CRIMES DE CORRUPÇÃO
CONSUMAÇÃO FORMAL
CONSUMAÇÃO MATERIAL
PRESCRIÇÃO
PRAZO
Sumário

I. Os crimes de corrupção ativa e passiva, em qualquer das suas modalidades são crimes instantâneos, tal significando que a prática de qualquer dos atos típicos constitui imediata realização do facto ilícito típico (consumação formal). O que evidentemente não impede a prática sucessiva dos mesmos ou de outros atos típicos do mesmo tipo de ilícito.
II. A realização plúrima desses atos não é irrelevante para efeitos da consumação do ilícito, na medida em que os sucessivos atos corruptivos típicos, por integrarem uma mesma realidade ontológica, agregam uma certa «unidade de sentido» da atuação ilícita, evidenciando uma mais intensa ofensa ao bem jurídico.
III. Com efeito, todos esses atos são pertinentes e confluem no «mercadejar do cargo», razão de ser da proibição, sendo a entrega e recebimento da peita, no culminar da atuação anterior, o seu expoente máximo.
IV. Donde, comprovado que para além da realização de atos que formalmente integram o tipo de ilícito corruptivo e que nessa dimensão (formal) o consumam; comprovando-se (também) a peita, através de uma ou de uma sequência de atos de entrega e recebimento, verifica-se a sua consumação material, cuja data da última entrega constituirá o dies a quo do prazo.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a 1.º Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO

a. A decisão final neste foi já proferida na 1.ª instância e confirmada neste Tribunal da Relação de Évora (pese embora ainda não tenha transitado em julgado).

Entretanto a M.ma Juíza do …º Juízo Central Cível e Criminal de …, foi, por requerimento do arguido AA, solicitada a pronunciar-se sobre a prescrição do procedimento criminal relativamente ao próprio.

Depois de exercido o competente contraditório pelo Ministério Público veio a ser proferido despacho, no qual se considerou que: «o procedimento criminal pendente contra o arguido AA ainda não prescreveu, o que se declara, indeferindo-se o requerido.»

b. Inconformado com a decisão o arguido apresentou recurso, finalizando a respetiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«I. O recurso ora interposto tem por objecto o Despacho proferido em 29.03.2022 que declarou não prescrito o procedimento criminal relativamente aos crimes de corrupção pelos quais o arguido foi condenado nestes autos.

II. O Tribunal a quo sufraga tal entendimento com respaldo em dois argumentos, a saber:

i) o momento que releva para o início da contagem do prazo de prescrição é o momento da consumação material do crime de corrupção, que ocorre com o pagamento da peita;

ii) considerando a factualidade cristalizada após o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, não se apurou a “data concreta do pacto corruptivo”, pelo que não se pode concluir que tenha ocorrido a prescrição tomando por base data anterior a Maio de 2006.

III. Não podem, porém, ser validados os argumentos que sustentam a decisão do Tribunal recorrido.

IV. Primeiramente: por ser fundamental para se decidir da prescrição do procedimento criminal, nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal, importa assentar na esteira da melhor doutrina e jurisprudência, mormente do Tribunal Constitucional, no entendimento segundo o qual o crime de corrupção ativa não se consuma na data do pagamento dos subornos, nem na data da transferência da primeira tranche, nem da última delas. Ao invés, consuma-se com o acordo corruptivo, ou seja, do lado activo, com a oferta ou promessa de dádiva.

V. Todavia, o Tribunal a quo, precisamente quanto à questão de saber quando é que os crimes de corrupção se consumaram para efeitos de contagem do prazo de prescrição, acolhe e verte para o caso dos autos o entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 21/03/2018, nos termos do qual o prazo prescricional dos crimes de corrupção só corre a partir da data do pagamento dos subornos ou do acto ou omissão contrário aos deveres do cargo do agente passivo.

VI. Sucede, porém, que o Tribunal recorrido esqueceu ou quis esquecer que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em que se ancora foi apreciado pelo Tribunal Constitucional, maxime no Acórdão n.º 90/2019, que se decidiu julgar inconstitucional, por violação do princípio da legalidade criminal, os artigos 119.º, n.º 1 e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na versão posterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, quando interpretados no sentido de que o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa é contado a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem.

VII. É consistente e abundante a argumentação expendida pelo Tribunal Constitucional no sobredito aresto, salientando-se, em especial, por razões de economia, o seguinte: “(...) a aplicação da norma extraível do n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal encontra-se dependente da determinação do momento da consumação em razão do tipo de crime”.

VIII. E ainda: “De facto, no entendimento do legislador, quer a promessa quer a entrega são penalmente censuráveis e, por isso, aptas a desencadear as consequências jurídicas da prática de um crime de corrupção ativa. Basta a promessa para que o crime seja dado por consumado, independentemente de a ela se seguir a entrega efetiva da “coisa prometida”; a “entrega” não constitui, pois, um elemento necessário do tipo” (destaque nosso).

IX. O que, tudo considerado, impõe a inevitável conclusão de que, efectivamente, o Tribunal a quo seguiu uma interpretação julgada inconstitucional e, em decorrência, decidiu-se pela não prescrição do procedimento criminal.

X. Requer-se, portanto, ao Tribunal ad quem que decida no sentido de que os crimes de corrupção se consumam com o pedido ou a oferta da vantagem conhecidos pelos destinatários, de acordo com o juízo de inconstitucionalidade já proferido pelo Tribunal Constitucional acerca da aplicação das normas em causa.

