VENDA DE BENS DE CONSUMO
FRACÇÃO AUTÓNOMA
PRAZO DE DENÚNCIA DE DESCONFORMIDADE
ÓNUS DA PROVA
DIREITO AO REPOUSO
Sumário

I - No âmbito do regime que regula a venda de bens de consumo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de abril, não tem aplicação a presunção legal de conhecimento dos defeitos aparentes, prevista no artigo 1219.º, n.º 2, do Código Civil.
II - O prazo para a denúncia de qualquer falta de conformidade, começa, por regra, a partir do momento em que a mesma é detetada e identificada como tal pelo consumidor.
III - Compete vendedor o ónus de alegar e demonstrar os factos que demonstrem esse conhecimento.
IV - Mesmo que respeitem os limites regulamentares, os ruídos podem, ainda assim, ser gravemente incomodativos e perturbadores do direito ao repouso, tranquilidade e descanso.
V - E, quando assim é, tornando esses ruídos um imóvel adquirido para habitação inadequado para esse fim, devido à perturbação que infligem nos citados direitos daqueles que nele vivem, devem ser eliminadas as anomalias construtivas que os permitem.
VI - Tal como as demais desconformidades com o contrato.

Texto Integral

Processo n.º 558/14.7T8PRT.P1

*
Sumário:
………………………………
………………………………
………………………………
*
Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório
1- AA, intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra I..., Ldª, alegando, em breve síntese, que, no dia 16/07/2010, adquiriu a esta sociedade uma fração autónoma que identifica, destinada a habitação, que apresenta diversos vícios, deficiências e desconformidades de construção que impedem a sua normal utilização.
Por isso mesmo e porque a Ré, apesar de instada para o efeito, não reparou nenhum daqueles defeitos e toda esta situação lhe tem causado prejuízos, pede que a mesma seja condenada:
a) A proceder ao licenciamento e à execução das obras que venham a ser necessárias e ordenadas para a prossecução do fim a que se destina o prédio em questão, no prazo máximo de seis meses a contar da data da sua citação;
b) A proceder à eliminação dos defeitos, vícios e desconformidades referenciados na petição inicial ou, caso assim venha a ser necessário, à substituição da coisa ou à realização de nova obra;
Subsidiariamente,
c) Caso os referidos defeitos, vícios e desconformidades sejam reparáveis, mas a ora Ré se recuse ou não consiga executar as reparações necessárias para o referido efeito, a substituir a coisa ou a realizar nova obra, ser declarada a redução do preço do objeto do negócio celebrado com a A., no montante de 37.319,56€;
d) Caso os referidos defeitos, desconformidades e vícios não sejam reparáveis ou se considere que a reparação é excessivamente onerosa ou desproporcionada, seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de 37.319,56€, a título de danos patrimoniais;
e) Cumulativamente, em qualquer caso, no pagamento à A. de uma indemnização pelos prejuízos e danos não patrimoniais sofridos, no montante de 5.000,00€.
2- Contestou a Ré, rejeitando estes pedidos, quer porque se encontra extinto por caducidade, o invocado direito reparatório, quer porque não reconhece a existência dos pretensos defeitos no imóvel que lhe vendeu.
Como tal, pede a procedência da referida exceção e a improcedência desta ação.
3- A A. respondeu pugnando pela improcedência da exceção invocada e imputando à Ré a sua atuação de má fé, o que esta, posteriormente rejeitou.
4- Terminados os articulados, foi dispensada a realização de audiência prévia e, entre o mais, afirmada a validade e regularidade da instância, fixado o valor da causa, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.
5- Finalmente, depois de instruída e julgada a causa, inclusive com prova pericial, foi proferida sentença na qual se julgou a presente ação parcialmente procedente, razão pela qual foi a Ré condenada a:
a) Reparar as deficiências existentes na fração da A. e enumeradas no ponto 10 dos factos provados, devendo diligenciar pela execução dos trabalhos necessários e obtenção das licenças necessárias no prazo de 6 meses;
b) Pagar à A. a quantia de 3.000,00€, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais provocados.
Quanto ao mais, foi a Ré absolvida do pedido.
6- Inconformada com esta sentença, dela recorre a Ré, terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“1º- A autora adquiriu a fracção por escritura pública lavrada em 16/07/2010, com a imprescindível licença de habitabilidade e o certificado energético que classificou a sua qualidade energética com a letra «B», numa escala decrescente de «A» para «G» (o que atesta desde logo a qualidade quer energética quer acústica da fracção), assim depositada a ficha técnica da habitação.
2º- Estes elementos essenciais para o licenciamento da habitação e imprescindíveis para a sua venda constam dos factos provados nos números 4, 6 e 7 da fundamentação de facto.
3º- A autora alega nos artigos 8º e 9º da petição inicial que, apesar daquela aquisição, a ré apenas lha entregou em finais de 2011, tendo em Janeiro de 2013 passado a aí residir com carácter de permanência, (afirmação irrelevante para a causa de pedir da presente acção).
4º- A ré contra alegou no artigo 8º e 9º da sua contestação que a autora tinha utilizado o imóvel muito antes da data de fins de 2011, conforme se verificaria pelos consumos de energia eléctrica, gaz e água anteriores, pelo que requereu a sua notificação para juntar os documentos referentes a esses consumos, a título exemplificativo, de Fevereiro, Maio, Agosto e Novembro de 2011.
5º-A autora não colaborou com o tribunal ou não se tratasse de documentos que tinha em seu poder, mas não fez essa junção.
6º Face a esta omissão, a ré requereu a notificação judicial das entidades visadas para fazer a respectiva junção, o que se veio a verificar relativamente ao consumo de energia eléctrica, com os consumos relativos ao período de 15/01/2011 a 15/02/2011, 16/04/2011 a 13/05/2011, 16/07/2011 a 12/08/2011 e 15/10/2011 a 15/11/2011, assim como do consumo de água que reflecte consumos, no caso desde o período compreendido entre 29/11/2010 e 31/12/2010 e dos meses seguintes, todos eles registados em nome da autora.
7º- Esses consumos contratados pela autora naturalmente, em data anterior à emissão das respectivas facturas e em seu nome pessoal, demonstram que a autora entrou na posse da fracção em data muito anterior, pelo menos fins de 2010 e princípios de 2011, à data por si alegada, em fins de 2011.
8º- Na sentença recorrida, dá-se como provado, (ponto 9º-primeira parte), a afirmação de que a fracção apenas foi entregue em finais de 2011, quando os referidos consumos provam, pelo menos, que a autora ocupou a casa muito antes dos finais de 2010, princípios de 2011.
9º- Esses consumos confirmam em absoluto e sem possibilidade de serem contrariados por qualquer decisão judicial que a autora estava na posse do imóvel muito antes dos finais de 2011, sendo indiferente que aí residisse com carácter de permanência.
10º- Numa acção destinada a reparação de defeitos pelo vendedor construtor é absolutamente despicienda a circunstância de o adquirente residir ou não com permanência, mas apenas a entrega do imóvel (comprovada no mínimo por aqueles consumos).
11º- Impõe-se assim a alteração da resposta dada no ponto 9 dos factos assentes no sentido de fazer constar que a fracção foi entregue à autora pelo menos em período anterior ao primeiro consumo de água, em finais de 2010 energia eléctrica, em Janeiro de 2011, por contractos titulados em seu nome.
12º- No ponto 10 em referência, foi dado como provado que em 2013 a autora verificou a existência dos defeitos aí depois enunciados.
