EXTORSÃO
TIPO
CUMULO
ROUBO
COACÇÃO
BURLA
Sumário

A extorsão é um crime   cuja descrição típica é muito complexa, tornando-se, por vezes, difícil a decisão sobre a qualificação jurídica de uma conduta como crime de extorsão ou de outros ilícitos, com os quais tem muitos elementos comuns, nomeadamente os de coação, roubo , burla , e abuso de confiança.  
As maiores afinidades são com o crime de coação, pois que todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação àquele, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num injusto prejuízo para o sujeito passivo   e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro. Por isso, o crime de extorsão constitui uma lex specialis face ao crime de coação.     
Relativamente ao crime de burla, a distinção é nítida.
Os crimes de extorsão e de burla são crimes contra o património em geral; ambos pressupõem uma certa cooperação da vítima, uma vez que as condutas, de que resultam o prejuízo patrimonial da vítima (o extorquido e o burlado) e o enriquecimento ilegítimo do agente (o extorsionário e o burlão) ou de terceiro, são realizadas pela própria vítima ou por um terceiro;
São crimes contra o património, lesam também o bem jurídico liberdade de decisão e de ação, pois que, sendo isto evidente no caso de extorsão, não deixa de ocorrer também no crime de burla, uma vez que a liberdade no processo de decisão sobre o ato de disposição patrimonial foi afetada pelo erro ou engano provocados pelo burlão.
Distinguem-se, claramente, entre si por força dos meios utilizados: na extorsão, violência ou ameaça com mal importante, ou chantagem. Na burla, erro ou engano.
Tal determina, justificadamente, a diferença nas penas aplicáveis, que são mais severas no crime de extorsão.
O crime de extorsão e o crime de roubo são crimes contra o património. Tanto  num quanto no outro os meios de execução são a violência ou a ameaça, o que significa que ambos lesam também a liberdade de disposição patrimonial.
O crime de roubo contempla não apenas a ação de subtração mas também a de coação ao ato de entrega.
O objetivo imediato da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. - RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum, com intervenção do Tribunal Coletivo, n.º 5/22.0SHLSB, do Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 14, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi submetido a julgamento o arguido LC_____, natural da Venezuela, sem morada, pintor da construção civil e artista, titular do Passaporte Venezuelano n.º ____atualmente preso preventivamente.
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Em 23/06/2022 foi proferido acórdão, depositado no mesmo dia, em cujo dispositivo consta o seguinte [transcrição[1]]:
“Nestes termos, e atendendo à exposição precedente, julga este Tribunal Coletivo a acusação do Ministério Público parcialmente procedente por provada, assim se decidindo:
1. Absolver o Arguido LC_____ da prática de um crime de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1 e 2, al. b) por referência ao artigo 204.º, n.º 2 al. f) e 26.º do Código Penal;
2. Condenar o Arguido LC_____ pela prática de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.º/1 do Código Penal, como reincidente, na pena de 3 (três) anos de prisão;
3. Condenar o Arguido LC_____ pela prática de um crime de extorsão na forma tentada, p. e p. pelo art.º 223.º, n.º 1, 22 e 23 do Código Penal, como reincidente, na pena de 1 (um) ano de prisão;
4. Condenar o Arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;
5. Mais condenar o Arguido LC_____ na sanção acessória de expulsão, com proibição de reentrada pelo período de 5 (cinco) anos.
6. Vai ainda o Arguido condenado nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, bem como nos demais encargos nos termos do art.º 514.º do Código de Processo Penal.»
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Inconformado com tal decisão, em 12/07/2022, dela veio o identificado arguido interpor o presente recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, sendo a motivação rematada pelas seguintes conclusões e petitório [transcrição]:
«I. O presente recurso tem como objeto toda a matéria de direito do Acórdão proferido nos presentes autos que condenou o Arguido pela prática do crime de roubo e pela tentativa do crime de extorsão na pena única de 3 anos e 6 meses e na sanção acessória da pena de expulsão
II. O Tribunal a quo fez assentar a sua convicção apenas, no depoimento do ofendido uma vez que mais nenhuma testemunha presenciou a apropriação do telemóvel nem a combinação da devolução do mesmo.
III. Sucede que, o depoimento do ofendido revelou-se pouco claro, impreciso e contraditório no seu conjunto
IV. Na verdade, com base nas anteriores declarações do ofendido o Arguido veio acusado pela prática de um crime de roubo agravado, previsto e punível pelo art. 210º n.º 1 e 2 al. b) por referência ao art. 204.º nº 2 f) e 26º todos do mesmo Código Penal.
V. Todavia, em audiência de julgamento o ofendido declarou não ter visto nenhuma faca nem canivete ao Arguido, o que levou o Tribunal a quo a retirar a correspondente agravante do crime de roubo por que vinha acusado.
VI. Resulta assim, temerário considerar-se que apesar das declarações contraditórias do ofendido este é que é o detentor exclusivo da verdade e que ao invés
VII. todas as declarações do Arguido, que pretendeu contribuir para a descoberta da verdade material, e sem rejeitar os factos, fossem falsas e destituídas de razoabilidade e verossimilhança.
VIII. Assim, além de ter caído por terra em audiência de julgamento a agravante deste crime de roubo considera-se que não tendo havido violência física nem agressões corporais e o telemóvel ter sido devolvido ao seu dono, a pena a aplicar ao Arguido deverá ser aplicada pelo seu mínimo de 1 ano de prisão.
IX. Prosseguindo a apreciação da matéria dada como provada apenas, com base no depoimento do ofendido verifica-se que também, no tocante à condenação do Arguido na prática do crime de extorsão é de relevar a contradição das declarações do ofendido.
X. Primeiramente declarou na queixa-crime que o arguido lhe tinha exigido a entrega de 250 euros em troca do telemóvel e das informações aí contidas, como consta do art. 8º da Acusação.
XI. Mas, em audiência de julgamento o ofendido declarou, expressa e claramente que o Arguido começou por pedir 200,00€ e que no final do telefonema já aceitava 50,00€.
XII. No entanto, o que foi dado como provado foi que o Arguido começou por pedir €50,00 para devolver o telemóvel mas à medida que a conversa foi evoluindo, acabou por pedir €200,00 - art.8º da Fundamentação.
XIII. Por outro lado, ficou igualmente provado que o ofendido acedeu às exigências do Arguido e combinaram um encontro para as 15horas do dia 13.01.22 na Padaria do Bairro na Rua da Palma em Lisboa, de acordo com o Art. 9 da Fundamentação.