XI. Assim, desde já se invoca também nestes autos, para os devidos e legais efeitos, a inconstitucionalidade da interpretação normativa dos artigos 119.º, n.º 1, e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, e do artigo 18.º, n.º 1, da Lei 34/87 de 16/7 (na versão aplicável), segundo a qual o prazo prescricional dos crimes de corrupção activa de funcionário e de titular de cargo político é contado a partir da data do pagamento dos subornos (leia-se, entrega da vantagem ao funcionário e ao titular de cargo político) e não a partir da data em que se dá a oferta e a aceitação da vantagem.

XII. A adopção da referida interpretação normativa desfavorável ao arguido veiculada no Despacho recorrido (em reiteração da posição expressa pelo STJ no referido Ac. datado de 21/3/2018) viola o princípio da legalidade criminal, previsto no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.

XIII. Em segundo lugar: argumenta ainda o Tribunal a quo que, na medida em que a “data concreta do pacto corruptivo não se apurou”, não se pode concluir que tenha ocorrido a prescrição tomando por base data anterior a Maio de 2006.

XIV. Não se olvida que nos Acórdãos proferidos nestes autos não se logrou provar “o momento temporal em que foi decidida tal actuação e/ou quem tomou a iniciativa de solicitar/dar as dádivas (ainda que seguramente anterior ao momento em que os arguidos BB e CC receberam a primeira prestação da dádiva total que respetivamente receberam)” (cf. Acórdão de 1ª instância, pág. 246, e Acórdão do TRE, pág. 228).

XV. Embora a definição do tempus delicti tenha sido desmerecida pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo TRE, a verdade é que, do ponto de vista do arguido, esta constitui um vício de insuficiência da matéria de facto provada para decisão, segundo o disposto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP, questão esta que não pode dizer-se estabilizada nestes autos pois que se encontra ainda nesta data pendente recurso de constitucionalidade, interposto do Acórdão do TRE, referente à sobredita questão (Processo n.º 174/22, a correr termos pela 2.ª Secção do TC).

XVI. Em tal recurso de constitucionalidade, o arguido suscitou precisamente a questão da inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 18.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, e 374.º, n.º 1, do Código Penal, segundo a qual se pode condenar nestes crimes de corrupção activa sem consagrar o momento temporal da respectiva consumação, por flagrante violação das garantias de defesa plasmadas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República.

XVII. E suscitou também a questão da interpretação normativa surpresa ensaiada pelo TRE dos artigos 410.º, n.º 2, al. a), CPP, 374.º, n.º 1, CP e 18.º, n.º 1, Lei n.º 34/87 nos termos da qual os factos que têm que constar da decisão quanto à consumação do crime de corrupção são os do momento da efetiva transferência da vantagem, mesmo tendo havido oferecimento prévio da mesma.

XVIII. Significa, pois, que a necessidade ou desnecessidade de determinação do tempus delicti constitui uma questão ainda não estabilizada nos presentes autos por força do Recurso de constitucionalidade interposto, desde logo atendendo ao disposto no artigo 80.º da Lei do Tribunal Constitucional.

XIX. Seja como for, não obstante não ter sido determinada uma data concreta ou exacta para o acordo corruptivo, a verdade é que o momento temporal da sua ocorrência revela-se no Acórdão proferido nestes autos.

XX. De facto, sem conceder, mas percorrendo os factos provados – considerados estabilizados e insusceptíveis de alteração pelo Tribunal a quo – é bem evidente que a corrupção teve em vista abranger, não só a realização dos trabalhos a mais (TNP) por parte da sociedade DD (como já constava da Acusação), mas também garantir que a DD ganhava o concurso aberto pelo Município para constituição da PPP.

XXI. Da factualidade provada, designadamente dos factos provados n.º 25 a 35, 39 a 43, 51, 57 a 60, 81 (cujo teor se reproduz expressamente no texto do Recurso), resulta que foi no segundo trimestre de 2006 que os arguidos BB e CC aceitaram determinada vantagem para implementar o modelo de contratação de Parceria Público Privada Municipal, “com a intenção de a DD vir a obter a adjudicação da empreitada com os lucros decorrentes”, sendo que, foi na decorrência de tal acordo que, ainda no ano de 2006, foram tomadas todas as decisões por parte do executivo municipal tendentes à implementação e concretização do projeto da PPPI que culminaram com o lançamento público do concurso através da publicação no jornal … em 14/8/2006.

XXII. Quer dizer, a rigorosa análise da factualidade em causa (dada como provada e da qual partiu o Tribunal a quo para proferir o despacho recorrido) sempre implicaria inferir que, para o Tribunal de 1ª instância, quem propôs ou ofereceu a contrapartida o fez algures no 2.º trimestre de 2006 e quem aceitou ou anuiu também o fez algures nesse mesmo 2.º trimestre de 2006, ainda que os primeiros pagamentos tenham ocorrido apenas em 15 de Agosto de 2007 e 17 de Janeiro de 2008, conforme resulta dos factos provados n.º 216 a 221.

XXIII. Ressalte-se ainda que o Tribunal de 1.ª instância, em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, por via do Despacho de alteração não substancial dos factos, comunicado em 01.09.2020 (cf. Acta com a Ref.ª Citius 30268400), fez remontar a actuação ilícita dos agentes corrompidos à fase do concurso para a selecção do parceiro privado, adicionando esta actuação ilícita àquela que já estava definida na Acusação, datada de 2007, e relacionada com os trabalhos não previstos a partir da alteração do regime do IVA.

