GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE PROCESSUAL
PRAZO DE ARGUIÇÃO
Sumário


As deficiências na gravação da prova que inviabilizem o cumprimento da sua razão de existir – o duplo grau de jurisdição em matéria de facto - devem ser arguidas, em 1.ª instância, no prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo, não constituindo as alegações de recurso o meio processualmente idóneo para esse efeito.

Texto Integral




Processo 171/21.2T8PNF.P1.S1

Revista

26/22

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                       

AA apresentou requerimento de impugnação da regularidade e licitude do despedimento que lhe foi movido por A..., Lda.

Foi realizada audiência de partes, não tendo sido possível a respectiva conciliação.

A entidade empregadora apresentou articulado de motivação do despedimento, sustentando a final que o despedimento por justa causa da trabalhadora deve ser considerado devidamente fundamentado e declarada a sua licitude.

A trabalhadora deduziu contestação e reconvenção peticionando o seguinte:

a) Declarar-se ilícito, sem fundamento e sem justa causa o despedimento da Autora, condenado-se a Ré a pagar uma indemnização de antiguidade a que tem direito, correspondente a cada ano completo ou fração da antiguidade, pela qual desde já opta, calculada nos termos legais, no valor de € 55.538,70 e ainda, em qualquer dos casos, ser a Ré condenada a pagar-lhe todas as retribuições e créditos laborais, vencidos e vincendos, a que tem direito, até à data da sentença, tudo acrescido de juros à taxa legal desde a citação e as datas de vencimento, respetivamente, até integral reembolso;

b) Ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de € 938,70 a título de pagamento de formação profissional, dos anos de 2018 a 2020.

c) Ser ainda a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de € 5.000,00, referente a indemnização por danos morais que lhe causou com o seu despedimento ilícito e ilegal, a tudo acrescendo os respectivos juros legais vencidos e vincendo, até integral pagamento, bem como a ser condenada nas custas e demais encargos legais.”.

Foi proferido despacho saneador.

Em 22.06.2021 foi proferida sentença, na qual se decidiu o seguinte:

“Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:

1) Declara-se ilícito o despedimento de AA, levado a cabo por A..., Lda. por decisão proferida em 15/01/2021;

2) Julga-se parcialmente procedente, por provada, a reconvenção e, consequentemente, condena-se A..., Lda.:

a) A pagar à trabalhadora AA a quantia de € 31.000,00 (trinta e um mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, bem como a pagar a quantia diária de € 2,83 (dois euros e oitenta e três cêntimos) desde a presente data até ao trânsito em julgado da presente sentença, a título de indemnização em substituição da reintegração;

b) A pagar à trabalhadora AA as retribuições que deixou de auferir entre a data do despedimento e o trânsito em julgado da presente sentença, com dedução:

i) Da quantia paga no mês de Janeiro de 2021 referente a férias pagas e não gozadas, subsídios de férias e de Natal, deduzidas as taxas referentes a IRS e TSU;

ii) Das quantias recebidas pela trabalhadora desde a data do despedimento a título de subsídio de desemprego, que devem ser entregues pela entidade empregadora ao Instituto de Segurança Social, I.P..”.

c) A pagar a AA a quantia de € 938,70 (novecentos e trinta e oito euros e setenta cêntimos) relativa ao valor das horas de formação não prestada nos anos de 2018 a 2020, acrescida de juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data do despedimento até efectivo e integral pagamento;

d) A pagar a AA a quantia de € 2.000,00 (dois mil euros) a título de compensação por danos morais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data da presente sentença até efectivo e integral pagamento;

3) Absolve-se A..., BB demais peticionado por AA.

Não tendo ainda decorrido doze meses desde a data de apresentação do formulário que deu início ao processo, não é devido qualquer pagamento pela Segurança Social (cfr. artigo 98º-N, a contrario, do CPT).

Custas a cargo de ambas as partes, na proporção do respectivo decaimento (cfr. artigo 527º nºs. 1 e 2 do CPC).

Valor da acção: € 41.688,07 (cfr. artigo 98º-P nº 2 do CPT).

Registe e notifique.”.

A Ré interpôs recurso de apelação.