XIV. Ora, a escolha do horário diurno e a do local do encontro que ocorreu no interior de uma pastelaria situada numa zona com bastante movimento quer no seu interior quer nesta conhecida rua de Lisboa que é pois, um local público, com clientes e portanto, à vista de todos,
XV. é por si só reveladora da falta de adequação ao cometimento do crime de extorsão.
XVI. Com efeito, o Arguido concordou com o encontro dentro da pastelaria onde portanto, ficou encurralado num local fechado
XVII. em que bastaria o ofendido deslocar-se com dois ou três colegas ou com a PSP, como sucedeu,
XVIII. para que ficasse sem hipótese de sair livremente do local.
XIX. Do conjunto das declarações prestadas pelo ofendido de que o Arguido acabou por lhe pedir 50,00€ pela entrega do telemóvel conjugadas com concreta marcação da hora e do local do encontro conclui-se que para este o dinheiro era um pedido de ajuda e não um meio de troca.
XX. Daí que é notória a falta de adequação ou aptidão do local para a consumação do crime de extorsão.
XXI. Decorrentemente, resulta manifesta a falta de dolo do Arguido para o cometimento do crime em apreço.
XXII. Em consequência, a tentativa não é punível perante a manifesta inaptidão das circunstâncias para que o Arguido conseguisse que o ofendido lhe pagasse pela devolução do que é seu.
XXIII. Por conseguinte, o Arguido não praticou tal crime e como tal, não pode ser punido pela tentativa do crime de extorsão.
XXIV. Mas sim, só pela prática do crime de roubo simples, caso em que não há lugar ao cúmulo jurídico.
XXV. Face ao exposto concluímos que o Tribunal a quo ao dar como provada apenas, a versão dos factos em que recaiu o depoimento do ofendido violou o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código do Processo Civil.
XXVI. No demais, pesa a favor do Arguido o seu bom comportamento em prisão, sendo que mesmo em prisão preventiva conseguiu já começar a trabalhar na cozinha onde colabora ativa e empenhadamente nas funções que lhe são fixadas.
Termos em que e nos demais de direito deve ser dado provimento ao presente recurso e por via dele, ser revogado o presente acórdão e em consequência, ser diminuída a pena do crime de roubo, e absolvido do crime de extorsão na forma tentada em que veio condenado».
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Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª instância nos seguintes termos [transcrição]:
«O arguido recorre invocando que não existe prova de que tenha praticado os factos que lhe são imputados, nomeadamente porque o Tribunal valorou apenas o depoimento do ofendido que, no seu entender, não merece qualquer credibilidade. Alega, ainda que não se verifica qualquer tentativa de extorsão por falta de “adequação ou aptidão do local para a consumação do crime”.
Cremos, no entanto, que lhes não asiste razão.
A decisão recorrida não deve merecer, pois, qualquer preparo.
Com efeito, o que o Recorrente põe em causa é a valoração que o tribunal realizou da prova produzida, não indicando uma única prova que imponha uma decisão diferente.
Ora, é consabido que a mera discordância da valoração da prova, sem indicação dos meios de prova que IMPONHAM uma decisão diferente é insuscetível de alterar o sentido da decisão, uma vez que o tribunal de 1ª instância ao abrigo do principio da livre apreciação da prova é quem a recebe de forma imediata e quem está em melhores condições de a apreender e valorar.
E a Jurisprudência tem considerado que tal recurso não deve ser nem um novo Julgamento nem uma mera discórdia da forma como o Tribunal recorrido valorou a prova produzida.
Tal como o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.3.2006 (Relator Fernando Monterroso) realça:
Dispõe o art. 412 nº 3 do CPP:
Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente provados; e
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida.
c) ....
Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
(…)
a função do julgador não é a de achar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos. Nem, tão pouco, tem o juiz que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a espinhosa missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito. Como, aliás, já há muito ensinava o prof. Enrico Altavilla “o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras” – Psicologia Judiciária, vol. II, 3ª ed. pag. 12.
Ou seja, o ataque à decisão da matéria de facto é feito pela via da credibilidade que o colectivo deu a determinados depoimentos. A procedência desta argumentação pressuporia a revogação pela Relação da já mencionada norma do art. 127 do CPP, a que os tribunais devem naturalmente obediência, que manda que o juiz julgue segundo a sua livre convicção”.(sublinhados e realces nossos).
Assim, e pelo que fica dito, a decisão recorrida julgou corretamente a prova produzida pelo que não deve merecer censura.
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Pelo exposto, mantendo a decisão recorrida e negando provimento ao recurso, V. Excªs farão a esperada  JUSTIÇA!»
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Na vista a que se refere o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público em 1.ª instância, emitiu parecer consonante, no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente, sendo de manter o acórdão recorrido.
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Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta.
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Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II. – FUNDAMENTAÇÃO
Dispõe o artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões delimitam, pois, de forma incontornável, como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, o objeto do recurso, delas se devendo extrair as concretas questões a decidir.
Assim, no caso concreto, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente – que, de tão extensas, frustram o objetivo que o citado normativo legal lhes assinala e dificultam a sua perceção –, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são as seguintes:
- Se há lugar à alteração da matéria de facto;
- Se se mostram verificados os elementos típicos do crime de extorsão sob a forma tentada, mormente o subjetivo;
- Se a pena aplicada pelo crime de roubo deve ser reduzida.
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O acórdão recorrido exarou o seguinte quanto à factualidade relevante para a decisão da causa e à respetiva fundamentação [transcrição]:
«Realizada audiência de julgamento, provaram-se os seguintes factos:
1. No dia 12 de Janeiro de 2022, cerca das 21h00 horas, MF_____ circulava apeado na Rua Dom Luis I, por trás do edifício da EDP, em Lisboa, em direção à rua da Boavista, quando foi abordado pelo arguido LC______  
2. Após uma troca de palavras, o arguido agarrou MF_____ pelas costas, com violência puxou-o pelo capuz do casaco, enquanto o ameaçava dizendo que tinha na sua posse uma faca e pediu dinheiro.
3. MF_____ ainda tentou defender-se mas, por temer pela sua vida e integridade física, parou de resistir e entregou umas moedas no valor próximo de 5 euros.
4. Como disse não ter mais dinheiro, o Arguido pediu-lhe o telemóvel.
5. MF_____ entregou o seu telemóvel Oppo, modelo A74, de cor preta, no valor de 180 euros
6. Na posse daqueles pertences de MF_____ o arguido colocou-se em fuga em direção à Avenida 24 de Julho.
7. Cerca das 23h30 horas, o arguido, utilizando o telemóvel de MF_____ ligou para um amigo deste e entrou em contacto com MF_____  
8. Em conversa, o Arguido começou por pedir € 50,00 para devolver o telemóvel mas, à medida que a conversa foi evoluindo, acabou por pedir € 200,00 para tal efeito.
9. Por temer perder a informação contida no telemóvel, designadamente parte dos seus trabalhos académicos, o que para si seria bastante gravoso, MF_____ acedeu às exigências do arguido e combinaram um encontro para as 15h00 horas do dia 13.01.2022 na Padaria do Bairro da Rua da Palma, em Lisboa.
10. Cerca das 12h00, MF_____ comunicou o que se estava a passar à PSP e, juntamente com elementos policiais, deslocou-se junto do arguido, com vista à recuperação do seu telemóvel.