13º- Na alínea a) dá-se como assente que a autora verificou a inexistência de isolamento acústico em todo o imóvel, com a consequência de ouvir os ruídos de percussão através dos pavimentos e das paredes de separação e patamares.
14º- Ora, se a autora já estava na posse da fracção muito antes dos fins de 2010, (factos apurados sem qualquer susceptibilidade de serem contrariados por prova testemunhal), como é que só em 2013 percepcionou os barulhos ou defeitos?
15º- Todos os ruídos que a autora alega quanto à falta do isolamento energético e acústico seriam obrigatoriamente, se existissem, detectados desde logo, seriam evidentes nessa altura, pelo que não podia a autora deles ter-se apercebido apenas em data indeterminada de 2013.
16º- A fracção em apreço foi objecto de uma perícia, prévia à emissão da licença de habitabilidade e foi emitido o certificado energético que qualificou a sua qualidade através da letra «B» numa escala decrescente de «A» para »G», conforme Ponto 6 dos factos assentes.
17º- Foi determinada a realização de um teste acústico, pelo Laboratório de Metrologia e Ensaios do Instituto Electrotécnico Português, cujo resultado consta do seu relatório, e onde se conclui que a fracção da autora fica perfeitamente dentro dos limites que definem um bom isolamento acústico, cumprindo todos requisitos acústicos aplicáveis
18º-º A verificação destes requisitos técnicos só são susceptíveis de ser apurados em exames periciais, elaborados e certificados por técnicos e entidades, não podem resultar da livre apreciação de uma qualquer prova testemunhal.
19º-º Nas alíneas b), c) e d) deste ponto 10 dá-se como assente que se verifica que o caudal de extracção de ar das condutas é elevado, com as consequências aí descritas.
20º- Como resultou do exame pericial realizado pelo perito nomeado pelo Tribunal, como tal, independente das partes, e dos quesitos formulados pela ré, a extracção de ar das condutas das fracções é mecânica, integrando as zonas comuns do prédio, com motores instalados na cobertura do prédio, e é regulável, fazendo aumentar ou diminuir o caudal de extracção.
21º- Não se trata, assim, de defeito de construção, mas sim e apenas da regulação do caudal de extracção de ar, no caso, da competência da administração do condomínio.
22º- Na alínea e), dá-se como assente que o closet do quarto é muito mais frio que o quarto.
23º- No que diz respeito ao closet e como muito bem se assinala no referido relatório pericial, este é mais um armário embutido do que um espaço, onde não é suposto ter qualquer órgão de aquecimento interno.
24º-º- Todos os restantes pequenos defeitos, verificados no relatório pericial, ocorrem seguramente desde que a fracção foi entregue e recebida sem reserva.
25º- Quanto ao barulho da descarga de água da casa de banho do piso superior, de acordo com o mesmo relatório pericial, não constitui qualquer defeito, já que a fracção cumpre os requisitos acústicos.
26º- Impõe-se assim uma resposta diversa às diversas alíneas do ponto 10 dos factos assentes que deve merecer resposta negativa, com excepção daqueles que resultam da prova pericial, como infra se analisará quando se apreciar a valoração da prova.
27º- Neste ponto 15 foi dado como provado que a ré não procedeu à colocação do material destinado ao isolamento acústico previsto no projecto.
28º- Ora, quanto ao isolamento acústico, reproduz-se aqui tudo quanto supra se referiu nos números 16º a 19, destas conclusões e matéria fáctica supra alegada desta peça.
29º- É incompreensível a conclusão vertida na sentença, uma vez que os requisitos acústicos foram comprovados em duas perícias, uma efectuada no âmbito do processo administrativo de licenciamento e outro no âmbito destes autos e, neste caso, por um Instituto Público.
30-Esta prova é absoluta, não dependendo de valoração pelo Tribunal e, muito menos, pode ser contrariada por uma pretensa prova testemunhal, cuja análise, que não pode afirmar que não existe em obra o material que permite cumprir a legislação em vigor no domínio do isolamento acústico.
31º- No ponto 17 dá-se como provado que a autora não pode acender o fogão de sala pois entra fumo para o imóvel, afirmação contrariada pelo relatório, com fotografia, do fogão de sala a funcionar sem produzir qualquer fumo no interior da fracção.
32º- Finalmente e no que diz respeito aos danos não patrimoniais, constantes dos pontos 16 e 18 dos factos provado, em função da alteração da resposta à matéria de facto, cai pela base a sustentação de qualquer dano indemnizável, porquanto, a aceitar existirem alguns dos defeitos aparentes verificados na perícia e a entender-se que devem ser reparados, não se verificando a excepção da caducidade, não são de molde a justificar qualquer indemnização.
33º- A sentença, ora recorrida, não dá como provada a primeira parte do artigo 9º da contestação, pelo que reconhece, pela leitura da segunda parte deste artigo, que a autora tinha consumos de energia, titulados em seu nome, antes dos finais de 2011, altura em que afirma ter-lhe sido entregue a fracção.
34º- Tal conclusão é manifestamente contraditória com o facto dado como provado no ponto 9 dos factos assentes, de que a fracção foi entregue à autora em finais de 2011, impugnado nos termos do supra alegado em 3 a 10, desta.
35º- Quanto aos factos alegados nos artigos 17, 19, 21 e 27 da contestação, remete-se para o contraditório, amplamente supra desenvolvido
36º- Da análise da prova resultante da perícia realizada (acentua-se por perito único nomeado pelo Tribunal e como tal indiferente às partes), resultaram inequivocamente demonstradas as razões para alterar a resposta dada aos factos assentes.
37º- Numa acção destinada a fazer reconhecer a existência de defeitos de construção, a análise da sua existência e das suas causas determinantes, por se tratar de questões eminentemente técnicas, verifica-se um primado do valor desse exame pericial relativamente à prova testemunhal oferecida pelas partes, que no seu depoimento seguem uma lógica de acautelar os interesses da parte que as indicou.
38º- No que se refere às testemunhas oferecidas pela autora, BB é marido da autora, com quem casou em 08/10/2011.
39º- No que se refere às perguntas que lhe foram feitas na instância do mandatário da Ré quanto à verificação e existência dos invocados defeitos aparentes, por já existirem à data da entrega da fracção, ou do momento em que passaram a deles a ter conhecimento, aí residissem com carácter permanente ou esporádico, as respostas foram sempre evasivas, apesar de na contra inquirição a Meritíssima Juiz ter continuado com o interrogatório formulando perguntas, no mínimo conclusivas, supra transcritas.
40º- O marido da autora é parte interessada no resultado, como aliás são as restantes testemunhas por si indicadas, designadamente um engenheiro por si contratado.
41º- E é até curioso que o Mmo Juiz a quo refira que o depoimento da testemunha oferecida pela ré, CC demonstra interesse no desfecho da lide, apesar de em sede do seu depoimento ter até admitido factos contrários àquela conclusão, sendo curial que a idoneidade de uma testemunha sirva para umas coisas e não sirva para outras, conforme resulta da leitura da sentença, no que se refere à valoração da prova testemunhal do seu depoimento.
42º- Sem que, todavia, na mesma sentença não se fizesse a mesma apreciação, com o mesmo critério em relação às testemunhas oferecidas pela autora.
43º- No que se refere à testemunha DD, engenheiro contratado pela autora e nessa qualidade parte interessada na defesa do relatório encomendado, sempre se dirá, ao contrário do que se refere na sentença recorrida, que o seu depoimento, igualmente mente transcrito, está cheio de incorrecções técnicas que o colocam em causa.