Por acórdão de 04.04.2022, o Tribunal da Relação do Porto decidiu:

Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:

a) Não admitir a junção dos documentos com as alegações de recurso;

b) Rejeitar parcialmente a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

c) Na parte admitida, julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

d) Julgar o recurso improcedente na vertente da impugnação por erro de direito, confirmando-se a sentença.

e) Julgar improcedente o pedido de condenação da recorrida como litigante de má-fé.”.

A Ré interpôs “recurso de revista excepcional ou, em alternativa, de revista nos termos gerais”, formulando as seguintes conclusões:
I – O presente recurso é interposto da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto em 04/04/2022 no âmbito do recurso de apelação interposto pela recorrente contra a recorrida sobre decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância em Acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento - cfr. recurso de apelação interposto e respectiva decisão (ora recorrida), cujos teores aqui se dão por integrados e integralmente reproduzidos.
II - Decisão, que, nos termos dos fundamentos nela invocados, decidiu desde logo rejeitar a verificação da invocada nulidade processual de falha ou deficiência da gravação da prova e subsequentemente julgar improcedentes outras questões suscitadas pela recorrente, sendo que, salvo o devido respeito por diferente e douta opinião, tal decisão, além de violar preceitos legais e/ou fazer uma errada aplicação da lei, decide contra jurisprudência transitada em julgado, proferida no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, questão, cuja apreciação, pela sua relevância jurídica e social, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito e sobre a qual tem havido algumas controversas na doutrina e na jurisprudência, havendo complexidade na subsunção jurídica por implicar detalhada exegese e/ou por dos preceitos legais ser passível diversas interpretações a porem em causa uma boa aplicação do direito quer substancial quer processual e, consequentemente, retirar deveres e direitos legalmente instituídos que comportam interesses de particular relevância jurídica e social, dado estar em causa a aplicação e interpretação de normas de direito substantivo e processual com manifesta influência na tramitação e decisão de uma causa, como acontece com a decisão recorrida, não fazendo a mesma a devida justiça, -cfr. Acórdão recorrido.
III - Conforme se verifica da decisão recorrida, cujos fundamentos aqui se dão por integrados e reproduzidos, foi rejeitada a apreciação da arguida nulidade de falha/deficiência na gravação da prova, - cfr. Acórdão recorrido.
                                                                                               IV – Assim sendo, como na realidade o foi, tal decisão, com todo o respeito que muito é pelo tribunal recorrido, além de violar o disposto no art. 155º do CPC, padece de erro de julgamento, bem como, decide contra jurisprudência que se encontra firmada no Acórdão fundamento que se junta, donde, manifestamente, resulta, ao contrário da decisão recorrida, que tendo a parte ao seu dispor o prazo para interpor recurso, designadamente quanto à apreciação da prova gravada, é em tal prazo e não outro, que a recorrente tem o ónus de a ouvir/apreciar e, consequentemente, deduzir-lhe ou apontar-lhe qualquer impugnação, deficiência, irregularidade e etc., sendo que, até ao último dia do prazo de recurso pode a parte recorrer ou não e, no caso afirmativo, ouvir o registo da prova gravada, sendo, por via disso, só nesse momento que lhe é possível verificar eventuais deficiências ou vício na gravação, pelo que, em oposição com o decidido na decisão recorrida, a nulidade processual arguida pode ser arguida dentro do prazo da alegação de recurso, podendo tal arguição ter lugar nessa própria alegação, por não ser exigível à parte (ou ao seu mandatário) que proceda à audição dos respectivos registos antes do início do prazo do recurso (relativo à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto), sendo que é no decurso deste prazo que surge a necessidade de uma análise mais cuidada do conteúdo dos referidos registos e, com ele, o conhecimento de eventuais vícios da gravação que podem ser alegados na própria alegação de recurso.
V– Sendo de defender, que mal se compreenderia que assim não fosse, pois que, se a recorrente dispõe de determinado prazo para minutar o recurso e se, nessa minuta, pode impugnar a matéria de facto ( assente e não assente) com base nos depoimentos gravados, é evidente que esse direito (de pedir a repetição da prova omitida ou impercetível) pode ser exercido até ao último dia do prazo legal em curso, porque pode bem acontecer que só nesse prazo (incluindo o último dia) seja detectada a anomalia da gravação.
