CRIME DE DANO
CRIME DE DESCAMINHO
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
Sumário

Ofendido, para efeitos de constituição de assistente nos crimes de dano, é o titular do património que foi diretamente prejudicado pela invocada ação delituosa do arguido, pois é esse património que terá sido danificado ou destruído.
Afigura-se-nos que, na fase do inquérito, exige-se, tão-só, um juízo indiciário (de verosimilhança) de que, perante os factos investigados, o denunciante é o proprietário dos bens danificados (nesta ordem de ideias, podemos afirmar que o conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o conceito de ofendido consagrado no Código Penal para aferir da legitimidade para apresentar queixa - cfr. o disposto no artigo 113º, nº 1, do Código Penal).
Afigura-se-nos também que a legitimidade para intervir como assistente, em inquérito, não se afere só pela denúncia, devendo atender-se ainda à natureza dos crimes a que, no caso destes autos, alude o requerimento para abertura de instrução e, bem assim, o despacho revidendo.
Em suma: as sociedades recorrentes terão legitimidade para se constituírem assistentes no presente processo penal se existirem, nos autos, indícios de serem proprietárias dos bens danificados.
No que concerne ao crime de descaminho, “o bem jurídico protegido pelo crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal, (…) é o da autonomia intencional do Estado, aqui concretizada através de uma ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública” (Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, III, 419)”.
Ora, assim sendo, o mencionado crime assume natureza pública (é um crime público), estando nele em causa a proteção de um bem jurídico supra individual (ou de interesse comunitário), isto é, nele se tutela, direta e imediatamente, apenas o interesse do Estado (só indiretamente a norma incriminadora protege interesses particulares).
Por via disso, no crime de descaminho nenhum particular se poderá constituir assistente.
É evidente, quanto a nós, que os particulares podem ser (como são amiudadas vezes) atingidos e prejudicados pelos comportamentos que preencham a aludida norma incriminadora (artigo 355º do Código Penal).
Contudo, essa constatação não é suficiente, em nosso entender, para que tais particulares possam integrar o conceito de “ofendido” adotado pela nossa lei processual penal para efeitos de atribuição de legitimidade para a constituição como assistente.
Indo ao caso destes autos, verifica-se, pois, que nem uma nem outra das sociedades recorrentes é titular dos interesses especialmente protegidos com a referida incriminação (artigo 355º do Código Penal - o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato de tal crime é o próprio Estado -).
Em conclusão: face ao disposto no artigo 68º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, as sociedades recorrentes (ou qualquer delas, individualmente considerada) não possuem legitimidade para se constituírem assistentes nestes autos, porquanto não são titulares dos “interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - RELATÓRIO

Nos autos de instrução nº 98/20.5T9RMR, que correm termos no Juízo de Instrução Criminal de … (Juiz … ), a Exmª Juíza de Instrução proferiu despacho que não admitiu a constituição como assistentes requerida pelas sociedades AA, Ldª, e BB, Ldª.

A Exmª Juíza proferiu ainda despacho (na mesma peça processual - e logo de seguida ao despacho acima referido -) a rejeitar o requerimento para abertura da instrução apresentado pelas referidas sociedades.

*

Inconformadas com ambas as decisões, delas interpuseram recurso as referenciadas sociedades, apresentando as seguintes conclusões (em transcrição):

A - Recurso do despacho que não admitiu a sua constituição como assistentes:

“A. Constam nos autos itens comprovativos das tais máquinas e dos tais veículos serem propriedade das ofendidas.

B. Desde logo, os autos mencionados supra nas alíneas a) a c) do ponto I.II.

C. Mais a invocação, na participação, da qualidade de proprietária das tais máquinas, a favor da primeira ofendida - tal como, de resto, a Meritíssima Juíza assumiu no despacho.

D. Por fim, basta dar uma vista de olhos nos autos indicados supra nas alíneas a) a c) para se verificar que a executada no processo mencionado supra é a ora recorrente.

E. Foi violado, entre outros artigos, o artigo 68º do Código de Processo Penal”.

B - Recurso do despacho que não admitiu o requerimento para abertura da instrução:

“A. Então retirar o motor de uma viatura não preenche o tipo do crime em apreço?