11. O arguido LC______  foi intercetado na Rua da Palma, no interior do estabelecimento que tinha combinado com MF_____ a entrega do telemóvel.
12. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido tinha na sua posse o telemóvel pertencente a MF_____  
13. O arguido LC______  agiu com intenção de subtrair e se apropriar dos pertences de MF_____ não se inibindo de utilizar a ameaça de uma faca para lograr os seus intentos, mesmo sabendo que atuava contra a vontade do legitimo proprietário, e não se inibindo de o fazer.
14. Mais atuou o arguido com intenção de conseguir para si enriquecimento ilegítimo, levando MF_____ a entregar-lhe quantia em dinheiro ameaçando-o de que
perderia o telemóvel e a informação que o mesmo continha, que para o mesmo representava uma situação grave, situação que o arguido tomou conhecimento.
15. Em todas as suas condutas que acima forma descritas, o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as mesmas são proibidas e punidas por lei penal.
16. O arguido LC______  foi julgado e condenado pela prática de um crime de violação, um crime de roubo e um crime de coação na pena de oito anos e oito meses de prisão, transitada em 15 de Maio de 2013, no âmbito do NUIPC 34/11.0PFEVR, por factos ocorridos em 2011, 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Évora.
17. O arguido foi detido em 13 de Novembro de 2011 e esteve ininterruptamente detido desde essa data até lhe ser concedida a liberdade condicional em 7 de Abril de 2019, data em que foi libertado.
18. O arguido LC______  é natural da Venezuela e não tem qualquer autorização para residir em Portugal, encontrando-se ilegalmente em território nacional, decorrendo no SEF processo de expulsão contra o mesmo.
19. O arguido não tem qualquer família em Portugal.
20. Do seu Certificado de Registo Criminal consta:
- uma condenação em 15.04.2013, pela prática em 26.06.2010, de um crime de violação, um crime de roubo agravado e um crime de coação, na pena única de 8 anos de prisão;
- uma condenação em 20.01.2014, pela prática em 11.03.2011, de um crime de furto qualificado tentado em pena de multa;
- uma condenação em 22.07.2021 pela prática em 04.07.2021, de um crime de consumo de estupefacientes, em pena de multa.
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DOS FACTOS NÃO PROVADOS
Não ficou provado que:
a) O Arguido pediu algumas moedas, dizendo que estava a pernoitar na rua e que apenas pretendia algum dinheiro para se deslocar para a Venezuela, a sua terra natal.
b) MF_____ recusou entregar moedas.
c) O arguido empunhou um canivete, ao mesmo tempo que dizia que esfaqueava MF_____  
d) O arguido revistou MF_____ e retirou-lhe dos bolsos o telemóvel e as moedas.
e) O Arguido ligou para P____ , exigindo 200 euros em troca do telemóvel subtraído.
f) P____  referiu que se não se encontrava junto do MF_____ e sabendo que o mesmo se encontrava junto do seu grupo de amigos na zona do Cais do Sodré, entrou em contacto com PF__ , que comunicou ao MF_____ o teor do telefonema.
g) No dia 13 de janeiro de 2022, de manhã, MF_____ contactou o arguido para o telemóvel que lhe tinha sido subtraído, tendo o arguido exigido a entrega de 250 euros em troca do telemóvel e da informação nele contida.
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Não se provou qualquer outro facto relevante para a decisão da causa.
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FUNDAMENTAÇÃO
A convicção sobre a matéria de facto dada como provada resultou da prova produzida em audiência a qual foi livremente apreciada de acordo com os critérios estabelecidos pelo art.º 127º do Código de Processo Penal.
Nomeadamente, foram tidos em conta os depoimentos das testemunhas ouvidas, com particular relevo para MF_____ a vítima, que de forma clara, coerente e credível descreveu todos os factos que consigo, diretamente, ocorreram. A forma como descreveu a abordagem do Arguido, a ameaça, a circunstância de não ter visto qualquer faca, e como ocorreram os contactos posteriores nos quais lhe foi pedido dinheiro para reaver o telemóvel, assim se determinando a ir à polícia quando já estava combinado um encontro com o seu assaltante.
CS___ , agente da Polícia de Segurança Pública, confirmou a intervenção policial que levou à detenção do Arguido e à recuperação do telemóvel, documentada nos autos.
Por seu turno, as declarações do Arguido foram incoerentes e inconsistentes, quando analisadas à luz das regras da experiência comum. A abordagem à vítima, como por si descrita, não é credível, e muito menos o é a forma como descreve que o telefone veio parar às suas mãos. Pela incompatibilidade da sua versão com a demais prova, não foi a mesma tida pelo Tribunal como verdadeira.
O tribunal teve ainda em consideração os dados decorrentes dos autos de apreensão de fls. 17 e 18, do termo de entrega de fls. 37, da cópia do passaporte do arguido, a fls. 42 e das impressões das mensagens trocadas entre o MF_____ e o arguido, de fls. 47 a 58
Foi ainda tido em conta o Certificado de Registo Criminal de 21.03.2022.»
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Apreciação do recurso
Nos termos do disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal, este Tribunal conhece de facto e de direito.
Conquanto o recorrente, logo no introito do requerimento de interposição de recurso, afirme que o “presente recurso tem como objeto a matéria de direito do acórdão recorrido” [asserção que reafirma na primeira conclusão], certo é que ao longo da motivação e conclusões manifesta a sua discordância quanto a alguns aspetos da matéria de facto provada, que pretende ver alterada, nos termos e pelos fundamentos que ali expõe.
A primeira questão a apreciar é, pois, a que se prende com a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 410º, 412º, n.º 3, e 431º do Código de Processo Penal, o sistema processual penal vigente consagra um duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando aos sujeitos processuais a possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas, em consonância com o princípio consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, e na fixação da matéria de facto.
Porém, a garantia do duplo grau de jurisdição, «não significa que tenha de se proceder a um novo julgamento, em toda a sua extensão, tal como ocorrera em primeira instância»[2] – única que beneficia plenamente da oralidade e da imediação da prova produzida –, conforme oportunamente detalharemos.
Existem duas formas distintas de impugnação da decisão factual:
- Uma, de âmbito mais restrito, comummente designado de revista alargada, contemplando os vícios da decisão recorrida previstos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal; e
- Outra, a impugnação ampla da decisão da matéria de facto, em consonância com o disposto no artigo 412º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal.
 No primeiro caso, dispõe o artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal que, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso à matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.»
Tais vícios têm, porém – tal como decorre do enunciado preceito legal –, que resultar da própria decisão recorrida na sua globalidade, mais concretamente do texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer outros elementos que lhe sejam externos, para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes no processo, advindos do próprio julgamento[3]. Constituem defeitos estruturais e intrínsecos da decisão, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, excluída a possibilidade de consideração de outros elementos extrínsecos, ainda que constem do processo.