XXIV. Ou seja, não faz sentido asseverar-se expressamente que a oferta da vantagem por parte do arguido recorrente teve em vista assegurar que a DD ganhava o concurso datado de 2006 e, depois, dizer-se que, por não se saber a “data concreta” em ocorreu o pacto corruptivo, se consideram os momentos em que se deu o pagamento da peita.

XXV. Assim e concluindo, partindo dos factos dados como provados pelo Acórdãos (de 1.ª instância e corroborados pelo TRE) e ainda que não se tenha vertido nos factos provados a data concreta ou exacta em que se deu o acordo corruptivo – por aqueles Tribunais terem entendido que não estavam obrigados a fazê-lo –, sempre seria de concluir a partir dos mesmos arestos que tal conluio se deu necessariamente em momento temporal anterior aos procedimentos de lançamento do concurso da PPP.

XXVI. Em terceiro lugar: se o Tribunal a quo, não obstante a apreciação que fez da factualidade provada, mantinha dúvidas quanto ao momento temporal em que ocorreu o acordo corruptivo, sempre se impunha a interpretação dos factos provados mais favorável ao arguido, ao abrigo do princípio in dubio pro reo, consagrado no art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

XXVII. De facto, como bem assinalam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, “além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.

XXVIII. Assim, a considerar-se não se ter logrado provar no caso dos autos – conforme afirma o Tribunal a quo – o momento temporal preciso em que ocorreu o pacto corruptivo, sempre deveria prevalecer o princípio in dubio pro reo, ou seja, o Tribunal considerar a data mais favorável ao arguido para iniciar a contagem do prazo de prescrição nos termos e para os efeitos do art. 119.º, n.º 1, do Código Penal.

XXIX. Não se olvide que, apesar de não constar da factualidade provada a data concreta do acordo corruptivo, a verdade é que, conforme aflorado supra, há um conjunto de factos provados que tornam provável e, no mínimo, verosímil a tese segundo a qual o pacto corruptivo ocorreu algures no segundo trimestre de 2006, antes do mês de Maio de 2006.

XXX. Em face do exposto, sob pena de violação do princípio in dúbio pro reo, devia o Tribunal a quo ter considerado que a consumação dos crimes de corrupção se deu no sobredito lapso temporal – algures no segundo trimestre de 2006, antes do mês de Maio de 2006 – por ser este o facto mais favorável ao arguido (e não apenas aquando dos pagamentos das contrapartidas acordadas).

XXXI. Nestes termos, suscita-se, desde já, a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 119.º, n.º 1, e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, e do artigo 18.º, n.º 1, da Lei 34/87 de 16/7, na interpretação segundo a qual, havendo dúvida sobre o exacto momento temporal em que ocorreu a consumação do crime por não tendo sido possível apurar a data concreta do pacto corruptivo, o prazo de prescrição começa a contar-se a partir da data exacta em que foram feitos os pagamentos dos subornos, e não a partir do momento em que o Tribunal deu como provado que ocorreram a oferta e a aceitação dessas vantagens.

XXXII. A referida interpretação normativa desfavorável ao arguido, subjacente ao Despacho recorrido, importa a violação do princípio in dubio pro reo, enquanto corolário do princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

XXXIII. Por fim: resta concluir que, de acordo com o que preceitua o art. artigo 2.º, n.º 4 do Código Penal, o regime aplicável à prescrição do procedimento criminal é o vigente à data da consumação dos factos, i.e., a Lei n.º 5/2006, de 23/2, que corresponde à 20.ª versão do Código Penal (pois que a lei posterior não se mostra mais favorável).

XXXIV. Na medida em que os crimes em apreço são puníveis com pena de prisão cujo limite máximo é igual a 5 anos, nos termos do disposto no art. 118.º, n.º 1, b) do Código Penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 10 anos.

XXXV. Tal prazo começa a correr no momento da consumação dos crimes, ou seja, nos termos supra expostos, algures no segundo trimestre de 2006, antes do mês de Maio de 2006.

XXXVI. Ora, a primeira causa de interrupção do procedimento criminal é a constituição de arguido, conforme decorre do art. 121.º, n.º 1, a), do Código Penal.

XXXVII. E o arguido apenas foi assim constituído nos autos em 24/02/2017, portanto, depois de decorrido o prazo prescricional de 10 anos, sem que nenhuma causa de suspensão do procedimento criminal tivesse ocorrido.

XXXVIII. O que impõe a inarredável conclusão de que, na data da constituição de arguido, o procedimento criminal já se mostrava prescrito, o que se requer seja declarado e, em decorrência, seja extinto o procedimento criminal relativo aos crimes de corrupção pelos quais o arguido recorrente foi condenado.»

c. Admitido o recurso, o Ministério Público respondeu pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese, que (transcrição):

«1. AA interpôs recurso do douto despacho judicial proferido em 29-03-2022 (referência …) o qual decidiu indeferir o requerimento de prescrição alegada pelo arguido.

2. Despacho com o qual se concorda.

3. Sendo certo que, salvo o devido e supino respeito, não assiste razão ao recorrente AA.

4. Designadamente, não é verdade que a consumação dos crimes de corrupção se deu aquando da formulação do acordo corruptivo, algures no segundo trimestre de 2006, antes do mês de Maio de 2006.

5. Por isso, o recorrente parte de uma premissa errada pelo que a conclusão é incorrecta.

6. É certo que o acórdão não diz o dia e hora em que os crimes de corrupção foram cometidos pelo arguido. Nem tal seria possível no caso dos autos.

7. Mas resulta, de forma clara o período temporal em que se operou a consumação de tais crimes pois que não se trata de um acto isolado mas sim de um processo corruptivo.