                                                                                               VI - Tudo como decidido por vária jurisprudência - v.g. acórdãos do STJ de 9/7/2002, na CJ - Acs. STJ - Ano X, tomo II, págs. 153 a 155, de 15/5/2008, de 1/7/2008, de 23/10/2008 e de 13/1/2009, estes proferidos nos processos 08B1099, 08A1806, 08B2698 e 08A3741, respectivamente, disponíveis em www.dgsi.pt, para além do acórdão de 14/1/2010, no processo n.º 4323/05.4TBVIS.C1.S1, e da Relação do Porto de 27/03/2006, de 27/11/2008 e de 16/12/2009, nos processos n.ºs 0651069, 0836973 e 217/05.1TJVNF.P1, no acórdão de 1/4/2014, proferido no processo n.º 42/11.0TBCDR.P2 e no acórdão fundamento que se junta - o acórdão de 10-03-2015, proferido no processo nº 1277/12.4TBFLG.P1, disponíveis no mesmo sítio.
VII - Tendo este deliberado, em súmula, que “A deficiente gravação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento constitui nulidade susceptível de ser arguida nas alegações de recurso quando a gravação não foi disponibilizada nos termos do art.º 155.º, n.º 3, do CPC e não se prove que o reclamante teve conhecimento da deficiência dez dias antes do termo das alegações”, como acontece no caso dos autos, daí que, a arguição da irregularidade em causa possa ter lugar na própria alegação do recurso, pelo que, sendo a nulidade processual atinente a vícios na prova gravada arguida dentro do prazo de recurso, ao contrário do decidido, tal arguição é tempestiva, devendo por via disso ser a decisão recorrida anulada/revogada e, consequentemente, substituída por outra que julgue ser de verificar tal nulidade por tempestiva, com todos os efeitos e legais consequências,
VIII  - Tudo, repita-se, em conformidade com o douto entendimento perfilhado nos acórdãos supra indicados, nomeadamente, com Acórdão fundamento que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido, e do qual resulta, inequivocamente, que a aludida nulidade pode ser arguida dentro do prazo da alegação de recurso, salvo se se demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo - o que no caso dos autos não ocorre, podendo tal arguição ter lugar nessa própria alegação, por não ser exigível à parte (ou ao seu mandatário) que proceda à audição dos registos antes do início do prazo do recurso (relativo à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto), sendo que é no decurso deste prazo que surge a necessidade de uma análise mais cuidada do conteúdo dos referidos registos e, com ele, o conhecimento de eventuais vícios da gravação que podem ser alegados na própria alegação de recurso entretanto interposto.
IX - Mais sendo reconhecido, que tal entendimento deve continuar a ser perfilhado face ao regime do atual CPC, não obstante o disposto no n.º 4 do seu art.º 155.º, pelo menos, nos casos como o caso dos presentes autos, em que não foi disponibilizada a gravação nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, uma vez que nem o DL n.º 39/95 foi revogado pelo art.º 4.º da Lei n.º 41/2013 que aprovou o atual CPC nem deve considerar-se tacitamente revogado visto o art.º 155.º não abarcar todos os aspectos regulados naquele diploma.
X - A disponibilização da cópia da gravação a que alude o n.º 3 do art.º 155.º deve ser feita por iniciativa do tribunal, no prazo de dois dias a contar do respectivo acto, e não estar dependente de prévio requerimento das partes, pois tem, outra amplitude, abrangendo toda a audiência, sem se confinar à mera gravação da prova, certo sendo que, instituída a gravação em sistema sonoro como regra da documentação dos actos praticados na audiência final, a consulta desses elementos só é possível através da audição da gravação realizada e que, a disponibilização da gravação deve ser feita relativamente a cada acto a que respeita, pressupondo, portanto, um acto expresso da secretaria com esse alcance e só com essa disponibilização é que o mandatário da parte estará em condições de aceder aos elementos necessários para eventual reação relativamente a falhas/incorreções da gravação.
XII- A falta de disponibilização da gravação inviabiliza o cômputo do prazo previsto no n.º 4 do referido art.º 155.º, por ser um pressuposto da sua aplicação, não se vendo que a parte esteja sujeita a um especial dever de diligência, que lhe imponha a audição do registo áudio da prova nos dez dias imediatos ao recebimento do tribunal, quando ele se destina a servir de suporte a uma alegação de recurso para cuja elaboração dispõe de prazo e é suposto que a cópia recebida do tribunal não enferme de qualquer anomalia.
XIII- Como a imperfeição da gravação se encontra oculta e o seu conhecimento pela parte a quem pode prejudicar depende de um acto (audição do registo) que é instrumental de um outro, este a praticar no processo (a apresentação da alegação de recurso), é razoável que o prazo para a parte invocar a irregularidade detectada e pedir que se desencadeiem as respectivas consequências (repetição da parte da prova omitida ou ininteligível) seja o mesmo em que pode apresentar a alegação de recurso, salvo se se demonstrar que o reclamante teve conhecimento do vício mais de dez dias antes do termo desse prazo.

