COMPETÊNCIA ABSOLUTA
NATUREZA DO LITÍGIO
EMBARGOS DE TERCEIRO
ARRESTO PREVENTIVO
PROCESSO-CRIME
Sumário

I–A competência traduz-se na medida de jurisdição atribuída a cada Tribunal, assentando a competência material apenas na natureza do litígio.

II–Embora inserida num instituto de natureza processual civil, a questão colocada nestes autos – embargos de terceiro contra arresto preventivo ordenado no âmbito de processo – crime - é de natureza penal, pelo que deve ser apreciada e decidida pelas secções criminais do Tribunal da Relação.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



I–RELATÓRIO


Banco BPI, S. A., deduziu embargos de terceiro, nos termos do disposto no art.º 342.º e seguintes do CPC, por apenso aos autos de carta rogatória extraídos dos autos de inquérito identificados com o mesmo n.º 210/20.4 TELSB, contra:
- Estado Português, representado pelo Ministério Público,
- Winterfeel 2 Limited, sociedade comercial de direito maltês, com sede em Aragon House Business Centre, Dragonara Road, St. Julians, STJ3140, Malta, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1.–Em finais de Fevereiro de 2021, o Banco embargante tomou conhecimento de que teria sido proferida nos presentes autos decisão de extensão do arresto decretado sobre as ações representativas do capital social da Efacec-Power Solutions,SGPS, S.A. que eram detidas pela sociedade Winterfell 2, Ltd., ao direito à indemnização que esta sociedade passou a ser titular por força do acto de nacionalização pelo Estado Português das aludidas participações sociais, concretizado pelo Decreto-Lei n.º33-A/2020, de 2 de julho.
2.–Pelo que, o ora embargante solicitou à Direção-Geral do Tesouro e Finanças informação escrita contendo indicação se eram verdadeiras as informações segundo as quais teria sido proferida a aludida decisão de extensão do arresto decretado sobre as ações acima mencionadas ao direito à indemnização da Winterfeel 2, Ltd. emergente daquele acto de nacionalização; e, em caso afirmativo, que lhe fosse disponibilizada cópia da decisão que teria determinado a aludida extensão do arresto (cfr. doc. 1 que se junta).
3.–Até à presente data, a Direção-Geral do Tesouro e Finanças não prestou ao Banco ora embargante a informação solicitada.
4.–Razão pela qual, cautelarmente, o Banco deduz os presentes autos de embargos de terceiro relativamente àquela decisão de extensão do arresto anteriormente decretado sobre as aludidas ações ao direito à indemnização de que a Winterfeel 2, Ltd. venha a ser titular por força do acto de nacionalização dessas mesmas ações.
5.–Na verdade, à semelhança do arresto preventivo decretado sobre as participações sociais detidas pela Winterfell 2 Ltd., a decisão de extensão de tal arresto ao direito à indemnização também ofende de forma grave os direitos que para o embargante advêm da existência prévia de penhores financeiros constituídos a favor do Banco embargante sobre 9.971.832 ações da Efacec Power Solutions, SGPS, S.A., os quais constituem uma garantia especial de natureza real de que o embargante é beneficiário.

Com efeito,

6.–Em data prévia às decisões de arresto proferidas nos presentes autos, mais concretamente em 23.10.2015, o Banco embargante concedeu um mútuo à Winterfell 2, Ltd. no montante de € 25.000.000,00 destinado a financiar parcialmente a aquisição de ações da Efacec Power Solutions, SGPS, S.A., nos termos e condições constantes do contrato que se junta (doc. 2) e aqui se dá por integralmente reproduzido.
7.–A finalidade do crédito de € 25.000.000,00 concedido pelo Banco embargante à WINTERFELL 2 LIMITED, ficou expressamente convencionada na cláusula terceira do contrato de empréstimo junto sob o doc. 1 e enquadra-se no processo de aquisição pela mutuária do capital da sociedade Efacec Power Solutions, SGPS, S.A. (também designada por EPS): destinou-se, "exclusivamente, a ser utilizado para financiar parcialmente a aquisição e subscrição pela Mutuária de parte das Acções EPS Iniciais" (Acções da Efacec Power Solutions, SGPS, S.A., tal como vêm definidas na cláusula primeira, als. c) e m) do aludido contrato).
8.–Tendo sido conferido ao Banco o direito de fiscalizar a correcta aplicação dos fundos concedidos (cfr. cláusula terceira, n.º 2).

9.–Assim, foi ainda convencionado que o crédito seria utilizado de uma só vez, na data da outorga do contrato, através do crédito na conta D.O. identificada na cláusula primeira, al. d) e ficando o Banco "incondicionalmente mandatado para:
(i)-transferir € 12.500.000,00 (doze milhões e quinhentos mil euros) destinados à aquisição pela Mutuária à EFACEC Capital de Acções EPS (...)
(ii)-transferir € 12.500.000,00 (doze milhões e quinhentos mil euros) destinados à subscrição de novas Acções EPS, no âmbito do aumento de capital (...)".

