ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
PRESSUPOSTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I- Não há oposição de acórdãos para efeitos de admissibilidade do recurso de revista, nos termos do art.14º do CIRE, quando o acórdão fundamento e o acórdão recorrido não se pronunciam de forma divergente sobre a mesma questão fundamental de direito, e sendo o quadro factual subjacente a essas decisões significativamente diverso, em matéria de cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
II- O acórdão fundamento decidiu que os autos deviam continuar para se apurar a factualidade necessária para concluir se a insolvente tinha, ou não, violado culposamente os deveres que o art. art.243º, n.1, alínea a) do CIRE lhe impunha, concretamente o dever de entregar o rendimento a que estava obrigada. Por isso, não apreciou definitivamente se existia, ou não, violação dessa norma. Diferentemente, o acórdão recorrido concluiu que se encontrava provada a violação culposa do dever de informação, tendo, consequentemente, decretado a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.

Texto Integral




Processo n. 3302/20.6T8SNT.L1.S1

Recorrente: AA

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. AA requereu a exoneração do passivo restante, aquando da apresentação à insolvência. Tal benefício foi-lhe liminarmente deferido por decisão datada de 02.06.2020.

2. Decorrido o primeiro ano, o Fiduciário apresentou relatório dando conta do incumprimento dos deveres do insolvente. E a credora “Locarent – Companhia Portuguesa de Aluguer de Viaturas, S.A.” requereu a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, nos termos do art. 243.º, n. 1, al. a), do CIRE.

3. Foram notificados para se pronunciar, nos termos do art. 243.º, n. 3, do CIRE, o devedor, os credores e o fiduciário.

Os credores “Abanca Corporación Bancaria, S.A. - Sucursal em Portugal”, “Montepio Crédito – Instituição Financeira de Crédito, S.A” e a Autoridade Tributária (representada pelo Ministério Público) requereram igualmente a cessação antecipada do referido procedimento.

O fiduciário informou que se mantinha a situação de incumprimento e o devedor nada disse.

4. Veio a ser proferida decisão, com o seguinte dispositivo:

«Face ao exposto, declaro antecipadamente cessado o procedimento e, em consequência, recuso a exoneração do passivo restante ao devedor AA».

5. O insolvente interpôs recurso de apelação para o TRL, mas este tribunal, por acórdão de 21.06.2022, veio a julgar a apelação improcedente, confirmando o despacho recorrido, sem voto de vencido e sem fundamentação divergente.

6. Inconformado com essa decisão, o insolvente interpôs recurso de revista que designou como “revista excecional”, invocando o artigo 672º, n.1 do CPC e o artigo 14º do CIRE.

Juntou, para o efeito, cópia (com certidão do trânsito em julgado) do “acórdão fundamento”, o Acórdão do TRE, de 22.10.2020 (relator Tomé de Carvalho), proferido no processo n. 778/14.2TBOLH.E1.

Nas suas alegações formulou as conclusões que se transcrevem:

«1. O douto acórdão-recorrido, proferido nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 21-06-2022, que julgou improcedente a apelação, mantendo o despacho de cessação antecipada do passivo restante, decisão proferida por sentença datada de 20-03-2022, nos autos do processo de insolvência de pessoa singular pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Comércio ... – juiz ...., está em frontal colisão com o doutamente decidido pelo Tribunal da Relação de Évora, em Acórdão datado de 22-10-2020 transitado em julgado e proferido nos autos de processo de insolvência de pessoa singular que correm os seus termos sob o nº. de processo 779/14.... no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Comércio ... – J..., acórdão-fundamento;

2. Ambos os Acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março;

3. Ambos os Acórdãos se debruçam sobre a mesma questão fundamental, a de saber se o incumprimento da obrigação de informação é, por si só, fundamento para a cessação antecipada do procedimento de exoneração;

4. Os Acórdãos estão em oposição um ao outro, uma vez que o Acórdão-recorrido decidiu pela improcedência da apelação, mantendo o despacho de cessação antecipada do passivo restante, enquanto o Acórdão-fundamento, por seu turno, decidiu julgar procedente o recurso interposto, revogando a decisão recorrida de cessação antecipada do passivo restante;

