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EMBARCAÇÃO
APREENSÃO
FIEL DEPOSITÁRIO
REMUNERAÇÃO DO DEPOSITÁRIO
Sumário
1 – O depositário judicial é “um auxiliar da justiça, ao qual incumbe, para determinados fins processuais, a guarda e administração de certos bens, à ordem e sob a superintendência do tribunal”. 2 – Por consequência, o depositário judicial é sujeito de uma relação jurídica de direito público, e não exerce funções por força de qualquer contrato de depósito celebrado nos termos civilistas. 3 – Deste modo, a remuneração do depositário nomeado em processo penal terá que ser encontrada ao abrigo do art. 16º, n.º 1, al. h), do Regulamento das Custas Processuais, tendo como critério os custos do depósito. (Sumário elaborado pelo Relator)
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I – RELATÓRIO
A autora, MARINAS DO BARLAVENTO – EMPREENDIMENTOS TURISTICOS, S.A., com sede na Marina de Portimão, Edifício Administrativo, Ponta da Areia, 8500-345 Portimão, instaurou a presente acção comum contra o réu Estado Português, representado pelo Ministério Público.
Diz a autora, em resumo, que na sequência de apreensão em processo criminal foi entregue à sua guarda uma embarcação, que ainda hoje se encontra nas suas instalações, sem que nada lhe tenha sido pago e sem que possa usar o espaço em causa para ali colocar outros navios e obter o inerente pagamento.
Entende a autora que tal factualidade configura um contrato de depósito da embarcação, e conclui pedindo o seguinte:
I – Que seja declarado o termo do contrato de depósito em causa;
II – Que seja condenado o réu a retirar de imediato a embarcação das instalações da autora;
III– Que seja condenado o réu ao pagamento do valor do depósito em dívida no total de € 517.787,62 (quinhentos e dezassete mil setecentos e oitenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos);
IV- Acrescido de valor diário vincendo, à taxa de € 156,91 (diários) até efectiva remoção da embarcação.
V - Acrescidos de juros comerciais vincendos após declaro o termo do depósito;
VI – Que o réu seja ainda condenado no pagamento dos trabalhos de retirada da água (“travel lift”) no valor de € 2.870,00 (dois mil oitocentos e setenta euros), acrescido de juros vencidos desde o dia 23 de Fevereiro de 2012, no valor de €1.338,73 (mil trezentos e trinta e oito euros e setenta e três cêntimos) e vincendos desde a citação até integral pagamento.
Devidamente citado, o réu Estado contestou dizendo em suma que o custo em causa deve ser calculado, não nos termos da remuneração do contrato de depósito civilisticamente considerado, mas nos termos em que são remunerados os intervenientes em processo penal, pelo que não pode ser reclamado ao Estado o montante pedido na presente causa.
Alegou ainda que a embarcação, devido a guarda negligente da autora, tem sofrido danos que, entretanto, impediram a respectiva venda por um valor que normalmente poderia ser realizado sem esses mesmos danos.
Concluiu o réu pela improcedência da acção.
Prosseguindo o processo os seus trâmites, veio a realizar-se julgamento e foi proferida sentença que julgou procedente a acção e condenou o réu Estado da forma seguinte:
a) declara o termo do depósito da embarcação “Joanna”, em causa nos autos, condenando o R. retirar a embarcação “Joanna”, das instalações da A., no prazo de 30 dias;
b) condena o R. ao pagamento do valor do depósito em dívida no total de € 517.787,62 (quinhentos e dezassete mil setecentos e oitenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos), acrescido de valor diário vincendo, à taxa de € 156,91 (diários) até efetiva remoção da embarcação, a título de remuneração do depósito, ambas as quantias acrescidas de juros comerciais vincendos, desde a citação até ao termo do prazo referido em a).
c) condena o R. no pagamento dos trabalhos de retirada da água identificados como “travel lift” no valor de € 2.870,00 (dois mil oitocentos e setenta euros), montante acrescido de juros vencidos desde o dia 23 de fevereiro de 2012, no valor de € 1.338,73 (mil trezentos e trinta e oito euros e setenta e três cêntimos) e vincendos, desde a citação até integral pagamento.
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II – A) O RECURSO DO RÉU
Inconformado com o decidido, o réu Estado, representado pelo Ministério Público, apresentou então o presente recurso de apelação, indicando no final as seguintes conclusões:
1) Está em causa um processo crime de crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º do DL n. º 15/93, de 22 de janeiro.
2) Nesse processo crime, a Polícia Judiciária apreendeu a embarcação, apreensão validada pelo MP e, por se tratar de um instrumento do crime, atenta a experiência da AA. na guarda e conservação de embarcações, foi a mesma nomeada fiel depositária da referida embarcação, o que aceitou.
3) Assim, foi entregue um bem apreendido em processo-crime a uma entidade que ficou nomeada como fiel depositária, só relevando o objecto do instituto do depósito previsto no CC e não a sua característica civilista que aqui fica afastada e a entrega do objecto assume naturalmente uma natureza pública.
4) Essa relação jurídica de direito público nasce da necessidade de guarda dos bens apreendidos nos termos do C.P.P., designadamente das regras gerais quanto a apreensões constantes do artigo 178º do referido diploma.
5) Como se constata nos autos, foi dado cumprimento ao disposto nos nsº 3 a 7 do mesmo preceito.
6) E a questão passa a ser, unicamente, saber qual a norma que permite o pagamento, norma essa que é, claramente, o artigo 16º, nº 1, al. h) do Regulamento das Custas Processuais que define como “encargos” as «retribuições devidas a quem interveio acidentalmente no processo».
7) O pagamento resulta ainda do disposto no artigo 17º, nº 1 do referido RCP, quando afirma que “as entidades que intervenham nos processos ou que coadjuvem em quaisquer diligências, (…), têm direito às remunerações previstas no presente Regulamento”.
8) Não será aplicável a Tabela IV do Regulamento pois esta apenas é aplicável nos casos “a que se referem os nºs 2, 4, 5 e 6 do artigo 17.º do Regulamento” e o “depósito” não se inclui na sua previsão.
9) O CPP indica(va) um único critério de pagamento, não existindo no CPC qualquer outro critério alternativo.
10)De facto, aquando da entrega da embarcação à AA, dispunha o artigo 186.º, nº 3 do C.P.P. que, no caso de se impor a restituição de bens apreendidos, “as pessoas a quem devam ser restituídos os objectos são notificadas para procederem ao seu levantamento no prazo máximo de 90 dias, findo o qual passam a suportar os custos resultantes do seu depósito”.
11)Ora, se o Estado impõe uma regra que o favorece, a mesma regra deve ser aplicável quando a acção do Estado desfavorece terceiros. Serão os custos resultantes do cargo do fiel depositário o critério central para determinar quanto lhe deve ser pago.
12)Os valores nos quais foi condenado o Estado, que se contestam, não são os custos com a guarda da embarcação, custos esses que a AA não indicou nem comprovou e que por isso, não poderiam ser pagos, nem o Estado condenado a tal pagamento.
13)Aqui revela-se adequado ter presente – com as necessárias adaptações - o disposto no artigo 952º do C.P.C. quando afirma que as “contas do depositário judicial são prestadas ou exigidas nos termos aplicáveis dos artigos 948.º e 949.º; são notificadas para as contestar e podem exigi-las tanto a pessoa que requereu o processo em que se fez a nomeação do depositário, como aquela contra quem a diligência foi promovida e qualquer outra que tenha interesse direto na administração dos bens”.
14)E, como estatui a al. b) do artigo 948º, não havendo contestação, o juiz pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, as diligências necessárias e encarregar pessoa idónea de dar parecer sobre as contas.