10.–O crédito concedido foi efectiva e integralmente utilizado pela WINTERFELL 2 LIMITED na aquisição e subscrição das ações EPS, como se demonstra, quer pelo movimento a crédito na conta D.O., em 23.10.2015, do valor mutuado de € 25.000.000,00 (cfr. extracto 001/2015, que se junta -doc. 3), quer ainda pelos avisos de lançamento referentes às duas transferências de €12.500.000,00 referidas supra, no art. 7.° que se juntam (docs. 4 e 5).
11.–No mesmo dia 23.10.2015, e em garantia do pontual e integral cumprimento das obrigações pecuniárias e não pecuniárias emergentes do aludido contrato de empréstimo, a sociedade WINTERFELL 2 LIMITED constituiu a favor do Banco BPI, ora embargante, e nos termos previstos pelo DL n 105/2004, de 08.05., um primeiro penhor financeiro sobre 9.343.187 Acções EPS Iniciais (Acções da Efacec Power Solutions, SGPS, S.A., tal como vêm definidas na cláusula primeira, als. c) e m) do aludido contrato), livres de quaisquer ónus ou encargos e prometeu constituir penhor financeiro sobre 22,5% das Acções EPS Adicionais Crédito Mutuária e/ou Novas Acções de que aquela mutuária viesse a ser titular (Acções da Efacec Power Solutions, SGPS, S.A., tal como vêm definidas na cláusula primeira, al. b) do aludido contrato), por força de aumentos do capital social da EFACEC POWER SOLUTIONS; SGPS; S.A. (EPS), em caso de entrega pela EPS à mutuária de Novas Acções ou de substituição ou desdobramento de acções já empenhadas, nos termos e condições que constam do contrato que se junta (doc. 6) e aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
12.–Os títulos representativos das Acções EPS Iniciais empenhadas a favor do Banco foram-lhe entregues no momento da outorga do contrato de penhor financeiro, bem como, registado o penhor financeiro de 1.º grau constituído a favor do ora embargante, nos termos previstos pelo art. 103º do CVM (cfr. n.º 3 da cláusula segunda do contrato de penhor), como se demonstra pela cópia dos referidos títulos que se junta (docs. 7 a 19).
13.–A solicitação da mutuária, o Banco embargante aceitou alterar o plano de reembolso de capital estabelecido no n 1 da cláusula sétima do contrato de empréstimo celebrado em 23.10.2015, nos termos e condições constantes do Aditamento ao Contrato de Empréstimo celebrado em 30.05.2019, que se junta (doc. 20) e aqui se dá por integralmente reproduzido.
14.–Em cumprimento da promessa de constituição de penhor financeiro prevista na cláusula décima primeira, n 2, al. b) do contrato de empréstimo (doc. 1 ora junto) e da cláusula segunda,
nº 5 do contrato de penhor financeiro (cfr. doc. 5 ora junto), foi celebrado entre o Banco embargante e a sociedade mutuária WINTERFEEL 2 LIMITED, em 24.06.2019, o Segundo Contrato de Penhor financeiro de Acções que se junta (doc. 21) e aqui se dá por integralmente reproduzido.
15.–Assim, em garantia do pontual e integral cumprimento das obrigações pecuniárias e não pecuniárias emergentes do contrato de empréstimo celebrado em 23.10.2015, a sociedade WINTERFEEL 2 LIMITED constituiu a favor do Banco BPI um primeiro penhor financeiro sobre 628.645 Acções EPS Adicionais Crédito Mutuária (Acções da Efacec Power Solutions, SGPS, S.A., tal como vêm definidas na cláusula primeira, al. b) do aludido contrato), livres de quaisquer ónus ou encargos.
16.–O título representativo das Acções EPS Adicionais Crédito Mutuária empenhadas, em 1º grau, a favor do Banco foi-lhe igualmente entregue no momento da outorga do contrato de penhor financeiro, bem como, registado o penhor financeiro de 1.º grau constituído a favor do ora embargante, nos termos previstos pelo art. 103 do CVM (cfr.N º 3 da cláusula segunda do contrato de penhor), como se demonstra pela cópia do referido título que se junta (doc. 22).
17.–Atento o incumprimento das obrigações pecuniárias emergentes do contrato celebrado em 23.10.2015 e alterado em 30.05.2019 (cfr. docs. 1 e 19), mais concretamente a falta de pagamento da prestação de reembolso de capital vencida em 30.06.2020, o Banco ora embargante comunicou à Winterfell 2 Limited, por carta remetida em 27.08.2020, a resolução do contrato, interpelando-a para proceder ao pagamento de todos os montantes em dívida de capital e juros devidos no âmbito daquele contato, os quais ascendiam, à data, à quantia de € 21.022.905,00 (doc. 23).
18.–Nos termos da cláusula quinta de ambos os contratos de penhor financeiro  que constituem os docs. 5 e 20 ora juntos, ficou expressamente acordado entre as partes, caso o Banco embargante declarasse o vencimento antecipado do crédito (nos termos previstos na cláusula décima quarta do contrato de empréstimo ora junto sob o doc. 1):
- o direito de apropriação do Banco BPI, ora embargante, do objecto da garantia pignoratícia constituída a seu favor, fazendo "(...) suas as Acções EPS Iniciais, e/ou as Acções EPS Adicionais Crédito Mutuária e/ou as Novas Acções que a seu favor estejam empenhadas. (...), tendo sido ainda expressamente acordada a forma e os critérios de avaliação dos instrumentos financeiros objecto do penhor financeiro, nos termos previstos pelo art. 11.º do DL n 105/2004, de 08.05. (cfr. n.s. 1 e 2 da referida cláusula quinta), ou
- A faculdade de executar extrajudicialmente o presente penhor, procedendo à venda  das Acções EPS Iniciais, e/ou as Acções EPS Adicionais Crédito Mutuária e/ou as Novas Acções, que se encontrem empenhadas a seu favor, pelo preço e nas condições que entenda por convenientes (....), sem dependência de qualquer formalidade ou aviso prévio" e ficando expressamente mandatado para o efeito (cfr. n9 3 da aludida cláusula quinta).
19.–Assim, no caso de ambos os penhores financeiros constituídos a favor do Banco embargante sobre as ações EPS, assistia ao credor pignoratício o direito de :
a.-apropriar-se das ações empenhadas (para o efeito valorizadas nos termos previstos no n 2 da cláusula quinta do contrato de penhor que constitui o doc. 5) ou
b.-executar extrajudicialmente o penhor financeiro (promovendo a venda das ações empenhadas, para o que ficou irrevogavelmente mandatado, nos termos do n 3 da citada cláusula quinta) e ainda,
c.-exercer os direitos de voto inerentes às ações EPS empenhadas a partir do momento em que se verifique a causa que permita a declaração de vencimento antecipado (n 4 da cláusula segunda do mesmo contrato).