44º-Na verdade a título exemplificativo, que dizer da competência de um engenheiro que coloca como defeito que o óculo de vigilância da porta está incorrectamente colocado a 1,40 metros de altura, que é a comum, confunde azulejos da parede do duche do quarto principal que afirma estarem arranhados (cfr. seu relatório) com revestimento a pedra natural, e como tal com as porosidades próprias, conforme demonstra a perícia realizado pelo perito nomeado pelo Tribunal, ou que, para definir defeitos de construção entenda que a falta de uma saboneteira ou de uma grelha do micro ondas o constituem.
45º- E que dizer da sua convicção de que não foi colocado qualquer isolamento no pavimento, porque dentro do armário, leia-se closet, não o viu, mas sim e apenas a betonilha que o cobre.
46º- É que, por cima do isolamento térmico, é sempre colocada uma camada de regularização do pavimento para assentar o soalho, no caso tábua e não pavimento a parquet, de forma a garantir a sua estabilidade na circulação de pessoas.
47º- São as legis artis, ou seja, são as regras comuns impostas pelas boas práticas de construção civil, como amplamente demonstrou a testemunha CC indicada pela Ré, cujo depoimento integral abaixo se transcreve:
48º- Como pode, na sentença recorrida, concluir-se que apesar da fracção ter certificado energético, com a qualidade classificada com a letra «B», a segunda mais eficiente duma classificação que vai de «A» a «G» e cujos testes acústicos, dois no caso, um pela autoridade administrativa, prévio e condição de emissão da licença de habitabilidade e outro feito nos autos por um Instituto público, não sejam suficientes?
49º- Esses requisitos técnicos foram verificados pela entidade certificadora, no caso a autoridade administrativa e os testes acústicos por um Instituto Público, e, nessa qualidade, insusceptível de prova em contrário.
50º- A prova testemunhal é livremente apreciada pelo julgador mas não pode, num caso como o dos autos, sobrepor-se à prova produzida em relatório pericial ordenado pelo Tribunal, insuspeita que é a independência e conhecimentos do perito nomeado.
51º- E o que é mais de acentuar que ignore a prova documental, a realidade traduzida na existência de consumos de energia eléctrica e água titulados em nome da autora, anteriores ao período em que alega ter lhe sido entregue a fracção, o que claramente demonstra que a verificação dos defeitos ocorreu em período muito anterior ao alegado pela autora e tem sérios reflexos na apreciação do direito que infra se analisará
52º- O que se verifica na sentença sub judice foi a valoração da prova apresentada pela autora com a desvalorização da prova (documental e testemunhal) produzida pela ré, assim como da perícia judicial e documentos comprovativos de consumo de energia eléctrica que contrariam a alegação da autora, cuja omissão não mereceu qualquer censura.
53º- Se assim não fosse, não viria o tribunal, em sede de fundamentação, referir que todas as testemunhas da Autora prestaram um depoimento imparcial, em detrimento da testemunha da Ré, ignorando o interesse do marido, da irmã da autora e do engenheiro por si contratado.
54º- Finalmente, importa assinalar, mesmo a entender-se que a sentença decidiu correctamente, o que só por hipótese de raciocínio se admite, impunha-se perguntar qual o grau de sua exequibilidade, a que parâmetros técnicos deviam obedecer as regras de eliminação dos defeitos, quer energéticos quer acústicos, a não ser que estariam sempre ao livre arbítrio da autora!...
55º-º No que diz respeito à segunda parte da excepção peremptória da caducidade, a que se prende com os chamados defeitos aparentes e existentes à data da entrega, segundo a sentença a ré devia fazer prova da data em que a autora foi viver, com carácter de permanência, para o imóvel, mas não o fez.
56º- Este entendimento é absolutamente errado, porquanto não é a Ré quem tem que fazer prova de que a autora passou a viver permanentemente no imóvel, por um lado, sabendo-se que a autora adquiriu a fracção em Julho de 2010, data a partir da qual dela tomou posse, e
57º- Muito mais do que isso, e ao contrário do que alega que apenas em fins de 2011 tomou conta da casa, está demonstrado nos autos que pelo menos desde fins de 2010, princípios de 2011, tem consumos de água e de energia eléctrica registados em seu nome, o que demonstra, sem margem para qualquer dúvida ou interpretações duvidosas, que ocupou a fracção em datas muito anteriores.
58º- Esta prova é documental, foi junta aos autos por notificação judicial às entidades envolvidas, já que a autora se negou a fazer a sua junção (documentos apenas em seu poder) e é insusceptível de ser contrariada por testemunhas, ou pior, por conclusões retiradas a partir de depoimentos de testemunhas.
59º- E, ao contrário do que se diz na sentença, ora em apreço, para a verificação dos defeitos, não se exige que se resida ou não com carácter de permanência, basta que os defeitos existam e sejam perceptíveis na utilização, ainda que parcial da casa (no caso em apreço e perante a prova absoluta daqueles melhor identificados consumos, é fora de questão que a casa era utilizada, até tinha um frigorifico e uma caldeira ligados e o senso comum diz-nos para que efeito).
60º- No caso sub judice, todos os defeitos, se assim se configurassem, enunciados na petição inicial e dados como provados na acção são pré existentes e verificáveis na entrega da fracção não tendo surgido posteriormente à ocupação definitiva (basta ler a sua descrição).
61º- E, nessa base, não surgiram durante o ano de 2013, bem pelo contrário, eram verificáveis desde pelo menos fins de 2010, data em que se verifica o primeiro daqueles consumos de água, demonstrativos de que a autora já se encontrava na posse de casa.
62º- Não era a ré quem tinha que provar que a autora tivesse ido viver para o imóvel antes de 2013, ónus que não lhe incumbia, (até provou pelos documentos juntos que o fez antes do fim de 2010), ou como se fosse necessário habitar a casa em permanência para que se detectassem os defeitos.
63º- Feita uma correcta valoração da prova, no seu conjunto, mas dada especial prevalência àquela que resulta dos documentos comprovativos dos consumos de água e energia anteriores à alegada entrega da fracção, que dela constituem prova absoluta, insusceptível de contradição por prova testemunhal, da inequívoca demonstração que todos os defeitos enumerados eram existentes à data da entrega da fracção e que, como tal, deles desde logo a Autora teve conhecimento, e, como tal, os aceitou sem deles reclamar, não pode resultar senão verificar-se aquela excepção de caducidade, que faz soçobrar o pedido.
64º- Não se vislumbra assim como pode a ré ser condenada a reparar defeitos cuja obrigação há muito caducou tendo em conta a sua denúncia posterior ao prazo de um ano, tal como vem definido no artigo 1225º do Código Civil.
65º- À fracção foi atribuída uma qualidade energética com a letra «B», a segunda mais eficiente (facto provado no ponto 6 da matéria assente).
66º- Este facto, provado, só pode ser contrariado através de uma prova pericial que determine a sua falsidade, incumbindo à autora fazer essa prova, o que não fez.
67º- O valor deste facto, provado, não pode ser contrariado por uma qualquer prova testemunhal.
68º- Igual valor tem os testes acústicos realizados, designadamente o realizado no âmbito dos autos, por um Instituto Público, que dele faz prova plena.
69º- E, nem se diga, como pretende a sentença que, apesar desta prova absoluta, as testemunhas dizem que se ouve barulho e, portanto, o isolamento é insuficiente.
70º- Essa prova da eventual e fantasiosa insuficiência não foi objecto de qualquer outra prova, susceptível de anular a que resulta de um organismo do Estado, que faz prova plena dos factos que verificou, aliás esse relatório não foi impugnado nem sobre ele foram colocadas dúvidas ou pedido esclarecimentos.