15)Estas normas são aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4º do C.P.P. e na falta de melhor critério legal parece adequado considerá-las para o caso concreto de avaliação dos custos da guarda da embarcação.
16)A douta decisão em recurso seguiu esta mesma (boa) jurisprudência (do acórdão da Relação de Évora de 05 de fevereiro de 2019) por algum tempo, mas decidiu que “(…) algumas precisões importarão ainda fazer (..)”, o que implicou o desvio das conclusões a tirar da posição defendida pelo referido aresto, condenando o Estado nos valores pedidos pela AA.
17)O facto da Lei n.º 71/2018 de 31 de Dezembro ter alterado a redacção do artigo 186º do CPP, não significa que tal redacção seja imediatamente aplicável aos factos constantes de um processo anterior, mas tem de se considerar a versão em vigor à data da prática dos factos.
18)Na douta sentença foi feita uma referência ao disposto no artigo 355º do CP, apenas para realçar que se se considerasse que estávamos perante a celebração de um contrato de depósito, teríamos de concluir que quem desse descaminho ao objecto depositado, estaria apenas a incorrer num incumprimento contratual, regulável pela lei civil e não a incorrer nesse crime, o que está bem de ver que não faz sentido.
19)E essa falta de sentido não pode ser vista da forma como a douta sentença a parece ver, de que não será a boa interpretação mas não é suficiente para afastar o regime do “depósito civil”, entendendo, apesar disso, ser esse o regime adequado ao tratamento da questão concreta, para a determinação dos critérios de remuneração do particular.
20)Não concordamos com tal opção pelos critérios de direito privado.
21)Se, tal como entende a douta sentença em recurso, “ (…) aquilo que se estabeleceu foi uma relação de direito público entre a demandante e o réu, pela qual este investiu aquela na qualidade de depositária do bem. (sublinhado nosso) (...) ” e (…) se o critério atrás apontado (…), atinente ao custo do depósito, se afigura um critério justo e relevante, provavelmente, (…), o mais justo e relevante de que pode lançar-se mão (…)”, então não se entende as razões pelas quais não se lançou mão desse mesmo critério e se foi, ao contrário, para a determinação dos valores alegadamente devidos, com recurso aos critérios privatísticos.
22) E nessa opção interpretativa, salvo o devido respeito, não deveria ter ainda sido chamado à colação o Gabinete de Recuperação de Activos (GRA) e a Lei 45/2011, de 24 de julho que o criou.
23) De facto, a douta sentença a partir desse diploma, retira a conclusão que o bem a depositar não era um bem qualquer, tinha dimensões que podem ser tidas por consideráveis e carecia de alguns cuidados quanto ao seu depósito e, nomeadamente, não era depositável em qualquer local, razão pela qual terá sido conferida à demandante a tarefa de o guardar.
24)Assim, independentemente da qualificação que seja dada à relação estabelecida entre as partes, de direito público ou privado, o que relevou na douta sentença foi a consideração que a tarefa de depósito e guarda do bem, ao revelar-se de especial complexidade, exigia também especiais características por parte do depositário.
25)Não concordamos com tais considerações, porque parece-nos óbvio que, sendo verdade que a AA estava habilitada ao bom exercício da actividade, apesar de complexa, os critérios para determinação do pagamento suprarreferidos se continuam a mostrar adequados ao caso concreto, sem que se mostrasse necessária a intervenção dos meios cíveis.
26)Discordamos também que não se tenha tido cuidado de perspectivar qual a duração possível do “depósito”, nem de estabelecer quaisquer requisitos no respeitante à retribuição do mesmo,
27) Uma vez que estávamos perante um processo crime de tráfico de estupefacientes, que como se sabe, tem uma duração imprevisível e não se mostrou possível fazer um juízo de previsão acerca de todos essas questões, sendo certo que estamos a falar em factos ocorridos há quase 10 anos.
28)Sendo verdade que a embarcação apreendida ocupou um espaço na marina que poderia ter sido ocupado por outra embarcação que proporcionaria um rendimento à AA, o certo é que não está em causa o pagamento dos custos justos do serviço prestado.
29)A nossa discordância tem apenas e só a ver com o critério errado, no nosso entendimento, para a fixação do mesmo, que não permitiu obter esse “valor justo”.
30)Assim salvo melhor opinião, entendemos que o valor da remuneração a fixar deverá seguir os critérios supra expostos, considerando a natureza pública da relação com o fiel depositário, o que significará que os valores devidos não são os valores a que o Estado foi condenado na douta decisão recorrida, mas inferiores a esses.
31) Na condenação do Estado no pagamento dos trabalhos de retirada da água identificados como “travel lift”, temos a dizer que a douta sentença não tomou em consideração o facto da AA não ter provado que tal serviço tenha sido solicitado pelo Estado.
32)De facto, para o que aqui interessa ficou dado como provado que a AA. procedeu à construção de uma cerca em rede com o objetivo de melhorar as condições de guarda do barco no espaço em terra para onde foi transferido.
33)De qualquer das formas, não se contesta que a AA concretizou tal serviço, o que se contesta é que tenha sido solicitado pelo Estado ou que fosse necessário.
34)E não basta, no caso concreto à AA alegar que o fez, mas tinha de provar que lhe foi solicitado o serviço, para poder exigir o seu pagamento.
35)Neste caso, apenas, se exigia a zelosa e genérica actuação na guarda da embarcação e não uma qualquer específica e especial actuação.
36)Contesta-se ainda a douta decisão na parte que considerou dever ser reconhecido o direito a fazer cessar o depósito, sendo certo que não foi estipulado um termo final para o depósito, não existiu qualquer depósito e nem tinha de ser fixado qualquer termo final.
37)Voltamos aos argumentos supra expostos, que reiteramos, afirmando que pela Polícia Judiciária foi apreendida a embarcação ora em causa, por se tratar de um instrumento do crime e foi a AA nomeada fiel depositária da referida embarcação.
38)Essa relação jurídica é de direito público e nasce da necessidade de guarda dos bens apreendidos nos termos do C.P.P., designadamente das regras constantes do artigo 178º desse diploma.
39) A apreensão foi efectivada pela PJ e posteriormente validada pelo Ministério Público, tendo-se dado, pois, cumprimento ao disposto nos nsº 3 a 7 do mesmo preceito.
40)Ou seja, a fiel depositária cessará as suas funções quando se mostrar conveniente e não quando entenda que não pretende mais exercer tal cargo.
41)Assim, deverá ser mantida a qualidade de fiel depositária do barco até que lhe seja dado o adequado e necessário destino, pelo que mal andou a douta sentença em, sem que exista qualquer fundamento legal para o efeito, fazer cessar as funções do fiel depositário, contrato civil que não existe.
42) Assim, ao julgar procedente a presente acção e condenar o R. Estado, nos termos em que o fez, a sentença interpretou incorretamente e violou o disposto nos artigos artigo 178º, 185º, 524º do Código de Processo Penal, 16º do RCP e artigos 1158º, 1185º, 1186º, 1199º, 1201º, todos do CC, artigos 3º, 4º, 10º, 11-A da Lei nº45/2011, de 24 de junho.
Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis, deverá ser julgado parcialmente improcedente o pedido da Autora, e a douta sentença alterada, absolvendo-se o Reu parcialmente no pedido, nomeadamente absolvendo-se o Estado:
- Do pedido de declaração do “termo” do “contrato de depósito”;
- Do pedido de condenação de retirar a embarcação JOANNA das instalações da AA. de forma imediata, devendo ser mantida a qualidade da A, de fiel depositária e auxiliar da justiça.