8. O Tribunal da Relação pronunciou-se sobre a questão ora colocada pelo recorrente, afastando, em última análise, qualquer situação de prescrição.

9. Constatando-se que a constituição como arguido de AA se verificou, efectivamente, em 24 de Fevereiro de 2017, não ocorreu, até à presente data, qualquer prescrição do procedimento criminal.

10. “In casu” o prazo de prescrição do procedimento criminal (10 anos) não havia ainda decorrido aquando da constituição de arguido (24-02-2017), data em que se operou a interrupção da prescrição por mais 10 anos, ou seja, até 24-02-2027 – cf. artigos 118.º, n.º 1, alínea b) e 121.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 17-04 (em vigor à data da prática dos factos).

11. Num outro vector da sua argumentação o recorrente traz á colação, a seu favor, o princípio in dúbio pro reo, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

12. Mas, tal princípio não está aqui em causa pois não se pode falar de dúvida.

13. Com efeito, resulta, de forma clara, o período temporal em que se operou a consumação do crime de corrupção pois que não se trata de um acto isolado mas sim de um processo corruptivo.

14. Sendo certo que a consumação do crime de corrupção activa praticado pelo arguido AA opera-se quando se dá a oferta e a aceitação da vantagem materializada na primeira transferência do montante global de €167.050,00 relativamente ao arguido CC, ou seja, a 15 de Agosto de 2007, tal como consta do facto provado n.º 220 do acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo.

15. A consumação do crime de corrupção activa praticado pelo arguido AA opera-se quando se dá a oferta e a aceitação da vantagem materializada na primeira transferência do montante global de €168.900,00 relativamente ao arguido BB, ou seja, a 17 de Janeiro de 2008, tal como consta do facto provado n.º 221 do acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo.

16. Quer dizer que, a nosso ver, não faz sentido invocar o princípio in dúbio pro reo quando não há dúvida.

17. A decisão da Exma. Juiz “a quo” não violou qualquer norma legal (penal, processual penal e/ou constitucional) e foi correctamente aplicada face aos elementos constantes dos autos.

18. Revelando cuidada fundamentação no que concerne ao indeferimento da invocada prescrição.»

d. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, emitiu parecer secundando a resposta produzida junto do tribunal de primeira instância.

Não foi apresentada resposta ao aludido parecer.

Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência.

Cumpre decidir

II – FUNDAMENTAÇÃO

Delimitação do objeto do recurso

1.O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer. Verificamos que as questões aportadas ao conhecimento desta instância de recurso são as seguintes:

- in dubio pro reo;

- consumação dos crimes de corrupção e prescrição do procedimento nos ilícitos de corrupção ativa;

- violação do princípio da legalidade criminal;

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«Vem o arguido AA requerer que se declare prescrito o procedimento criminal contra si pendente. Para tal, invoca, em síntese, que o decurso do prazo de prescrição, de dez anos, iniciou-se com a formulação do acordo corruptivo, algures no segundo semestre de 2006, antes do mês de Maio de 2006, sendo que a constituição de arguido ocorreu a 24 de Fevereiro de 2017.

O Ministério Público pronunciou-se nos termos constantes da promoção que antecede, pugnando pelo indeferimento do requerido.

Cumpre apreciar.

O arguido foi condenado, no âmbito dos presentes autos, e para além do mais, como co-autor material de um crime de corrupção activa de titular de cargo político, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 2º, nºs 1, e 4, do Código Penal, e 18º, n.º 1, em articulação com os arts.º 1º, 2º e 3º, n.º 1, al.ª i), todos da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho (na redacção conferida pela Lei 108/2001, de 28/11), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão e como co-autor material de um crime de corrupção activa, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 2º, nºs 1, e 4, e 374º, nº 1 (redacção do Decreto-Lei nº 48/95 de 15/03), por referência ao nº 2, do art. 386º, todos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

O crime em causa era, à data da prática dos factos, punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos. Com as alterações introduzidas pela Lei nº 41/2010 de 3/09, à Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, o crime de corrupção activa passou a ser punido com pena de 2 a 5 anos de prisão. Verifica-se assim que o limite máximo não sofreu alteração.

Por seu turno, de acordo com o previsto no art.º 118.º n.º 1, al. b) do Código Penal, o prazo de prescrição é de dez anos.

O n.º 1 do artigo 119º do Código Penal estatui que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.

Já nos termos do disposto no art.º 121.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, a contagem do prazo de prescrição interrompe-se com a constituição de arguido.

A constituição de arguido ocorreu a 24 de Fevereiro de 2017.

Coloca-se agora a questão de saber quando é que o crime se consumou, para efeitos de contagem do prazo de prescrição. E para esse efeito, há que ter presente a distinção entre consumação formal e consumação material (vide a este respeito os ensinamentos de Jescheck in Tratado de Derecho Penal – Parte General (4ª edição), 468/469). Conforme se expôs no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21/03/2018, disponível em www.dgsi.pt

“Há crimes cuja consumação formal não coincide com a consumação material ou terminação, como é o caso dos crimes de consumação antecipada (crimes de intenção, de perigo e de empreendimento), crimes em que a consumação se caracteriza pela sua estrutura interactiva (crimes permanentes, crimes em dois actos e com pluralidade de actos individuais), crimes em que o resultado final ou global se obtém através de acções que não correspondem em sentido formal à descrição do respectivo tipo (destruição completa de edifício incendiado, colocação a salvo do objecto contrabandeado depois da passagem da fronteira), e crimes de unidade natural de acção e de acção continuada, sendo que o prazo para a perseguição penal (denúncia, queixa), tal como para efeitos de prescrição do crime, não se inicia enquanto não se verificar a sua terminação, ou seja, a consumação material.”, concluindo “Certo é pois que o prazo prescricional dos crimes de corrupção objecto dos autos só corre a partir da data do pagamento dos subornos ou do acto ou omissão contrário aos deveres do cargo do agente passivo do crime no caso de corrupção passiva antecedente”.

