio proibido. Apesar de a letra da lei não ser violada e, portanto, o negócio aparentemente ser válido, uma análise do elemento teleológico daquela demonstra uma ofensa clara do seu escopo. Isto acontece sempre que a norma proibitiva, no fundo, não veda apenas a acção por si tipificada, mas qualquer acção tendente à produção do resultado ilícito” (sublinhados nossos) [33]. “O art. 294º não abrange somente os negócios em que a violação da lei é manifesta…, mas abrange também os “negócios sucedâneos”, ou seja, os negócios com que os interessados defraudam uma norma imperativa. Desta forma, um negócio tanto pode ser nulo por ser directamente contrário à lei como pode ser nulo por fraude à lei. Se a norma proibitiva em causa pretende vedar não só o negócio que especificamente visou, mas também quaisquer outros que conduzam ao mesmo resultado ou um resultado equivalente, a proibição vale também para eles. Quer dizer, se as partes não poderem concluir directamente o negócio pretendido em virtude de uma determinada norma imperativa que o proíbe, mas escolhem, em vez dele, um desvio, ou seja, outro negócio que prossegue e obtém o mesmo resultado que o negócio proibido, aplica-se também a este outro negócio a sanção da nulidade, prevista no art. 294º. Os negócios jurídicos com que as partes defraudam uma lei imperativa são nulos como contrários à lei, não sedo necessária nem a intenção nem mesmo a consciência de defraudar a lei”[34].
Como iremos ver, esta primeira aproximação, fundada apenas na alegação da nulidade do negócio jurídico, com fundamento na fraude à lei, permite-nos, desde logo, considerar que, para que o negócio jurídico seja considerado nulo, não é necessário que o mesmo contrarie directamente uma qualquer lei imperativa. Na verdade, tal nulidade também poderá surgir nos casos em que as partes, celebrando um contrato aparentemente válido (contrato de compra e venda), visam com a sua celebração atingir um objectivo que não seria possível atingir se tivessem celebrado, às claras, o negócio jurídico que pretenderam celebrar, designadamente, com as cláusulas desequilibradas nele estabelecidas (venda fiduciária em garantia em que o valor da garantia prestada excede manifestamente o valor do crédito em dívida - e que só foi possível celebrar, atenta necessidade em que se encontrava a Autora).
Aqui chegados, procurando-nos aproximar ainda mais da situação do caso concreto, temos de voltar ao que atrás já fomos referindo, quanto à possibilidade de se pode afirmar, em situações de venda fiduciária em garantia, a existência de uma situação de fraude à lei (art. 280º do CC), por violação da proibição da celebração de pactos comissórios estabelecida no art. 694º do CC - sendo, para o efeito, necessário concluir que “esta norma proibitiva pretende vedar não só o negócio que especificamente visou, mas também quaisquer outros que conduzam ao mesmo resultado ou um resultado equivalente” e que o negócio jurídico aqui em discussão tem esse mesmo resultado.
O Ac. do STJ de 21/12/05 (P. 04B4479) analisou detalhadamente as razões que justificam o regime legal constante do referido art. 694º do CC, fazendo-o nos seguintes termos: “Consigna o artº 694º do CC a proibição absoluta do pacto comissório, oriunda, como lembra Menezes Cordeiro, da "velha constituição de Constantino" "Direitos Reais", Lex, 1993, pág. 765), proibição essa, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, fundada "no prejuízo que do pacto comissório pode resultar para o devedor, que seria facilmente convencido, dado o seu estado de necessidade, a aceitar cláusulas lesivas dos seus interesses", tal fundamento sendo "paralelo ao da proibição da usura", a proibição abrangendo "também, pelo seu espírito, o pacto pelo qual e convencione o direito de venda particular", o pacto comissório, "por sua própria natureza", só se compreendendo "quando anterior ao vencimento do crédito (para o caso de não cumprir)"o sublinhado nosso cfr. Código Anotado" - 4ª Edição Revista e Actualizada -, vol. I, pág. 718.) Acompanhamos, antes, a respeito da ratio da proibição do pacto comissório, o sustentado por Manuel Januário da Costa Gomes, quando escreve: "A ideia dominante entre nós é a de que a proibição do pacto comissório é justificada pela necessidade de proteger o devedor face a eventuais extorsões por parte do credor, identificando-se com a ratio do art. 1146º que pune a usura, bem como com o pensamento subjacente à condenação dos negócios usurários (art. 282º). No