- Do pedido de condenação ao, posteriormente ao termo do depósito, pagamento do valor peticionado e alegadamente em dívida, da forma como foi efectivamente calculado pela douta sentença em recurso, calculando-se, pelo contrário, o valor em causa da forma suprarreferida.
- Bem como do pedido de condenação em valor diário vincendo, à taxa de 156,91 Euros até efectiva remoção da embarcação;
- Do pedido dos juros sobre tal valor;
- E ainda do pedido de condenação no pagamento da quantia de 2870,00 Euros, alegadamente pelos trabalhos designados de “Travel Lift”, acrescido de juros vencidos desde o dia 23-02-2012.
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II –B) RESPOSTA DA RECORRIDA
Contra-alegou a autora, para defender que a sentença recorrida não merece reparo e que o recurso é improcedente, pelo que deve ser confirmado o decidido.
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III – A MATÉRIA DE FACTO
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1 - A autora tem por objeto social, entre outros, a exploração, atracação, acostagem, estacionamento de embarcações tanto em água como em doca seca, cobrando o respetivo depósito conforme tabelas de conhecimento público (resposta aos artºs 6º e 10º da p.i. e 11º da contestação).
2 - No dia 23/02/2012 a Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes da Policia Judiciária depositou nas instalações da A. uma embarcação com 38 (trinta e oito) metros de comprimento, 5 (cinco) metros de boca e 7 (sete) metros de arcada ou pontal, 1330 (mil trezentos e trinta) metros cúbicos, de nome JOANNA, embarcação apreendida a AA (resposta aos artºs 1º e 7º da p.i.).
3 - Tal depósito foi determinado pela diretoria de Lisboa da Polícia Judiciária (Unidade nacional de combate ao tráfico estupefaciente) por intermédio do Inspetor Chefe BB (e resultou da apreensão da referida embarcação no âmbito do Processo 239/11...., o qual veio a ser decidido por acórdão cuja certidão se encontra junta, nomeadamente, como documento nº 6 da p.i.) (resposta ao artº 8º da p.i.).
4 - A apreensão, tendo sido efetivada pela PJ, foi posteriormente validada pelo Ministério Público (resposta ao artº 11º da contestação).
5 - No referido acórdão foi, além do mais, proferida declaração de perda a favor do Estado da referida embarcação JOANNA (resposta ao artº 9º da p.i.).
6 - No âmbito do Processo Administrativo nº 2/16.5Y3LSB (instaurado subsequentemente à declaração de perda da embarcação para o Estado), o Ministério Público, por notificação efetuada em 18 de fevereiro de 2016, e de que se encontra junta cópia nos autos, constituindo o documento nº 7 da p.i. veio a contactar a A. no sentido de ser informado de qual o valor em dívida, tendo a A. respondido através do documento cuja cópia se encontra junta aos autos como documento nº 8 da p.i., no sentido de que em 29/02/2016 o valor em dívida pelo depósito da embarcação JOANNA era de € 253.417,44 (duzentos e cinquenta e três mil quatrocentos e dezassete euros e quarenta e quatro cêntimos), comunicação que não mereceu oposição do Estado (resposta aos artºs 11º e 12º da p.i.).
7 - Já em 18 de fevereiro de 2013, a A. enviara para a Capitania do Porto de Portimão, que o remeteu para o tribunal a comunicação cuja cópia se encontra junta aos autos como documento nº 9 da p.i., informando de que o valor anual, à data, do depósito da referida embarcação orçava em € 49.940,00 (quarenta e nove mil novecentos e quarenta euros), acrescida da operação portuária no valor de € 2.870,00 (dois mil oitocentos e setenta euros) (resposta ao artº 13º da p.i.).
8 - Em 06 de junho de 2018 a A. enviou para o processo administrativo nº 2/16.5Y3LSB a comunicação cuja cópia se encontra junta como documento nº 10 da p.i., na qual solicitou o pagamento vencido de € 338.835,00 (trezentos e trinta e oito mil oitocentos e trinta e cinco euros), e respetivas prestações vincendas, alertando para que tal comunicação devia considerar-se “para o previsto no artigo 804º do Código Civil”, quanto aos “juros e prestações vencidas” (resposta ao artº 14º da p.i.).
9 - Os valores cobrados pela A. constam das suas tabelas de preços, de conhecimento público, nomeadamente aquelas cujas cópias foram juntas como documentos 1 a 4 da p.i, e não foram objeto de oposição desde o ano de 2012 (resposta ao artº 28º da p.i.)
10 - Até à presente data a A. não recebeu qualquer valor por conta do depósito da referida embarcação, sendo que, pelos valores constantes das tabelas de conhecimento público da A., a mesma contabilizou a dívida em:
a) no ano de 2012, no período compreendido entre 23 de fevereiro de 2012 e 31 de dezembro de 2012, trezentos e doze dias à ordem diária de € 136, 32, no valor de € 42.594,24, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
b) no ano de 2013, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2013 e 31 de dezembro de 2013, trezentos e sessenta e cinco dias à ordem diária de € 136, 32, no valor de € 49.829,80, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
c) no ano de 2014, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2014 e 31 de dezembro de 2014, trezentos e sessenta e cinco dias à ordem diária de € 136, 32, no valor de € 49.829,80, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
d) no ano de 2015, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2015 e 31 de dezembro de 2015, trezentos e sessenta e cinco dias à ordem diária de € 138, 09 no valor de € 50.402,85, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
e) no ano de 2016, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2016 e 31 de dezembro de 2016, trezentos e sessenta e seis dias à ordem diária de € 140,50 no valor de € 51.423,00, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
f) no ano de 2017, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2017 e 31 de dezembro de 2017, trezentos e sessenta e cinco dias à ordem diária de € 140,50 no valor de € 51.282,50, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
g) no ano de 2018, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2018 e 31 de dezembro de 2018, trezentos e sessenta e cinco dias à ordem diária de € 142,61 no valor de € 52.052,65, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
h) no ano de 2019, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2019 e 31 de dezembro de 2019, trezentos e sessenta e cinco dias à ordem diária de € 148,46 no valor de € 54.187,90, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
i) no ano de 2020, no período compreendido entre 01 de janeiro de 2020 e 13 de maio de 2020, cento e trinta e quatro dias à ordem diária de € 156,91 no valor de € 21.025,94, acrescido de IVA à taxa legal aplicável,
no total de € 420.965,55 (quatrocentos e vinte mil novecentos e sessenta e cinco euros e cinquenta e cinco cêntimos) acrescidos de IVA à taxa legal, perfazendo a quantia total de € 517.787,62 (quinhentos e dezassete mil setecentos e oitenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos) (resposta a aosartºs1º,10ºe15ºdap.i.).
11- A embarcação ocupa um espaço de trinta e oito metros por cinco, de cento e noventa metros quadrados, e um volume de mil trezentos e trinta metros cúbicos (resposta ao artº 16º da p.i.).
12 - A A. procedeu à construção de uma cerca em rede com o objetivo de melhorar as condições de guarda do barco no espaço em terra para onde foi transferido (resposta ao artº 17º da p.i.).
13 - A embarcação, à presente data, ainda se encontra à guarda da A., impossibilitando a exploração comercial do espaço pela mesma ocupado com as outras embarcações que se encontram em lista de espera para ocupar tal espaço (resposta aos artºs 18º e 20º da p.i.).
14 - Aquando do depósito da embarcação não foi acordada qualquer data para a sua cessação (resposta aos artºs 25º da p.i. e 41º da contestação).