5. Como tal estão reunidos os pressupostos do artigo 14º CIRE, ex vi artigo 672º do CPC, para o presente Recurso de Revista Excecional ser admitido;

6. O comportamento do insolvente nos autos não constitui, per si, motivo suficiente para a cessação antecipada (durante o período de cessão) do passivo restante, sem que se verifiquem (e não sejam passíveis de ónus de prova) os requisitos de prejuízo efetivo de nexo de causalidade entre violação da obrigação e criação de dano na esfera jurídica dos credores;

7. Num espaço de 1 ano e meio, em plena Pandemia, uma única notificação postal e um e-mail, com prazo de resposta em 3 dias úteis, é trabalho “curto” do fiduciário e não pode justificar, como conclui o Tribunal “A Quo”, que o “silêncio” do insolvente “configura uma omissão censurável, desde logo, demonstrativa de um comportamento que não merece continuação do procedimento”.

8. O douto Acórdão-recorrido incorre numa confusão que importa esclarecer: o ora recorrente invocou a situação pandémica para justificar a ausência de obtenção de rendimentos no período em apreço, não para justificar a falta de comunicação ao tribunal;

9. Aliás, o ora recorrente reputou-se suficiente com o telefonema que fez para o escritório do fiduciário em dezembro de 2021, informando-o que nada tinha mudado na sua vida pessoal ou profissional, telefonema esse omitido pelo fiduciário no relatório enviado ao Tribunal;

10. A falta de sensibilidade social denotada pela decisão ora recorrida ao impor critérios de culpabilidade superiores ao do bonus pater familiae (artigo 487º, nº. 2 C.C.) “Mas sem nada mudar na sua vida pessoal, concretamente, a sua não empregabilidade, nem mesmo assim a situação pandémica que invocou, o impossibilitavam de esclarecer o tribunal” – lê-se no Acórdão-recorrido, mereceu diferente acolhimento pelo Acórdão-fundamento, tese a que inevitavelmente teremos que aderir: “(…) é comum que os beneficiários de exoneração do passivo restante não compreendam o alcance da falta de resposta ao Tribunal” – lê-se no Acórdão-fundamento.

11. Note-se que, ao contrário do que sucede no caso do Acórdão-fundamento, em que a violação do dever de informação se arrastou por 3 anos, ou mesmo no caso em apreço no citado Acórdão do STJ de 23.03.21, o período em causa nos presentes autos é de apenas 1 ano e meio! Tudo se passa entre junho de 2020 e dezembro de 2021;

12. O venerando Acórdão-recorrido também aqui contraria o Acórdão-fundamento que, este sim e bem, refere: “Esta situação é agravada pelo atual contexto pandémico, período em que inclusivamente foi editada legislação excecional que ditou a suspensão dos prazos para a prática de atos nos processos de natureza urgente e a introdução de outras medidas avulsas protecionistas como a concessão de moratórias no pagamento de dívidas ou no cumprimento de outras obrigações”.

13. O instituto da cessação antecipada do passivo restante tem como natureza primária permitir ao insolvente singular retomar a sua vida profissional e social de uma forma digna;

14. A dívida originária nos presentes autos resultou inclusive de um processo de remissão por uma empresa insolvente de que o ora recorrente era sócio-gerente;

15. Esta aparente falta de sensibilidade social, constitui sim a violação do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 239.º, n.º 4 e 243.º, n.º 1, alínea a) do C.I.R.E.;

16. Os credores nem sequer saíram (ou sairão) alguma vez (mais) prejudicados (do que já estão): o insolvente não se colocou voluntariamente numa situação de insolvência, nem terá a médio prazo qualquer possibilidade de obter rendimento relevante para fazer face ao pagamento do passivo gerado pela insolvência da empresa de que era gerente e sócio;