Defender o contrário, seria admitir, em tese, a ocorrência da prescrição ainda antes da sua consumação material, caso o recebimento do suborno viesse a ocorrer muito tempo depois da promessa de recebimento da vantagem.

Ora, vertendo ao caso dos autos, constava da acusação e foi dado como provado que:

“216- Como contrapartida dos descritos comportamentos que empreenderam, os arguidos BB e CC receberam quantias monetárias, designadamente o primeiro, a quantia global de € 168.900,00; o segundo, a quantia global de € 167.050,00, quantias a que tiveram acesso, respetivamente, através de contas bancárias de que eram titulares as sociedades “EE, Ldª” e “FF. Ldª”.

217- Tais quantias provieram do financiamento total (€ 4.250.000,00) que foi concedido pela ….

218- Tais quantias foram dadas pelos arguidos AA e GG, por intermédio das sociedades “DD, da qual o arguido AA era administrador, e da “HH, S.A”, e “II, S.A”, sociedades de que era administrador o arguido GG.

219- Os valores de € 168.900,00 e de € 167.050,00 foram depositados à ordem das sociedades “EE, Ldª” e “FF, Ldª”, respetivamente, na sequência de faturação de serviços que não foram por qualquer delas prestados, à “II, S.A ”, que, por seu turno, faturou os mesmos serviços à “HH, S.A”, no valor total de € 335,950, que foi pago à HH pela DD, a coberto do contrato de prestação de serviços supra referenciado.

220- Assim, sem que tenha existido a materialização, elaboração e entrega de quaisquer estudos ou projetos da FF, Lda.” para a “II, SA., esta última transferiu para a conta bancária do…, com o NIB …, titulada pela primeira, as seguintes quantias monetárias:

- No dia 15 de agosto de 2007, o montante de € 30.250,00;

- No dia 18 de outubro de 2007, o montante de € 30.250,00;

- No dia 11 de dezembro de 2007, o montante de € 1.050,00;

- No dia 11 de dezembro de 2007, o montante de € 5.000,00;

- No dia 29 de abril de 2008, o montante de € 30.250,00;

- No dia 25 de junho de 2008, o montante de € 30.250,00;

- No dia 13 de março de 2009, o montante de € 25.000,00;

- No dia 11 de maio de 2009, o montante de € 5.000,00;

- No dia 10 de junho de 2009, o montante de € 5.000,00;

- No dia 30 de junho de 2009, o montante de € 5.000,00, tudo no valor total de € 167.050,00.

221- E sem que tenha existido a materialização, elaboração e entrega de quaisquer estudos ou projetos da “EE Ldª” para a “II, S.A., esta última transferiu para a conta bancária do …, com o nº …, titulada pela primeira, as seguintes quantias monetárias:

- No dia 17 de janeiro de 2008, o montante de € 48.400,00;

- No dia 3 de junho de 2008, o montante de € 30.250,00;

- No dia 10 de julho de 2008, o montante de € 30.250,00;

- No dia 31 de dezembro de 2018, o montante de € 12.000,00;

- No dia 5 de março de 2009, o montante de € 48.000,00.”

Assim, a consumação formal do crime de corrupção activa praticado pelo arguido AA opera-se quando se dá a oferta e a aceitação da vantagem materializada na primeira transferência do montante global de €167.050,00 relativamente ao arguido CC. Contudo, a consumação material ocorre com o primeiro pagamento, ou seja, a 15 de Agosto de 2007.

A consumação formal do crime de corrupção activa praticado pelo arguido AA opera-se quando se dá a oferta e a aceitação da vantagem materializada na primeira transferência do montante global de €168.900,00 relativamente ao arguido BB, mas a consumação material operou a 17 de Janeiro de 2008.

Tendo a constituição de arguido ocorrido a 24 de Fevereiro de 2017, ainda não haviam decorrido dez anos. Com a aludida constituição de arguido, a contagem do prazo de prescrição interrompeu-se, iniciando-se a contagem de novo prazo de 10 anos.

Analisando a questão de outro prisma, importa considerar que a data concreta do pacto corruptivo não se apurou, conforme consta do acórdão da primeira instância, o qual, nessa parte, mereceu inteiro acolhimento no Tribunal da Relação de Évora, pelo que os factos considerados provados e não provados estabilizaram-se, não sendo susceptíveis de alteração. Como muito bem salienta o Digno Procurador do Ministério Público “não é verdade que a consumação dos crimes de corrupção se deu aquando da formulação do acordo corruptivo, algures no segundo trimestre de 2006, antes do mês de Maio de 2006”, pura e simplesmente pelo facto de, no caso concreto, não se terem dado como provadas tais datas, como ressalta da fundamentação da matéria e facto e da apreciação que o Tribunal da Relação de Évora fez sobre a alegada insuficiência da matéria de facto. Assim, ainda que se pudesse considerar que a data relevante para a apreciação da prescrição era a data do pacto corruptivo, não podemos, em face do que fica exposto, concluir que tal ocorreu antes do mês de Maio de 2006.

Também sob este prisma, se impõe a conclusão de que o procedimento não se encontra prescrito.

Em face do exposto, o procedimento criminal pendente contra o arguido AA ainda não prescreveu, o que se declara, indeferindo-se o requerido.