XIV- Se a parte/eventual recorrente tem à sua disposição determinado prazo para minutar o recurso e se, nessa minuta, pode impugnar a matéria de facto dada como provada e não provada com base nos depoimentos gravados, é evidente que esse direito de pedir a repetição da prova omitida ou impercetível pode ser exercido até ao último dia do prazo legal em curso, porque pode bem acontecer que só nesse prazo (incluindo o último dia) seja detectada a anomalia da gravação, daí que a arguição de tal irregularidade possa ter lugar na própria alegação do recurso de apelação.
XV– Não se mostrando, como não se mostra, provado que a Ré/Recorrente tivesse tido conhecimento da deficiente gravação dez dias antes do termo do prazo das alegações onde arguiu a nulidade com fundamento naquela deficiência é de considerar tempestiva tal arguição, segundo a tese perfilhada no Acórdão fundamento, sendo ainda de dizer, que a Ré/Recorrente apesar de ter manifestado a sua intenção de impugnar a matéria de facto com base nos depoimentos gravados, viu-se impossibilitada de o fazer relativamente a toda a matéria indicada, por ter havido falha/deficiência na gravação dos depoimentos das testemunhas que considera importantes para a boa decisão da causa, vendo-se impedida de exercer cabalmente o seu direito de recurso sobre a matéria de facto, e, bem, assim, ficando ainda o tribunal ad quem impedido, em qualquer caso, de proceder à reapreciação de tal matéria por falta ou falha de registo da prova.
                                                                                              XVI- Sendo que, a falta ou a falha na gravação da prova constitui, assim, nulidade processual, pois trata-se de irregularidade susceptível de influir no exame e decisão da causa, desde logo por retirar à recorrente a possibilidade de impugnar em sede de recurso o julgamento da matéria de facto, e, ocorrendo a nulidade decorrente de falha de gravação, tal facto determina a impossibilidade de reapreciação da matéria de facto por tribunal superior, nos termos acima expostos, não contendo o processo todos os elementos probatórios que permitem tal reapreciação, sendo que, a parte pode impugnar, que, deverá proceder-se à anulação do acto viciado, na parte em que influi na decisão da causa, e dos actos posteriores que dele dependem.
                                                                                               XVII- Mostrando-se afectados, como se mostram, os supra indicados depoimentos prestados em audiência, deverá proceder-se à repetição do julgamento e, consequentemente, à reinquirição de tais testemunhas, com consequente anulação dos termos posteriores do processo, nomeadamente, a sentença proferida,
                                                                                               XVII- Da cópia facultada, verifica-se que, efectivamente, os depoimentos das testemunhasindicadas na motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto umas vezes são inaudíveis e muitas vezes impercetíveis, sendo que, o que acontece é que só apenas através do registo da instância da Meritíssima Juiz ou dos Ilustres Mandatários das partes, algumas vezes também inaudível e impercetível, se vai sabendo ou adivinhando o que está a ser perguntado e as eventuais respostas dadas pelas indicadas testemunhas, mas sem que se perceba, em todo o depoimento, o sentido e o conteúdo das respostas efectivamente dadas pelas testemunhas em causa e, como tal, não fiáveis em sede de apreciação da prova ali produzida, sendo que, tal deficiência na gravação da prova importa ser corrigida visto que o Tribunal ad quem não está confinado à indicação feita pela Recorrente, bem como, impossibilita a Ré/Recorrente de proceder à pretendida impugnação, impedindo por isso a reapreciação da respectiva matéria de facto pelo Tribunalde recurso.