B. A resposta só pode ser afirmativa, pois uma viatura sem o motor fica desfigurada e deixa de ser utilizável.

C. Basta o facto de os motores terem sido retirados dos tais veículos, numa altura em que os mesmos estavam ao cuidado do participado, enquanto fiel depositário, para o crime em apreço se considerar preenchido.

D. Competia ao participado, enquanto fiel depositário, guardar os tais veículos e as tais máquinas, para entregá-las quando instado.

E. O participado, enquanto fiel depositário, não entregou aos representantes legais da ora recorrente tais máquinas, apesar de ter sido instado pelo administrador judicial daquela para fazê-lo, com a devida antecedência.

F. O participado, enquanto fiel depositário, sabia que teria de entregar tais máquinas, em determinado dia, no local indicado na alínea b) do artigo 3º da participação e do requerimento de abertura de instrução, mas não procedeu em conformidade.

G. Esta atitude indicia intenção de subtrair e/ou descaminhar, pois a ideia do participado, como fiel depositário, foi saciar o crédito de empresa, sua representada.

H. No requerimento de abertura de instrução, as ofendidas alegaram que tais veículos foram removidos para local não identificado porque não foram informadas do sítio certo.

I. Isto apesar dos representantes legais das ofendidas terem solicitado essa informação à agente de execução nomeada no processo mencionado supra, bem como à mandataria da respetiva exequente.

J. Em todo o caso, em relação a tais veículos, não está em causa subtração e/ou descaminho, mas sim o crime de dano.

K. A alínea b), do nº 3, do artigo 283º do Código de Processo Penal refere tão só “local” sem impor a descrição do mesmo.

L. Para o preenchimento do tipo legal que prevê o crime de dano basta que o agente destrua, danifique, desfigure ou torne não utilizável coisa alheia.

M. O intento do participado, enquanto fiel depositário, foi ver saciado o crédito de empresa, sua representada, por sua vez exequente no processo executivo mencionado supra.

N. As ofendidas:

a) narraram os factos no requerimento de abertura de instrução sem remissão (cfr. artigos 1 a 15 da peça);

b) indicaram os artigos 212º e 355º do Código Penal, como sendo as normas aplicáveis (cfr. artigo 16º da peça);

c) indicaram o local para onde foram removidas as máquinas, que foi indicado pela agende de execução do processo executivo mencionado supra e pela mandatária judicial da exequente respetiva [cfr. artigo 3º, alínea b), da peça];

d) indicaram que a motivação do participado, enquanto fiel depositário, foi ver saciado, no todo ou pelo menos em parte, o crédito de empresa, sua representada, por sua vez exequente no processo mencionado supra (cfr. artigo 14º da peça);

e) Indicaram o grau de participação (cfr. artigo 33º da peça).

O. Foram violados, entre outros, os artigos 212º e 355º do Código Penal.

São termos em que deve este recurso merecer provimento, em ordem a que:

a) o despacho de não admissão das ofendidas como assistentes seja revogado e substituído por outro de sinal contrário;

b) o despacho de não pronúncia seja revogado e substituído por outro de sinal contrário, pela prática de todos os crimes denunciados na participação e no requerimento de abertura de instrução.

Só deste modo se cumprirá a Lei, se pugnará pelo Direito e se fará a mais lídima Justiça”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância respondeu ao recurso das sociedades ofendidas, defendendo a improcedência total do mesmo.

O arguido também respondeu ao recurso, entendendo que o mesmo não merece provimento.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal.

Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Vistas as conclusões extraídas pelas recorrentes da motivação do recurso, as quais delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, são duas, em breve síntese, as questões a apreciar:

1ª - Saber se as sociedades recorrentes podem, ou não, constituir-se como assistentes nos autos.

2ª - Aferir da existência de motivo legal de rejeição da instrução, face ao requerimento para abertura de instrução apresentado pelas recorrentes.

2 - As decisões recorridas.

Os despachos recorridos são do seguinte teor:

“Vieram as sociedades requerentes da instrução requerer a sua constituição como assistentes.