15 - O Estado, durante o período de tempo em que a embarcação tem estado à guarda da A., diligenciou por dar destino ao objeto e retirá-lo do local, visando proceder à sua venda, mas tal ainda não foi possível (resposta ao artº 28º da contestação).
16 - Por ofício datado de 22 de junho de 2016, a sociedade “Domus Legis”, nomeada encarregada da venda da embarcação, informou o processo administrativo do Ministério Público que acompanhava o processo de venda de que existia um potencial interessado, não identificado, e de que este considerava o valor pedido para a venda elevado, pelo facto de existir um rombo no casco, tendo ficado de efetuar uma peritagem à embarcação com técnico especializado, a fim de apresentar uma proposta de compra (resposta ao artº 30º da contestação).
17- No dia 11 de outubro de 2018, por ofício enviado ao processo administrativo, a encarregada da venda supra referida, na pessoa de CC, comunicou ao Ministério Público ter-se dirigido novamente, em 1 de outubro de 2018, ao local onde a A. mantinha a embarcação na companhia de um interessado que também não foi identificado, referindo o seguinte:
“Na qualidade de encarregada da venda da embarcação Pesqueira “Joanna” cumpre-me informar V.exa. do seguinte:
1- No passado dia 1 de outubro (2018) desloquei-me à Marina de Portimão a fim de efetuar uma visita à embarcação com um cliente eventualmente interessado em efetuar uma proposta de compra de cerca de 150.000,00 para aquisição.
1.1 Durante a visita constatou-se que não existiam válvulas de protecção dos depósitos dos dezoitos porões e que os referidos depósitos estavam cheios de água e óleo. Daí a embarcação terá de ser toda descontaminada;
1.2 Que o casco estava todo rachado;
1.3 A casa das máquinas está cheia de água;
1.4 Neste estado a embarcação não poderá entrar na água;
2- Enquanto aguardava na Marina de Portimão vi andar (caminhar) na embarcação uma pessoa do sexo masculino;
3- No actual estado da embarcação o cliente disse que a embarcação não valerá mais que €20.000,00.
Atento ao estado da embarcação com sinais prováveis de furto e vandalismo o cliente perde interesse em efectuar proposta.” (resposta aos artºs 31º e 32º da contestação).
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IV – O OBJECTO DO RECURSO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, a questão essencial colocada ao tribunal de recurso sintetiza-se em saber se aos pedidos formulados pela autora deve aplicar-se o regime legal civilístico relativo ao contrato de depósito, designadamente os arts. 1185º do Código Civil, devendo a remuneração ser estabelecida de acordo com esse normativo, ou se pelo contrário deve afastar-se esse regime, uma vez que o cargo de fiel depositária foi determinado em processo penal, e a remuneração respectiva deve ser resultado da conjugação das normas do Código de Processo Penal com o disposto no Regulamento das Custas Processuais.
No seguimento da decisão sobre essa questão, decidir então da procedência ou improcedência dos pedidos da autora.
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V- APRECIANDO E DECIDINDO
Passemos então a conhecer da aludida questão de Direito.
Como resulta do teor das alegações do recurso, e da própria sentença recorrida, e ficou exposto acima, a decisão a proferir neste âmbito recursal depende antes do mais da resposta a dar à interrogação sobre o regime legal aplicável na remuneração à autora como depositária da embarcação a que se referem os autos.
Com efeito, não tendo sido colocada qualquer questão sobre a matéria de facto a considerar, o objecto do recurso ficou cingido a essa questão de Direito.
Assim, a sentença impugnada julgou procedentes os pedidos deduzidos pela autora por entender que ao caso se aplicava integralmente o regime previsto no Código Civil para os contratos de depósito, e a retribuição do depositário nesse âmbito.
O recorrente discorda desse entendimento, defendendo que a autora enquanto fiel depositária na situação jurídica presente deve ser remunerada de acordo com as normas do Regulamento das Custas Processuais, por força do Código de Processo Penal, o que conduziria a resultado bem diferente.
Na verdade, tratando esta situação como um normal contrato de depósito a que se apliquem as pertinentes normas civilísticas a autora teria direito a cobrar o preço devido pelos seus serviços, tal como consta das suas tabelas de preços, e tal como aconteceria com outro cliente e outro contrato de depósito qualquer, livremente celebrado entre as partes no uso da sua liberdade contratual e no normal funcionamento do mercado.
Foi essa a posição adoptada na sentença posta aqui em causa, acolhendo a pretensão da autora.
Diferentemente, tratando a situação como uma relação jurídica de direito público, nascida da nomeação da autora como fiel depositária, no âmbito de um processo penal, defende o apelante que a sua remuneração deve ser estabelecida tendo em conta as disposições do Regulamento das Custas Processuais, o que significaria o pagamento dos custos do depósito, após findar o exercício do cargo, por determinação da entidade judiciária competente, prestadas que sejam as contas respectivas.
Torna-se desnecessário sublinhar que os custos não são os preços, realidade comercial destinada a assegurar o lucro de quem exerce a actividade comercial em causa. Os preços a suportar pelos clientes serão obviamente superiores aos custos suportados pela autora na prestação do serviço. A diferença entre uma coisa e outra representa o sacrifício imposto a quem por via da nomeação como fiel depositário prestou um serviço como interveniente num processo criminal, assumindo as vestes de auxiliar da justiça.
Neste ponto vem a propósito observar que, nesta perspectiva, tratando-se de remuneração a interveniente acidental num processo penal, que o regulamento das custas processuais inclui entre os encargos, a matéria respectiva deveria ter sido conhecida no processo a que respeita.
Verifica-se, porém, que esse processo findou com o acórdão cuja certidão está junta a estes autos, no qual os arguidos foram absolvidos e que no respeitante a custas declarou simplesmente não haver lugar a custas – tendo ainda declarado perdido a favor do Estado o barco aí apreendido e a que se refere a polémica que nos ocupa.
Desde então a questão, tanto das tentativas de venda da embarcação, como da remuneração ao fiel depositário, tem vindo a correr em processo administrativo, no Ministério Público – até ter vindo a desaguar nos presentes autos, instaurados na jurisdição comum pela autora.
Em face desta problemática, o julgador da primeira instância ainda alvitrou que talvez “fosse de equacionar se, à luz do disposto no artigo 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a questão a tratar não seria inclusivamente uma questão administrativa”, hipótese que no entanto afastou (o que não vem questionado, por nenhuma das partes).
De igual modo ficou afastada a hipótese de remessa para outra jurisdição quando logo se acrescentou o segmento decisório “sendo ainda que igualmente não se divisou que estivesse em causa uma questão de direito marítimo, nomeadamente para efeitos da aplicação do disposto no artigo 113º da LOSJ” (questão que da mesma forma não é colocada na presente apelação).
Pela nossa parte, diremos que reconhecemos a natureza “controversa e algo complexa” da discussão, a que ainda acrescentamos a dificuldade de estar a conhecer desta problemática no âmbito deste processo, parecendo-nos evidente que, a considerar-se que a matéria se enquadra entre as remunerações dos intervenientes acidentais em processo penal, a mesma teria o seu lugar no processo a que respeita.
Todavia, estando esse processo findo e arquivado desde 2012, não se pode ignorar que a imposição neste momento dessa via processual se traduziria em concreto e na prática numa verdadeira denegação de justiça.
Aceitamos, portanto, como proclama o próprio recorrente Ministério Público, que a autora tem direito a ser remunerada pelos seus serviços enquanto depositária, e aceitaremos também que a definição do regime legal para essa remuneração seja feita nesta sede processual (questão que também não foi suscitada e por isso surge como pacífica entre as partes).