Neste âmbito da análise dos vícios decisórios, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla da matéria de facto, o tribunal de recurso não aprecia a matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua atuação, num exercício de exegese hermenêutica, à deteção dos vícios que a decisão recorrida evidencia e, não sendo possível saná-los, determina o processo para novo julgamento.
Ainda que não sejam invocados, os assinalados vícios da decisão são de conhecimento oficioso – acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19 de outubro, publicado no DR, I-A, de 28 de dezembro de 1995.
Debrucemo-nos, ainda que perfuntoriamente, sobre cada um dos aludidos vícios, densificando-os:
Verifica-se insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade dada como provada na decisão se revela insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada e quando o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, deixou de investigar toda a matéria de facto que, sendo relevante para a decisão final, podia e devia ter investigado. Emerge, assim, quando ocorre a omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. Tal lacuna de factos deve resultar da própria decisão recorrida, mediante a aferição interna que apenas atende ao que nela consta, e não se confunde, pois, com a eventual falta de provas que pudessem sustentar a demonstração da factualidade que ali foi dada como apurada[4].
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão pode traduzir-se numa multiplicidade de situações[5]:
- Oposição na matéria de facto provada – v.g., dão-se como provados dois ou mais factos que estão, entre si, em oposição, sendo, por isso, logicamente incompatíveis;
- Oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada – v.g., dá-se simultaneamente como provado e como não provado o mesmo facto;
- Incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto – v.g., quando se dá como provado determinado facto e da motivação da decisão resulta, atenta a valoração das provas e o raciocínio lógico dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correta;
- Oposição entre a fundamentação e a decisão – v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final e, no dispositivo da sentença, consta decisão de sentido inverso.
Ocorre erro notório na apreciação da prova quando a decisão ostenta um erro de apreciação dos meios probatórios observável por um homem de formação média, que, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou, até, contraditórios.
O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre a prova vinculada e/ou das legis artis.
Em suma, o vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente[6] e, muito menos, ao juiz “normal”, dotado de cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar.
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos de um homem médio pela simples leitura da decisão e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido[7] ou dar-se como não provado o que não pode deixar de ter acontecido.
Este tipo de erro, a ressaltar do teor da decisão, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se confunde com o erro de julgamento previsto no artigo 412º, n.º 3, que resulta da forma como o tribunal teria valorado a prova produzida.
O erro de julgamento «ocorre, quando o tribunal considere provado um determinado facto sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste caso de situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância, havendo que a ouvir em 2ª instância»[8], remetendo-nos para o domínio da impugnação ampla da matéria de facto prevista no artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6, do Código de Processo Penal. Aqui, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida – como acontece com o vício do erro notório da apreciação da prova –, alargando-se à apreciação do que se contém e do que se pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre delimitada pelo recorrente através do ónus da especificação a que aludem os n.ºs 3 a 6 do citado normativo legal.
Em síntese, «O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada, nos termos em que o foi; o erro notório na apreciação da prova, para além de ser ostensivo, prescinde da análise da prova produzida, para se ater tão-somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa impossibilidade de recurso a outros elementos, ainda que constantes no processo»[9].
No domínio da impugnação ampla da matéria de facto visa-se, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida[10].
Contudo, cumpre sublinhar que, como vem assinalando a doutrina e a jurisprudência, «Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E é exatamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412º, n.º 3, do CPP:
3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
A referida especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados»[11].
Por seu turno, «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado[12].
Finalmente, «a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artº 410º, nº 2, do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artº 430º, do CPP).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes»[13], em consonância com o estabelecido nos nºs 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal, que assim regem:
«Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação» (n.º 4).
Neste caso, «o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa» (n.º 6).
De acordo com o decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2012[14], «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações».
Em síntese, «face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, atualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado artigo 412º»[15].
Aqui chegados, importa sinalizar que, como realçou o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 12-06-2008[16], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso;
- A que tem a ver com o facto de ao tribunal de a 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b), do nº 3, do citado artigo 412º].
Como decorrência, é manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e que faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância[17].
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[18], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros»[19].
Precisamente porque não se trata de um novo julgamento, não cabe à Relação reapreciar toda a matéria factual dada como provada ou não provada na primeira instância, nem analisar toda a prova ali produzida e documentada nos autos, sendo a reapreciação segmentada e parcelar[20]. Circunscreve-se, apenas e tão só, aos pontos de facto que o recorrente individualiza obrigatoriamente no recurso como estando, em seu entender, incorretamente julgados, cabendo-lhe, também, indicar as concretas provas de onde resultem os alegados erros de julgamento e que impõem decisão diversa. Daí que não lhe baste formular genericamente a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto e apontar o sentido que deve ser dado à prova[21].
No caso vertente, da análise conjugada da motivação e das conclusões emerge que o recorrente visa, primacialmente, arguir o erro de julgamento em relação à decisão que recaiu sobre a matéria de facto, porquanto, no seu entender, a prova produzida, conjugada com as regras da experiência comum, imporia uma decisão diversa da que foi tomada pela primeira instância, com reflexos no enquadramento jurídico e na determinação da pena.
Esta forma de impugnação da decisão sobre a matéria de facto leva-nos a concluir que o recorrente – não obstante tenha, reiteradamente, asseverado que o recurso se limitava à matéria de direito – pretendeu lançar mão da impugnação ampla prevista no artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na medida em que alude expressa e concretamente a fatores externos, exógenos ao acórdão, e não ao teor (literal) do mesmo.
Todavia, o recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada previsto nas alíneas do referido n.º 3 e no n.º 4 do mencionado artigo 412º.
Assim, desde logo, incumpriu o ónus de especificação dos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, no que se refere à indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, tanto da leitura da motivação como das conclusões resulta, de forma cristalina, que a impugnação da matéria de facto se limita a procurar abalar a convicção formada pelo tribunal a quo, nomeadamente na parte em que atribuiu credibilidade ao depoimento do ofendido em detrimento das declarações do arguido e na forma como interpretou alguns aspetos daquele depoimento, quando analisados segundo as regras da experiência comum, designadamente ao concluir que o pedido formulado pelo arguido ao ofendido para que este lhe entregasse uma quantia monetária como contrapartida da devolução do telemóvel que lhe havia anteriormente subtraído, ainda que a concretizar num estabelecimento comercial aberto ao público, constituía uma exigência, e não um pedido de ajuda como o recorrente pretende fazer crer, com repercussão no elemento subjetivo.
A inobservância do ónus de especificação previsto no artigo 412º, n.ºs 3, als. b) e c), e 4, do Código de Processo Penal inviabiliza a reapreciação da matéria de facto pela via da impugnação ampla desta.
E como os vícios previstos no n.º 2, do artigo 410º – nomeadamente o erro notório na apreciação da prova – são de conhecimento oficioso, importa consignar que, analisado o acórdão recorrido, não se vislumbra qualquer um dos vícios ali discriminados, mormente o apontado.