Porém, não justificam a sua qualidade ou o interesse tutelado de que sejam titulares por referência aos ilícitos perpetrados, mormente as suas qualidades de proprietárias dos veículos e máquinas aqui em apreço ou, pelo menos, as suas qualidades de executadas, nos autos de ação de executiva a que se alude, em conformidade com o artigo 68º do CPP.

Mais, do RAI resulta que é controvertida a propriedade das máquinas aqui em apreço, invocando-se uma alegada compra das mesmas, apesar de terem sido os bens penhorados à ofendida “AA, Ldª”.

Ora, os autos não contêm qualquer elemento comprovativo da propriedade de tais máquinas e veículos e, como se disse, tal propriedade parece controvertida, pelo menos quanto às máquinas, os próprios requerentes da instrução invocando que seriam da 2ª Requerente apesar de penhorados à 1ª Requerente.

Por outro lado, as faturas de fls. 91 e segs. não comprovam qualquer direito de propriedade, até porque não há comprovativo do seu pagamento e entrega ao comprador.

Mais acresce que não invocam sequer quem foi executada nos autos supra.

Nestes termos, portanto, entendemos que não existe prova suficiente nos autos da titularidade do interesse tutelado pelas normas aqui em apreço, seja o crime de dano seja o crime de descaminho.

Termos em que, face ao teor do artigo 68º, nº 1, al. a), do CPP, não admito a constituição como assistentes das sociedades ditas ofendidas, requerentes da instrução.

Notifique e DN.

*

Vieram as sociedades ditas ofendidas requerer a abertura de instrução, insurgindo-se contra o despacho de arquivamento proferido nestes autos, pelo M.P., invocando que os autos contêm indícios suficientes dos factos e ilícitos que imputam ao participado, requerendo a produção de outra prova, imputando ao denunciado a prática de um crime de dano e descaminho.

Conforme dispõe o Artigo 287º, nº 2 do C.P.P. “o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar (…)”.

Conforme o Artigo 286º, nº 1 do C.P.P. “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.

Num processo penal de estrutura acusatória e em que vigora o principio da vinculação temática, se o M.P. arquivar, é ao assistente que incumbe fixar o objeto do processo, no requerimento de abertura de instrução, elencando os factos que, a serem imputados ao arguido, fundados nos elementos probatórios recolhidos ou no inquérito ou na instrução, suficientemente indiciados, permitindo, assim, a imputação ao arguido de um qualquer ilícito criminal.

O RAI tem como função, então, de algum modo, substituir-se a uma acusação do M.P. (que não existiu, in casu), por forma a permitir o prosseguimento dos autos. Claramente neste sentido, vai o artigo 287º, nº 2 do C.P.P. quando remete para as alíneas do Artigo 283º, nº 3 do mesmo diploma legal, mormente a al. b) – narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada -.

A função do RAI tem que ser, assim, perspetivada atendendo-se ao que é a finalidade da instrução.

Ora, a jurisprudência tem considerado que no âmbito do conceito de inadmissibilidade legal do RAI a que alude o Artigo 287º, nº 3 do C.P.P. se enquadra a situação presente, em que, arquivados os autos pelo M.P., o RAI não contêm a elencação dos factos a imputar ao arguido que preencham todos os elementos, objetivo e subjetivo do tipo de ilícito imputado, porquanto tal situação redonda numa impossibilidade de pronúncia do arguido - neste sentido, entre muitos outros, o Ac. do TRG de 11/07/2017, no processo nº 649/16.0TBRG.G1, relatado por Jorge Bispo, ou Ac. do TRL de 12/03/2019, relatado por Artur Varges no processo 5257/16.2T9SNTL1-5, em ambos se referindo que a jurisprudência maioritária dos nosso tribunais vai em tal sentido.

Tais omissões ou patologias do RAI não são suscetíveis de despacho de aperfeiçoamento, conforme Ac. do STJ nº 7/2005, publicado no DR nº 212/2005, I-S de 04/11/2005 (Armindo dos Santos Monteiro), frisando-se que, de modo algum, a omissão de factos que integrem o elemento subjetivo (dolo, quer na sua vertente volitiva, quer na sua vertente intelectual), vontade consciente ou a consciência da ilicitude são passiveis de serem sanadas com a figura da alteração de factos, também conforme o Ac. do STJ nº 1/2015, publicado no DR nº 18/2015, I-S de 27/01/2015 (Rodrigues da Costa).