Dito isto, importa então dar resposta à controvérsia em que se traduz a apelação em apreço.
A este respeito temos que observar que, a nosso ver, a sentença recorrida fornece os dados bastantes para fundamentar a solução adequada, mas a conclusão não se afigura compatível com as premissas.
Não estamos perante uma realidade reconduzível à disciplina contratual estabelecida no Código Civil, o que implicaria ficcionar para ela uma génese que não existiu (o acordo de vontades entre sujeitos colocados numa posição de igualdade, e a liberdade contratual, típicas dos contratos) ou então a existência de uma remissão legal (para o regime do contrato de depósito) que também não existe.
Consequentemente, não acompanhamos a conclusão da autora, e que acabou por ter vencimento na primeira instância, de que entre as partes se estabeleceu um contrato de depósito, regulado pelo normativo civilístico que disciplina tal figura, e que a remuneração devida à demandante pelo depósito da embarcação oportunamente apreendida pela autoridade policial, e colocada à guarda daquela nas respectivas instalações, se processa de acordo com as tabelas de retribuição do depósito que a demandante tem como estabelecidas na sua actividade e que são do conhecimento do público.
Pelo contrário, subscrevemos a posição do recorrente MP de que tendo a nomeação de fiel depositário ocorrido no âmbito de processo penal não há lugar à aplicação das normas que no Código Civil regulam o contrato de depósito, nomeadamente nos artigos 1185º e seguintes desse diploma, a não ser subsidiariamente, como acontece em aspectos parcelares (v. g. obrigações do depositário).
Na realidade, como realça a própria sentença recorrida, “a designação de depositário ocorreu no âmbito de processo criminal, no qual o Estado (por via da autoridade policial competente) investiu a demandante na qualidade de depositária, sem que tenha propriamente sido efectuada qualquer particular convenção, nomeadamente quanto às condições do depósito, sua duração e sua remuneração”.
Nem poderia haver, dizemos nós. A nomeação de fiel depositário não depende de nenhuma negociação entre partes, não estamos no campo da autonomia da vontade.
Julgamos clara a natureza pública da relação jurídica estabelecida, e a necessária aplicação ao caso da retribuição que resulte das normas do Regulamento das Custas Processuais.
Como recorda a sentença em análise, “a apreensão com a qual todo o processo factual se iniciou teve lugar no âmbito de procedimento criminal”.
Foi aplicado, portanto, inicialmente, o que vem disposto no artigo 178º do Código de Processo Penal, quanto à apreensão e nomeação de depositário:
“1-Sãoapreendidososinstrumentos,produtosouvantagensrelacionadoscomapráticadeumfactoilícitotípico,ebemassimtodososanimais,ascoisaseosobjetosquetiveremsidodeixadospeloagentenolocaldocrimeouquaisqueroutrossuscetíveisdeserviraprova. 2-Osinstrumentos,produtosouvantagensedemaisobjetosapreendidosnostermosdonúmeroanteriorsãojuntosaoprocesso,quandopossível,e,quandonão,confiadosàguardadofuncionáriodejustiçaadstritoaoprocessooudeumdepositário,detudosefazendomençãonoauto,devendoosanimaisapreendidosserconfiadosàguardadedepositáriosidóneosparaafunçãocomapossibilidadedeseremordenadasasdiligênciasdeprestaçãodecuidados,comoaalimentaçãoedemaisdeveresprevistosnoCódigoCivil. 3-Asapreensõessãoautorizadas,ordenadasouvalidadaspordespachodaautoridadejudiciária. 4-Osórgãosdepolíciacriminalpodemefectuarapreensõesnodecursoderevistasoudebuscas ouquandohajaurgênciaouperigonademora,nostermosprevistosnaalíneac)don.º2doartigo249.º 5-Osórgãosdepolíciacriminalpodemaindaefetuarapreensõesquandohajafundadoreceiode desaparecimento,destruição,danificação,inutilização,ocultaçãooutransferênciadeanimais,instrumentos,produtosouvantagensououtrosobjetosoucoisasprovenientesdapráticadeumfactoilícitotípicosuscetíveisdeseremdeclaradosperdidosafavordoEstado. […]
E continuando, como pode ler-se na douta sentença impugnada, caberá ainda registar que o artigo 185º do CPP, nomeadamente nos respetivos nºs 1 e 4, logo faz referência à necessidade de conservação e administração dos bens apreendidos, nos seguintes termos:
“1-Seaapreensãorespeitaracoisassemvalor,perecíveis,perigosas,deterioráveisoucujautilizaçãoimpliqueperdadevalorouqualidades,aautoridadejudiciáriapodeordenar,conformeoscasos,asuavendaouafetaçãoafinalidadepúblicaousocialmenteútil,asmedidasdeconservaçãooumanutençãonecessáriasouasuadestruiçãoimediata,ressalvadoodispostonosn.ºs4e5. […] 4-Quandoacoisaaqueserefereon.º1forumveículoautomóvel,umaembarcaçãoouumaaeronave,noprazomáximode30diasapósaapreensão,aautoridadejudiciáriaproferedespachodeterminandoasuaremessaaoGabinetedeAdministraçãodeBensparaefeitosdeadministraçãoemconformidadecomodispostonaLein.º45/2011,de24dejunho,nomeadamentenosseusartigos14.ºe20.º-A,comunicandoàquelegabineteinformaçãosobreovalorprobatóriodoveículoesobreaprobabilidadedasuaperdaafavordoEstado.”
Ou seja, tudo se passa no domínio do processo penal, e no âmbito das relações entre a autoridade judiciária e um interveniente acidental no processo (o fiel depositário), pelo que a fixação da sua retribuição não pode deixar de reflectir essa realidade.
Coerentemente, como também observa a sentença em apreço, “no que ao CPP concerne, recorde-se também que o respetivo artigo 524º dispõe que “é subsidiariamente aplicável o disposto no Regulamento das Custas Processuais.”
Ora, o Regulamento das Custas Processuais dispõe, no seu artigo 16º, nomeadamente, que: 1-Ascustascompreendemosseguintestiposdeencargos:[…] h)Asretribuiçõesdevidasaqueminterveioacidentalmentenoprocesso;[…]
E para a generalidade das remunerações referidas há que contar com o subsequente artigo 17º, que prevê, designadamente, o seguinte:
“1-Asentidadesqueintervenhamnosprocessosouquecoadjuvememquaisquerdiligências,salvoostécnicosqueassistamosadvogados,têmdireitoàsremuneraçõesprevistasnopresenteRegulamento. 2-Aremuneraçãodeperitos,tradutores,intérpretes,consultorestécnicoseliquidatários, administradoreseentidadesencarregadasdavendaextrajudicialemqualquerprocessoéefetuadanostermos dodispostonopresenteartigoenatabelaiv,quefazparteintegrantedopresenteRegulamento. 3-Quandoataxasejavariável,aremuneraçãoéfixadanumadasseguintesmodalidades,tendoemconsideraçãootipodeserviço,osusosdomercadoeaindicaçãodosinteressados: a)Remuneraçãoemfunçãodoserviçooudeslocação; b)Remuneraçãoemfunçãodonúmerodepáginasoufraçãodeumparecerourelatóriodeperitagemouemfunçãodonúmerodepalavrastraduzidas. 4-Aremuneraçãoéfixadaemfunçãodovalorindicadopeloprestadordoserviço,desdequesecontenhadentrodoslimitesimpostospelatabelaiv,àqualacrescemasdespesasdetransportequesejustifiquemequandorequeridasatéaoencerramentodaaudiência,nostermosfixadosparaastestemunhasedesdequenãosejadisponibilizadotransportepelaspartesoupelotribunal. […].