Com efeito, o tribunal a quo discriminou os meios de prova em que se baseou e explicitou e fundamentou, criteriosamente, num raciocínio lógico e de normalidade, a forma como analisou cada um dos meios probatórios produzidos em audiência, nomeadamente os motivos pelos quais atribuiu credibilidade ao depoimento do ofendido e não acreditou na versão do recorrente, alcançando uma convicção sólida, o que fez pela forma supra transcrita e que aqui se dá por reproduzida.
Conclui-se, por conseguinte, que o texto da decisão recorrida explica com clareza as razões que levaram o julgador a acreditar que o arguido praticou os factos que foram dados como provados nos termos exarados e justifica os motivos pelos quais afastou a tese que aquele trouxe aos autos e aceitou a versão apresentada pelo ofendido, analisando-as no confronto com os demais meios probatórios e de acordo com os princípios da lógica e as regras da experiência comum.
Acresce que, na fundamentação, a versão dos factos acolhida pelo tribunal recorrido encontra-se explanada de forma lógica, racional e sustentada na prova produzida.
Como já antes se referiu, a simples discordância do impugnante da decisão sobre a matéria de facto não conduz, por si só, nem a erro de julgamento, nem a erro notório na apreciação da prova.
Não obstante, ainda que se analise o teor da decisão recorrida tendo em perspetiva os argumentos expostos no recurso, não existem motivos para se alterar o juízo valorativo feito pelo tribunal a quo nos termos pretendidos pelo recorrente.
Na verdade, em abono da sua visão da prova produzida, o recorrente efetua uma análise crítica das declarações por si prestadas na qualidade de arguido e dos depoimentos produzidos pelo ofendido e da postura processual pelos mesmos adotada, em particular o este último, à luz das regras da experiência comum. Mais concretamente, faz uma síntese daquela que é a (sua) interpretação do sentido das suas declarações e do depoimento do ofendido e invoca a discrepância entre o teor do depoimento por este último prestado em audiência de julgamento e o conteúdo da queixa que apresentou e das suas “anteriores declarações”, tentando evidenciar contradições, imprecisões e incoerências que, do seu ponto de vista, comprometem a credibilidade da tese do ofendido e reforçam a sua própria versão dos acontecimentos.
Ora, nos termos do disposto no artigo 355º, n.º 1, do Código de Processo Penal “Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação de convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência”, ressalvando “as  provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes” (n.º 2 do referido preceito).
Analisadas as atas da audiência de julgamento, constata-se que ali não se procedeu à audição e/ou leitura de depoimentos e/ou declarações prestados em fase anterior, nos termos previstos nos artigos 356º e 357º do Código de Processo Penal.
É, pois, irrelevante invocar o que o ofendido declarou na queixa que apresentou e nas declarações que prestou em sede de inquérito.
Quanto à análise crítica das provas efetivamente atendíveis, o quadro argumentativo desenvolvido pelo recorrente não é de molde a beliscar a convicção do tribunal a quo, que se mostra perfeitamente lógica, racional e consentânea com as regras da experiência comum do normal acontecer, e que beneficiou das vantagens da oralidade e da imediação, que permitem percecionar aspetos dificilmente documentáveis, como é o caso das expressões fisionómicas e da linguagem corporal dos intervenientes, mas que são extremamente relevantes para aferir da credibilidade dos depoentes/declarantes.
Não se verifica, pois, qualquer erro de julgamento.
Outrossim, não se deteta erro notório na apreciação da prova ou qualquer outro vício previsto no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Ante o exposto, mantendo-se, nos seus precisos termos, a materialidade fáctica fixada no acórdão recorrido, há que analisar as questões remanescentes à luz dos seus concretos contornos.
*
Pese embora não tenha sido suscitada por esta ordem, afigura-se-nos ser de conhecer, agora, a questão referente ao preenchimento dos elementos típicos do crime de extorsão sob a forma tentada.
Com efeito, o recorrente foi condenado por dois crimes – roubo e extorsão sob a forma tentada – cometidos em circunstâncias temporais e espaciais próximas e sequenciais, mas apenas se insurge contra o crime de extorsão, sustentando que não está preenchido o elemento subjetivo, por não estar demonstrada a atuação dolosa, pelas razões que, sem sucesso, apontou para colocar em causa a matéria de facto considerada provada.
Como deflui do que vimos dizendo, pelos motivos antes expostos mantém-se inalterada a matéria de facto exarada como provada no acórdão recorrido e, como tal, mostra-se prejudicada a questão da falta do elemento subjetivo do crime de extorsão.
Senão vejamos.
Prescreve o art. 1º, n.º 1, do Código Penal que “Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática”.
Como ensinava Eduardo Correia, «As normas de direito criminal, fixando os pressupostos de aplicação das reações criminais, proíbem ou impõem concretamente as respetivas condutas que descrevem – e a violação destes comandos é que constitui, justamente, o ilícito criminal»[22].
Mas a tipificação dos ilícitos criminais assenta em bens jurídicos, a cuja tutela o respetivo tipo se dirige. No tipo legal de crime o legislador descreve as ações humanas que «encarnam a negação dos valores jurídico-criminais …»[23] que se pretendem proteger.
E, para haver responsabilização jurídico-penal do agente, não basta a mera realização por este de um tipo de ilícito (facto humano antijurídico e correspondente ao tipo legal), antes se torna necessário que tal possa ser censurado a título de culpa, o mesmo é dizer, que aquele comportamento preencha também um tipo-de-culpa.
O nosso sistema jurídico-penal assenta no princípio nulla poena sine culpa, que se traduz no facto de não poder haver pena sem culpa e a medida da pena ser a medida da culpa (cfr. artigo 13º do Código Penal). Vigora, portanto, entre nós o princípio da culpa, segundo o qual toda a pena tem necessariamente como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, afastando-se, portanto, a responsabilidade objetiva.
Como tipos de culpa temos o dolo e a negligência, não sendo possível afirmar-se fora destes dois tipos uma personalidade ético-jurídica censurável.
A diferenciação entre dolo e negligência assume grande importância, uma vez que só as infrações dolosas são, em princípio, puníveis enquanto a negligência só excecionalmente o é e nos casos expressamente previstos na lei, nos termos do citado preceito legal.
A determinação do conteúdo de cada um destes tipos de culpa há de ser feita com base na posição ética do agente perante o dever ser jurídico-penal.
No caso dos crimes imputados ao recorrente estamos perante tipos dolosos.
O dolo compõe-se de dois elementos: um intelectual (traduzido no conhecimento dos elementos e circunstâncias descritas no tipo legal) e outro volitivo ou emocional (expresso na direção da vontade). Significa isto que não basta o conhecimento e vontade de realização do tipo, concebido no conjunto da sua factualidade e circunstâncias; é ainda necessário o conhecimento ou consciência do carácter ilícito, imoral ou anti social da conduta[24]. É necessário que o agente conheça todas as circunstâncias de facto que pertencem ao tipo legal para que a sua atuação se deva considerar dolosa.