Ora, o que ocorre no caso presente?

O requerimento de abertura de instrução é perfeitamente omisso quanto:

- Á identificação do participado;

- Á data da entrega dos bens aqui em apreço ao fiel depositário, aludindo-se a um qualquer termo de entrega subscrito pelo mesmo, sendo conclusiva a afirmação de que se encontravam à sua guarda e na sua posse (por ter sido nomeado fiel depositário dos mesmos);

Tanto mais que sistematicamente se alude ao facto de os veículos terem sido removidos com vista a ficarem na posse do participado e para a …, …, …, com vista a ficarem na posse do participado (artigo 3º do RAI) e terem desaparecido ou terem desaparecido os seus motores ou partes.

Ora, tal não se equipara a afirmar que, em data, concreta, tais bens lhe foram entregues ao participado, os quais, recebeu, na qualidade de fiel depositário.

- Á data concreta em que as peças e motores dos veículos desapareceram e as máquinas desapareceram e de que local;

- Não se logra perceber que “peças importantes” são, dado que não são descritas ou elencadas;

- Não se logra perceber que danos foram produzidos nos veículos, dado que a retirada de motor ou peças não implica necessariamente dano nas viaturas, sendo a não utilização dos veículos, provisória, fruto da ausência de tais motores ou peças;

- O facto de as máquinas não estarem em determinado local em que eram supostos estarem não implica subtração das mesmas pelo fiel depositário, sendo que esse facto – subtração/descaminho - é conclusivo e não deriva necessariamente do primeiro;

- Não se diz nunca para onde foram os veículos removidos (1º remoção);

- Não se descreve o local para onde foram removidas as máquinas - … -, não se logrando perceber se era uma casa, armazém, local fechado, via pública ou outro?

- Não há menção aos factos de onde se retire o dolo relativo ao crime de dano, na sua vertente volitiva e intelectual;

- Não há menção aos factos de onde se retire o dolo relativo ao crime de descaminho, não sendo suficiente o dizer que houve intenção de subtrair, /fazer desaparecer/descaminhar.

- Não há menção ao destino dos bens, o participado vendeu-os, doou-os, entregou-os a terceiro, sendo insuficiente a menção de os ter feito desaparecer?

No crime de descaminho, o dolo reporta-se à intenção de subtrair determinado bem do poder publico a que está sujeito, derivado do ato de penhora incidente sobre o mesmo.

A menção a descaminho ou subtrair consubstancia afirmação conclusiva.

- Não se invoca enquanto facto uma vontade livre, consciente, nem um conhecimento de que os atos concretos praticados eram proibidos.

Assim, as sociedades ditas ofendidas aludem às razões da sua discordância com a acusação, mas não deduzem nenhuma acusação autónoma, com as formalidades elencados no Artigo 283º do C.P.P., a qual possibilite a prossecução dos autos, fixando o objeto dos mesmos, permitindo a cabal defesa e contraditório por parte do denunciado e um eventual despacho de pronúncia.

Tal acusação não pode resultar da remissão para outras peças processuais.

O que resulta do RAI, nesta parte, não permite, assim, imputar ao denunciado, um qualquer ilícito, mormente os invocados.

Assim sendo, há que não admitir o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, ao abrigo do Artigo 287º, nº 3, do C.P.P.

DECISÃO:

Termos em que, não admito o requerimento de abertura de instrução apresentado pelas sociedades requerentes da instrução, ao abrigo do artigo 287º, nº 3, do C.P.P., por inadmissibilidade legal da instrução.

Notifique e DN.

Dê baixa estatística dos autos.

Oportunamente, arquivem-se os autos”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da constituição das recorrentes como assistentes.

Alegam as recorrentes que tem de admitir-se a sua constituição como assistentes, por existir nos autos prova suficiente sobre a titularidade do interesse tutelado (quer em relação ao crime de dano, quer no que respeita ao crime de descaminho).

Cumpre decidir.

Estabelece o artigo 68º, nº 1, al. a), do C. P. Penal: “podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (…)”.