71º- Assim, admitindo por mera hipótese de raciocínio, a existência de todos os defeitos invocados, o direito à sua reparação caducou muito antes da denúncia (foram denunciados apenas em Setembro de 2013, quando já se verificavam em finais de 2010) e, mesmo na tese da autora, em finais de 2011, o que daria sempre o mesmo resultado).
72º- E, por outro lado, face à prova documental cuja junção a autora sempre recusou, - consumos de água e de electricidade anteriores à data em que alegou, com falsidade, que a fracção lhe tinha sido entregue, e especialmente à prova pericial requerida nos autos e realizada por um técnico independente à vontade das partes, incluindo o certificado energético (dado como provado no ponto 6 da fundamentação de facto), a decisão tem que necessariamente ser outra.
73º- O ónus da prova para determinar a eventual falta da qualidade energética e acústica, incumbe à autora e, face à prova documental junta aos autos, não.
74º- Os factos conducentes à condenação partem de pressupostos errados quanto aos aspectos supra totalmente esclarecidos, que colocam em causa a própria natureza dos invocados defeitos, uns porque nunca se verificaram, face a prova produzida, se bem valorada, mas todos considerados defeitos aparentes por serem visíveis e como tal conhecidos à data da compra e ocupação da fracção, ocorrida pelo menos antes do final de 2010, e nessa qualidade insusceptíveis de exigirem reparação, por caducidade (cfr. denúncia dos defeitos em 07/10/2013).
75º- Face á correcta valoração da prova e improcedência da acção, não se vislumbra a que título a ré seja obrigada a indemnizar a autora e, muito manos nos valores fixados.
76º- No presente caso, estamos, portanto, perante um contrato real sob o ângulo da sua eficácia imediata.
77º- Neste sentido dispõe inclusive o nº 1 do artigo 408º do Código Civil: «A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei».
78º-A incorrecta valoração dos meios probatórios que o Tribunal usou para proferir a presente decisão, subverteu a verdade dos factos, que impunha uma decisão diversa da que ora se recorre, enfermando assim de erro na apreciação do seu valor probatório e falta de fundamentação para os factos provados.
79º-Sem prejuízo do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no Art° 607°, nº5, do CPC, a verdade é que essa livre apreciação, e a formação da convicção do julgador dela decorrente, deve ser feita à luz das regras gerais da experiência, do raciocínio e da lógica, e, salvo o devido respeito, caso essas regras tivessem sido atendidas pela Mmº Juiz a quo na apreciação e ponderação de todos os elementos de prova existentes nos autos, especialmente da prova documental de per si e conjugados entre si, o mesmo teria forçosamente de concluir que não sustentam nem fundamentam os factos dados como provados na decisão da matéria de facto sob os pontos 9, 10, 15 a 18 e não provados relevantes para a boa decisão da causa, pelo que a aqui Apelante, ao abrigo do disposto no actual Art°. 640°, nº1, al. a), do C.P.C., desde logo impugna especificadamente aqueles pontos da decisão da matéria de facto;
80º- Com efeito, e pelas razões já aduzidas, dúvidas não restam que os elementos de prova indicados na decisão da matéria de facto para fundamentar e sustentar a decisão de julgar provados os factos nela aduzidos são manifestamente insuficientes para tal.
81º-Não se encontra assim devidamente fundamentada quer de facto quer de direito a sentença recorrida, violando-se entre outros aos artigos 707º,640 e 1225º e seguintes, todos do Código Civil”.
Termina pedindo que se conceda provimento ao presente recurso e, revogando a sentença recorrida, se absolva a Ré do pedido.
7- A A. respondeu, defendendo a não admissibilidade do recurso quanto à alteração do ponto 3 dos factos não provados, por falta de indicação dos meios de prova que deveriam levar a diversa redação ou sequer que redação era essa e, no mais, defende a confirmação de todo o julgado.
8- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
*
II- Mérito do recurso
A- Definição do seu objeto
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto deste recurso, delimitado, como é regra pelas conclusões das alegações da recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº1, do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se a saber se deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto e, na afirmativa, quais as consequências daí decorrentes para os direitos de que a A. se arroga titular nestes autos.
*
B- Fundamentação
a) Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1. A Ré é uma sociedade comercial que tem por objeto a construção, compra e venda de propriedades.
2. Em 2008, a Ré construiu um conjunto de apartamentos, destinados a habitação, na Rua ..., em ..., no Porto, que pretendia vender, no âmbito do exercício da sua atividade e sempre com fim lucrativo.
3. Durante a realização da obra de construção e após a conclusão da mesma, a Ré começou a vender os apartamentos que previu construir.
4. Em 16/7/2010 a Ré declarou vender e a A. declarou comprar, pelo preço de 253.000,00 euros, a “fração autónoma designada pelas letras “AA”, correspondente à habitação no quarto andar direito, com acesso pelo n.º ..., com tudo o que a compõe, que faz parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal (…), sito na Rua ..., n.ºs .../... e Rua ..., n.º ..., freguesia ..., concelho do Porto (…)”.
5. Durante as negociações que conduziram à aquisição do prédio a A. informou a Ré que pretendia adquirir o imóvel em questão para ali estabelecer a sua residência.
6. O certificado energético emitido para a fração identificada classifica a sua qualidade energética com a letra “B”, numa escala decrescente de “A” para “G”.
7. Em 10/9/2009, foi emitido, pela CM..., um alvará de utilização, referente à fração identificada, com o n.º ALV/..., tendo, em 22/9/2009, sido depositada a ficha técnica da habitação.
8. Na data referida em 4., a A. recebeu da Ré a ficha técnica de habitação e o certificado energético, tendo-os exibido antes desse ato e garantido que o imóvel estava em conformidade com os mesmos.
9. O imóvel foi entregue à A. nos finais do ano de 2011, tendo, no início do ano de 2013, passado a residir nele em permanência.
10. No ano de 2013 a A. verificou a existência das seguintes anomalias:
a) Inexistência de isolamento acústico em todo o imóvel, com as seguintes consequências:
i. Ruídos de percussão através dos pavimentos e da envolvente do imóvel;
ii. Ruídos aéreos através da parede de separação com as frações confrontantes com o imóvel;
iii. Ruídos aéreos provenientes do patamar de entrada para os apartamentos – caixa de escada e elevadores;
b) Caudal da conduta de extração elevado, com as seguintes consequências:
i. Vozes perfeitamente audíveis e percetíveis, vindas de outros apartamentos, através das condutas de extração do ar, nas casas de banho;
ii. Desconforto térmico, resultante do elevado caudal de extração do ar, nas casas de banho;
iii. Funcionamento irregular do fogão de sala, devido ao elevado caudal de extração do ar.
c) Acabamento incompleto na zona de extração do fogão de sala, com as seguintes consequências:
i. Entrada de fumo para o interior da habitação, através do teto da sala.
d) Caudal da conduta de extração elevado, com as seguintes consequências:
i. Vozes perfeitamente audíveis e percetíveis, vindas de outros apartamentos, através das condutas de extração do ar, nas casas de banho;
ii. Desconforto térmico, resultante do elevado caudal de extração do ar, nas casas de banho;
e) No quarto principal:
- closet muito mais frio do que o resto do quarto (as paredes e as placas de madeira que revestem o closet não dispõem de qualquer acabamento ou isolamento);
- o chão não está bem aplicado, porque uma das lâminas do parquet tem um furo e as restantes estão a separar‐se;
- os rodapés não estão bem colados à parede;
- o alumínio da esquadria das janelas da varanda está raspado;
f) Na casa de banho:
- os azulejos da parede do duche não cobrem a parede na totalidade.