Concretamente, sobre o crime de extorsão estatui o artigo 223º do Código Penal:
“1. Quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo é punido com pena de prisão até 5 anos.
2. Se a ameaça consistir na revelação, por meio da comunicação social, de factos que possam lesar gravemente a reputação da vítima ou de outra pessoa, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
3. Se se verificarem os requisitos referidos:
a) Nas alíneas a), f) ou g) do n.º 2 do artigo 204º, ou na alínea a) do n.º 2 do artigo 210º, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos;
b) No n.º 3 do artigo 210º, o agente é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.
4. O agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias se obtiver, como garantia de dívida e abusando da situação de necessidade de outra pessoa, documento que possa dar causa a procedimento criminal”.
Conforme sustenta Taipa de Carvalho[25], que aqui seguiremos de perto, a extorsão é um crime de grande importância prática, dada a sua frequente e crescente verificação. Trata-se, porém, de um crime cuja descrição típica é muito complexa, tornando-se, por vezes, difícil a decisão sobre a qualificação jurídica de uma conduta como crime de extorsão ou de outros ilícitos, com os quais tem muitos elementos comuns, nomeadamente os de coação (art.º 154º), roubo (art. 210º), burla (art. 217º) e abuso de confiança (art.º 205º).
Estruturalmente, as maiores afinidades são com o crime de coação, pois que todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação àquele, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num injusto prejuízo para o sujeito passivo (a vítima da coação ou outra pessoa) e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro. Por isso, o crime de extorsão constitui uma lex specialis face ao crime de coação.
Relativamente ao crime de burla, apesar de os pontos de contacto serem vários, a distinção é nítida. Há afinidades ou mesmo identidade nos seguintes aspetos: os crimes de extorsão e de burla são crimes contra o património em geral; ambos pressupõem uma certa cooperação da vítima, uma vez que as condutas, de que resultam o prejuízo patrimonial da vítima (o extorquido e o burlado) e o enriquecimento ilegítimo do agente (o extorsionário e o burlão) ou de terceiro, são realizadas pela própria vítima ou por um terceiro; tanto a extorsão como a burla, além de serem crimes diretamente contra o património, lesam também o bem jurídico liberdade de decisão e de ação, pois que, sendo isto evidente no caso de extorsão, não deixa de ocorrer também no crime de burla, uma vez que a liberdade no processo de decisão sobre o ato de disposição patrimonial foi afetada pelo erro ou engano provocados pelo burlão. Mas, apesar destas coincidências, o crime de extorsão e o crime de burla distinguem-se, claramente, entre si por força dos meios utilizados: na extorsão, violência ou ameaça com mal importante (violência ou chantagem), já na burla, erro ou engano. É a grande diferença da gravidade dos meios utilizados, em si mesmo considerados (e não em função da maior ou menor eficácia na obtenção do ato de disposição patrimonial, pois que, em muitos casos, o engano poderá ser mais eficaz do que a ameaça), o que determina, justificadamente, a diferença nas penas aplicáveis, que são mais severas no crime de extorsão.
Dificuldades maiores existem, por vezes, na distinção entre o crime de extorsão e o crime de roubo. Ambos são crimes contra o património; tanto num quanto no outro os meios de execução são a violência ou a ameaça, o que significa que ambos lesam também a liberdade de disposição patrimonial; acresce, ainda, que o crime de roubo contempla não apenas a ação de subtração mas também a de coação ao ato de entrega.
O artigo 223º visa garantir a liberdade de disposição patrimonial. O objetivo imediato da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido. Esta a razão da inclusão sistemática do crime de extorsão nos crimes contra o património. Por conseguinte, a extorsão é, em primeiro lugar, um crime contra o bem jurídico património. Acresce-lhe, porém, a tutela do bem jurídico liberdade de decisão e de ação, cuja lesão é conatural à extorsão, em função dos meios usados, o que fundamenta uma agravação das penas relativamente às aplicáveis aos crimes que lesam exclusivamente o património.
O crime de extorsão é um crime comum, pois agente desta infração pode ser toda e qualquer pessoa. Por seu turno, o sujeito passivo (o extorquido) é o titular do interesse patrimonial prejudicado. Geralmente, o sujeito passivo coincidirá com a pessoa vítima da ação de coação; mas não tem de ser, necessariamente, assim, pois pode o agente exercer a violência ou a ameaça de mal importante sobre uma terceira pessoa como meio de constranger o sujeito passivo à disposição patrimonial.
O crime de extorsão é um crime de processo típico, no sentido de que os meios para a sua realização estão taxativamente referidos na lei: «por meio de violência ou de ameaça com mal importante».
Quer o meio de constrangimento seja a violência, quer a chantagem (a ameaça), é necessário que entre ele (recaia a violência ou a ameaça com mal importante sobre a pessoa que haja de realizar a disposição patrimonial ou uma outra pessoa que pertença ao «círculo existencial» daquela) e o ato de disposição patrimonial haja uma relação de adequação.
Objeto do crime de extorsão é o ato de disposição patrimonial, a qual tanto pode consistir numa ação como numa omissão. A ação (ato positivo) pode, por sua vez, traduzir-se num dare (p. ex., uma determinada quantia em dinheiro ou determinado objeto) ou num facere (p. ex., vender ou doar um bem, rescindir um contrato). A omissão (ato negativo) pode consistir na não exigência de um crédito, na não proposição de uma ação judicial, na não apresentação de uma queixa-crime, etc. enfim, o ato de disposição patrimonial (assuma a forma de ação, de omissão ou de tolerância) pode ter por objeto qualquer elemento com valor patrimonial, trate-se de direitos reais (sejam sobre coisas imóveis ou móveis), de direitos de crédito ou mesmo de expetativas jurídicas.
Não basta, para haver extorsão, a lesão da liberdade de disposição patrimonial pois, neste caso, haverá crime de coação, mas não crime de extorsão. É o que acontece, normalmente, no caso do constrangimento (mediante violência ou ameaça com mal importante) ao pagamento de uma dívida. Para haver extorsão é necessário – como crime contra o património que é – que a disposição patrimonial constitua um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima da coação ou para terceiro).
Conforme admite Taipa de Carvalho, dificuldades especiais de qualificação jurídica existem nas hipóteses constrangimento ao cumprimento de obrigações naturais (por exemplo, dívidas prescritas ou dívidas de jogo “não legalizado”) e do constrangimento do ladrão à entrega do objeto furtado.
A questão e as dúvidas não se referem à punibilidade, ou não, da ação de constrangimento, mas sim em saber se tais condutas devem ser qualificadas como crime de coação (arts. 154º ou 155º) ou como crime de extorsão (art. 223º).