XVIII– Se é certo que a nulidade arguida não pode deixar de ser apreciada pelas razões supra referidas, não é menos certo que, pela manifesta influência no direito à interposição de recurso e na respectiva decisão a recair sobre o mesmo, a invocada nulidade processual de falha ou deficiência da gravação da prova é questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica e social, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, pelo que, e também por isso, deve a decisão proferida no Acórdão recorrido, ser alterada/revogada, com os devidos efeitos e consequências legais.

O recurso não foi admitido como revista excepcional, mas sim como revista em termos gerais.

Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista.

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É sabido que o objecto do recurso se define pelas suas conclusões.

Assim, a única questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a nulidade processual decorrente da deficiente gravação da audiência pode ser arguida dentro do prazo para interposição de recurso e nas próprias alegações de recurso.
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Como factualidade relevante temos a descrita no relatório do presente acórdão.
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- o direito:

Tal como já tivemos oportunidade de referir no despacho liminar que admitiu o recurso de revista em termos gerais, no recurso de apelação a Recorrente veio arguir, como questão prévia[1], uma nulidade processual – deficiência na gravação dos depoimentos, que, na sua óptica, impediu o cabal exercício do direito ao recurso na vertente de impugnação da matéria de facto. Pretendia a Recorrente que se considerasse verificada a referida nulidade e fosse determinada a repetição do julgamento.

Esta questão foi decidida no acórdão recorrido (pela primeira vez), como questão prévia, no seguintes termos:

“A recorrente, como questão prévia, vem suscitar a nulidade do julgamento por alegada deficiência na gravação da prova.

Refere que “ouvida a gravação dos depoimentos prestados, particularmente os indicados na motivação da decisão proferida sobre a matéria de facto, verifica-se que, efectivamente, umas vezes são inaudíveis e muitas vezes impercetíveis”  e como pretende a reapreciação da matéria de facto, “a falta de gravação ou a sua falha, mesmo que só parcial, impedem-na de dar cabal cumprimento às disposições legais aplicáveis, vendo-se, a parte impedida de exercer o seu direito de recurso sobre a matéria de facto, e, bem, assim, ficando ainda o tribunal ad quem impedido, em qualquer caso, de proceder à reapreciação de tal matéria por falta ou falha de registo da prova”.

Defende que estando-se perante uma nulidade processual susceptível de influir no exame e decisão da causa, deverá proceder-se à anulação do acto viciado, na parte em que influi na decisão da causa, e dos actos posteriores que dele dependem, devendo proceder-se à repetição do julgamento nessa parte e, consequentemente, à reinquirição de tais testemunhas, com consequente anulação dos termos posteriores do processo, nomeadamente, a sentença recorrida.

Contrapõe a recorrida que nulidade é arguida intempestivamente e não pode proceder. A recorrente, teria de arguir a nulidade autonomamente, pois a gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias após a realização do ato alvo de gravação e as partes estão sujeitas ao prazo de 10 dias para invocarem a falta ou deficiência da gravação, contado da disponibilização desta. Nada tendo sido arguido naquele prazo, o alegado vício fica sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade processual ser arguida no prazo de interposição de recurso e apenas nas próprias alegações de recurso.

Estabelece o art.º 155. º do CPC, no que aqui releva, o seguinte:

-«1 - A audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada, devendo apenas ser assinalados na ata o início e o termo de cada depoimento, informação, esclarecimento, requerimento e respetiva resposta, despacho, decisão e alegações orais.

2 - A gravação é efetuada em sistema vídeo ou sonoro, sem prejuízo de outros meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor, devendo todos os intervenientes no ato ser informados da sua realização.

3 - A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.

4 - A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.

[..]».

Da conjugação dos n.ºs 3 e 4, resulta com clareza que a falta ou deficiência da gravação dos depoimentos devem ser invocadas no prazo de 10 dias, a contar da disponibilização da gravação, a qual deve ocorrer nos 2 dias seguintes a contar da realização da audiência final.