- ouve-se o barulho de descarga de água da casa‐de‐banho do piso superior;
- o radiador tem ferrugem no parafuso do fundo;
- ombreira da porta com cola a ver-se.
g) No quarto n.º 2:
- prateleira superior do lado direito do armário está partida; - as gavetas emperram;
- os candeeiros do exterior da varanda estão ferrugentos;
- mau acabamento exterior do armário;
- a porta está mal acabada e a madeira tem manchas.
h) no quarto n.º 3:
- a ombreira da janela está mal acabada;
- as portas do armário estão riscadas;
- a porta está mal acabada e a madeira tem manchas.
i) na casa de banho:
- dois furos para tubagem na parede que não foram convenientemente tapados;
- pedra da banheira que está solta e partida;
- os azulejos estão mal colocados e alguns estão partidos nos cantos;
- os azulejos da parede do duche não cobrem a parede na totalidade.
- ouve-se o barulho da descarga de água da casa-de-banho do piso superior;
- ouve-se o barulho das conversas pelo tubo da aspiração;
- o azulejo onde foi colocado o suporte do papel higiénico está riscado, porque andaram com o suporte às voltas;
- o azulejo à volta do tubo de ventilação está riscado com marcas para orientar o furo;
- a porta está mal acabada e a madeira tem manchas.
j) no corredor:
- o armário está esmurrado e a folha está a descascar
-a porta está mal acabada (a folha que segura o vidro do lado dos quartos não está envernizada) e a madeira tem manchas.
k) no hall:
- as lâminas, em todas as divisões, estão mal aplicadas, a folha está a estalar e a partir e as lâminas a separarem‐se;
- o teto falso está mal acabado.
l) na sala:
- o teto falso está mal acabado. m) na cozinha:
- a folha que reveste o balcão tem dois buracos e uma mancha;
- o balcão está mal assente no chão;
- a canalização está mal efetuada e gera mau cheiro por baixo da banca;
- a parte inferior do balcão está mal acabada, arranha a roupa;
- a extração de fumo na cozinha é fraca;
- as paredes estão mal acabadas junto às janelas;
- o teto falso está mal acabado;
- as portas dos armários estão riscadas;
- a máquina de lavar loiça não tem o cone de sal;
- no armário da cozinha há uma prateleira partida.
- o micro‐ondas não tem a grelha.
n) na lavandaria:
- a porta que dá acesso à lavandaria está por acabar;
- o teto está rachado entre a cozinha e a lavandaria;
- caixa de acesso às persianas por acabar, os parafusos estão à vista;
- ombreira da porta com falta de parafusos e com parafusos por tapar;
- ombreira da porta mal aplicada com cola a ver-se.
o) na casa de banho (serviço):
- azulejo partido;
- falta a saboneteira;
- ombreira interior da porta partida no canto com massa a disfarçar.
11. A A., em abril/2013 diligenciou pela elaboração de um relatório técnico que procedeu ao um levantamento de todas as patologias que afetam o imóvel, o qual enviou à Ré, por carta datada de 10/9/2013 e recebida em 24/9/2013, solicitando a sua eliminação ou então a redução do preço de aquisição do imóvel em 37.319,56 euros, o valor necessário para a sua eliminação.
12. Por carta datada de 7/10/2013 a Ré comunicou à A. que “O prédio foi construído segundo as melhores técnicas e em respeito pelos respetivos projetos de especialidade, designadamente no que diz respeito ao projeto de acústica.
Foram realizados os exames de acústica por uma empresa certificada e os resultados julgados adequados pela entidade administrativa, já que eram condição imprescindível para a emissão da necessária licença de habitabilidade, tudo com a curiosidade de esses exames terem sido efetuados precisamente na fração em apreço.
Foi emitido o certificado energético por entidade fiscalizadora, igualmente imprescindível para o licenciamento.
A maior parte dos restantes defeitos, a existirem, são defeitos considerados aparentes, e nessa medida, foram aceites sem qualquer reserva.
Alguns dos remanescentes defeitos poderão ser considerados como defeitos de construção e a integrar a necessidade de reparação.
Esta empresa está, como sempre esteve, disponível para as eventuais reparações, mas para análise das situações invocadas e resposta pormenorizada a cada defeito descrito, impõe-se a sua verificação.
Assim, manifestamos inteira disponibilidade para o efeito, pelo que agradecemos a designação de dia e hora para uma vistoria, se assim entender, na qual nos faremos acompanhar de técnico qualificado. (…)”.
13. A A. respondeu, por carta datada de 28/10/2013, indicando as datas disponíveis para a realização da vistoria pedida pela Ré.
14. A Ré realizou a vistoria por si solicitada ao imóvel da A., nada mais tendo dito ou feito após a mesma.
15. A Ré não procedeu à colocação do material destinado ao isolamento acústico previsto no projeto.
16. Em consequência do referido a A. não consegue descansar com tranquilidade, ouvindo os ruídos provenientes das frações vizinhas.
17. Não pode acender o fogão de sala pois entra fumo para o imóvel.
18. Em consequência do referido a A. sente desgosto, tristeza e preocupação.
19. A ação foi instaurada em 22/9/2014.
*
b) Na mesma sentença não se julgou provado:
1. Que existam as seguintes anomalias:
- no quarto principal: as portas em madeira apresentam manchas e mau acabamento, as ombreiras estão mal acabadas, verifica-se um mau acabamento da parede junto ao armário do canto;
- na casa de banho: os azulejos estão mal colocados e alguns estão partidos nos cantos, os azulejos da parede do duche estão mal colocados e arranhados, a torre do duche foi partida, pelo funcionário (Sr. EE) que o engenheiro CC enviou ao apartamento para arranjar a ligação da água;
- no quarto n.º 2: a ombreira da varanda está mal acabada, a estalar; mau acabamento da parede junto ao armário;
- no quarto n.º 3: - Armário e porta mal acabados, mau acabamento da pintura da parede;
- na casa de banho: a pintura do teto está mal feita, os azulejos da parede do duche estão mal colocados e arranhados
- no hall: na junção, os painéis de madeira não assentam de forma idêntica; - na sala: mau acabamento da ombreira da janela;
- na cozinha: mau acabamento da porta da cozinha, a folha do lado interior está mal acabada, mau acabamento das ombreiras das janelas e da porta, a pedra do balcão está mal assente no armário; o alumínio das janelas está riscado;
- na lavandaria: azulejos rachados por baixo da janela, teto mal acabado; ponto de luz do esquentador sem tampa de segurança;
- casa de banho de serviço: porta fecha mal; teto mal acabado, borrachas de isolamento das portas deslocadas (casas de banho e cozinha);
- na porta da rua: falta o livro de instruções do video-porteiro, faltam as borrachas de isolamento da porta, o óculo está mal colocado na porta(1,40m do solo).
2. Os factos alegados nos art.ºs 37.º e 42.º da petição inicial.
3. Os factos alegados nos art.ºs 8.º, 9.º (primeira parte), 17.º, 19.º, 21.º e 27.º da contestação.
*
c) Análise dos fundamentos do recurso
Nele, a Ré impugna alguma da factualidade fixada na sentença recorrida e, em decorrência da alteração por si propugnada, a solução jurídica aí adotada.
Por isso mesmo, por razões de economia processual, analisaremos em conjunto ambas as dimensões.
Começando pela primeira, ou seja, pela impugnação da matéria de facto, verificamos, antes de mais, que nem sempre a Ré deu cumprimento ao estabelecido no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPC. Isto é, concretizando os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (transcrevendo os excertos as o local exato das passagens onde os mesmos podem ser examinados), que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, bem como o teor dessa decisão alternativa.