entanto, como observa ROPPO, esta justificação é susceptível de provocar perplexidades por razões de ordem sistemática, já que na lógica do sistema, a tutela de quem contrata em estado de necessidade ou coagido não passa pela nulidade, para além de que não se furta à sanção da nulidade um pacto que se mostre em concreto vantajoso para o devedor (em virtude, v.g., da desproporção existente entre o valor do bem que é objecto de garantia e o montante da obrigação garantida). Daí que tenham surgido na doutrina e jurisprudência italianas outras justificações para a proibição do pacto comissório. Assim, BETTI associa a proibição à atribuição exclusiva ao Estado do controlo sobre o não cumprimento das obrigações; LOJACONO explica-a à luz da necessidade de efectivação do princípio par conditio creditorum; BIANC4 invoca a existência de um interesse geral em evitar um "prejuízo social", ideia grosso modo retornada por CARNEVALI, quando se reporta a um interesse geral no regular e correcto desenvolvimento das relações jurídicas; finalmente, the last but not the least, COSTANZA considera que muito provavelmente devem ser relevadas todas as razões apresentadas, que não são entre si incompatíveis ou contraditórias, "respondendo, antes, à lógica unitária da correcção negocial. Aderindo, grosso modo, à ideia de COSTANZA, parece-nos que a ratio da proibição do pacto comissório é plúrima e complexa, relevando, a um tempo, o propósito de proteger o devedor da (possível) extorsão do credor e a necessidade, que corresponde a um interesse geral do tráfego, de não serem falseadas as "regras do jogo", através da atribuição injustificada de privilégios a alguns credores, em objectivo (seja ele efectivo ou potencial) prejuízo dos demais. A correcção negocial não se compadece com mecanismos que possam legitimar, directa ou indirectamente, a institucionalização de "castas" entre os credores, fora das vias transparentes e objectivas que justificam as excepções ao princípio par conditio creditorum ("Assunção Fidejussória de Dívida"- Almedina 2000 -, pág. 92 a 94)”[35].
Encontrada a justificação para a proibição do pacto comissório, importa, no entanto, realçar que a absoluta proibição legal do pacto comissório acabou por ser recentemente temperada ou mitigada – particularmente após ter sido introduzido no nosso ordenamento jurídico o regime especial do penhor financeiro, através do DL 105/04, cujo preâmbulo proclama, como relevante inovação, ter sido aceite, no âmbito do contrato aí regulado, o pacto comissório, em frontal desvio à regra imposta pelo art. 694º do CC: a doutrina tem, porém, notado que tal afirmação do legislador peca por excessiva, face ao estatuído no nº 2 do art. 11º desse diploma legal , ao impor ao beneficiário a obrigação de restituir, a quem presta a garantia, a diferença entre o valor objecto do penhor e o montante das obrigações financeiras garantidas , consagrando, afinal, a lei, em bom rigor, um regime próprio do velho «pacto marciano»[36].
Daí que, tendo em conta esta mitigação – e generalizando tal entendimento para além do âmbito restrito do penhor financeiro -, haja quem defenda que o negócio fiduciário cum creditore só é válido se da cláusula fiduciária resultar a referida obrigação de restituição que caracteriza o pacto marciano, análogo, nas suas consequências, às estatuídas no nº 2 do art. 11º do DL nº105/04. Se tal não se verificar, a transmissão atípica em função da garantia é nula.
É justamente essa a posição de Catarina Monteiro Pires[37] que define o âmbito do pacto comissório, efectivamente proibido, como a convenção mediante a qual ocorre a perda ou a extinção da propriedade de um bem do devedor, a favor do respectivo credor, em virtude do incumprimento de uma obrigação a cargo daquele e sem que estejam previstos mecanismos que assegurem, com efectividade e actualidade, que o valor do bem apropriado não é superior ao valor da dívida garantida ou que, sendo aquele superior a este, o credor não se apropriará do valor que exceda o necessário para a satisfação do seu crédito.
Estaremos nestas situações perante um caso em que existe uma espécie de sobregarantia – expressão utilizada por Januário C. Gomes que “visa designar ou descrever situações especificas: aquelas em que, aquando da prestação de garantia ou posteriormente, se verifica uma qualificada desproporção entre o valor do crédito garantido e o valor do bem dado em garantia, desproporção que permite reacções especificas do dador de garantia”.