20.–Em síntese:
- O Banco embargante, no exercício da sua actividade comercial e de boa fé, concedeu à sociedade WINTERFEEL 2 LTD um crédito, sob a forma de mútuo, no valor de € 25.000.000,00, exclusivamente destinado a financiar a aquisição e subscrição de ações pela mutuária no capital social da sociedade EFACEC POWER SOLUTIONS, SGPS, S.A. (também designada por EPS);
O crédito em causa foi creditado pelo Banco na conta bancária da mutuária contratualmente definida para o efeito;
O referido crédito foi efectiva e exclusivamente utilizado pela mutuária na aquisição e subscrição das ações a que se destinava, tendo sido concretizadas duas transferências no valor de € 12.500.000,00 para o efeito;
-Em garantia do integral cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de empréstimo, a mutuária constituiu a favor do Banco dois penhores financeiros, em 1.º grau, sobre 9.343.187 Acções EPS Iniciais e 628.645 Acções EPS Adicionais Crédito Mutuária, livres de quaisquer ónus ou encargos;
Os títulos representativos das ações empenhadas foram entregues ao Banco embargante na data da outorga de ambos os contratos;
- Ambos os penhores financeiros, em 1.º grau, foram averbados a favor do Banco BPI, S.A. nos respectivos títulos representativos das ações.
21.–Banco  embargante sempre agiu de boa fé e de forma diligente em todo o rocesso de negociação, formalização e acompanhamento do crédito concedido.
22.–Para o  ora embargante tratou-se de uma normal operação de financiamento, no exercício da sua actividade como instituição de crédito, pese embora o seu avultado montante, o que determinou um cuidado reforçado quer na contratação de garantias reais, efectivas e necessárias, quer ainda na estipulação de obrigações não pecuniárias de acompanhamento da situação financeira da mutuária.
23.–Com a publicação do Decreto-Lei n.º 33-A/2020, de 2 de julho, foi nacionalizada pelo Estado Português a participação social detida por Winterfell 2 Limited, no capital social da Efacec-Power Solutions, SGPS, S.A., correspondente a 71,73 % do capital social, (cfr. art. 39, n9 1).
24.–Vendo-se no art.º 4.º n.º1 do citado diploma legal que se consideram “(…) transmitidas para o Estado, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, as ações representativas da participação no capital social da Efacec nacionalizada ao abrigo do presente decreto-lei, livre de quaisquer ónus ou encargos, para todos os efeitos legais."
25.–E no art. 5º, nº 1 do mesmo diploma, estabelece-se que "Aos titulares da participação social nacionalizada ou aos eventuais titulares de ónus ou encargos constituídos sobre a mesma, é reconhecido o direito à indemnização, quando devido, nos termos dos artigos 4.º e 5.º do regime jurídico de apropriação pública." (sublinhado nosso).
26.–O  Banco ora embargante, atenta a sua qualidade de credor pignoratício, é titular de uma garantia
real sobre as ações objecto de nacionalização, pelo que ao mesmo é legalmente reconhecido o direito à indemnização previsto no citado art. 5, n 1 do DL n 33-A/2020, de 02.07.
27.–Já que a Winterfell 2, Limited é titular de um direito à indemnização, que "substitui" na sua esfera jurídica as participações sociais nacionalizadas e o Banco embargante, como credor pignoratício, no quadro do art. 692 do CC (aplicável ex vi os arts. 678 e 679 do CC), conserva sobre aquele direito a preferência que lhe competia em relação às ações que estavam oneradas a seu favor.
28.–Assim, a decisão que alargou o arresto ao direito à indemnização da titular das ações nacionalizadas, caso esta indemnização venha a ser concretizada, colide com a preferência de pagamento inerente à garantia real constituída a favor do embargante em data anterior ao arresto decretado,
29.–Pois o embargante tem o direito de ser pago preferencialmente pelo valor do direito de indemnização devido ao proprietário das ações.
30.–Face ao  acima exposto, resulta à evidência que o arresto preventivo decretado sobre o direito à indemnização da Winterfell 2 Ltd., emergente da nacionalização das 9.971.832 ações da EFACEC POWER SOLUTIONS, SGPS, S.A. empenhadas, em 1 grau, a favor do Banco embargante lesa gravemente o seu direito real de garantia especial, na medida em que aporta avultados prejuízos que apenas poderão ser evitados com o recebimento e deferimento dos presentes embargos.
31.–O arresto preventivo decretado nos presentes autos é inibitório da preferência de pagamento inerente à garantia especial com natureza real de que o Banco embargante é beneficiário.
32.–A inibição e o condicionamento dos direitos emergentes e sucedâneos das garantias pignoratícias especiais constituídas a favor do Banco BPI (directa e exclusivamente associadas ao mútuo concedido e utilizado para aquisição das ações em causa nos presentes autos), esvaziam o seu objecto e fim, com toda a insegurança jurídica que tal situação implicará.
33.–Causando assim um elevado prejuízo na esfera jurídica do ora embargante, impossibilitando-o de obter o reembolso do crédito por si concedido, com a preferência de pagamento inerente ao direito real de garantia especial constituído a favor do embargante em data anterior à decisão de arresto.
34.–Face ao exposto, o arresto preventivo sobre as 9.971.832 ações da EFACEC POWER SOLUTIONS, SGPS, S.A. ordenado nos presentes autos é totalmente incompatível com os direitos reais de garantia, contratual e legalmente constituídos a favor do Banco embargante, nos termos e para os efeitos previstos pelo art. 342.º, n.º 1 do CPC.
35.–O Banco BPI, S.A., titular dos direitos ofendidos pelo arresto preventivo decretado, não é parte na causa, pelo que é admissível a defesa do seu direito pela via dos presentes embargos de terceiro (cfr. o citado n9 1 do art. 342 do CPC).
36.–Relativamente à competência internacional do Tribunal Central de Instrução Criminal para conhecer do mérito dos embargos de terceiro no âmbito dos presentes autos de carta rogatória, o Banco embargante vem, desde já e cautelarmente, reiterar tal competência, sustentada nos dois acórdão proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 23.12.2020 e em 21.01.2021, proferidos nos apensos aos presentes autos, respectivamente, sob os n. 210/20.4 TELSB-F.L1-9 e 210/20.4 TELSB-C.L1-9, cuja fundamentação aqui se dá por reproduzida.
37.–Nestes termos e nos demais de Direito, devem os presentes embargos de terceiro ser recebidos e, em consequência, ser ordenado o levantamento do arresto preventivo decretado nos presentes autos sobre o direito à indemnização de que a WINTERFELL 2 LIMITED é titular, por força da nacionalização das 9.971.832 acções  da EFACEC POWER SOLUTIONS, SGPS, S.A. dadas em penhor fmanceiro ao Banco embargante, em garantia do seu crédito, através dos contratos de penhor financeiro celebrados em 23.10.2015 e em 24.06.2019.”