É disso exemplo, como alega a A., o ponto 3 do capítulo dos Factos não Provados, em relação ao qual a Ré não cumpriu as duas últimas exigências referidas. Além disso, também não levou esse ponto às conclusões das alegações de recurso, que, como é sabido e já dissemos, delimitam o nosso poder cognitivo. Nessa medida, não se apreciará a matéria de facto constante desse ponto.
De resto, em obediência à mesma regra, de que o poder cognitivo está delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, só analisaremos a factualidade impugnada aí identificada e que cumpra os já apontados requisitos, bem como naturalmente as questões jurídicas aí também suscitadas.
Feita esta breve introdução, analisemos, então, o mérito do recurso.
Começa a Ré por alegar que no ponto 9 dos Factos Provados se refere que “o imóvel foi entregue à autora nos finais do ano de 2011”, quando é certo, pelos consumos de água e de eletricidade cujos registos se encontram juntos aos autos, que essa entrega foi anterior e “a autora ocupou a casa muito antes dos finais de 2010, princípios de 2011”.
Defende, assim, “a alteração da resposta dada no ponto 9 dos factos assentes no sentido de fazer constar que a fracção foi entregue à autora pelo menos em período anterior ao primeiro consumo de água, em finais de 2010 e de energia eléctrica, em Janeiro de 2011, por contractos titulados em seu nome”.
A A. respondeu sustentando a irrelevância deste facto, uma vez que o que interessa para a sorte da exceção de caducidade alegada pela Ré, é a data do conhecimento dos defeitos pela sua parte.
E, tem razão. Mas, não podemos deixar de reconhecer que a data da referida entrega pode ser instrumental em relação ao aludido conhecimento. Como tal e porque não só os factos essenciais devem ser relatados na matéria de facto – mas também aqueles que sirvam para os concretizar ou demonstrar e ainda os notórios – artigo 5.º, n.º 2, do CPC-, importa verificar, através da prova produzida, quando ocorreu, efetivamente, aquela entrega.
Ora, como refere a Ré, é manifesto pelos recibos da água e da eletricidade juntos aos autos (após a sessão da audiência final realizada no dia 27/05/2021), que a A. consumiu água e eletricidade no apartamento em questão (ao abrigo de contratos por si titulados), pelo menos, a partir de 29/11/2010 e de 15/01/2011, respetivamente.
Nessa medida, é seguro afirmar que esse apartamento lhe foi entregue pela Ré antes do dia 29/11/2010. O que é verosímil, pois que a aquisição do mesmo ocorreu no dia 16/07/2010.
Donde, só se pode concluir que a redação do ponto 9 dos Factos Provados carece de ser alterada, a esse respeito. No mais, ou seja, quanto ao momento em que a A. passou a residir permanentemente no aludido apartamento (no início de 2013), não se introduzirá qualquer modificação porque a Ré não o contesta, neste recurso. Antes diz ser matéria irrelevante. O que não sendo embora certo (pois que igualmente pode ser considerado instrumental em relação ao já falado conhecimento), resulta certificado, designadamente, pelo depoimento da testemunha, BB, casado com a A., desde o dia 08/10/2011 (segundo disse). Desenvolveremos, no entanto, a matéria do conhecimento dos defeitos, por parte da A., mais adiante.
Por ora, o que importa decidir é que a redação do ponto 9 dos Factos Provados deve ser alterada, passando, em função das razões já expostas, a ser a seguinte:
“O imóvel foi entregue à A. antes de 29/11/2010, tendo, no início do ano de 2013, passado a residir nele em permanência”.
Prossigamos, agora, para a análise do ponto 10 dos Factos Provados, que a Ré também impugna.
Se bem entendemos as suas críticas, elas dirigem-se, por um lado, à data do conhecimento pela A. das anomalias aí afirmada, e, por outro lado, à existência e dimensão de algumas delas.
Relacionadas com este aspeto, estão ainda as consequências de tais anomalias, de que se dá conta nos pontos 15 a 18 dos Factos provados, que a Ré também impugna, e que, por isso mesmo, também devem ser analisados em conjunto.
Comecemos, então, por nos debruçar sobre a questão de saber quando se pode julgar demonstrado que a A. tomou conhecimento das ditas anomalias: se no ano de 2013, como se afirma no ponto 10 dos Factos Provados e foi alegado pela A.[1], ou em data muito anterior, designadamente, logo que o apartamento lhe foi entregue pela Ré, como esta sustenta.
Em primeiro lugar, é importante começar por ter presente que, dirigindo-se este facto à consubstanciação da exceção de caducidade arguida pela Ré, é a ela, e não à A., que compete o ónus da respetiva demonstração (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
A Ré, por várias vezes, chama à colação a circunstância de algumas dessas anomalias serem aparentes, para daí retirar o benefício que lhe é dado pela presunção consagrada no artigo 1219.º, n.º 2, do Código Civil, mas não é esse o regime aqui aplicável, uma vez que estamos perante um contrato de compra e venda realizado no dia 16/07/2010, entre uma empresa no exercício da sua atividade profissional e um consumidor que destinou o bem adquirido, neste caso, um imóvel, à sua habitação.
O regime a convocar, assim, é o previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril[2], que transpôs para a ordem jurídica nacional a Diretiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspetos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas[3]. Isto, repetimos, tendo em conta que se trata de um contrato de compra e venda de um bem de consumo com as características e intervenientes já assinalados [artigo 1.º-A, n.º 1, e 1-B, als. a) e c)].
Ora, no âmbito deste regime, não tem aplicação a presunção de conhecimento dos defeitos aparentes, constante do artigo 1219º, n.º 2, do Código Civil[4]. Mais: “Sem prejuízo do regime das cláusulas contratuais gerais, é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor” aí previstos (artigo 10.º, n.º 1).
De modo que toda a argumentação desenvolvida pela Ré em torno da referida presunção é de julgar improcedente.
O que releva, por regra, no âmbito do citado regime, para a extinção dos direitos nele conferidos ao consumidor (artigo 4.º), começa por ser o momento em que este último toma conhecimento dos defeitos; ou melhor, das faltas de conformidade com o contrato. Na verdade, a lei impõe ao vendedor “o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda” (artigo 2.º, n.º 1, do mesmo Decreto-Lei n.º 6 7/2003). Isto é, bens que tenham as qualidades indicadas pelo vendedor, que sejam adequados ao uso específico e às utilizações habitualmente dadas a outros do mesmo género e que apresentem as qualidades e desempenho habituais do tipo a que pertencem (artigo 2.º-2 da Diretiva 1999/44/CE).
Se assim não for, isto é, se faltar alguma destas características, pode concluir-se que tais bens não são conformes com o contrato[5].
Assim, “[p]resume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem” (artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 67/2003).
E, se assim for, “[o] vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue”, sendo que “[a]s faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade” (artigo 3.º do mesmo diploma legal).
As faltas de conformidade, no entanto, carecem, por regra, de ser denunciadas pelo consumidor se quiser exercer os direitos que a lei lhe confere. Como resulta do disposto no artigo 5.º-A, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 67/2003, “[p]ara exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado”. Prazo este, de resto, que, em relação aos imóveis, é igual ao previsto no artigo 1225.º, n.º 2, do Código Civil. Mas, sempre contado a partir do momento em que o consumidor toma conhecimento efetivo e suficiente[6] da falta de conformidade. A não ser que “ no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor”, caso em que não se considera sequer haver falta de conformidade (artigo 2.º, n.º 3, do Dec. Lei n.º 67/2003). Mas, não sendo esse o caso, o prazo para a denúncia de qualquer falta de conformidade, começa a partir do momento em que a mesma é detetada e identificada como tal pelo consumidor. E esgota-se, por caducidade, no caso dos imóveis, ao fim de um ano. Ou melhor, extinguem-se os direitos atribuídos ao consumidor, no âmbito deste regime.