Defende Catarina Monteiro Pires[38] que nestas situações de sobregarantia “… nos quadros do Direito Civil não deve ficar excluído o recurso ao disposto no art. 280º do CC conjugado com o regime do negócio usurário e com o princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações (art. 762º do CC)”.
É certo que não existe uma total coincidência entre as funcionalidades de um pacto comissório – facultando ao titular de um direito real de garantia a apropriação dos bens por ela onerados, em caso de incumprimento – e a venda fiduciária em garantia –consubstanciada, como vimos, no «pactum fiduciae» acordado entre vendedor e comprador frequentemente dissimulado, encoberto ou oculto pelos contraentes, não constando ou transparecendo minimamente do contrato formal de alienação que celebraram.
São, na realidade, vias jurídicas estruturalmente diferenciadas a que, por um lado, se traduz em onerar um bem do devedor (ou de terceiro), vinculando-o à garantia de um crédito mediante constituição de um direito real de garantia, e estipulando-se que – se ocorrer incumprimento da obrigação e só nesse preciso momento – poderá o titular do direito real de garantia apropriar-se do bem hipotecado, «convertendo» a garantia real em direito de propriedade; e a que, por outro lado, se traduz em proceder-se à imediata alienação de certo bem ao credor - produzindo, naturalmente, tal negócio de venda efeitos reais imediatos, transferindo sem mais a propriedade do bem para a esfera jurídica do comprador – estando, porém, subjacente a tal alienação um pacto «fiduciário» celebrado entre os contraentes, do qual resulta a vinculação do credor/comprador às obrigações de conservação do bem transmitido e de posterior revenda ou retransmissão em benefício do anterior proprietário, logo que o fim de garantia do crédito se mostre exaurido.
Esta diferença estrutural das duas figuras, como refere o ac. do STJ de 21/12/05 “obsta à directa subsunção desta segunda categoria normativa no âmbito do art. 694º do CC, cujo programa normativo se dirige – e confina - claramente ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da «coisa onerada» no caso – e no momento - em que o devedor não cumprisse a obrigação garantida. O que, deste modo, está verdadeiramente em causa é saber se se justificará a efectivação de uma verdadeira operação de «extensão teleológica» da proibição contida no citado art. 694º, de modo a nela incluir situações que, sendo embora, de um ponto de vista jurídico, estruturalmente diferenciadas da hipótese ali prevista, têm com ela alguma conexão funcional relevante: e a admissibilidade de realização de uma tal extensão teleológica da norma proibitiva dependerá naturalmente do balanceamento ou ponderação de todos os interesses envolvidos, tendo particularmente em conta os reflexos que a tese da nulidade da venda ou alienação fiduciária de imóveis – estabelecida com o fito essencial de protecção dos interesses do devedor/vendedor - poderá envolver no plano da tutela do princípio fundamental da confiança e da segurança do comércio jurídico”.
Ora, como defende Catarina Monteiro Pires[39], embora, como vimos, estruturalmente, o pacto comissório e a alienação fiduciária em garantia não se identifiquem, “porém, estas figuras partilham um perfil funcional, uma mesma finalidade de garantia de um crédito, de tal modo que dificilmente se compreenderá que a norma do art. 694º possa considerar-se alheia ao regime jurídico das garantias atípicas susceptíveis de prosseguir um resultado semelhante ao do penhor com pacto comissório. Pelo contrário, as razões da norma impõem a sua extensão teleológica a estes casos de garantia análogos – o que se reconduz essencialmente a um exercício de interpretação da norma proibitiva e não tanto à verificação de uma fraude ao imperativo contemplado nessa norma (…) Ainda que se admita a autonomia da fraude à lei, o problema reconduz-se igualmente a uma questão de interpretação; trata-se de saber se“o intuito da lei foi proibir não apenas os negócios que especificamente visou, mas quaisquer outros tendentes a prosseguir o mesmo resultado”- Manuel de Andrade, Teoria Geral, Vol. II, p. 338”.