Notificado nos termos do disposto no art.º 348.º n.º1 do CPC o MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou contestacão na qual defendeu a improcedência dos embargos e por consequência, a manutenção do arresto preventivo decretado nos autos.

Seguidamente foi proferida sentença que julgou improcedentes os embargos de terceiro e manteve o arresto preventivo decretado.

Inconformada  com tal decisão a Embargante interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1–O presente recurso vem interposto da decisão de fls. 132 e ss., a qual julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos e manteve o arresto preventivo decretado sobre o direito à indemnização devida pela nacionalização das participações sociais detidas pela Winterfeel 2, Ltd. no capital social da Efacec Power Solutions, SGPS, S.A. (EPS), mais concretamente sobre as 9.971.832 ações EPS dadas em penhor financeiro a favor do ora recorrente.
2–O Despacho recorrido merece censura, por inadequada interpretação e aplicação do direito aos factos que constituem a causa de pedir no caso sub judice, violando as previsões do art. 342° do CPC, do art. 111 do CP, dos arts. 62° e 83° da CRP, dos arts. 4°, n° 1 e 5°, n9 1 do DL n9 33-A/2020, de 02.07. e art. 4°, n 1 da Lei nº 62-A/2008, de 11.11. (RJAP) e do art. 692°, n° 3 do CC, aplicável por remissão do art. 678° do mesmo diploma, bem como dos arts. 411 e 413 do CPC.
3–Entende o ora recorrente que estão preenchidos e se mantêm os pressupostos que determinaram a apresentação dos embargos de terceiro sobre o direito à indemnização devida pela nacionalização daquelas participações sociais, no sentido de afastar qualquer efeito do arresto do direito à indemnização decretado e/ou expectativas e pretensões do requerente do arresto que possam, de alguma forma, contender com os direitos emergentes e sucedâneos dos penhores financeiros anteriormente constituídos a favor do ora recorrente, designadamente no que respeita às inerentes garantias especiais de natureza real.
4–A decisão recorrida começa por sustentar que o embargante "não é titular de um direito que se possa considerar ofendido pelo arresto decretado — e, nessa medida, acautelado através da Oposição por embargos de terceiro — por não existir tal direito, mas uma mera expectativa jurídica decorrente de um direito de crédito."
5–Sem qualquer razão, desde logo porque no caso sub judice, o Banco ora recorrente não é requerido e/ou arguido no arresto decretado, mas um terceiro de boa fé, que concedeu à sua cliente Winterfeel 2 Ltd. um crédito no montante de € 25.000.000,00, efectivamente utilizado pela mutuária e destinado "exclusivamente, a ser utilizado para financiar parcialmente a aquisição e subscrição pela Mutuária de parte das Acções EPS Iniciais", pelo que utilizou o mecanismo de reação legalmente previsto nos arts. 342° e ss. do CPC.