De modo que, se se quiser prevalecer desta extinção, o vendedor tem o ónus de demonstrar os respetivos pressupostos de facto (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Ora, tendo esta regra como referência, o que verificamos, no caso em apreço, é que a Ré não produziu qualquer prova que nos permita concluir que a A. tomou conhecimento efetivo e suficiente das desconformidades por ela denunciadas antes do ano de 2013. Nem mesmo que não as podia razoavelmente ignorar, visto que, para esse efeito, a Ré devia ter alegado e demonstrado que tipo de utilização concreta fez a A. do imóvel que lhe adquiriu, antes daquele ano. E nem essa alegação, nem a correspondente prova tiveram lugar.
Por conseguinte, só se pode manter como provado o que consta do ponto 10 dos Factos provados, a este respeito; ou seja, que a A. verificou a existência das anomalias aí indicadas no ano de 2013 e, nessa medida, tendo-as denunciado à Ré ainda no decurso desse ano, mais propriamente, por carta que lhe dirigiu em 10/09/2013 e que a mesma recebeu em 24/09/2013, e instaurado esta ação no dia 22/04/2014, é evidente que não se completou o prazo para a extinção dos seus direitos, por caducidade, nos termos já referenciados. Donde, esta exceção só podia ter sido, como foi, julgada improcedente.
Passemos, agora, à análise das anomalias impugnadas pela Ré.
Desde logo, os ruídos.
Refere-se no ponto 10, al. a), do ponto 10.º dos Factos Provados, o seguinte:
“No ano de 2013 a A. verificou a existência das seguintes anomalias:
a) Inexistência de isolamento acústico em todo o imóvel, com as seguintes consequências:
i. Ruídos de percussão através dos pavimentos e da envolvente do imóvel;
ii. Ruídos aéreos através da parede de separação com as frações confrontantes com o imóvel;
iii. Ruídos aéreos provenientes do patamar de entrada para os apartamentos – caixa de escada e elevadores.
E, nos pontos 15 e 16 do mesmo capítulo, acrescenta-se, ainda a este propósito, o seguinte:
“15. A ré não procedeu à colocação do material destinado ao isolamento acústico previsto no projeto.
16. Em consequência do referido a autora não consegue descansar com tranquilidade, ouvindo os ruídos provenientes das frações vizinhas”.
Pretende a Ré que estas afirmações sejam julgadas indemonstradas. E, para tanto, alega, resumidamente, que se os referidos ruídos existissem, a A. tê-los-ia detetado antes do ano de 2013.
Além disso, o apartamento da A. foi objeto de uma perícia, prévia à emissão da licença de habitabilidade, tendo sido emitido o certificado energético que qualificou a sua qualidade através da letra «B» numa escala decrescente de «A» para «G»”, como, de resto, se provou.
Acresce que foi ainda determinada a realização de um teste acústico, pelo Laboratório de Metrologia e Ensaios do Instituto Electrotécnico Português, cujo resultado consta do seu relatório, e onde se conclui que aquele apartamento fica perfeitamente dentro dos limites que definem um bom isolamento acústico, cumprindo todos requisitos acústicos aplicáveis.
Assim, a verificação destes requisitos técnicos não pode resultar da livre apreciação de “uma qualquer prova testemunhal”.
Ora, não é assim. Ou melhor, embora tenha havido essas avaliações técnicas, tal não significa nem que não haja ruídos audíveis no dito apartamento, provenientes de outras origens (que não dele próprio), nem, menos ainda, que os mesmos não sejam muito incomodativos e gravemente perturbadores para quem nele vive regularmente.
Pelo contrário, podem ocorrer os dois factos. E ocorrem, neste caso concreto, como resulta, entre outros, dos depoimentos das testemunhas, BB, marido da A., e da irmã desta, FF, que foram particularmente elucidativos em julgamento sobre os ruídos concretos que é possível ouvir. Ouvem-se, como disse a primeira testemunha, os vizinhos de baixo a falar; ouvem-se os vizinhos de baixo, quando estão a tomar banho, inclusive, as palavras. E o mesmo em relação ao piso de cima. Ouve-se até a vibração do telemóvel. Ou, como especificou a segunda testemunha indicada, consegue-se, por exemplo, perceber a advertência que o vizinho faz aos filhos. Nos quartos ouve-se bastante. E na sala também. Isto, para além de outros que também especificaram.
Ora, perante estes testemunhos, não pode afirmar-se que os ruídos antes enunciados não existam. Nem que não sejam muito incomodativos e perturbadores para quem vive no apartamento da A.. Pelo contrário, existem e, pelo menos nalguma medida, resultam do incumprimento do projeto em obra, como asseverou, com crédito, a testemunha, DD, que foi quem fez o primeiro relatório, a pedido da A., e consultou esse projeto.
É certo que o perito, GG, que realizou a perícia ordenada nestes autos, também refere que consultou esse projeto e que o mesmo cumpria todos os requisitos técnicos. Mas, o facto do projeto cumprir esses requisitos, não significa que, na prática, eles tenham sido observados. Nem mesmo por se ter concluído, nos ensaios realizados pelo Laboratório de Metrologia e Ensaio, que são respeitados os “requisitos acústicos aplicáveis (fls. 377 a 390). Na verdade, mesmo respeitando os parâmetros legais, os ruídos podem continuar a existir e ser muito incomodativos, como ficámos plenamente convencidos que são, em razão dos depoimentos de todas as testemunhas antes referenciadas (BB, FF e DD).
Não ignoramos com isto, que a testemunha, CC, que fazia parte do setor comercial da Ré e é filho de um dos gerentes da mesma, procurou, ao longo do seu depoimento, defender a tese contrária. Mas, a nosso ver, sem crédito, uma vez que toda a restante prova já indicada aponta no sentido contrário e foi nítido o envolvimento emocional desta testemunha na defesa dos interesses da Ré, nesta ação.
Assim, tendo em conta a outra prova produzida, é inevitável a conclusão (também extraída na sentença recorrida) de que os referidos ruídos existem, são gravemente perturbadores dos direitos de personalidade já indicados e, por isso mesmo, devem ser erradicados.
E isso, mesmo que não ultrapassem os limites regulamentares.
Na verdade, os direitos de personalidade (em que se inclui o direito ao repouso, à tranquilidade e ao descanso, entre outros) não podem ser restringidos por essa via.
Como refere o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos[7], “[a] compatibilização jurídica do Regulamento do Ruído com o direito de personalidade deve ser feita no sentido de que todos devem limitar a emissão de ruídos, em geral, ao estabelecido no Regulamento; mas desse Regulamento não resulta um “direito a fazer ruído” e muito menos a licitude do impedimento do repouso alheio. O direito de personalidade prevalece sobre o regulamento do ruído” [8].
Como tal, por todas as razões já enunciadas, não só devem manter-se como provados os factos enunciados nos pontos 10, al. a), 15 e 16, como se deve manter a ordem para a eliminação das anomalias aí descritas, posto que correspondem, no fundo, a faltas de conformidade do bem com o contrato, tornando este imóvel inadequado para a finalidade para a qual a A. o adquiriu; o que não era suposto que sucedesse (artigo 2.º, n.º 2, als. c) e d), do Dec. Lei n.º 67/2003).