Esta ideia é também defendida por Pestana Vasconcelos[40] que sustenta que “(o que o art. 694º do CC) pretende evitar é um determinado resultado que não se limita às figuras para as quais foi directamente prevista e que consiste em evitar o prejuízo que o devedor sofreria em resultado do desequilíbrio entre o valor da coisa dada em garantia e a obrigação garantida se se permitisse ao credor ficar com ela sem avaliação ou com avaliação realizada por ele próprio, no caso de incumprimento da obrigação garantida (e com a sua consequente extinção). A razão de ser da lei abrange, quer as figuras onde directamente está prevista, quer outras que possam levar a resultado idêntico. Por outro lado, para este fim, para o resultado que se pretende evitar a transmissão prévia do bem, ou só aquando o incumprimento, não tem relevo, A ratio da proibição alcança ambas (…) Por isso, só quando decorrer da interpretação do contrato que as partes quiseram mesmo que no caso de incumprimento do locatário financeiro/fiduciante, o locador/fiduciário ficasse com o bem (de valor superior), sem ter que o alienar a terceiro ou o fazer avaliar por um ente independente, assim como de restituir o excedente, estaremos perante um pacto comissário, atingido pela proibição, sendo o contrato, dessa, forma nulo” (pág. 507)
O Prof. Menezes Leitão[41], depois de assinalar que um problema que se coloca é o da proibição da alienação fiduciária em garantia face ao regime do pacto comissório, também defende que “… conforme sustenta Januário Gomes, uma alienação fiduciária em garantia redundaria sempre numa forma de defraudar o regime do pacto comissório”.
Nesse mesmo sentido se pronuncia Rui Pinto Duarte, in “CC anotado (Coord. Ana Prata), Vol. I, pág. 880 que conclui que “da proibição do pacto comissório pode razoavelmente retirar-se que são também nulos os acordos de efeito similar ao pacto comissório, no âmbito de contratos fiduciários”.
Em estudo recente, também Teresa Novo Faria[42] sustenta que o pacto comissório autónomo (como a alienação em garantia) tal como tem sido entendido, maioritariamente, tanto no direito italiano como no espanhol, também é proibido porque cabe no âmbito da ratio da norma (art. 694º do CC) no direito português.
Resulta do exposto então que, podemos, assim, concluir que, a venda fiduciária em garantia celebrada pelas partes nos autos, em princípio, seria válida.
Mas isso não significa que não se tenha que ponderar se, atenta “a qualificada desproporção entre o valor do crédito garantido e o valor do bem dado em garantia”, não teremos que entender que o objecto da venda fiduciária em garantia deve ser considerado, no caso concreto, ilícito, em face do disposto no artigo 280.º do Código Civil, em particular, na vertente de fraude à lei (por violação das regras da proibição do pacto comissório – art. 694º do CC – aqui aplicáveis por extensão teleológica nos termos que resultam do exposto).
Neste ponto, importa notar que esta ponderação não implica necessariamente que tenhamos que recorrer à qualificação do negócio jurídico celebrado como usurário.
Na verdade, “perante um pacto comissório, ainda que não se verifiquem os requisitos subjectivos da usura, ele será proibido da mesma forma, pelo menos desde que haja um desequilíbrio nas prestações” – Teresa Novo Faria, estudo cit. Pág. 828.
Ora, é justamente esta sindicância relativa à assinalada fraude à lei (à proibição do pacto comissório) - art. 280º do CPC - que importa realizar no caso concreto, na sequência do acolhimento dessa invocação por parte do tribunal recorrido.
Julga-se, efectivamente, que é inequívoco que a forma como as partes estruturaram o negócio jurídico que celebraram, denuncia que a Ré, aproveitando-se da necessidade da Autora, acabou por ver estabelecida em seu favor uma “sobregarantia” que assume justamente as características atrás descritas.
Ou seja, atentos os valores em confronto (valor do empréstimo e valor do prédio vendido/dado em garantia) não podem existir dúvidas que “se verifica uma qualificada desproporção entre o valor do crédito garantido e o valor do bem dado em garantia”.
Nessa medida, não haveria dúvidas que se as partes tivessem celebrado um pacto comissório, tal pacto seria proibido nos termos do art. 694º do CC.
O que significa que se tem que entender que o negócio jurídico aqui em discussão, na forma como foi estruturado pelas partes, a considerar-se válido, constituiria uma forma de defraudar a proibição de celebrar pactos comissórios, pelo que, como bem entendeu o tribunal recorrido, ter-se-á de julgar nulo o contrato celebrado por ser contrário à lei, designadamente, por constituir uma situação de fraude à lei (prevista no art. 280º do CC).