Aqui chegados, não se compreende a interrogação, formulada na sentença recorrida e que lhe merece resposta afirmativa, sobre a aplicabilidade do regime civilístico regulado nos arts. 1185º e seguintes, para o contrato de depósito.
De facto já ficou claro que não estamos sequer perante um contrato de depósito, pelo que não tem fundamento concluir que a retribuição ao depositário deve corresponder a esse pressuposto. Não podemos concordar com a autora quando esta encara o depósito em causa como um acto enquadrável na sua actividade comercial habitual, que efectivamente não é.
E nesse sentido, aliás, apontam todas as citações, doutrinárias e jurisprudenciais, contidas na sentença revidenda.
Vejamos o que diz a referida sentença, que aliás reconhece que “debruçando-se sobre o tema da caracterização da posição do depositário, a jurisprudência veio, nalguns casos, evidenciando tendência para qualificar a relação com o mesmo estabelecida como uma relação de direito público.”
No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 8 de Fevereiro de 2018 (rel. Ana Pinhol – disponível em www.dgsi.pt): “Ospoderesedeveresdodepositáriojudicialsão,emgrandeparte,diversosdosdodepositárioconvencionaldadoqueesteéessencialmenteumguardaeaquelealémdeguardaéadministradore,porque o é, estásujeitoaoregimegeraldosadministradoresdebensalheios,regimequetemasuaexpressãomais característicanaobrigaçãodeprestaçãodecontas(cfr.artigo760.ºdoCPC). Destaforma,fazsentidoafirmarqueodepositárioqueéinvestidonaguardadeumbempor determinaçãojudicialésujeitodeumarelaçãojurídicadedireitopúblico. Naverdade,nanomeaçãodefieldepositário(nocasoocorridanoâmbitodeprocessonosautosdeexecução)nãoexisteumarelaçãodedireitoprivadoquepossaserenquadrávelnadefiniçãodecontratodedepósito,nostermosenoregimelegalconstantedoartigo1185ºdoCC,jáquenenhumcontratoéfeitoentreaAdministraçãoTributária,eoparticularaquemécometidaaincumbênciadodepósito”.
Como se extrai da citação, a situação em apreciação no aresto ocorria no âmbito de um processo de execução fiscal, em que alguém ficou como depositário de bens penhorados.
A mesma conclusão, quanto à natureza da posição do depositário, aparece na citação seguinte, referente a um depositário em arresto decretado num procedimento cautelar:
Acórdão da Relação do Porto de 21 de Fevereiro de 2005 (rel. Fonseca Ramos, também disponível em www.dgsi.pt): “NocasodenomeaçãodealguémcomodepositáriopeloTribunal,nãoexisteumarelaçãodedireitoprivadoquepossaserenquadrávelnadefiniçãodecontratodedepósito,nostermosenoregimelegalconstantedoart.1185ºdoCódigoCivil,jáquenenhumcontratoéfeitoentreoTribunal,enquantoórgãodesoberaniadoEstado,eoparticularaquemécometidaaincumbênciadodepósito,aindaqueapessoaouentidadenomeadaotenhasidoporsugestãodealgumadaspartesprocessuais,nocasoarequerentecautelar. Istosemembargododepositáriojudicialestarobrigadoaguardaracoisaearestitui-laquandolhefordeterminado. Daíque,aoinvésdoquesucedenoregimedoCódigoCivil,quantoàremuneraçãododepositário–art.1200º–oTribunalnãofixe,àpartida,qualquerremuneração–muitoemboraodepositáriotenhadireitoaela. Odepositárioqueéinvestidonaguardadeumbempordeterminaçãojudicialésujeitodeumarelaçãojurídicadedireitopúblico,muitoemboraoCódigodeProcessoCivilprevejanoseuart.1023ºprocessodeprestaçãodecontasdedepositáriojudicial.”
Como parece inevitável concluir, por estas citações referentes à posição do depositário num processo tributário ou num processo cível, nunca foi caracterizada a situação do depositário nomeado pelo tribunal como enquadrável na regulamentação estabelecida para o contrato de depósito.
Não contraria essa posição o conteúdo do Acórdão citado a seguir na sentença em causa, em que a primeira instância vislumbrou “entendimento diferente”:
Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Dezembro de 2007 (rel. Pais Borges, in www.dgsi.pt):
“O depositário não poderá deixar de ser considerado, para efeitos de eventual responsabilidade extracontratual por facto ilícito relacionado com o desaparecimento ou deterioração de bens que lhe foram entregues, e cujo dever de guarda lhe estava legalmente cometido, como agente ad hoc do Estado. Pois se ele foi escolhido e nomeado pelos serviços do Estado, sem qualquer intervenção da executada ou de terceiros; se ele pode ser oficiosamente exonerado pelo Estado, igualmente sem intervenção de outrem; se é ao Estado que ele deve prestar contas no âmbito do processo de execução fiscal (arts. 233º, al. c) apresentaçãodebens,podendomesmoserexecutadopelaimportânciarespectiva,nopróprioprocesso;como poderásustentar-sequeoEstadosejaalheioàsuaactuação,paraefeitosderesponsabilidadeporviolaçãodo deverdeguardadosbens? Eleé,noâmbitodaexecuçãofiscal,eàluzdoregimelegalatrásanalisado,umagenteadhocdoEstado,nãosendolícitodissociaroEstadodaeventualresponsabilidadequedecorradasuaactuaçãonoâmbitodasfunçõesquelheestãocometidasnoprocessodeexecuçãofiscal. Aliás,segundoaredacçãodoart.303ºdoCPT(diplomaaindavigenteàdatadosfactosemcausa),odepositárioera“escolhidopeloescrivão,sobsuaresponsabilidade”,oquemaisinculcaaideiadeligaçãofuncional,aindaqueprecáriaoucircunstancial,aosserviçosdeadministraçãotributária. Importa,pois,reconhecerque,contrariamenteaoquefoidecidido,o“depositário”nomeadonoprocessodeexecuçãofiscal,nostermosdoart.221º,al.b)doCPPT(anteriormente,art.303ºdoCPT),é,paraefeitosderesponsabilidadeextracontratualporfactoilícitorelacionadocomodesaparecimentooudeterioraçãodebensquelheforamentregues,ecujodeverdeguardalheestavalegalmentecometido,umagenteadhocdoEstado.”
A nosso ver, este acórdão, versando sobre a responsabilidade civil do Estado por facto ilícito imputável ao depositário, ainda reforça mais as conclusões dos anteriores no que respeita à natureza pública da condição do depositário. Fosse este um depositário no quadro de um contrato civil de depósito e nunca o Estado poderia ser chamado a responder por ele (seria apenas o próprio a ser responsabilizado, pelo que fizesse ou não fizesse, a título contratual ou extracontratual).
Também o acórdão citado a seguir na sentença em apreço não pode ser invocado em apoio da posição que rejeitamos.
Diz esse Acórdão, proferido na Relação de Lisboa de 29 de Novembro de 2018 (rel. Maria Teresa Pardal):
“Começandopelo5ºréu,foiomesmonomeadofieldepositáriodosbensarrestadospeloTribunal,porindicaçãodorequerentedoarresto(ponto9dosfactos),constandocomopresentenastrêsdiligênciasdearresto(pontos11,12e13),sendoque,depoisdedeclaradaacaducidadedoarrestoedesernotificadopararestituirosbens,o5ºréunãoosrestituiu(pontos15,16e17). Naqualidadedefieldepositário,estavao5ºréuobrigadoamanterosbensemsegurançaeaapresentá-losquandotallhefossedeterminado,sendoestasasmaissimplesegeraisobrigaçõesdoseucargo,quedecorremdanaturezadodepósitocivil,cujasobrigaçõesestãoprevistasnoartigo1187ºdoCC,aqueacrescemosdeveresdeadministraçãodosbens,previstasnoartigo760ºdoCPCemsededeprocessoexecutivo,correspondenteaoanteriorartigo843),disposiçõesqueseaplicamaoarrestoporforçadoartigo391ºdoCPC.”