Daí que se confirme o decidido na sentença recorrida a este propósito.
Prossigamos, agora, para a análise das demais anomalias impugnadas.
E, entre elas encontra-se as previstas nas alíneas b), c) e d), do ponto 10 dos Factos Provados, cujo teor é o seguinte:
“b) Caudal da conduta de extração elevado, com as seguintes consequências:
i. Vozes perfeitamente audíveis e percetíveis, vindas de outros apartamentos, através das condutas de extração do ar, nas casas de banho;
ii. Desconforto térmico, resultante do elevado caudal de extração do ar, nas casas de banho;
iii. Funcionamento irregular do fogão de sala, devido ao elevado caudal de extração do ar.
c) Acabamento incompleto na zona de extração do fogão de sala, com as seguintes consequências:
i. Entrada de fumo para o interior da habitação, através do teto da sala.
d) Caudal da conduta de extração elevado, com as seguintes consequências:
i. Vozes perfeitamente audíveis e percetíveis, vindas de outros apartamentos, através das condutas de extração do ar, nas casas de banho;
ii. Desconforto térmico, resultante do elevado caudal de extração do ar, nas casas de banho”.
Relacionado com o modo de funcionamento do fogão de sala, está o ponto 17 dos Factos Provados, no qual se refere que “a A. não pode acender o fogão de sala pois entra fumo para o imóvel”
Alega a Ré:
“Como resultou do exame pericial realizado pelo perito nomeado pelo Tribunal, como tal, independente das partes, e dos quesitos formulados pela ré, a extracção de ar das condutas das fracções é mecânica, integrando as zonas comuns do prédio, com motores instalados na cobertura do prédio, e é regulável, fazendo aumentar ou diminuir o caudal de extracção.
Não se trata, assim, de defeito de construção, mas sim e apenas da regulação do caudal de extracção de ar, no caso, da competência da administração do condomínio”.
E quanto ao facto da A. se queixar de que não pode acender o fogão de sala, porque entra fumo para o imóvel, alega a Ré que esta afirmação é contrariada pelo relatório da perícia realizada nestes autos, no qual se pode observar o fogão de sala a funcionar sem produzir qualquer fumo no interior do apartamento.
Ora, o fumo de que a A. se queixa não é apenas o que provêm do próprio fogão.
Como resultou, por exemplo, do depoimento do marido da A., mas também consta do relatório elaborado pela testemunha, DD (fls. 18), há um deficiente remate na zona de extração do próprio fogão de sala, que deixa passar, inclusive, como relatou a testemunha primeiramente referida, os fumos provenientes do sobreaquecimento dos tubos que fazem a extração das outras frações situadas nos pisos inferiores. O que parece ter passado despercebido ao perito que realizou a perícia nestes autos.
Além disso, no que concerne ao caudal de extração de ar, a verdade é que, como se refere no relatório elaborado pela testemunha, DD, o mesmo também pode ser regulado dentro do próprio apartamento, se introduzidas as medidas aí propostas, algumas das quais, embora previstas no projeto, não foram sequer aplicadas. Referimo-nos, por exemplo, às válvulas de extração das casas de banho ou as “bocas preconizadas no projeto”, aptas à eliminação do desconforto térmico e acústico que é sentido nesta habitação. Isto, para já não falar do acabamento incompleto na zona da extração do fogão de sala, que também contribui para muitas das consequências antes referenciadas. Ou seja, em resumo, as citas anomalias ocorrem e não apenas pela razão indicada pela Ré, pelo que devem ser corrigidas em conformidade.
No que diz respeito ao “closet” existente no quarto principal, a Ré não contesta que o mesmo seja mais frio do que o resto da área desse quarto. O que alega é que se trata de um armário embutido, onde não é suposto ter qualquer órgão de aquecimento interno. Nem isso está em discussão. O que se passa é que, como refere o relatório a que temos vindo a fazer referência (elaborado pela testemunha, DD), as paredes desse “closet” não dispõem de qualquer acabamento ou isolamento, como deviam, e daí resulta a referida diferença térmico. Por conseguinte, deve ser corrigida também essa anomalia.
Esta e todas as outras detetadas e julgadas provadas, pois que as mesmas são manifestamente incompatíveis com um uso normal e confortável do imóvel que a A. adquiriu à Ré, além de que, em resultado de tais anomalias, carece esse imóvel das qualidades e desempenho habituais nos bens do mesmo tipo, qualidades e desempenho com que a A. podia razoavelmente contar (artigo 2.º, n.º 2, als.c) e d), do Decreto-Lei n.º 67/2003).
Resta, para concluir, afirmar que, embora a Ré também impugne o teor do ponto 18 dos Factos Provados, no qual se refere que, em consequência das anomalias detetadas e provadas, a A. sente, desgosto, tristeza e preocupação, fá-lo essencialmente no pressuposto de que essas anomalias não deviam ser reconhecidas, nem julgado provado o conhecimento das mesmas, por parte da A., apenas no ano de 2013, pressuposto que não ocorre.
Donde, em resumo, o presente recurso só pode ser julgado improcedente e confirmada a sentença recorrida.
*
III- Dispositivo
Pelas razões expostas, acorda-se negar provimento ao presente recurso e, consequentemente confirma-se o decidido na sentença recorrida.
*
- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão suportadas pela Ré - artigo 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 27/9/2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
_______________
[1] Artigo 13.º da petição inicial.
[2] Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio e Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro [artigo 54.º, al. b)], mas que aqui não é aplicável por este contrato ser anterior à data da sua entrada em vigor (artigo 53.º, n.º 1).
[3] Esta Diretiva 1999/44/CE, conforme decorre do disposto no artigo 23.º da Diretiva (UE) 2019/771 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2019, foi também revogada com efeitos a partir de 01/01/2022, mas sem implicações para a situação em apreço.
[4] Neste sentido, entre outros, Ac. RG de 16/01/2020, Processo n.º 4381/09.2TJVNF.G1, consultável em www.dgsi.pt, bem como a doutrina aí referenciada.
No mesmo sentido se pronuncia João Cura Mariano, in Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, 5ª Edição Revista e Aumentada, 2013, Almedina, pág.253, em relação ao contrato de empreitada.
Como refere, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 12ª edição, Almedina, pág. 550, “o regime da empreitada de bens de consumo não impõe ao dono da obra o dever de verificar, apenas irresponsabilizando o empreiteiro se o dono de obra conhecia a falta de conformidade ou não podia razoavelmente ignorá-la ou se esta resultar de materiais por este fornecidos (artigo 2.º, n.º 3 D.L. 67/2003)”.
[5] Há, no entanto, uma “pequena grande diferença de estilo” entre a previsão do artigo 2.º-2 da Diretiva 1999/44/CE e o artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-lei n.º 67/2003. “a Diretiva presume a conformidade, se coexistirem todas as circunstâncias elencadas; o Decreto-lei presume a não conformidade, se se verificar alguma dessas circunstâncias” – João Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo, Comentário, 3ª edição, Almedina, pág.60.
[6] Neste sentido, Ac. STJ, de 05/03/2013, Processo n.º 3298/05.4TVLSB.L1.S1, consultável em www.dgsi.pt e Jorge Morais Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7ª edição, Almedina, pág. 348.
[7] Direito de Personalidade, Almedina, 2017, pág. 72.
[8] No mesmo sentido, se pronuncia a jurisprudência citada pelo mesmo Autor (na nota 107) e ainda, por exemplo, o Ac. RG, de 09/06/2016, Processo n.º 1300/07.4TBFAF.G1, consultável em ww.dgsi.pt.