Como referimos, defende Catarina Monteiro Pires que, nestas situações de sobregarantia “… nos quadros do Direito Civil não deve ficar excluído o recurso ao disposto no art. 280º do CC conjugado com o regime do negócio usurário e com o princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações (art. 762º do CC)”.
Também Teresa Novo Faria, no citado estudo, conclui que: “Assim, concordamos com Januário da Costa Gomes quando defende a aplicação da proibição do pacto comissório às situações de transferência da propriedade com função de garantia. O que se pretende é realizar plenamente o fim da norma legal e impedir incoerências de valoração. A lei visa impedir um resultado danoso para o devedor independentemente do meio a que se recorre, independentemente de se tratar de uma garantia típica ou atípica, desde que o mesmo resultado seja atingido. É a esta luz que deve ser aferida a validade das restantes figuras negociais com função de garantia, pois o fundamento teleológico da norma e a coerência normativa do sistema impõem a inclusão, no âmbito da proibição, de casos por ela literalmente não abrangidos. Apesar de ser possível identificar algumas diferenças, o pacto comissório é também bastante semelhante à alienação fiduciária em garantia de um ponto de vista funcional, pois ambos pretendem garantir um crédito. Assim, os fundamentos da proibição consagrada no artigo 694° justificam ou, diríamos mais, exigem a consideração desta norma aquando da aferição da validade de uma alienação fiduciária em garantia. (…) Portanto, concordamos com a posição de Januário da Costa Gomes sobre a validade da alienação fiduciária em garantia e pensamos que a mesma é admissível, desde que se tenha em conta a equivalência entre o valor da coisa e do débito. Se o devedor entender que há aproveitamento da parte do credor ou que este obteve uma vantagem injustificada, poderá defender que a alienação fiduciária em garantia é inválida, invocando o artigo 694° do CC e, possivelmente, poderá também invocar o artigo 282° do CC, desde que cumpridos os respectivos requisitos”.
Como decorre do exposto, é esse também o nosso entendimento, pelo que não podemos deixar de confirmar o julgamento efectuado pelo tribunal recorrido, no que concerne ao enquadramento jurídico que, pertinentemente, levou a cabo na sentença recorrida.
Na verdade, não há dúvidas que, no caso concreto, se verifica uma “manifesta desproporção entre o valor do crédito garantido e o valor do bem dado em garantia”, independentemente de qualquer apreciação subjectiva sobre a qualificação como usurária a posição da Ré – que também parece existir.
Com efeito, conforme resulta a matéria de facto provada, a Ré ficou investida, por força da escritura de compra e venda, na propriedade plena de um bem imóvel com o valor de mercado de €160.000,00 para garantia de um empréstimo de €47.000,00 – pelo que tal desproporção assinalável não pode deixar de ser ponderada no âmbito da questão da validade do negócio fiduciário – como bem entendeu o tribunal recorrido.
Conclui-se, portanto, que o contrato de compra e venda impugnado é contrário à lei (na modalidade de fraude à lei – por violação do princípio da proibição do pacto comissório – art. 694º do CC aplicável por interpretação extensível à venda fiduciária em garantia) e, como tal, nulo, nos termos do art. 280º do CC.
Por conseguinte, procede a pretensão da autora deduzida a título subsidiário e improcede o pedido reconvencional deduzido a título principal, o qual se encontrava dependente da validade do negócio.
Com efeito, sendo o referido contrato de compra e venda um negócio nulo, o mesmo não produz qualquer efeito (arts. 286º e ss. do CC), com o consequente cancelamento do registo da aquisição do bem imóvel objecto de tal negócio efectuado a favor da ré.
Relativamente ao pedido reconvencional, deduzido a título subsidiário, no qual a ré pede a restituição do preço, bem como os custos em que incorreu com a compra, mantém-se também o decidido pelo tribunal recorrido, atento o disposto no art. 289º do CC.
O vício que afecta o negócio em causa determina a restituição pela autora à ré do preço pago (€47.500,00), por força dos termos conjugados do disposto nos arts. 289º, nº 1 e 879º, al. c), do CC (sendo que não há que ordenar a restituição do imóvel, pois a autora continuou sempre a ocupá-lo).
Afigura-se-nos ainda que tem a ré direito à restituição do IMI que suportou entre os anos de 2014 e 2017, aditando-se a esses valores, o valor que se mostrava mencionado na al. e) e que agora se considerou provado no ponto 21, na sequência da impugnação factual deduzida.