Nos presentes autos estão em apreciação crimes de dano (artigos 212º e 213º do Código Penal) e crimes de descaminho (artigo 355º do mesmo diploma legal).

Com o devido respeito pelo esforço argumentativo vertido na motivação do recurso, em ambos os enunciados tipos legais de crime as recorrentes carecem de legitimidade para se constituírem assistentes no processo.

Senão vejamos.

I - Quanto ao dano:

As sociedades ofendidas terão legitimidade para se constituírem assistente no processo (em que se investiga a prática de crimes de dano) se houver indícios de serem proprietárias (a qualquer título) dos bens danificados.

Ou seja, ofendido, para efeitos de constituição de assistente nos crimes de dano, é o titular do património que foi diretamente prejudicado pela invocada ação delituosa do arguido, pois é esse património que terá sido danificado ou destruído.

Afigura-se-nos que, na fase do inquérito, exige-se, tão-só, um juízo indiciário (de verosimilhança) de que, perante os factos investigados, o denunciante é o proprietário dos bens danificados (nesta ordem de ideias, podemos afirmar que o conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para constituição como assistente, coincide com o conceito de ofendido consagrado no Código Penal para aferir da legitimidade para apresentar queixa - cfr. o disposto no artigo 113º, nº 1, do Código Penal).

Afigura-se-nos também que a legitimidade para intervir como assistente, em inquérito, não se afere só pela denúncia, devendo atender-se ainda à natureza dos crimes a que, no caso destes autos, alude o requerimento para abertura de instrução e, bem assim, o despacho revidendo.

Em suma: as sociedades recorrentes terão legitimidade para se constituírem assistentes no presente processo penal se existirem, nos autos, indícios de serem proprietárias dos bens danificados.

Como bem se assinala no Ac. deste T.R.E. de 30-06-2015 (relator Gilberto da Cunha, disponível in www.dgsi.pt), “a nossa lei acolhe um conceito estrito, imediato de ofendido, abrangendo apenas os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formulou a norma incriminadora (cfr. F. Dias, Direito Processual Penal, 1974, pag.506 e Beleza dos Santos, RLJ 57º, pag.3). O mesmo conceito estrito de ofendido encontra-se plasmado no artigo 113º, nº 1, do C. Penal. Assim, para efeito de constituição como assistente, não pode ser considerado “ofendido” qualquer pessoa prejudicada com a comissão do crime, mas somente o titular do interesse que constitui o objeto imediato do crime. Não basta, portanto, uma ofensa indireta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois não se integram no âmbito do conceito de ofendido os titulares de interesses cuja proteção é puramente mediata ou indireta” (… ) Como é sublinhado pelo Prof. Cavaleiro Ferreira, in Curso de Processo Penal, 1995, Vol. I, págs. 194 e segs., para ser considerado ofendido para efeitos de admissão e constituição como assistente, não basta ter sofrido um prejuízo com o crime, sendo ainda necessário que esse crime atinja diretamente, especialmente, particularmente, aquele que pretende constituir-se assistente”.

Revertendo ao caso em apreço, e com o devido respeito pela opinião expressa na motivação do recurso, verifica-se que os autos não contêm elementos suficientes que permitam aferir a titularidade dos bens identificados na denúncia e no requerimento para abertura da instrução, isto é, dos veículos automóveis e das máquinas referenciados em tais peças processuais.

Com efeito, os referidos bens foram penhorados à recorrente “AA, Ldª”, sendo que a recorrente “BB, Ldª”, alega ser a proprietária dos bens em causa (as citadas máquinas e os aludidos veículos automóveis) com base numa simples “fatura” - que não é sequer um “recibo” ou um “comprovativo de pagamento” -.

Acresce que, como bem refere a Exmª Magistrada do Ministério Público (na resposta ao recurso), “a sociedade AA, Ldª, foi declarada insolvente, pelo que os seus bens passaram a integrar a massa insolvente respetiva, (…) saindo fora da sua disponibilidade”.

Em conclusão: não se encontra definida e clarificada (ainda que indiciariamente) a titularidade dos referidos bens por parte das sociedades recorrentes (ou de alguma delas).