6–Na petição de embargos, o ora Recorrente alegou e demonstrou documentalmente a existência dos direitos invocados:
- Em 23.10.2015, o Banco embargante, no exercício da sua actividade comercial e de boa fé, concedeu, em data prévia ao arresto decretado, à sociedade WINTERFEEL 2 LTD um crédito, sob a forma de mútuo, no valor de € 25.000.000,00, exclusivamente destinado a financiar a aquisição e subscrição de ações pela mutuária no capital social da sociedade EFECEC POWER SOLUTIONS, SGPS, S.A. (também designada por EPS);
- O crédito em causa foi creditado pelo Banco na conta bancária da mutuária contratualmente definida para o efeito;
- O referido crédito foi efectiva e exclusivamente utilizado pela mutuária na aquisição e subscrição das ações a que se destinava, tendo sido concretizadas duas transferências no valor de € 12.500.000,00 para o efeito;
-Em garantia do integral cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de empréstimo, a mutuária constituiu a favor do Banco dois penhores financeiros, em 1° grau, sobre 9.343.187 Acções EPS Iniciais e 628.645 Acções EPS Adicionais Crédito Mutuária, livres de quaisquer ónus ou encargos;
-Os títulos representativos das ações empenhadas foram entregues ao Banco embargante na data da outorga de ambos os contratos;
- Ambos os penhores financeiros, em 1° grau, foram averbados a favor do Banco BPI, S.A. nos respectivos títulos representativos das ações.
7–Com a publicação do Decreto-Lei n° 33-A/2020, de 2 de julho, foi nacionalizada pelo Estado Português a participação social detida por Winterfell 2 Limited, no capital social da Efacec-Power Solutions, SGPS, S.A., correspondente a 71,73 % do capital social. (cfr. art. 32, n° 1).
8–O regime jurídico de apropriação pública (Lei n 62-A/2008, de 11.11.) prevê no seu art. 4, n9 1, que "Aos titulares das participações sociais da pessoa colectiva, bem como aos eventuais titulares de ónus e encargos constituídos sobre as mesmas, é reconhecido o direito a indemnização, quando devida...". (sublinhado nosso).
9–Por  seu turno, o art. 4°, n° 1 do DL n° 33-A/2020, prevê que se consideram "(...) transmitidas para o Estado, através da Direção -Geral do Tesouro e Finanças, as ações representativas da participação no capital social da Efacec nacionalizada ao abrigo do presente decreto-lei, livre de quaisquer ónus ou encargos, para todos os efeitos legais." (sublinhado nosso).
10–E no art. 5°, n° 1 do mesmo diploma, estabelece-se que "Aos titulares da participação social nacionalizada ou aos eventuais titulares de ónus ou encargos constituídos sobre a mesma, é reconhecido o direito à indemnização, quando devido, nos termos dos artigos 4.º e 5.9 do  regime jurídico de apropriação pública." (sublinhados e sombreado nossos).
11–Ou seja, é a própria lei — em obediência às previsões constitucionais dos arts. 62, n° 2 e 83 da CRP — que reconhece e confere, de forma expressa, o direito a indemnização aos titulares de ónus e encargos constituídos sobre as participações sociais nacionalizadas, contrariamente ao que se conclui e decide na decisão sob recurso.
12–A nacionalização daquelas participações sociais origina um direito a indemnização, conferido por lei, que entra no património da Winterfeel 2, Ltd. (titular das ações nacionalizadas), o qual estava anteriormente onerado com um direito real de garantia do ora recorrente, extinto por via da nacionalização.
13–E é esse direito real de garantia sobre a indemnização, a fixar por força da nacionalização das ações oneradas, que terá de ser reconhecido nos autos de embargos de terceiro.
14–Assim, contrariamente ao decidido, o Banco ora recorrente não tem uma mera expectativa jurídica decorrente de um direito de crédito, mas um direito reconhecido legalmente, por via  do RJAP, sustentado em preceitos constitucionais.
15–De realçar que a própria CRP, no seu art.º 62°, n.º2 , estabelece uma dupla exigência à restrição da propriedade: tais exigências de conformidade com a lei e de justa indemnização não se aplicam apenas, como se pretende na decisão recorrida, às figuras de "requisição" e de "expropriação", mas a todas as figuras afins que impliquem a privação do direito de propriedade.
16–Neste   sentido pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 24.05.2006 (Proc. N.º 0516092, disponível em www.dgsi.pthtrp) e, mais recentemente, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 14.09.2021, numa situação exatamente idêntica à que se discute nos autos presentes autos e num outro apenso destes (Proc. n° 210/20.4 TELSB-O.L1.5, também disponível em www.dgsi.pt/itrl), ambos transcritos no corpo da presente alegação e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
17–O Banco ora recorrente, atenta a sua qualidade de credor pignoratício, em data anterior quer à decisão de arresto, quer à nacionalização, era titular de uma garantia real sobre parte das ações nacionalizadas, à semelhança da situação descrita no acórdão do TRL acima citado, pelo que ao mesmo é legalmente reconhecido o direito à indemnização previsto no citado art. 5°, n° 1 do DL n° 33-A/2020, de 02.07., nos termos previstos pelos arts. 4° e 5° do RJAP.
18–Já que a Winterfell 2, Limited é titular de um direito à indemnização, que "substitui" na sua esfera jurídica as participações sociais nacionalizadas e o Banco ora recorrente, como credor pignoratício, no quadro do art. 692° do CC (aplicável ex vi os arts. 678° e 6792 do CC), conserva sobre aquele direito a preferência que lhe competia em relação às ações que estavam oneradas a seu favor.
19–Pelo que o Banco recorrente, sendo titular de um direito  goza da tutela possessória conferida pelo art.º. 342° do CPC e exerceu tempestivamente a sua oposição mediante embargos de terceiro, contrariamente ao decidido na decisão sob recurso.
20–Sustenta, ainda, o Tribunal a quo a improcedência dos embargos de terceiro na inaplicabilidade do art. 692.° do CC, por entender que o regime do n° 3 não é aplicável às nacionalizações, mas apenas às expropriações, expondo as diferenças de regime.
21–Pese embora as diferenças formais de regime (existentes, entre a própria expropriação e a requisição previstas no n° 3 do art. 692° do CC, e entre estas e a nacionalização não expressamente referida nesta previsão legal), o certo é que as consequências na esfera jurídica dos seus destinatários/lesados é idêntica em qualquer um dos casos, operando uma restrição/privação quer ao direito de propriedade, quer ainda aos eventuais direitos reais de garantia.
22–Como ensina o Prof Antunes Varela, em anotação ao art. 692° do CC, " A sua doutrina é aplicável, dada a generalidade do n.º 3, a todo e qualquer crédito de indemnização resultante da diminuição ou perda do valor da coisa (...). É admitida, pois, de uma maneira geral, a sub-rogação das indemnizações devidas, mantendo o credor hipotecário sobre o respectivo crédito as preferências que lhe competiam em relação à coisa onerada."
23–Na mesma linha, o Prof. Oliveira Ascensão defende que o "(...) artigo 692.°/1 fornece-nos desta (sub-rogação real especial] um exemplo elucidativo, ao determinar que, se o imóvel hipotecado perder valor e por isso o dono tiver direito a indemnização contra terceiro, o credor hipotecário conserva, sobre o crédito respectivo ou as quantias pagas a título de indemnização, as preferências que lhe competirem em relação à coisa onerada. (...) A garantia subsistirá sobre o direito à indemnização ou o montante desta, submetida embora ao regime muito particular que é imposto pelo novo objecto".
24–Ou seja, o direito a indemnização existe sempre, independentemente do meio e da forma de apropriação pública e seja qual for a posição dos seus titulares: é precisamente este o sentido da previsão do art. 83° da CRP.
25–Sendo que a Lei reconhece de forma expressa o direito a indemnização do ora recorrente, por via da nacionalização, no art. 5°, rig. 1 do DL n° 33-A/2020, de 02.07. e no art. 4°, n° 1 do RJAP (DL n° 62-A/2008, de 11.11.), para o qual remete de forma expressa aquele art. 5°, n° 1 ["(...) nos termos previstos pelos arts. 4 e 5 do regime jurídico de apropriação pública"].
26–Por outro lado, acresce ainda a limitação constitucional à estrição de direitos, liberdades e garantias prevista no art. 18°, n.º 2 e 3 da CRP: o legislador só pode restringir direitos, liberdades e garantias "nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" e não pode "diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais".