Notifique.

Oportunamente, devolva os autos à instância de recurso para apreciação do recurso pendente.»

3. Apreciando

3.1 Do in dubio pro reo

O princípio in dubio pro reo, sendo o correlato processual do princípio da presunção de inocência do arguido (artigo 32.º, § 2.º da Constituição), constitui princípio relativo à prova, decorrendo do mesmo que não poderão considerar-se provados os factos que, em decorrência da prova produzida não arredem qualquer «dúvida razoável» do tribunal.

O sentido e conteúdo do in dubio pro reo é, como salienta Figueiredo Dias (1), «um non liquet na questão da prova – não [se] permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita decisão (…) - tem de ser sempre valorado a favor do arguido.» Este princípio encerra, pois, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Isto é, o in dubio pro reo traduz-se na valoração do non liquet em questão de prova no sentido favorável ao arguido. Ora, a decisão recorrida não apreciou nenhuma prova nem julgou qualquer facto. Logicamente que se lhe não pode ter suscitado qualquer incerteza – o non liquet -, o que logo impossibilita a existência do juízo que é pressuposto da questão suscitada! Breve: a questão de facto já foi julgada em primeira instância e em segunda instância, não cabendo aqui represtiná-la. Claro que numa certa perspetiva jurídica das coisas (a perspetiva do recorrente), concernente à suscitada questão da prescrição do procedimento criminal, não é (em abstrato) irrelevante saber o momento do pacto corruptivo. Na leitura que o recorrente faz dos factos provados esse momento situar-se-á no segundo trimestre de 2006 (cujo 1.º dia desse intervalo seria 1 de abril de 2006)! O que a decisão recorrida simplesmente fez foi consignar o que com meridiana clareza resulta dos factos provados: «algures no segundo semestre de 2006, antes do mês de maio de 2006» (vejam-se os pontos 25, 28, 32 e 42 da matéria de facto). Apenas para fixar o momento, em que na tal perspetiva das coisas, se iniciaria a contagem prazo prescricional que se quer debater. Mas no que ora importa resta reafirmar que nenhum julgamento novo se fez dos factos, pelo que não se pode colocar a questão jurídica suscitada pelo recorrente, mesmo a da putativa inconstitucionalidade «dos artigos 119.º, n.º 1, e 374.º, n.º 1, ambos do Código Penal, e do artigo 18.º, n.º 1, da Lei 34/87 de 16/7», por violação do princípio da presunção de inocência.

3.2 Da consumação dos crimes de corrupção e prescrição do procedimento criminal

O decurso do tempo tem reflexos nomeadamente ao nível da prescrição do procedimento criminal. Consistindo a prescrição num pressuposto negativo da punição, a qual tem por efeito justamente a extinção do procedimento criminal, em virtude do decurso de certo período de tempo. Uma condenação decretada e (mesmo) confirmada por tribunal superior, se o for em procedimento prescrito, extingue a responsabilidade criminal. E este é o móbil deste incidente por apenso.

Diga-se já, de introito, que a decisão proferida pelo tribunal a quo, é rigorosa quanto aos seus pressupostos de facto (materializados na confirmação deles feita pelo acórdão deste Tribunal, de 12 de outubro de 2021; e mostra-se igualmente acertada relativamente à solução de direito (nos termos melhor concretizados adiante).

Alega o recorrente que o momento relevante para o início da contagem do prazo prescricional do ilícito de corrupção ativa é o do acordo corruptivo e que este terá ocorrido «no segundo trimestre de 2006», quando os arguidos BB e CC aceitaram uma determinada vantagem para implementar o modelo de contratação de Parceria Público Privada Municipal. Ora, conforme já se deixou dito, os factos não são já controversos, estando já fixados por referência ao acórdão da primeira instância, que foi confirmado (nessa parte integralmente) pelo acórdão deste Tribunal da Relação (acórdão de 12 de outubro de 2021). Essa matéria de facto, concretamente a conjugação dos factos 25.º, 28.º, 32.º e 43.º não permitem concluir que o pacto corruptivo tenha ocorrido em momento anterior a maio de 2006, conforme bem considerou a decisão recorrida.