Observa o julgador recorrido que aqui “não se questionou que, pelo menos no tocante às obrigações do depositário, se impunha lançar mão do regime do Código Civil”. Por nossa parte observamos que o aresto citado reporta-se ainda a matéria de processo civil (trata-se do depositário num arresto); e diremos ainda que mesmo a tratar-se de um depositário nomeado em processo penal essa aplicação pontual se aceitaria, por via da remissão prevista no art. 4º do CPP, que manda integrar as lacunas deste com recurso ao processo civil, o qual naturalmente manda que se considerem as obrigações do depositário estabelecidas no Código Civil. Isto não colide com a qualificação da posição jurídica em que o depositário se insere.
E, como facilmente se reconhece, no caso do depositário nomeado para bens apreendidos em processo penal muito mais dificilmente se poderão encontrar os traços caracterizadores do depósito voluntariamente assumido por via contratual.
Neste passo, parece-nos relevante recordar aqui algo a que a primeira instância também alude, mas sem retirar as devidas ilações. De acordo com o disposto no artigo 355º do CP, o infiel depositário pode incorrer no crime de descaminho (basta subtrair o objecto do depósito “ao poder público a que está sujeito”).
Ora se se considerasse que estávamos perante um contrato de depósito teríamos de concluir que quem desse descaminho ao objecto depositado estaria apenas a incorrer num incumprimento contratual, regulável pela lei civil, e não a incorrer no crime tipificado no preceito citado.
Terminamos, portanto, estas considerações tendentes a demonstrar que a natureza jurídica do depósito em questão não é compatível com a solução encontrada na primeira instância para a sua remuneração.
A solução mais acertada para a polémica dos autos teria que ser a aludida a dado passo pela própria sentença recorrida. Diz esta que “é certo que o critério atrás apontado no acórdão da Relação de Évora de 5 de fevereiro de 2019, atinente ao custo do depósito, se afigura um critério justo e relevante, provavelmente, como já se deu a entender, o mais justo e relevante de que pode lançar-se mão”.
Todavia, a ser assim, e parece-nos que é, não se compreende o caminho escolhido logo a seguir, quando se escreveu que “o que vimos de referir não implica que o considerar-se que estamos perante uma relação em que o Estado se impôs como poder público e investiu o particular numa determinada condição impede que os critérios de remuneração das tarefas de que o particular foi cometido se processem de acordo com critérios de direito privado, se vier a verificar-se serem esses os mais adequados ao tratamento de questão.”
Com efeito, se há um critério legalmente imposto, não se pode aceitar que seja o julgador a estabelecer outros quando considere que são esses “os mais adequados ao tratamento da questão”.
É verdade que o bem depositado não era um bem qualquer, tinha dimensões que podem ser tidas por consideráveis e carecia de alguns cuidados específicos quanto ao seu depósito e, nomeadamente, não era depositável em qualquer local, razão pela qual terá sido conferida à demandante a tarefa de o guardar – mas essas circunstâncias justificam a escolha do depositário, e terão que reflectir-se na sua retribuição, mas não podem fundamentar o afastamento do regime legal aplicável.
Vejamos então o conteúdo do Acórdão da Relação de Évora de 5 de Fevereiro de 2019, relatado por João Gomes de Sousa, disponível em www.dgsi.pt (referente precisamente ao processo penal) cujo sumário passamos a transcrever: “1-Odepositáriojudicialé,nodizerdoProf.JoséAlbertodosReis“umauxiliardajustiça,aoqualincumbe,paradeterminadosfinsprocessuais,aguardaeadministraçãodecertosbens,àordemesobasuperintendênciadotribunal”. 2-EssarelaçãojurídicadedireitopúbliconascedanecessidadedeguardadosbensapreendidosnostermosdoC.P.P.,designadamentedasregrasgeraisquantoaapreensõesconstantesdoartigo178ºdoreferidodiploma.ComoseconstatanosautosaapreensãofoiefectivadapelaGNReposteriormentevalidadapeloMinistérioPúblico,tendo-sedado,pois,cumprimentoaodispostonosnsº3a7domesmopreceito. 3–Anormaquepermiteopagamentododepositário–aimposiçãodepagamentopeloEstadoéumaobrigaçãoqueresultadosprincípiosgeraisdedireito,nocasoconcretoatécomoformadeevitaroabusodeórgãosdoEstadosobreocidadãoouempresaqueéoneradacomumaobrigaçãodeguardaqueincumbeaoEstado–é,claramente,oartigo16º,nº 1,al.h)doRegulamentodasCustasProcessuaisquedefinecomo“encargos”as«retribuiçõesdevidasaqueminterveioacidentalmentenoprocesso». 4-Opagamentoresultaobviamentedodispostonoartigo17º,nº1,quandoafirmaque“asentidadesqueintervenhamnosprocessosouquecoadjuvememquaisquerdiligências,(…),têmdireitoàsremuneraçõesprevistasnopresenteRegulamento”.NaturalmentequenãoéaplicávelaTabelaIVdoRegulamentopoisestaapenaséaplicávelnoscasos“aquesereferemosnºs2,4,5e6doartigo17.ºdoRegulamento”eo“depósito”nãoseincluinasuaprevisão. 5-MasoC.P.P.indicacritériodepagamento.Dispõeoartigo186.º,nº3doC.P.P.que,nocasodeseimporarestituiçãodebensapreendidos,“aspessoasaquemdevamserrestituídososobjectossãonotificadasparaprocederemaoseulevantamentonoprazomáximode90dias,findooqualpassamasuportaroscustosresultantesdoseudepósito”. 6-Ora,seoEstadoimpõeumaregraqueofavorece,amesmaregradeveseraplicávelseaacçãodoEstadodesfavoreceterceiros.São,portanto,oscustosresultantesdodepósitoocritériocentralparadeterminarquantodeveserpagoàrecorrente,queatéforamdadoscomoprovadosnosautos. […]
Como se pode ler na fundamentação do mesmo acórdão: OrecursoaoCódigoCivilpermite-nosconcluirqueo“depósito”éumcontrato«peloqualumadaspartesentregaàoutraumacoisa,móvelouimóvel,paraqueaguarde,earestituaquandoforexigida»- artigo1185º-comasobrigaçõesdeaguardar,deavisarimediatamenteodepositante,quandosaibaquealgumperigoameaçaacoisaearestituiracoisa(artigo1187ºdomesmodiploma). Naturalmenteque,nocaso,sórelevaoobjectodoinstitutoenãoasuacaracterísticacivilistaqueaquificaafastadaeassumenaturezapública. […] Essarelaçãojurídicadedireitopúbliconascedanecessidadedeguardadosbensapreendidos nostermosdoC.P.P.,designadamentedasregrasgeraisquantoaapreensõesconstantesdoartigo178ºdo referidodiploma. […]
Aqui sempre se revelaria adequado ter presente – com as necessárias adaptações - o disposto no artigo 952º do C.P.C. quando afirma que as “contas do depositário judicial são prestadas ou exigidas nos termos aplicáveis dos artigos 948.º e 949.º; são notificadas para as contestar e podem exigi-las tanto a pessoa que requereu o processo em que se fez a nomeação do depositário, como aquela contra quem a diligência foi promovida e qualquer outra que tenha interesse direto na administração dos bens”. E, como estatui a al. b) do artigo 948º, não havendo contestação, o juiz pode ordenar, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, as diligências necessárias e encarregar pessoa idónea de dar parecer sobre as contas.