Face ao que vem de dizer-se, e relativamente aos imputados crimes de dano, as recorrentes não possuem legitimidade para se constituírem como assistentes no processo.

II - Quanto ao descaminho:

No que concerne ao crime de descaminho, e como bem salienta a Exmª Magistrada do Ministério Público (na sua resposta ao recurso), “o bem jurídico protegido pelo crime de descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal, (…) é o da autonomia intencional do Estado, aqui concretizada através de uma ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública” (Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense, III, 419)”.

Ora, assim sendo, o mencionado crime assume natureza pública (é um crime público), estando nele em causa a proteção de um bem jurídico supra individual (ou de interesse comunitário), isto é, nele se tutela, direta e imediatamente, apenas o interesse do Estado (só indiretamente a norma incriminadora protege interesses particulares).

Por via disso, no crime de descaminho nenhum particular se poderá constituir assistente.

É evidente, quanto a nós, que os particulares podem ser (como são amiudadas vezes) atingidos e prejudicados pelos comportamentos que preencham a aludida norma incriminadora (artigo 355º do Código Penal).

Contudo, essa constatação não é suficiente, em nosso entender, para que tais particulares possam integrar o conceito de “ofendido” adotado pela nossa lei processual penal para efeitos de atribuição de legitimidade para a constituição como assistente (conforme acima já explicitámos).

Indo ao caso destes autos, verifica-se, pois, que nem uma nem outra das sociedades recorrentes é titular dos interesses especialmente protegidos com a referida incriminação (artigo 355º do Código Penal - o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato de tal crime é o próprio Estado -).

Em conclusão: face ao disposto no artigo 68º, nº 1, al. a), do C. P. Penal, as sociedades recorrentes (ou qualquer delas, individualmente considerada) não possuem legitimidade para se constituírem assistentes nestes autos, porquanto não são titulares dos “interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.

Por conseguinte, bem andou a Exmª Juíza de Instrução ao indeferir a constituição de assistente requerida pelas recorrentes.

Nos termos expostos, e nesta primeira vertente, o recurso é de improceder.

b) Do requerimento para abertura da instrução.

Alegam as recorrentes que o requerimento para abertura de instrução apresentado nos autos obedece a todos os requisitos legais, não havendo qualquer motivo para a sua rejeição.

Há que decidir.

Mantendo-se a decisão recorrida, nos termos acima decididos (as recorrentes não possuem legitimidade para, no caso, se constituírem e intervirem na qualidade de assistentes), fica prejudicado, por preclusão, o conhecimento da segunda vertente do recurso.

Com efeito, não sendo assistentes (nem o podendo ser) não podem impulsionar o exercício da ação penal, nomeadamente pedindo a abertura da instrução.

É que, e como decorre, linearmente, do preceituado no artigo 287º, nº 1, al. b), do C. P. Penal, os denunciantes (não assistentes) carecem de legitimidade para requerer a instrução.

Às recorrentes falta, pois, o pressuposto processual enunciado no referido artigo 287º, nº 1, al. b), do C. P. Penal (serem assistentes), pelo que a instrução não é legalmente admissível (nos termos do disposto no nº 3 do mesmo artigo 287º).

Dito de outro modo: não podendo as recorrentes intervir nos autos como assistentes, falece também legitimidade às recorrentes para reagirem contra o despacho de arquivamento (proferido pelo Ministério Público) através de abertura de instrução.

Existindo motivo de rejeição limiar do requerimento para abertura da instrução (as recorrentes não são assistentes, nem o podem ser), fica, obviamente, prejudicado o conhecimento das questões nele suscitadas, e, bem assim, o conhecimento das questões suscitadas na motivação do recurso a propósito do indeferimento do requerimento para abertura da instrução apresentado nestes autos.

Posto o que precede, é totalmente de improceder o recurso interposto pelas sociedades AA, Ldª, e BB, Ldª.

III - DECISÃO

Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto pelas sociedades AA, Ldª, e BB, Ldª.

Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

*

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 11 de outubro de 2022

João Manuel Monteiro Amaro

Nuno Maria Rosa da Silva Garcia

Edgar Gouveia Valente