Os crimes cometidos pelo arguido recorrente estão previstos no artigo 18.º, § 1.º, em articulação com os artigos 1.º, 2.º e 3.º, § 1.º, al. i), da Lei n.º 34/87, de 16 de julho (na redação introduzida pela Lei 108/2001, de 28 de novembro (crime de corrupção ativa de titular de cargo político); e artigo 374.º, § 1.º do Código Penal, por referência ao artigo 386.º, § 2.º do mesmo código (corrupção ativa). Com referência à data da prática dos factos e ao máximo das respetivas molduras legais e em conformidade com o disposto no artigo 118.º, § 1.º, al.) do Código Penal (CP), o prazo de prescrição do procedimento criminal é de dez anos, correndo desde o dia em que o facto se tiver consumado (artigo 119.º, § 1.º CP). Nos crimes corruptivos ativos, como é o que aqui o caso, apurando-se a prática de factos de promessa de vantagem a consumação formal do ilícito dá-se logo com a prática de qualquer dos atos típicos. E havendo reiteração de atos da mesma espécie, haverá uma renovação da consumação, que cessará na data da última promessa. «Quando, por seu turno, se demonstre que o agente público recebeu e aceitou a vantagem, depois de a ter solicitado ou de ter aceitado a sua promessa; e/ou que o corruptor entregou a vantagem ao agente público e este tomou conhecimento do seu recebimento, depois de a ter prometido, então é nos momentos da perceção do suborno e da sua disponibilização que os factos de corrupção passiva e ativa se deverão ter por (materialmente) consumados. Se se comprovar que houve um faseamento do fornecimento da vantagem o termo da consumação material convergirá com a derradeira entrega.» (2) Esta conceção respeitante à contraposição entre consumação formal e consumação material (ou terminação) não constitui novidade na doutrina, nomeadamente na mais qualificada. (3) Sendo essa a que, no essencial para o que agora releva, a que foi sufragada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 735/03.4TOPRT.P2.S1 (4), cujo sentido se mostra, aliás, alinhado com a doutrina e a jurisprudência dos altos Tribunais dos países civilizados do nosso entorno cultural. (5) Efetivamente, os crimes de corrupção ativa e passiva, em qualquer das suas modalidades são crimes instantâneos, isto é, a prática de qualquer dos atos típicos constitui imediata realização do facto ilícito típico (consumação formal). Mas isso não impede a prática sucessiva dos mesmos ou de outros atos típicos do mesmo tipo de ilícito. Ora, a realização plúrima desses atos não é irrelevante para efeitos da consumação do ilícito. «O mandado de esgotante apreciação e relevo penal de todo o desvalor que esse facto, globalmente considerado, comporta implica o repúdio de eventuais pretensões de um seu espartilhamento que passe por dividir as diversas partes que o compõem e ignorar as que dão corpo à consumação material.» (6) Os sucessivos atos corruptivos típicos, por integrarem uma mesma realidade ontológica, agregam uma certa «unidade de sentido» da atuação ilícita, evidenciando também uma mais intensa ofensa ao bem jurídico. Todos são pertinentes e confluem no «mercadejar do cargo», sendo a entrega e recebimento da peita, no culminar da atuação anterior, o seu expoente máximo. Donde, comprovando-se que para além da realização de atos que formalmente integram o tipo de ilícito corruptivo (neste caso do crime de corrupção ativa) e que nessa dimensão (formal) o consumam, ao comprovar-se (também) a peita, através de uma ou de uma sequência de atos de entrega e recebimento, verifica-se a sua consumação material, cuja data da última entrega nos dará o dies a quo do prazo prescricional do procedimento criminal. Ora, no presente caso temos provados que os pactos corruptivos firmados entre o recorrente e os coarguidos CC e BB, terão ocorrido por volta (mas em data não anterior) a maio de 2006 (factos 25.º, 28.º, 32.º e 43.º), pactos esses que preenchem factos típicos dos ilícitos em referência, ocorrendo, com isso, a sua consumação formal. Mas tendo-se-lhes sucedido atos de consumação material (entrega e recebimento da peita por CC em frações entre 15/8/2007 e 30/6/2009 - data da última entrega) - facto 220 - o crime consumou-se materialmente nesta última data. O mesmo sucedendo relativamente a BB, com entregas e recebimentos relativas à peita iniciadas em 17/1/2008 até 5/3/2009 (data da última entrega) – facto 221 – consumando-se materialmente o crime nesta última data. Correndo o prazo de prescrição do procedimento criminal a partir da data em que o facto ilícito se considera consumado (artigo 119.º, § 1.º CP), sendo para aqui relevantes, nos termos sobreditos, as datas de 30/6/2009 e 5/3/2009, e tendo o recorrente sido constituído arguido a 24/2/2017, não tinham nesta data decorrido os dez anos previstos na lei (artigo 118.º, § 1.º, al. d) CP), relativamente aos crimes por si praticados. E com a aludida constituição de arguido, o prazo de prescrição interrompeu-se, iniciando-se a contagem de novo prazo de 10 anos. Com o que fica demonstrada a sem razão do recorrente.

3.2 Da violação do princípio da legalidade criminal

Invoca-se a vulneração do princípio da legalidade criminal, funcionalizada essa alegação à concreta pronúncia do Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 90/2019, de 6fev2019, por versar sobre matéria conexa.

Cremos que sem razão.

O princípio da legalidade criminal é uma exigência do Estado de Direito, mas também uma decorrência do princípio democrático e do princípio da separação de poderes, tendo desde logo assento no texto da lei fundamental (artigo 29.°, § l.º Constituição) significando, no essencial, que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa, consagrando-se nesse preceito a máxima latina nullum crimen, nulla poene sine lege.

Este princípio exige que uma infração criminal tenha necessariamente de estar claramente definida na lei, estando tal condição preenchida sempre que o interessado possa saber, a partir da disposição pertinente, quais os atos ou omissões que determinam responsabilidade penal e as respetivas consequências.

Demanda-se, pois, previsibilidade e acessibilidade, de modo a que qualquer pessoa possa conhecer e saber quais as consequências sancionatórias de uma sua ação ou omissão. E supõe que o legislador formule a lei penal de modo preciso, de molde a não ser suscetível de interpretações gravemente dispares, sobretudo quanto à natureza, âmbito e círculo material da conduta proibida.

No plano da determinabilidade, refere Jorge de Figueiredo Dias, que «importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos.

O recorrente foi condenado como coautor de um crime de corrupção ativa de titular de cargo político, previsto no artigo 18.º, § 1.º, em articulação com os artigos 1.º, 2.º e 3.º, § 1.º, al. i), da Lei n.º 34/87, de 16 de julho (na redação introduzida pela Lei 108/2001, de 28 de novembro; e coautor de um crime de corrupção ativa, previsto no artigo 374.º, § 1.º CP, por referência ao artigo 386.º, § 2.º do mesmo código.