27–Sendo certo que, nos termos previstos pelo n° 1 do aludido art. 18° da CRP, o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias é diretamente aplicável e vincula diretamente as entidades públicas e privadas.
28–As exigências de conformidade com a lei e de justa indemnização são cumulativas: não basta que a restrição da propriedade esteja prevista na lei pois a justa indemnização do destinatário lesado é condição de legalidade dessa restrição.
29–Esta dupla exigência (lei e indemnização) não se aplica apenas aos institutos da requisição e expropriação, mas a todas e quaisquer figuras afins que se traduzam na privação do direito de propriedade (na linha da decisão proferida pelo já referido acórdão do TRP de 24.05.2006 e do defendido pelo Prof. Jorge Miranda citado no mesmo).
30–Não releva, assim, a distinção entre os institutos da nacionalização e da expropriação expostas na decisão recorrida, pois a proteção do credor justifica-se independentemente do instituto que determina a restrição do seu direito, não existindo qualquer fundamento para excluir do âmbito de aplicação do n° 3 do art. 692e do CC o direito a indemnização devida por nacionalização.
31–Sendo inconstitucional a norma do art. 692, n 3 do CC, se interpretada no sentido de que não é aplicável aos casos em que tenha existido uma nacionalização, por violação do aludido art. 83 da CRP.
32–Na linha do acima exposto, decidiu o já citado acórdão proferido pelo TRL em 14.09.2021, num outro apenso aos presentes autos (Proc. N 210/20.4 TELSB-O.L1.5 disponível em www.dgsi.pt/itrl ), transcrito no corpo da presente alegação e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
33–De igual modo, e com todo o respeito, improcede o entendimento do Tribunal a quo quanto ao âmbito e à aplicação do art. 111 do CP, para sustentar a tese de que só os proprietários - "a quem "pertençam" os "objectos" - poderão ser considerados terceiros para efeitos da previsão do seu n 1.
34–A posição do Doutor João Conde Correia, exposta na decisão recorrida para sustentar tal tese, vai mais além do segmento na mesma citado.
35–Na verdade, aquele autor, depois de referir o segmento realçado na decisão recorrida, no sentido de que "(...) Só quem, formalmente, for proprietário poderá reivindicar a excepção e usufruir do seu regime mais generoso",
36–Acrescenta ainda: "Outra questão que o legislador nacional também não esclareceu completamente consiste em saber se — independentemente do conceito formal ou material de pertença — apenas o direito de propriedade sobre a coisa é protegido ou se também outros direitos, em particular os direitos reais de gozo ou de garantia, estão incluídos. Pressupondo a sua boa-fé, os titulares do usufruto, do direito de superfície, da hipoteca ou do direito de retenção poderão, ou não, por exemplo beneficiar deste regime?"
37–E conclui que, " (...) segundo uma concepção ampla, que procura alargar a proteção conferida a terceiros, estão tutelados o direito de propriedade, mas também direitos reais de gozo ou de  garantia". (sublinhado nosso).
38–Pelo que, contrariamente ao defendido na decisão recorrida, o citado autor admite uma concepção ampla de proteção, incluindo os titulares de direitos reais de garantia - e não apenas os titulares "a quem "pertençam" os "objectos" - na previsão do n 1 do art. 111 do CP.
39–A tese defendida pela decisão recorrida implicaria a impossibilidade de defesa de um direito juridicamente protegido e reconhecido por lei (cfr. art. 5, n 1 do DL n 33-A/2020 e art. 4, n 1 do RJAP), que merece a tutela do direito, colocando em causa o princípio da unidade da ordem jurídica invocado pelo citado autor e violando frontalmente a previsão do art. 20, n 1 da CRP.
40–Assim, a interpretação feita pelo Tribunal a quo do aludido art. 111° do CP em conjugação com o art. 342° do CPC, no sentido de que os terceiros de boa-fé que sejam titulares de direitos reais de garantia não podem reagir a arresto preventivo decretado, é inconstitucional, por violação do aludido art. 20°, n° 1 da CRP.
41–Sustenta ainda o Tribunal a quo que na situação do embargante, ora recorrente, "Não estão verificados os pressupostos para que beneficie das garantias estabelecidas para os terceiros de boa fé no regime do confisco das vantagens do crime.", concluindo que o "(...) Embargante não afastou, nas suas alegações, a verificação do circunstancialismo previsto no art. 111°, n2 2, al.a) in fine e al. b) in fine do CP, sendo certo que a si o competia fazer."
42–Desde logo, reafirma-se que o embargante, ora recorrente, não se enquadra em nenhuma das situações previstas nas alíneas do n° 2 do citado art. 111°, e mais concretamente nas ais. a) e b) invocadas na decisão sob recurso e que poderiam afastar a aplicação da previsão do n° 1.
43–As duas "circunstâncias" avançadas pela decisão recorrida que sustentariam o entendimento do Tribunal a quo no sentido de não considerar o embargante/recorrente como terceiro de boa fé, não se verificam e nem sequer poderão ser atendidas para fundamentarem a denegação do seu direito.
44–Para tentar enquadrar a conduta do ora recorrente na previsão da al. a) do n° 2 do art. 111 do CP, o Tribunal a quo começa por invocar "o notório beneficio económico produzido na esfera  jurídica do aqui Embarqante, decorrente do crédito que concedeu" (sublinhado nosso).
45–E a questão que o ora recorrente coloca é que "notório benefício económico" foi produzido na sua esfera jurídica? De um crédito concedido cuio capital e juros não lhe foram pagos?
46–O Banco recorrente alegou e demonstrou documentalmente a finalidade do crédito concedido: destinou-se, "exclusivamente, a ser utilizado para financiar parcialmente a aquisição e subscrição pela Mutuária de parte das Acções EPS Iniciais" (cfr. doc. 1).
47–O Banco recorrente alegou e demonstrou documentalmente que, por força do incumprimento da mutuária, mais concretamente a falta de pagamento da prestação de reembolso de capital vencida no dia 30.06.2020, comunicou a resolução do contrato de mútuo e interpelou a mutuária para proceder ao pagamento do valor em dívida de capital e juros, que, à data de 27.08.2020, ascendia a € 21.022.905,00.
48–Razão pela qual, inexiste o benefício económico notório invocado na decisão sob recurso, já que o aludido contrato não foi cumprido pela mutuária e os montantes mutuados mantêm-se em dívida ao Banco.
49–Invoca o Tribunal a quo, para tentar enquadrar a conduta do ora recorrente na previsão da al. b) do n° 2 do art. 111° do CP, que o Banco, em 2015, devia ter "suspeitado" dos elevados montantes a financiar (destinados à aquisição e à subscrição de ações da EPS...), da estrutura societária da Winterfeel 2, Ltd, da sua beneficiária efectiva, que era uma PEP...
50–E a questão que se coloca é a de saber se, em 2015, existiam suspeitas ou indícios de prática de ilícitos criminais relativamente à ora arguida IS... que pudessem, de alguma forma, desaconselhar ou inviabilizar a análise e seguimento do pedido de financiamento, destinado à aquisição e subscrição de ações da EPS, efectuado ao ora recorrente pela Winterfeel 2, Ltd.?
51–Numa operação do conhecimento público, que incluía a sua beneficiária efectiva e que não mereceu qualquer oposição das entidades competentes responsáveis pela avaliação e aprovação de tal operação...
52–Por que razão, o ora recorrente deveria ter "suspeitado", em 2015, da estrutura societária, dos montantes, da beneficiária efetiva quando, naquela data, não existiam quaisquer razões que pudessem levantar suspeitas?
53–A este propósito pronunciou-se o acórdão proferido pelo TRL no apenso aos presentes autos, sob o n° 210/20.4 TELSB-0.1.1.5 já citado: "Avança o despacho recorrido com juízos de culpa sobre a embargante (notório benefício económico decorrente de atos investigados como crimes pelas autoridades angolanas, concedeu financiamento a Pessoa Politicamente Exposta, lis , através de uma estrutura societária só por si susceptível de gerar suspeitas), mas como  entidade rogado não lhe cabe fazer tais juízos, muito menos em relação a quem nem sequer é  interveniente processual no processo crime."