Por outro lado, tratando-se de uma nulidade processual, como regra deve ser arguida junto da 1.ª instância [art.º 195.º 1 e 199.º, do CPC]

Para que melhor se perceba o que conduziu a esta solução, permitimo-nos fazer nossas as palavras do Acórdão desta Relação do Porto, de 17 de Dezembro de 2014 [Proc.º 927/12.7TVPRT.P1, Desembargadora Judite Pires, disponível em www.dgsi.pt], que a esse propósito, em termos elucidativos, observa o seguinte:

« A deficiência da gravação, que acarrete, no todo ou em parte, a imperceptibilidade ou inaudibilidade dos depoimentos objecto de registo constitui irregularidade que se traduz em nulidade secundária, a arguir mediante reclamação da parte interessada no seu reconhecimento.

A nulidade decorrente da deficiência da gravação, nos termos expostos, implica a anulação dos actos viciados e dos actos subsequentes, que deles dependem absolutamente.

Prevê, todavia, hoje o nº3 do artigo 155º do Código de Processo Civil que “a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto”, enquanto o nº 4 do mesmo normativo determina que “a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias, a contar do momento em que a gravação é disponibilizada”.

Ao contrário do que antes sucedia, recai actualmente sobre as partes o ónus de controlarem a existência e qualidade da gravação, fixando a lei prazo para ser arguida a sua falta ou deficiência.

Ou seja: o novo Código de Processo Civil fixou expressamente prazo para as partes arguirem o vício decorrente da falta ou deficiente gravação da prova, que, ao contrário do que antes sucedia, é sempre obrigatória em sede de julgamento, sendo esse prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo da gravação –  que temporalmente poderá não corresponder ao levantamento pela parte do respectivo suporte -, devendo essa disponibilização ocorrer no prazo de dois dias contados de cada um dos actos sujeitos à gravação.

O vício em causa deve, assim, ser arguido em primeira instância, e no prazo peremptório agora legalmente estabelecido, sob pena de ocorrer, por decurso desse prazo, a sua sanação.

Daí afirmar-se que “a omissão ou deficiência das gravações é, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, um problema que deve ficar definitivamente resolvido ao nível da primeira instância, quer pela intervenção oficiosa do juiz que preside ao acto quer mediante arguição dos interessados”, deixando de ser admissível que a parte interessada na arguição o possa fazer no prazo de interposição do recurso – 30 ou 40 dias -, nas respectivas alegações.

À solução adoptada na nova lei processual civil há que reconhecer o mérito de permitir que em primeira instância sejam desde logo desencadeados todos os mecanismos necessários ao suprimento de eventuais vícios que afectem a gravação, quer pela intervenção oficiosa do juiz que presidiu ao respectivo acto, quer através da arguição pelas partes no prazo que para o efeito a lei lhes faculta, evitando-se, deste modo, a subida de recursos inquinados desse vício, que tantas vezes conduzia a anulação pela segunda instância dos actos viciados e remessa dos autos à primeira instância para repetição dos actos afectados, implicando um retardar da marcha do processo, que a nova resposta processual para a questão evita, constituindo, além do mais, expressão do princípio da auto-responsabilização das partes, marcadamente acolhido no novo diploma».

No mesmo sentido pronuncia-se Abrantes Geraldes [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 130], escrevendo o seguinte:

«Suscitavam as partes com frequência questões relacionadas com as deficiências de gravação de depoimentos oralmente produzidos, não obtendo na lei anterior resposta inequívoca o modo como poderia ser introduzida tal questão.

O artigo 155º, n.º 4, veio resolver as dificuldades, impondo à parte o ónus de invocação da irregularidade no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe tenha sido disponibilizada a gravação (disponibilização que deve ocorrer no prazo de 2 dias a contar do acto, nos termos do n.º 3),solução que já defendíamos em face do anterior regime.

Tratando-se de uma nulidade processual, terá de ser arguida autonomamente, sendo submetida a posterior decisão do juiz a quo, não sendo admitida a sua inserção imediata nas alegações de recurso.”