Considerou o Tribunal Constitucional (7) em caso similar, que a perceção e integração das normas incriminatórias citadas supra, na sua conexão com o artigo 119.º, § 1.º CP, feita nos termos que se deixaram expressos (que cremos similar à realizada pelo Supremo Tribunal de Justiça (8), no acórdão citado) que a lei penal (os tipos de ilícito citados) encerra uma interpretação relativa à consumação dos crimes em momento que a lei não prevê!

Afirmando, ao invés, que na sua interpretação «o prazo de prescrição do crime de corrupção ativa se conta a partir da data em que ocorra a entrega de uma dada vantagem ao funcionário, e não a partir da data em que ocorra a promessa dessa vantagem, [o que, concluiu,] não beneficia de respaldo na letra da lei do artigo 374.º, n.º 1, do Código Penal.»

Não temos dúvidas que nos casos em que há uma promessa de vantagem nos termos previstos nos ilícitos em referência, realiza instantaneamente o tipo de ilícito e, nada mais ocorrendo, o prazo prescricional se conta como ali se afirma.

Mas se (como ocorreu no caso em análise) vierem a suceder-lhe outros atos corruptivos, designadamente a entrega da peita prometida, isto é, se se verificar uma sucessão de atos corruptivos, do que se tratará será «de um contínuo que vai evoluindo até ao ponto de chegada (…) reclamando, nessa medida, um tratamento jurídico-penal holístico de toda essa realidade.» (9) O que deveras, nos parece, encontrar tradução, e explícita, na letra da lei.

A mais das doutas e proficientes considerações constantes do voto de vencido lavrado no citado acórdão do Tribunal Constitucional (10), quer-nos parecer que a doutrina efetivamente sufragada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, é a correta, sem nenhuma vulneração da Constituição, nomeadamente do princípio da legalidade criminal. (11)

No essencial caberá, por fim, afirmar que a exigência de lei certa, decorrente do citado princípio, de que as normas (artigo 18.º, § 1.º, em articulação com os artigos 1.º, 2.º e 3.º, § 1.º, al. i), da Lei n.º 34/87, de 16 de julho (na redação introduzida pela Lei 108/2001, de 28 de novembro; e artigo 374.º, § 1.º, por referência ao artigo 386.º, § 2.º e artigo 119.º, § 1.º CP) e as interpretações delas, no tocante à definição dos pressupostos da responsabilidade penal do indivíduo, têm de ter correspondência com a letra da lei, mostram-se nela bem firmadas, não se vulnerando assim a garantia fundamental que o artigo 29.º, § 1.º assegura a todos os cidadãos.

Termos em que concluímos que o recurso não merece provimento.

4. Custas

Em razão do decaimento total no recurso o recorrente deverá suportar taxa de justiça entre 3 e 6 UC (artigo 513.º, § 1.º CPP e tabela III anexa ao Reg. Custas Proc.).

III – DISPOSITIVO

Destarte e por todo o exposto decidimos:

a) Negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.

b) Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.

Évora, 27 de setembro de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo (1.ª adjunta)

Fernanda Palma (2.ª adjunta)

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1 Direito Processual Penal, vol. I, 2004, Coimbra Editora, pp. 213.

2 Nuno Brandão, Corrupção: a questão da consumação material e as suas consequências, in Corrupção em Portugal, Paulo Pinto de Albuquerque, Rui Cardoso e Sónia Moura (organizadores), 2021, Universidade Católica Editora, pp. 178 ss.

3 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 3.º ed., 2019, pp. 804/806; tb. Hans-Heirich Jescheck y Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal – Parte General (5.ª edición, 2002, Comares Editorial, pp. 792 ss.

4 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21mar2018, Cons. Oliveira Mendes, disponível em www.dgsi.pt

5 Acórdão da Corte de Cassazione n.º 15.2008/2010 e toda a jurisprudência posterior, bem assim como a doutrina italiana (Carlo Benussi e outros, cit. por Nuno Brandão, Op. Cit nota 45 pp. 188); na doutrina alemã Schonke/Schroder/Heine/Eisel (idem) e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (idem); e em França vide, ac. Cour de Cassation, de 9/11/1995 e de 8/3/2003 (idem); e na doutrina brasileira Pierpaolo Cruz Bottini (idem).

6 Nuno Brandão, Op. cit., pp. 186.

7 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 501/18, de 6fev2019, relatado pelo Cons. Cláudio Monteiro

8 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no proc. 736/03.4TOPRT.P2.S1, de 21mar2018, relatado pelo Cons. Oliveira Mendes.

9 Nuno Brandão, idem, pp. 186.

10 E do que se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no proc. 736/03.4TOPRT.P2.S1, de 21mar2018, nomeadamente que em situações em que a peita é disponibilizada ao corrompido e é por este aceite, será este último momento o relevante para a contagem do prazo prescricional, expressando-se o Tribunal com a seguinte clareza: «conquanto o crime de corrupção ativa se tenha por formalmente consumado com a mera promessa de vantagem e que o crime de corrupção passiva se considere formalmente consumado com a solicitação ou aceitação (ou a sua promessa), suposto (aquando) o seu conhecimento pelo corruptor ativo, a verdade é que o início do prazo prescricional, em ambas as modalidades do crime, não se verifica desde o dia da sua consumação formal. A lei, mais concretamente o n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal ao estatuir que o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado não pode deixar de ser interpretado e aplicado como tendo em vista, em situações como a ocorrente nos autos [em que houve recebimento da peita], a consumação material do crime ou terminação.»

11 No mesmo sentido Nuno Brandão, idem, nota 56, a pp. 193.