Relativamente ao ladrão coagido (mediante violência ou ameaça com mal importante), dever-se-á distinguir se o coator é a pessoa que foi vítima do crime de apropriação por exemplo, furto) da coisa, que, agora, procura reaver mediante coação, a sua conduta não pode qualificar-se como extorsão (pois que o ato da entrega da coisa subtraída nem constitui para o agente coator um enriquecimento ilegítimo, nem constitui, para o coagido, um prejuízo), mas sim como crime de coação; já se o coator (ou a pessoa a quem a coisa é entregue) não é o dono (no sentido de proprietário, usufrutuário, etc.) da coisa, então a conduta deve ser qualificada como crime de extorsão, pois que, além da coação, existe, para o coator (ou terceiro), um enriquecimento ilegítimo, e, para o legítimo dono da coisa (a pessoa a quem a coisa foi ilegitimamente subtraída, por furto ou roubo, por exemplo), um prejuízo. No caso da coação (mediante violência ou ameaça com mal importante) ao cumprimento de obrigações naturais, o credor natural não comete o crime de extorsão (pois que o ato de disposição patrimonial - pagamento da dívida prescrita ou de “jogo não legalizado” - não traz ao credor natural um enriquecimento ilegítimo, nem acarreta, para o devedor natural, um prejuízo), mas apenas o crime de coação.
O facto de os recíprocos enriquecimento e empobrecimento não serem ilícitos ou injustos não significa que, no plano do direito civil, o devedor natural que foi, ilícita e criminosamente (coação), forçado a cumprir a obrigação natural, não tenha o direito de exigir a restituição da coisa (ou correspondente valor) ou dinheiro que, embora devido ao credor natural, foi por este obtida de modo antijurídico.
A retentio soluti, de que goza o credor natural, pressupõe um cumprimento espontâneo (seguramente, não coativo). Ora como, no caso, este não se verifica, a conclusão é a da invalidade do ato de cumprimento, com o consequente direito do coagido de exigir a devolução da coisa ou do dinheiro. 
Também a jurisprudência tem registado divergências a este respeito. Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.06.1998[26], aquele Tribunal já tem decidido que o enriquecimento ilegítimo existe ainda quando o agente é credor do ofendido na medida desse enriquecimento, por não terem sido tomadas as vias da ação legal.
Contudo, segundo o mesmo acórdão, não parece que essa seja a interpretação correta, pois desloca infundadamente o segmento enriquecimento ilegítimo do elemento subjetivo para o elemento objetivo – a ação. Esta – violência ou ameaça de mal importante – já de si é por natureza ilegítima porque ilícita. Por isso, aquele atributo ligado a “enriquecimento” não passaria de mera redundância, uma expressão inútil.
O que a norma exige, para que se verifique o crime de extorsão, é que o agente, por meio de uma ação ilícita tipicamente descrita, atue com dolo específico, com a intenção de conseguir para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo. Além de saber que a sua conduta é ilegítima, o agente visa conseguir um enriquecimento a que sabe não ter direito.
Por isso, muito justamente, Leal Henriques e Simas Santos[27] aproximam, neste ponto, o crime de extorsão do crime de burla, para realçar a identidade do significado da expressão comum a ambos “enriquecimento ilegítimo”: “aquele que não corresponde objetiva ou subjetivamente a qualquer direito”.
Também no acórdão da Relação de Guimarães, de 10.05.2004[28] se sufraga o entendimento de que no crime de extorsão a intenção de enriquecimento ilegítimo intervém como elemento subjetivo do tipo.
Constituem, em resumo, elementos típicos do ilícito de extorsão:
a) - o emprego de violência ou ameaça com mal importante;
b) - o constrangimento, daí resultante, a uma disposição patrimonial que acarrete prejuízo para alguém (o constrangido ou outrem);
c) - e a intenção de conseguir para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (dolo específico).
Feito o enquadramento jurídico precedente, e centrando a nossa atenção no elemento subjetivo do tipo de ilícito – uma vez que o recorrente aceita o preenchimento do elemento objetivo em análise, o que se mostra patente em face da factualidade provada sob os pontos 7 a 12 – dir-se-á que aquele também está claramente verificado. Com efeito, provou-se, sob os pontos 14 e 15 dos factos provados:
«14. Mais atuou o arguido com intenção de conseguir para si enriquecimento ilegítimo, levando MF_____ a entregar-lhe quantia em dinheiro ameaçando-o de que perderia o telemóvel e a informação que o mesmo continha, que para o mesmo representava uma situação grave, situação que o arguido tomou conhecimento.
15. Em todas as suas condutas que acima forma descritas, o arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as mesmas são proibidas e punidas por lei penal.»
Mostra-se, pois, claramente preenchido o elemento subjetivo do crime de extorsão, tendo o arguido atuado com dolo direto e específico, tal como exigido pelo tipo legal em apreço.
A atuação do recorrente quedou-se pela tentativa, como deflui do provado sob os pontos 10 a 12, pelo que incorreu na prática de um crime de extorsão, sob a forma tentada, previsto e punido pelos artigos 223º, n.º 1, 22º e 23º do Código Penal, tal como se concluiu no acórdão recorrido.
O referido crime está em concurso efetivo com o crime de roubo, pelo qual o arguido também foi condenado, impondo-se, por isso a efetivação de cúmulo jurídico de penas nos termos do artigo 77º do Código Penal, como foi efetivado no acórdão recorrido.
*
Vejamos, por fim, a questão do quantum da pena irrogada ao recorrente pelo crime de roubo, que aquele pretende ver reduzida.
Importa, antes de mais, salientar que «O tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato da pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada.»[29]
Entendeu a decisão recorrida que, em face da materialidade fáctica apurada, o arguido cometeu um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, n.º 1, do Código Penal, e não um crime de roubo agravado, punível nos termos da alínea b) do n.º 2 daquele preceito, por referência ao artigo 204º, n.º 2, alínea f), do mesmo diploma, conforme vinha acusado.
O arguido recorrente não discorda da mencionada subsunção jurídico penal efetuada pelo tribunal a quo, que, de resto, lhe é mais favorável, invocando, porém, que “não tendo havido violência física nem agressões corporais e o telemóvel sido devolvido ao seu dono, a pena a aplicar (…) deverá ser aplicada pelo seu mínimo de 1 ano de prisão”.
Cumpre, antes de mais, sinalizar que, por se ter concluído pela agravação em virtude da reincidência – circunstância a que o recorrente nada opõe –, o limite mínimo da pena de prisão passou a ser de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses, tal como consta do acórdão recorrido, e não de 1 (um) ano.
Há, pois, que ter em perspetiva a moldura penal de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses a 8 (oito) anos de prisão.
Subsequentemente, há que analisar os factos provados – e não os invocados pelo arguido à revelia do que efetivamente se provou e que ora não foi alterado – relevantes para a determinação da medida concreta da pena à luz dos critérios legais enformadores neste domínio.
Estatui o artigo 40º, n.º 1, do Código Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança tem como finalidade “a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu regresso à comunidade lesada pela sua atuação, se reporta à denominada prevenção especial.