17. Constitui natural entendimento do recorrente que a interpretação seguida dos artigos 239.º, n.º 4 e 243.º, n.º 1, alínea a) do C.I.R.E., quando desconsidera o prejuízo relevante daquele preceito, na douta decisão recorrida, comporta uma violação do valor supremo da dignidade humana, da igualdade e da proporcionalidade pilares essenciais da Constituição da República Portuguesa, pelo que a decisão jurisprudencial a proferir em sentido contrário terá certamente uma dimensão de grande relevância social;

18. Ao contrário do que a o douto Acórdão-recorrido conclui, ao afirmar que “Contrariamente ao preconizado pelo apelante, houve várias comunicações endereçadas quer ao apelante, quer à sua mandatária, as quais não mereceram qualquer reação, senão o silêncio”, de facto, apenas uma carta e um e-mail do fudiciário não justificam, salvo melhor entendimento, que o fiduciário tenha atuado diligentemente, parecendo haver apenas pressa em acelerar uma decisão que apenas prejudica o insolvente;

19. Como se alegou em sede de Apelação, o silêncio do insolvente não foi “total”: o devedor, em data que não pode precisar, mas seguramente na sequência da única notificação que lhe chegou em 13.12.2021 – facto assente nº. 11 – de imediato contactou telefonicamente o escritório do fiduciário, informando-o de que mantinha a situação de desempregado, que esteve a frequentar ações de formação e que não tinha entregue as declarações de IRS em 2020 e 2021, por não ter tido qualquer rendimento.

20. E como então se alegou, deste contacto telefónico não reza a informação prestada pelo fiduciário ao tribunal…

21. De referir que, conforme consta dos autos, só em 13 de dezembro de 2021 foi o devedor notificado da eventual situação de incumprimento. Ao longo de 2020 e 2021, o devedor estava convencido de que a situação estava regularizada e que não teria que prestar qualquer informação ao fiduciário, para além daquela que constava dos autos, exatamente por não ter existido qualquer alteração na sua situação pessoal ou patrimonial.

22. O Acórdão-recorrido faz um erro interpretativo dos normativos em causa, ao decidir que: “verifica-se no caso vertente, que o insolvente de modo consciente e voluntário, incumpriu a obrigação de informação, que os credores nenhum montante auferiram e que aquele pelo seu comportamento materializou os elementos subjetivo e objetivo plasmados na alínea a) do nº. 1 do artigo 243 do CIRE, em conjugação com a alínea a) do nº. 4 do artigo 239º, ambos do CIRE, justificando-se a cessação antecipada do procedimento de exoneração”;

23. O Acórdão-recorrido andou mal ao considerar que o devedor dolosamente ou com grave negligência violou alguma das suas obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º CIRE,

24. E andou ainda mal ao considerar que, mesmo que o tivesse feito, essa violação —  consubstanciada no dever de informação ao fiduciário —, prejudicou a satisfação dos créditos para a insolvência;

25. Uma vez que, tal como o Acórdão-fundamento, e bem, refere, a cessação antecipada do instituto da exoneração no período de cessão implica também o preenchimento de três pressupostos: a reiterada existência de negligência grave ou dolo das suas obrigações, a ocorrência de prejuízo efetivo para a satisfação dos créditos e a verificação de um nexo causal entre a violação das obrigações cometidas pelo insolvente e a criação do dano na esfera jurídica dos credores;

26. Não estão, nos autos sub judice, claramente reunidos os pressupostos legais para a cessação antecipada do passivo restante no período de cessão, pelo que deve o presente recurso excecional ser julgado procedente.

Termos em que se conclui, e por tudo o mais que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso excecional ser julgado procedente e, em consequência, ser o acórdão-recorrido revogado e, em consequência, ser determinada a sua substituição por outro que revogue o douto despacho proferido de cessação antecipada do procedimento e consequente recusa de exoneração do passivo restante, por violação do disposto no artigo 243º, nº. 1 alínea a) e nº. 3 do CIRE e artigo 18º da CRP, tudo com as legais consequências, fazendo-se assim a habitual justiça.»

7. Face à previsível inadmissibilidade do recurso de revista, foram as partes notificadas para se pronunciarem, nos termos do art.655º do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE).

Cabe apreciar.

II) APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS

1. A questão prévia da admissibilidade do recurso:

1.1. Entendeu o recorrente, em síntese, que as instâncias teriam feito errada aplicação da lei, pois não estariam verificados todos os pressupostos do art. 243º, n. 1 alínea a) do CIRE para a recusa da exoneração do passivo restante antes de terminado o período de cessão. E justificou a admissibilidade do recurso, além do mais, por entender que o acórdão recorrido teria decidido a mesma questão jurídica em sentido oposto ao sustentado pelo acórdão fundamento.

1.2. Está em causa um recurso contra uma decisão proferida no incidente de exoneração do passivo restante, ao qual se aplicam as regras previstas no art.14º do CIRE, como decorre literalmente dessa norma e como a jurisprudência do STJ tem reiteradamente entendido; e não as regras da revista excecional previstas no art.672º do CPC.

Assim, para efeitos de admissibilidade do presente recurso só o preenchimento da hipótese prevista no art.14º do CIRE releva. Por se tratar de uma regra específica do recurso de revista em matéria de insolvência, esta disposição afasta as regras previstas nas várias alíneas do art.672º, n.1 do CPC respeitantes à “revista excecional” em geral.

1.3. Dispõe o art.14º do CIRE:

«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme

Decorre desta norma que, em regra, os tribunais da Relação são a última instância em matéria insolvencial, dada a natureza urgente do processo (art.9º do CIRE).

Consequentemente, como tem sido entendido pela jurisprudência do STJ, o recurso de revista só é admissível a titulo excecional, tendo em vista a orientação da jurisprudência face à constatação de aplicações divergentes do mesmo quadro normativo a factualidades equiparáveis.

1.4. Veja-se, neste sentido, alguma da mais recente jurisprudência do STJ, assim sumariada:

- Ac. do STJ de 08.02.2022 (relator Ricardo Costa) no processo n. 17412/20.6T8LSB-B.L1.S1:

«I- A admissibilidade do recurso de revista, restrita e atípica, previsto no art. 14.º, n.º 1, do CIRE implica que o recorrente tem o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários.
II - As decisões dos acórdãos em confronto entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo - tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito - são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial (frontal e expressa, por regra) uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental de direito (ou questões fundamentais) em que assenta(m) a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (…)»[1]

-Acórdão do STJ, de 26.05.2021 (relator Henrique Araújo) no processo n. 2543/19.3T8VNF.G1.S1:

«A oposição jurisprudencial que releva para efeitos da aplicação do regime de recursos especial do art. 14.º, n.º 1, do CIRE é a que se manifesta em decisões divergentes que tenham por base situações de facto análogas ou equiparáveis, subsumíveis a um mesmo quadro normativo, e em que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso[2]

-Ac. do STJ, de 26.05.2021 (relator Pinto de Almeida), no processo n. 5483/12.3TBFUN-I.L1.S1:

«(…) A oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.»[3]

-Acórdão do STJ, de 23.03.2021 (relator Henrique Araújo), no processo n. 3701/18.3T8VNG.P1.S1:

«I-A oposição de julgados pressupõe que a mesma questão fundamental de direito, no domínio da mesma legislação, seja tratada de modo antagónico no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento. Mas pressupõe, ainda, que à aplicação normativa esteja subjacente uma situação de facto substancialmente idêntica.

II - Sendo díspares as situações de facto subjacentes às decisões em confronto, é natural que as soluções encontradas para uma e outra sejam diversas, embora com recurso ao mesmo contexto normativo[4]

-Ac. do STJ, de 09.03.2021 (relator José Rainho), no processo n. 4359/19.8T8VNF.G1.S1:

«(…) Duas decisões só são divergentes quanto à mesma questão fundamental de direito se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (isto é, que integre a ratio decidendi dos acórdãos em confronto.»[5]

-Ac. do STJ, de 16.06.2020 (relatora Ana Paula Boularot), no processo n. 4987/19.1T8SNT.L1.S1:

«(…) A oposição de acórdãos pressupõe, assim, que a decisão e fundamentos do acórdão recorrido se encontrem em contradição com outro relativamente às correspondentes identidades.
Em sentido técnico, a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando idêntica disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo uma identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.