Sem prescindir,

54–Por fim, o Tribunal a quo dá por assente que o Banco recorrente conhecia ou devia conhecer tais "suspeitas", concluindo "que a Embargante não afastou, nas suas alegações, a verificação dos pressupostos do circunstancialismo previsto no artigo 111, n 2, al. a) in fine e n.º 2 in fine do CP, sendo certo que a si o compete fazer". (sublinhado nosso)
55–No entanto, paradoxalmente, não permitiu que o Banco pudesse fazer a prova que o Tribunal a quo afirma competir-lhe, pois proferiu uma decisão de mérito sem produção da prova testemunhal arrolada pelo ora recorrente.
56–Ou seja, o Tribunal a quo afastou a boa fé invocada pelo recorrente sem lhe permitir fazer a prova que lhe competia e que lhe permitiria (pelo menos tentar) demonstrar a sua boa fé, ao arrepio das mais elementares regras do nosso ordenamento jurídico, pelo que, a decisão sob recurso violou, ainda, os arts. 411° e 413 do CPC.
Nestes termos e nos demais de direito,
Deve  conceder-se provimento ao presente recurso de apelação, de acordo com as precedentes conclusões e, em consequência, revogar-se a sentença de fls. 132 e ss. que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelo Banco BPI, S.A., a qual deverá ser substituída por outra decisão que:
- Reconheça a existência e a titularidade do direito real de garantia invocado pelo ora recorrente, em data anterior ao arresto e à nacionalização operada pelo DL nº 33-A/2020;
- Reconheça ainda que, em face da aludida nacionalização, tal direito real de garantia sobre as 9.971.832 ações EPS se transmitiu para a indemnização devida pela nacionalização e
- Ordene o levantamento do arresto preventivo decretado sobre o direito à indemnização por força da nacionalização daquelas 9.971.832 ações EPS;

Ou, sem prescindir,

- Caso V. Exas. entendam necessária a produção de prova pelo Banco recorrente, com vista a determinar se o mesmo deverá ser considerado "terceiro de boa fé", deverão os autos de embargos de terceiro descer à primeira instância de modo a permitir a produção de prova testemunhal oportuna e tempestivamente requerida pelo Banco Embargante.

O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou contra alegações nas quais pugnou pela improcedência do recurso.

O presente recurso foi inicialmente distribuído a 3.ª Secção (criminal) deste TRL.

Por decisão proferida em 5 de Maio de 2022, pela Exma Desembargadora Relatora, a mesma declarou-se “materialmente incompetente bem como a Seccção Criminal, para conhecer do presente recurso de apelação, cabendo tal competência às Secções Cíveis deste Tribunal.” E, em conformidade com tal decisão, foi ordenada a remessa dos autos à seccção Central a fim de serem distribuídos pelas Secções Cíveis.

II–OS FACTOS

Na 1.ª instância foram considerados os seguintes factos relevantes para a decisão:
1–Na  sequência de um pedido de auxílio judiciário em matéria penal formulado pela Justiça Angolana, e por despachos judiciais de 11/03/2020 e de 26/03/2020 foi, além do mais, decretado o arresto preventivo de 67,20% do capital social da EFACEC POWER SOLUTIONS, SGPS, S.A. (EPS), correspondente a 41.525.275 acções, detidas directamente pela accionista WINTERFELL 2 LIMITED e indirectamente pela arguida IS... (cfr. fis. 1601-1681 dos autos principais ­4.° volume e fis. 2511-2533 - 6.° volume).
2–Sobre 9.971.832 dessas 41.525.275 acções EPS arrestadas incidiam dois penhores financeiros, constituído a favor do BANCO BPI, S.A., como garantia de um mútuo concedido por este último à WINTERFELL 2 LIMITED.
3–Posteriormente à decisão de arresto, e através do Decreto-Lei n.° 33­A/2020, de 2 de Julho, as acções da EPS detidas pela accionista WINTERFELL 2 LIMITED foram nacionalizadas, livres "de quaisquer ónus ou encargos, para todos os efeitos legais" (art. 4.° n.° 1 do Decreto-Lei n.° 33-A/2020), sem prejuízo do "direito à indemnização, quando devido, nos termos dos artigos 4.° e 5.° do regime jurídico de apropriação pública" aos "titulares da participação social nacionalizada ou aos eventuais titulares de ónus ou encargos constituídos sobre a mesma" (art. 5.° n.° 1 do Decreto-Lei n.° 33-A/2020).
4–Circunstância que esteve na base de nova decisão proferida nos autos de Carta Rogatória, a fls. 9391 a 9394, desta vez determinando «o arresto preventivo do direito à indemnização devida pela nacionalização de 67,20% do capital social da EFACEC POWER SOLUTIONS SGPS SA, detido indirectamente pela arguida IS..., através da WINTERFELL 2 LIMITED, para garantia do valor de 1.150.856.279,45 €.».