Às aludidas quantias, tal como já foi determinado pelo tribunal recorrido, acrescem juros de mora, mas apenas desde a data da notificação do pedido reconvencional (cfr. arts. 805º e 806º, do CC).
Nesta conformidade, e por todo o exposto, mantendo-se o enquadramento jurídico desenvolvido na sentença recorrida, apenas se decide alterar parcialmente a decisão proferida, condenando-se ainda os AA. a pagar à Ré o valor constante do ponto 21 dos factos provados.
No mais, decide-se julgar improcedente o recurso.
*
III-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o Recurso e, em consequência, decide-se condenar ainda a autora e o interveniente, na qualidade de sucessor de CC, a pagar à ré a quantia de €896,17 (oitocentos e noventa e seis mil e dezassete cêntimos) - correspondente ao aditamento do ponto 21 dos factos provados.
No mais, manter integralmente a decisão recorrida.
*
Custas pela Recorrente e pelos Recorridos na proporção dos respectivos decaimentos (artigo 527.º, nº 1 do CPC).
Notifique
*
Porto, 26/09/2022
(assinado digitalmente)
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade
Eugénia Cunha
______________________________ [1] Profs. Lebre de Freitas/Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, in “CPC anotado”, Vol. III (3ª edição – 2022), pág. 141 [2] In “CPC anotado”, Vol. I, pág. 484. [3] In “Processo Civil declarativo”, pág. 343, nota 802. [4] V, entre muitos, os acs. do STJ de 1.4.2014, da RE de 3.11.2016 e da RG de 4.10.2018, in dgsi.pt. [5] Lebre de Freitas/ Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, volume 2º, pág. 735. [6] In “A acção declarativa comum”, pág. 321, nota 13; [7] Como se refere no ac. do STJ de 28.6.2017 (relator: Roque Nogueira), in dgsi.pt (acórdão a que mais à frente voltaremos, por ter por objecto justamente uma situação em que se discute também uma venda fiduciária em garantia) [8] Neste sentido, v. Alberto dos Reis, in “CPC Anotado”, vol. V, pág. 140 e Antunes Varela, in, “Manual de Processo Civil”, pág. 669. [9] Cfr. Antunes Varela, obra citada pág. 670. [10] Abrantes Geraldes, in “Recursos no NCPC”, pág. 289 “… a anulação da decisão… não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objecto do Recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários. Só nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo…”. [11] Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil “, pág. 133; [12] v. Ac. do STJ de 24.9.2013 (relator: Azevedo Ramos) publicado na DGSI e comentado por Teixeira de Sousa, in “Cadernos de Direito Privado”, nº 44, págs. 29 e ss.; [13] Pode inclusivamente, verificados determinados requisitos, ordenar a renovação da prova (art. 662º, nº2, al a) do CPC) e ordenar a produção de novos meios de prova (al b)); [14] Abrantes Geraldes, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil“, pág. 266 “ A Relação actua como Tribunal de substituição quando o recurso se funda na errada apreciação dos meios de prova produzidos, caso em que se substitui ao tribunal de primeira Instância e procede à valoração autónoma dos meios de prova. Confrontada com os mesmos elementos com que o Tribunal a quo se defrontou, ainda que em circunstâncias não totalmente coincidentes, está em posição de formular sobre os mesmos um juízo valorativo de confirmação ou alteração da decisão recorrida… “; [15] Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, p. 348. [16] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, disponível em www.dgsi.pt. [17] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, disponível em www.dgsi.pt. [18] Segundo Ana Luísa Geraldes, in “ Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto” (nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas) Vol. I, pág. 609 “ Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte… “; no mesmo sentido, v. Miguel Teixeira de Sousa, in “Blog IPPC” (jurisprudência 623- anotação ao ac. da RC de 7/2/2017) onde refere: “É verdade que os elementos de que a Relação dispõe não coincidem -- nomeadamente, em termos de imediação -- com aqueles que a 1.ª instância tinha ao dispor para formar a convicção sobre a prova do facto. No entanto, isso não significa que, como, aliás, o STJ tem unanimemente entendido, nem que a Relação esteja dispensada de formar uma convicção própria sobre a prova do facto, nem que funcione uma presunção de correcção da decisão recorrida. Importa, pois, verificar quais os elementos que devem ser considerados pela Relação para a formação da sua convicção sobre a prova produzida. Quanto a estes elementos, há uma diferença entre a 1.