Estas normas são aplicáveis ex-vi do disposto no artigo 4º do C.P.P.”
Não precisamos dizer mais, nem sabemos dizer melhor.
O aresto transcrito baseava-se portanto, expressamente, no artigo 186º do CPP, na redação dada pela Lei nº 30/2017,de 30 de Maio, vigente à data do referido aresto e bem assim do depósito nos presentes autos, do qual resultava que as pessoas que sejam notificadas para proceder ao levantamento de objectos apreendidos e não o façam passam a suportar “os custos resultantes do seu depósito” – pelo que seriam também esses custos o valor a suportar pelo Estado no período em que fosse o responsável pelo depósito imposto.
E não se diga que a posterior revogação daquele art. 186º do CPP, no segmento ali citado, tendo desaparecido a referência a custos, invalida a posição sustentada. Com efeito, pode entender-se que a supressão da referência a custos se explica pela desnecessidade; e que a posição defendida utilizava essa referência para definir um critério, que não há motivo para afastar.
O que parece certo é que não pode concluir-se pela “retribuição do depositário de acordo com os valores cobrados por este na sua atividade”, como se concluiu na sentença, porque como já expusemos atrás os direitos do depositário não coincidem com os que resultariam de um contrato civilístico.
Ao contrário, torna-se obrigatório concluir pela necessidade de apurar devidamente os custos em questão, a que o depositário tem direito.
Consequentemente, o recurso interposto pelo Ministério Público apresenta-se como procedente.
Por um lado, não é possível estar a declarar cessado um contrato que jamais existiu, com as consequências que seriam emanação desse contrato. Por outro, não é possível fixar obrigações de pagamento de custos globais que não são conhecidos nos autos.
Assentamos, pois, em que as quantias a pagar pelo Estado à autora devem ser encontradas a partir do disposto no artigo 16º, nº 1, al. h) do Regulamento das Custas Processuais, que expressamente inclui e define como “encargos” as «retribuições devidas a quem interveio acidentalmente no processo».
Essa obrigação resulta ainda do disposto no artigo 17º, nº 1 do referido RCP, quando afirma que “as entidades que intervenham nos processos ou que coadjuvem em quaisquer diligências, (…), têm direito às remunerações previstas no presente Regulamento”.
Entre os intervenientes acidentais inclui-se incontestavelmente o depositário (cfr. Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais, anotação ao art. 16º).
Essa retribuição deve incluir naturalmente as despesas com o depósito, os custos a que se referia o artigo 186º do CPP, na redacção dada pela Lei nº 30/2017,de 30 de Maio, ao mencionar “os custos resultantes do seu depósito”.
Assim, os valores a pagar pelo Estado devem ser os que a autora venha a indicar e comprovar como sendo por si suportados com a guarda e conservação da embarcação, no desempenho das obrigações de um fiel depositário.
Aqui revela-se adequado ter presente, nomeadamente quanto ao processamento contraditório, e sempre com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 952º do C.P.C. quando afirma que as “contas do depositário judicial são prestadas ou exigidas nos termos aplicáveis dos artigos 948.º e 949.º” - sem que com isso se pretenda significar a necessidade de instaurar novo processo, como dependência daquele outro, arquivado, em que ocorreu o desempenho das funções de depositário (as quais, diga-se, se prolongam muito para além do final desses autos).
Na verdade, o actual artigo 609º do Código de Processo Civil dispõe que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, mas se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado.
Ora no caso presente o próprio recorrente concorda que deve ser condenado a remunerar os custos do depósito, de modo a compensar a autora pelo cargo exercido.
Esse dever de remuneração manter-se-á, naturalmente, enquanto se mantiver a situação de facto que o impõe.
Julgamos, portanto, que, procedendo o recurso, deve o réu Estado ficar absolvido dos pedidos deduzidos pela autora relativos à sua remuneração, baseados numa causa de pedir de natureza contratual que se demonstrou não existir, condenando no entanto o Estado a pagar à autora os custos do depósito em causa, por força do art. 16º, n.º 1, al. h), do RCP, em quantia a liquidar nestes autos, naturalmente tendo como limite quantitativo o valor dos pedidos iniciais.
Já no respeitante ao decidido quanto ao fim do depósito (a sentença recorrida “declara o termo do depósito da embarcação “Joanna”, em causa nos autos, condenando o R. retirar a embarcação “Joanna”, das instalações da A., no prazo de 30 dias”) afigura-se que, pese embora a discordância quanto à qualificação jurídica de tal depósito, que não reveste natureza contratual, a condenação deve ser confirmada, improcedendo o recurso nessa parte.
Com efeito, o processo em que foi efectuada a apreensão e a consequente nomeação de depositário terminou com o acórdão proferido a 30 de Julho de 2012, transitado a 24 de Setembro de 2012 (cfr. certidão junta).
Nesse acórdão foi declarada a perda a favor do Estado da embarcação e seus instrumentos. Consequentemente, cessou a situação de apreensão, como medida imposta no âmbito daquele processo, passando a incumbir ao Estado dar destino aos objectos em causa. Não é exigível que a autora continue indefinidamente onerada com um depósito que em rigor terminou quando o acórdão final deu destino ao bem apreendido, muito embora nesse processo não tenha sido declarada expressamente a exoneração da depositária (mas consta que a embarcação passou a estar a cargo do Ministério Público, para venda).
Tudo ponderado, impõe-se reconhecer que o prolongamento de tal situação, com o inerente sacrifício da autora, representa uma exigência que, sendo imposta à dita autora, surge como desprovida de qualquer apoio normativo e iria contra os mais básicos sentimentos de Justiça. Assim, entendemos que deve ser confirmada a sentença nessa parte do decidido, competindo ao Estado resolver a situação de forma a não agravar ainda mais o sacrifício patrimonial imposto à autora.
No entanto, tendo em conta as características específicas do objecto em causa, e as dificuldades daí resultantes em dar-lhe destino rapidamente, aliás já constatadas, como resulta dos factos provados (v. g. factos 15 a 17), entendemos prolongar o prazo de cumprimento dessa obrigação a cumprir pelo réu Estado, estabelecendo agora esse prazo em 90 dias.
Pelo que fica dito, acordamos na procedência parcial do recurso, no atinente às remunerações a pagar à autora, e na sua improcedência na parte respeitante ao fim do depósito.
Tal implica a revogação parcial do decidido, e novo dispositivo em conformidade, nos termos que se seguem.
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VI - DECISÃO
Por tudo o exposto, julgamos parcialmente procedente a apelação interposta pelo Ministério Público, e em consequência:
a) revogamos a sentença recorrida na parte referente às remunerações a pagar à autora; e condenamos agora o réu Estado a pagar à autora o valor global dos custos por ela suportados com o depósito a que se referem os autos, em quantia a liquidar nestes, com o limite a que se refere o n.º 1 do art. 609º do CPC.
b) confirmamos o decidido quanto ao termo do depósito da embarcação “Joanna”, em causa nos autos, mas condenando o R. retirar a embarcação das instalações da autora, no prazo de 90 (noventa) dias.
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Custas a cargo da autora e do réu, na proporção de metade para cada, dado o vencido (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 13 de Outubro de 2022
José Lúcio
Manuel Bargado
Francisco Xavier