III–O DIREITO

Recebido o presente recurso nesta seccção cível, cumpre apreciar, antes de mais a competência material desta seccção cível para apreciar o mesmo.

Vejamos:

O despacho da Exma Relatora da 3.ª Seccção Criminal baseou-se na decisão proferida pela Exma Presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa, proferida no Processo n.º 4179/13.3 TDLSB-B.L1-A em que estava em causa dirimir o conflito de competência relativo a “um recurso de apelação interposto na sequência de execução apensa a processo crime (4179/13.3TDLSB-A)” suscitado entre a 2ª secção Cível e a 9ª secção Criminal e em que foi decidido  julgar competentes para conhecer do recurso de Apelação em causa nos autos supra referidos as Secções Cíveis deste Tribunal da Relação de Lisboa.
Por sua vez, essa decisão invoca em seu apoio a jurisprudência constante do acórdão  do STJ de 26/4/2012, no âmbito do Proc. 41/09.2TOLSB.L1-A.S1, do acórdão da RC de 3/2/2016, no Proc. 920/99.3TBPBL.C1, e da RP de 8/2/2017, no âmbito do Proc. 290/07.8GBPNF-C.P1, todos eles disponíveis in www.dgsi.pt.

Porém, se bem analisarmos, verificamos que o caso que nos ocupa é bem diferente daquele que está subjacente ao conflito de competência supra mencionado. Neste, trata-se de saber qual o Tribunal competente para apreciar o recurso interposto num processo de execução tramitado por apenso a um processo criminal. No caso que nos ocupa, está em causa uns embargos de terceiro deduzidos contra um arresto preventivo ordenado no âmbito de um processo - crime.

Ora, relativamente a um conflito de competência ocorrido no Tribunal da Relação de Guimarães, este sim ocorrido a propósito de questão exactamente igual à que nos ocupa – decisão sobre embargos de terceiro contra arresto preventivo ordenado no âmbito de processo- crime - a Exma Presidente daquele Tribunal RG, por despacho de 05-12-2019, decidiu o conflito no sentido de “atribuir à Secção Penal a competência para os recurso de embargos de terceiro a arresto decretado no âmbito de processo - crime”.

A decisão do conflito aderiu, pois, à tese constante do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, 10-07-2019 [1], proferido pela secção cível que declarou a incompetência absoluta desta, “ por não ter competência  em razão da matéria para julgar o recurso interposto pela Apelante, sendo competente para tanto a secção criminal deste Tribunal da Relação”.

E analisadas todas as decisões em apreço, verificamos que o critério definidor da competência é o mesmo em todas elas: a natureza da causa.

Como se refere no Acórdão do STJ de 14.07.2010[2], o que releva para aferir da competência material do tribunal (e das secções dos tribunais superiores, sejam da Relação, sejam do Supremo), “é a matéria que está em causa no objecto do recurso, vista no sentido de questão, determinação, controvérsia, objecto e matéria -, e não no sentido adjectivo e formal de tipo ou espécie de processo”.

Como se observa no Acórdão do TR de Guimarães supra referido, “ não é a circunstância de a decisão recorrida ter sido proferida num processo penal que determina nem a natureza da «causa» nem a matéria sobre que versa. A espécie de processo em que foi proferida a decisão recorrida não é, para este efeito, relevante; a competência, sendo material, sobrepõe-se ao processo”.

Portanto, o que importa, no caso que nos ocupa é aferir se a matéria do recurso agora em apreço é de natureza civil ou penal.

Ora, analisando a decisão recorrida, nomeadamente os institutos jurídicos ali apreciados e respectivos preceitos legais aplicáveis, as alegações de recurso da Apelante e resposta do Ministério Público facilmente se conclui, tal como concluiu o Tribunal da Relação de Guimarães, que a relação jurídica subjacente ao presente recurso é de natureza penal.

Na verdade, analisadas aquelas peças processuais, verifica-se que na análise das questões se convocam frequentemente normas e preceitos do Código Penal e do Código de Processo Penal, designadamente o art.º 109.º, 110.º e 111.º daquele Código e o art.º 4.º deste diploma legal.

Não pode deixar de ser referido ainda que, no âmbito deste processo, este Tribunal da Relação de Lisboa já se pronunciou sobre um recurso de apelação, relativo a decisão em que se apreciava a mesma questão - embargos de terceiro a arresto preventivo ordenado no processo - crime- mudando apenas a identidade do embargante. Sucede que tal recurso foi decidido por uma secção criminal deste Tribunal da Relação[3].

Não faria muito sentido, por isso, que, para decidir questão exactamente da mesma natureza, fosse outro o critério aplicável, em termos de definição de competência.

Tal como não faz muito sentido que sendo a 1ª instância criminal competente em razão da matéria para proferir a decisão recorrida, seja entendido que a 2ª instância da secção criminal não tem essa competência.

IV–DECISÃO

Em face do exposto, acordamos nesta 6.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em declarar a incompetência absoluta desta secção cível, por não ter competência, em razão da matéria, para julgar o recurso interposto pela Apelante, sendo competente para o efeito a secção criminal deste Tribunal da Relação.
Sem custas.
Notifique, sendo o Ministério Público para os fins tidos por convenientes, nomeadamente para suscitar o conflito negativo de competência.



Lisboa, 13 de Outubro de 2022



Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Anabela Calafate

      


[1]Acórdão proferido no processo 296/13.8TAVVD-O.G1disponível em www.dgsi.pt
[2]Acórdão proferido no Processo 203/99TBVRL.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[3]Acórdão do TRL de 14 de Setembro de 2021, Processo  n.º 210/20.4TELSB.O.L1-5, disponível em www.dgsi.pt