Se os Acórdãos em confronto assentarem a decisão jurídica numa apreciação factual completamente distinta, não se poderá concluir pela existência de uma contradição jurisprudencial.»[6]

1.5. No caso concreto, a leitura atenta da fundamentação dos dois acórdãos em confronto permite concluir que, contrariamente ao que o recorrente parece entender, entre eles não existe a divergência essencial exigida pelo art.14º do CIRE, quanto à interpretação do disposto no art.239º, n.4, alínea a) e do art.243º, n.1, alínea a) do CIRE.

Efetivamente, apesar de o teor de algumas frases dos respetivos sumários (bem como de algumas frases ao longo das respetivas fundamentações) parecerem, à primeira vista, expressar alguma divergência de entendimentos quanto ao relevo das consequências do incumprimento das obrigações do devedor, a verdade é que uma análise atenta das respetivas fundamentações permite concluir que as decisões proferidas nos acórdãos em confronto não são a consequência de uma divergência quanto à interpretação de alguma norma do CIRE, mas sim o resultado das especificidades factuais subjacentes a cada uma dessas decisões.

1.6. No acórdão recorrido concluiu-se que o provado e reiterado incumprimento do dever de informação [estabelecido no art.239º, n.4, alínea a) do CIRE] constituía uma “conduta dolosa ou gravemente negligente do devedor”.

Diferentemente, no acórdão fundamento entendeu-se que a factualidade assente não era suficiente para se concluir pelo caráter doloso ou gravemente negligente do comportamento da devedora que incumpriu o dever de entrega do rendimento disponível. Por isso se determinou que os autos prosseguissem para se fazer prova sobre os factos que a devedora tinha alegado.

A decisão do acórdão fundamento foi assim justificada:

«A recorrente justifica a falha da entrega do rendimento disponível com uma situação de desemprego prolongado, uma doença do foro psicossomático e a sua fraca habilitação escolar, circunstâncias que, na sua descrição fáctica recursal, a impediram de cumprir a obrigação principal de entrega dos rendimentos em toda a sua extensão.
Efectivamente, os dados entretanto transportados para a lide parecem indiciar que a falta de depósito das verbas abrangidas pela cessão de rendimentos pode ter na sua origem um cenário de impossibilidade justificada, o que, em princípio, a comprovar-se não poderá levar o Julgador a concluir que a conduta causou prejuízo efectivo aos credores e que se verifica o nexo de causalidade pressuposto na norma habilitante. Se se verificar esse quadro justificativo, existirá um enquadramento distinto da alegada violação da obrigação de cessão de rendimentos disponíveis e que é incompatível com a decisão aqui tomada. Por isso,
deve ser retomado o processo de avaliação da situação, tal como sugeriu o próprio fiduciário.

Assim, concede-se provimento ao recurso e revoga-se a decisão recorrida. Porém, isto não significa que, depois de analisar os elementos probatórios, o Tribunal de Primeira Instância não possa confirmar que ocorreu uma situação de negligência grave ou dolo no cumprimento da sua obrigação de cessão do rendimento disponível e se desse facto resultou prejuízo efectivo para a satisfação dos créditos.»

No caso dos presentes autos, o tribunal entendeu que o devedor não apresentou justificações pessoais concretamente impossibilitadoras do cumprimento do seu dever de informar o tribunal ou o fiduciário. O devedor limitou-se a invocar a situação da pandemia, tendo o tribunal concluído que “a situação pandémica não o impossibilitava de informar o tribunal”.

1.7. O acórdão fundamento e o acórdão recorrido não são colocados perante o mesmo tipo de circunstâncias, para se poder concluir que interpretaram a lei de modo diverso face a factualidades equiparáveis.

Como supra referido, no acórdão fundamento entendeu-se que não havia suficiência probatória para se concluir pelo grau de culpabilidade do comportamento da devedora e, consequentemente, pela existência do concreto dano que esse comportamento tivesse culposamente causado aos devedores. Por isso, não foi emitido um juízo definitivo sobre o concreto preenchimento dos requisitos do art.243º, n.1, alínea a) do CIRE.