ª instância e a Relação: a 1.ª instância apenas dispõe dos meios de prova; a Relação dispõe daqueles meios e ainda da decisão da 1.ª instância. Como é claro, esta decisão, cuja correcção incumbe à Relação controlar, não pode ser ignorada por esta 2.ª instância. É neste sentido que se pode afirmar que, no juízo sobre a confirmação ou a revogação da decisão da 1.ª instância, a Relação pode utilizar um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação. Correspondentemente, a decisão deve ser revogada se a mesma se situar fora desta margem.”; [19] In “CPC anotado”, Vol. III, pág. 175. [20] Como se refere no ac. da RG de 26.4.2018 (relator: Maria Purificação de Carvalho), in Dgsi.pt: “O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios ou leis científicas, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório ou evidente), seja também quando a apreciação e valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas excluindo este”. [21] Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil” págs. 262 e 263. [22] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 576. [23] Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, págs. 168, 169 e 181 [24] Luís Pires de Sousa, in “Prova testemunhal”, pág. 175 e 176. [25] Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. IV, págs. 183 e 184. [26] Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 262 e 263 [27] “A credibilidade pode ser definida, em termos gerais, como a valoração subjectiva da exactidão estimada das declarações da testemunha. Essa valoração arrima-se em múltiplos factores, nomeadamente atinentes às características do evento, da testemunha, do comportamento desta e do teor das suas declarações…” - Luís Pires de Sousa, in “Prova testemunhal”, pág. 282. Por outro lado, “a determinação da credibilidade está condicionada pela aplicação das regras de experiência que têm de ser válidas dentro de um determinado contexto histórico e jurídico…” - ac. do STJ de 14.3.2007 (relator: Santos Cabral), in dgsi.pt. [28] RLJ, Ano 116, p. 339; [29] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 191. [30] A situação dos autos pode ser encontrada por ex. no ac. do STJ de 16.3.2011 (relator: Lopes do Rego), onde se efectua o seguinte enquadramento:” (…) no caso dos autos, o fim indirecto de garantia de uma obrigação, vinculativa do vendedor no confronto do comprador e subjacente ao acto de alienação praticado, está encoberto, oculto ou dissimulado das cláusulas contratuais formalmente acordadas e em que se consubstanciou a venda do imóvel, necessariamente realizada por escritura pública; do mesmo modo, o carácter «temporário» da alienação das fracções prediais e a existência de uma obrigação de «retrovenda», a cargo do comprador no confronto do vendedor, logo que a dita finalidade de garantia se mostrasse exaurida, não transparece minimamente da referida escritura pública, não constando sequer de escrito particular, apresentado pelos litigantes ( o que, desde logo, implica que esta «obrigação» não possa sequer valer como contrato promessa de «revenda» do imóvel, face à exigência formal que consta do art. 410º, nº2, do CC) (…) E, nesta perspectiva, não temos qualquer objecção ao enquadramento jurídico do negócio celebrado, na peculiar situação dos autos, na categoria dos «negócios fiduciários com fim de garantia» ou, eventualmente, na sua inserção no âmbito da figura próxima da «alienação em garantia» que, em recente monografia (Alienação em Garantia, Catarina Monteiro Pires, 2009, pág. 99) é definido como o «negócio nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito, com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade». (…) Efectivamente, a venda realizada tinha subjacente um fim indirecto de garantia de uma relação obrigacional, de que era credor o comprador no confronto do vendedor, emergente de um mútuo entre ambos celebrado, consubstanciando-se o carácter «temporário» da alienação das fracções prediais em litígio na estipulação de uma verdadeira obrigação pessoal de revender a coisa que lhe foi alienada, cabendo ao credor o correspondente direito, meramente creditório, de exigir a revenda logo que se mostrasse exaurido o fim de garantia que estava por detrás da celebração da venda: como se referiu – e, desde logo, por razões de forma, - está excluído que o negócio fiduciário em causa possa produzir, na situação dos autos, efeitos reais, apenas podendo conduzir a estipulação