Conforme ensina Figueiredo Dias[30], «… a medida da pena há de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, proteção que assume um significado prospetivo que se traduz na tutela das expetativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
A pena não pode, porém, em caso algum ultrapassar a medida da culpa, conforme resulta do disposto no n.º 2 do citado artigo 40º.
A este propósito, salienta ainda Figueiredo Dias[31] que dentro do binómio culpa/prevenção há que ter em conta que a medida da pena não poderá ultrapassar a medida da culpa; a verdadeira função desta na teoria da medida da pena reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso, pois a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer questões preventivas, sejam de prevenção a nível geral positiva ou negativa, de integração ou intimidação, sejam de prevenção, neutralização ou pura defesa social.
Acolhendo tais princípios, estabelece o n.º 1 do art. 71º do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, sendo que, em caso de comparticipação, por força do estatuído no artigo 29º do mesmo diploma, cada comparticipante é punido segundo a sua concreta culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.
Em suma, as exigências de prevenção geral definirão o limite mínimo da pena e a culpa o limite máximo, criando, assim, a moldura dentro da qual se hão de fazer sentir as exigências de prevenção especial ou de ressocialização.
A culpa consiste num juízo de censura dirigido ao arguido em virtude de uma conduta desvaliosa, porquanto este, podendo e devendo agir conforme o direito, não o fez. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta do agente. O grau de consciência que o agente tem da positividade ou negatividade da sua atuação determina o grau de culpa que lhe é imputável, na medida da sua capacidade e vontade de atingir aquele fim proibido.
A prevenção geral, também denominada de integração, prende-se com as exigências comunitárias da contenção da criminalidade e da defesa da sociedade, decorrentes da necessidade de reafirmar as expectativas da comunidade na validade e vigência de uma norma, bem como da tutela do bem jurídico por ela defendido. Atende, fundamentalmente, ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, designadamente a frequência e o espaço onde ocorre e o alarme que esteja a provocar na comunidade. Neste âmbito, importa determinar o mínimo da pena, aquele limite absoluto e intransponível que satisfará a consciência coletiva.
A prevenção especial ou de ressocialização, por seu lado, serve, essencialmente, o escopo de reintegração do agente na comunidade, tentando evitar a quebra da sua inserção nessa mesma comunidade, o que se traduz, em última análise, na ideia base da ressocialização. Na tarefa de determinação das exigências de prevenção especial, atende-se a diversas variáveis atinentes à conduta do agente, idade, vida familiar e profissional, entre outras.
Em consonância com o preceituado no n.º 2 do citado art. 71º do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena deverão considerar-se, ainda, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as ali elencadas de forma exemplificativa:
- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente [alínea a)];
- A intensidade do dolo ou da negligência [alínea b)]; 
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [alínea c)];
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica [alínea d)]; 
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime [alínea e)];
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [alínea f)].
Em resumo, os fatores descritos nas alíneas a), b), c) e e), parte final, referem-se à execução do facto, os referidos nas alíneas d) e f) à personalidade do agente e o referido na alínea e) à conduta anterior e posterior ao facto.
Note-se, porém, o cuidado «(…) com que têm de ser manipulados estes fatores, dada a particularíssima ambivalência de que são dotados: só em concreto se pode determinar o papel, agravante ou atenuante, que desempenham circunstâncias como as da condição económica e social do agente, a sua idade e sexo, a sua educação, inteligência, situação familiar e profissional, etc., quando conexionadas com o círculo de deveres especiais que ao agente incumbiam»[32].        
No caso vertente, o tribunal a quo sopesou as enunciadas circunstâncias, realçando algumas delas, nomeadamente a culpa, o elevado grau de ilicitude dos factos, as consequências dos mesmos, a intensidade do dolo (direto) e as condições pessoais do arguido, designadamente a sua conduta anterior e posterior ao facto, tudo de acordo com o apurado. Naturalmente, os antecedentes criminais que o arguido apresenta, especialmente a condenação por um crime de roubo agravado e a condenação por um crime de furto qualificado, conjugados com as circunstâncias de ter estado preso em cumprimento de pena até 07.04.2019, de se encontrar ilegalmente em território nacional, decorrendo no SEF o processo de expulsão, e de não ter retaguarda familiar em Portugal intensificam as exigências de prevenção especial, sendo as de prevenção geral particularmente prementes em face da consabida escalada de crimes de roubo, geradores de sentimento de insegurança e revolta na sociedade.
Ante o exposto, surge claramente equilibrada e ajustada a pena de 3 (três) anos de prisão que foi cominada ao arguido pelo crime de roubo.
Conclui-se, assim, que, não merecendo censura o elenco de fatores e a ponderação que deles foi feita pelo tribunal a quo na determinação da medida da pena e não se descortinando a desconsideração de quaisquer outras circunstâncias que se tenham provado e que, para esse efeito, sejam relevantes, inexiste fundamento para a pretendida redução da pena, pelo que é de manter a pena de 3 (três) anos de prisão pela prática do crime de roubo.
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Conclui-se, assim, pela total improcedência do recurso.
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III. – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido LC______  e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a três unidades de conta (artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – artigo 94º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
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Lisboa, 21 de setembro de 2022
Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro
Rui Gonçalves
Maria Elisa Marques
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[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade da relatora.
[2] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.04.2013 [Relator: Pires da Graça]
[3] Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 15.ª edição, página 822; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 77.
[4] Cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.04.2018 e 12.06.2019, disponíveis para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[5] Vide o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.06.2016, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[6] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 2.ª edição, Editorial Verbo, página 341;
[7] Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, 2007, Rei dos Livros, página 74.
[8] Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 72/07.7JACBR.C1
[9] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15.07.2004, processo nº 2150/04-5ª, citado por Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 15ª Edição, página 828
[10] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[11] Acórdão da Relação de Coimbra, proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11.07.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[13] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.05.2015, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[14] In D.R. n.º 77, Série I, de 18-04-2012
[15] Cfr. citado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2017
[16] Proc. nº 07P4375, acessível em www.dgsi.pt
[17] Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999
[18] In «O caso Julgado Parcial», 2002, pág. 37,
[19] Cfr., neste sentido, Acórdãos do STJ de 15-12-2005 e de 9-03-2006, acessíveis em www.dgsi.pt
[20] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 31.05.2007, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[21] Vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.02.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[22] Eduardo Correia, Direito Criminal, I, reimpressão, pág. 11.
[23] Ob. cit., pág. 275.
[24] Vide Leal Henriques/Simas Santos, Código Penal, 1º vol, pág. 204
[25] In “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo 2, pág. 338
[26] In CJ, T. II, 1998, pág. 215 e ss.
[27] Código Penal, nota ao art. 222º
[28] Disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[29] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25.09.2017, disponível para consulta no sítio da internet http://www.dgsi.pt
[30] In “Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de Coimbra”, 1998, págs. 279 e ss.
[31] In “Direito Penal II”, pág. 229
[32] Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pág. 248.