Diferentemente, no acórdão recorrido entendeu-se existir suficiência probatória para concluir que o comportamento do devedor ao não cumprir o dever de informação, sem justificação atendível, tinha sido doloso ou gravemente negligente, e que a ausência da entrega de qualquer montante ao longo de todo o tempo da cessão causava prejuízo aos credores, porque nada haviam recebido. Se decidiu bem ou mal tal não pode ser apreciado a este nível, onde apenas se cuida da admissibilidade objetiva do recurso.

Os acórdãos em confronto não divergem, assim, quanto à exigência da presença dos requisitos estabelecidos no art.243º, n.1, alínea a) para que exista cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, ou seja, a presença de uma violação dolosa ou gravemente negligente dos deveres legalmente impostos ao devedor e a conclusão de que esse comportamento causou prejuízos aos credores.

1.8. Para efeitos do juízo de “filtragem” da admissibilidade da revista estabelecido no art.14º do CIRE, não cabe ao tribunal, nesta fase, emitir qualquer juízo de valor sobre o modo como o acórdão recorrido apreciou o mérito da causa. Tal constituiria uma inversão metodológica.

Cabe-lhe apenas, de forma objetiva, aferir se entre dois acórdãos existe uma divergência essencial quanto à interpretação e aplicação de determinada norma do CIRE, no quadro de circunstâncias factuais tipologicamente equiparáveis. Só depois de se responder afirmativamente a essa questão, se concluirá pela admissibilidade do recurso, dado que a intervenção do STJ em matéria de insolvência é, essencialmente, de orientação da jurisprudência.

1.9. Para se concluir que, em dois casos equiparáveis, existiu uma efetiva oposição de entendimentos sobre a aplicação de determinada norma tem de se atender à essência da fundamentação e ao modo como isso determinou o concreto sentido decisório.

Não basta, para tal, atender a meras considerações teóricas de natureza geral que possam ser feitas sobre os requisitos ou o alcance de determinada disposição. Só as posições jurisprudenciais emergentes da aplicação das mesmas normas relevam para se concluir se existiu efetiva divergência interpretativa.

Ora, o que é certo é que o acórdão fundamento não chegou a proceder a uma apreciação definitiva do mérito do caso à luz do art.243º, n.1, alínea a) do CIRE, por ter entendido existir insuficiência probatória, nomeadamente quanto ao grau de culpa do comportamento da devedora. Por isso determinou que os autos prosseguissem para se apurarem esses elementos e posteriormente se poder concluir se deveria ou não haver cessação antecipada do procedimento. O acórdão fundamento, apesar das considerações gerais tecidas sobre os requisitos do art.243º, n.1, alínea a) do CIRE, não decidiu a “mesma questão fundamental de direito”, como exige o art.14º do CIRE.

Não houve, portanto, no acórdão fundamento, um juízo final em sentido favorável à continuação do período da cessão, contrariamente ao que o recorrente parece ter entendido.

2. Conclui-se, portanto, que dos dois acórdãos em confronto não emerge uma divergência concreta quanto ao modo de interpretar e aplicar qualquer disposição do CIRE, pelo que não se verifica a oposição exigida pelo art.14º do CIRE para que a revista pudesse ser admitida.

*

DECISÃO: Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso.

Custas pelos recorrentes (sem prejuízo de poderem beneficiar do apoio judiciário).

Lisboa, 11.10.2022

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Ricardo Costa

António Barateiro Martins

Sumário, (art.º 663, n.º 7, do CPC).

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[1] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1c085f4b579d4571802587e600515d01?OpenDocument&Highlight=0,insolv%C3%AAncia
[2] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e7656d9c47240a85802586e200330b22?OpenDocument&Highlight=0,insolv%C3%AAncia
[3] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e8ab0d804a467d82802586e2002ea577?OpenDocument
[4] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e37f280324fa3c74802586a1005b3a3d?OpenDocument&Highlight=0,insolv%C3%AAncia
[5] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/35c37162cea5f4f98025869300398b06?OpenDocument
[6] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8a0406611f8d7ae88025862b003b56e2?OpenDocument