verbal e informal das partes de que a venda seria, afinal, temporária e funcionalmente ligada à garantia de um crédito proveniente de um empréstimo em dinheiro a uma vinculação estritamente obrigacional e pessoal de revenda dos imóveis”. [31] Menezes Leitão, in “Garantias das obrigações”, pág. 233 e 234 esclarece, por sua vez, que “a alienação fiduciária em garantia consiste na situação que se verifica quando o devedor ou um terceiro procede à alienação de um bem para o credor, para garantia do cumprimento de uma obrigação, vinculando-se o credor a apenas utilizar esse bem para obter a realização do seu crédito, devendo o mesmo ser restituído ao alienante em caso de cumprimento da obrigação a que serve de garantia”. [32] Ac. do STJ de 26.4.2018 (relator: Fernanda Isabel Pereira) onde se concluiu o seguinte: “I - Para além das garantias previstas na lei – garantias tout court –, sejam pessoais ou reais, pode surgir a utilização de outros institutos ou figuras jurídicas com finalidade diversa prevista na lei, que as partes utilizam, por acordo, para desempenhar funções de garantia. II - Dentro do género, surge a figura da alienação fiduciária ou venda em garantia, a qual constitui um negócio fiduciário nos termos do qual um sujeito (prestador da garantia) transmite a outro (beneficiário da garantia) a titularidade de um bem ou de um direito com a finalidade de garantia de um crédito, ficando o beneficiário da garantia obrigado, uma vez extinta esta finalidade, a retransmitir-lhe aquela mesma titularidade. III - O contrato fiduciário, que não se confunde com a simulação relativa (art. 241º do CC), visto a transmissão da propriedade do bem do vendedor para o comprador ser querida, tem associado o risco de abuso do fiduciário em resultado da evidente desproporção entre o meio, em abstracto excessivo para o fim considerado, mas necessário, e o fim visado. IV - A respeito da validade dos negócios fiduciários, na vigência do actual CC, é dominante, na doutrina e na jurisprudência, a tese da sua admissibilidade. V - Acolhendo esta tese, entende-se por acertado o entendimento de que a celebração de negócios jurídicos fiduciários é, em abstracto, válida no ordenamento jurídico português, sem prejuízo de se poder sindicar a licitude do respectivo objecto em face do disposto no artigo 280.º do CC, em particular, na vertente de fraude à lei. VI - Numa situação em que os réus outorgaram entre si, simultaneamente, uma escritura de compra e venda – onde o primeiro declarou vender e os segundos declararam comprar – e um contrato-promessa de compra e venda – onde os segundos declararam prometer vender e o primeiro declarou prometer comprar – do mesmo imóvel, tendo tais negócios em vista garantir o pagamento do empréstimo de uma quantia de €30 000, a celebração destes dois contratos de sinal contrário – um com natureza real e outro com natureza obrigacional – relacionados funcionalmente por um nexo ou escopo de garantia, constituem negócio fiduciário válido (…)”. [33] Elsa Vaz de Sequeira, in “Comentário ao CC- Parte Geral”, pág. 693. [34] Heinrich Horster, in “A parte geral do CC português- teoria geral do direito civil”, págs. 521 e 522. [35] Quanto a esta questão da “ratio legis da proibição do pacto comissório”, v. de uma forma desenvolvida, o estudo de Teresa Novo Faria, in “A proibição do pacto comissório no CC” (CC – Livro do cinquentenário- Coord. Menezes Cordeiro), Vol. I, págs. 823 e ss. Depois de indicar todas as teses que vêm sendo defendidas, a Autora indica a posição que adopta (pág. 834) “Na nossa opinião, o fundamento da proibição do pacto comissório é, essencialmente, a necessidade de proteger o devedor contra abusos do credor (…) Esta tutela tem duas vertentes: por um lado, procura-se o equilíbrio objectivo entre a dívida contraída e o valor da prestação efectuada pelo devedor, e, por outro, pretende-se tutelar a liberdade e discernimento do devedor, de modo a que este não seja de algum modo forçado a aceitar um acordo que, na verdade, não desejava”. [36] V. também a nova situação prevista no DL nº 75/2017 de 26/6. [37] In “Alienação em garantia” (2010), pág. 272. [38] In “Alienação em garantia” (2010), págs. 295 e 296. [39] In “Alienação em garantia” (2010), págs. 281 e ss. [40] In “Direito das Garantias”, (2016 – 2ª edição), pág. 504. [41] In “Garantias das obrigações”, pág. 239. [42] In “A proibição do pacto comissório no CC” (CC – Livro do cinquentenário- Coord. Menezes Cordeiro), Vol. I, págs. 815 e 842 a 844.