Por último, para que não haja dúvidas sobre quando se inicia a contagem do prazo, como se refere no Acórdão da Relação de Évora, de 17-12-2020 [Proc.º 122900/17.2YIPRT-C.E1, Desembargador Francisco Xavier, disponível em www.dgsi.pt], [II]Tal disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação, às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes.[III] A lei impõe à parte um especial dever de diligência na verificação do conteúdo da cópia da gravação que foi disponibilizada, por forma a poder arguir em tempo eventuais irregularidades e permitir a sua correcção antes de eventual recurso da sentença, obviando-se também os inconvenientes de posterior anulação de decisões.

No caso concreto, o julgamento foi concluído a 22 de Maio de 2021 e a recorrente só veio arguir a alegada nulidade por deficiência da gravação nas alegações de recurso, interposto a 21-07-2021.

Por conseguinte, não tendo a alegada nulidade sido arguida junto do Tribunal a quo e no prazo legal, resta concluir que não pode agora ser suscitada junto desta existência, entendendo-se, se porventura ocorre, suprida.           Rejeita-se, pois, a apreciação da arguida nulidade por alegada deficiência na gravação da prova.”.
É apenas deste segmento decisório que vem interposto recurso
E diga-se desde já que nada temos a censurar ao decidido, aliás devida e exaustivamente fundamentado, e para cuja argumentação remetemos.
Apenas acrescentaremos, na linha do decidido no acórdão do STJ de 23-02-2016 , Revista n.º 350398/09YIPRT.G1.S1, o seguinte:
O CPC  vigente veio pôr cobro às divergências jurisprudenciais existentes acerca do prazo e do meio próprio para a as partes arguirem a falta ou deficiência da gravação realizada, designadamente na audiência final, ao estatuir no artº 155º que  “A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato” (nº 3) e que “A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada” (nº 4).

Ficou agora  claro que as partes dispõem apenas do prazo de dez dias, subsequente à disponibilização da gravação, para invocar no processo qualquer falha que, porventura, detectem e que seja susceptível de impedir o cumprimento cabal da sua razão da sua existência, nomeadamente, assegurar  o duplo grau de jurisdição relativamente ao julgamento da matéria de facto.
O estabelecimento desse prazo, que é manifestamente inferior ao prazo previsto na lei processual para a interposição do recurso (cfr. artigo 683º do citado código) revela também, sem margem para dúvidas, que a arguição de eventual imperceptibilidade ou inaudibilidade da prova gravada deve ser suscitada perante a 1ª instância, não constituindo a arguição feita na alegação de recurso de apelação meio processual  idóneo para esse efeito.
E compreende-se a razoabilidade desta solução legal. Na verdade, a arguição perante o tribunal onde terá, eventualmente, ocorrido a falta ou deficiência da gravação possibilitará o seu imediato suprimento, com repetição do   depoimento ou depoimentos necessários, antes de o processo subir ao Tribunal da Relação.
Logo, deveria a Recorrente ter suscitado directamente a questão da alegada imperceptibilidade / inaudibilidade da gravação dos depoimentos das indicadas testemunhas inquiridas perante o Tribunal de 1ª instância, o que não fez.

Por sua vez, no Ac. deste Supremo Tribunal  08-09-2021, Revista n.º 122900/17.2YIPRT-C.E1.S1 decidiu-se, citando acórdão da Relação:

“Em suma, como resulta destes arestos, a cuja fundamentação aderimos, com a reforma de 2013, o legislador processual civil pretendeu esclarecer a controvérsia existente à luz do regime processual pretérito no que concerne ao prazo para arguir a nulidade decorrente da omissão ou deficiência da gravação, afastando o entendimento de que o início da contagem do prazo para a invocação de eventual deficiência da gravação dos depoimentos fica dependente da livre iniciativa da parte quanto ao momento da obtenção da gravação, sem qualquer limitação temporal (para além da que decorreria do prazo de apresentação do recurso da decisão final).

O estabelecimento na lei de que a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto, não envolve a realização de qualquer notificação às partes, de que a gravação se encontra disponível na secretaria judicial, nem se confunde com a efectiva entrega de suporte digital da mesma gravação às partes, quando estas o requeiram.

O prazo previsto no n.º 4 do artigo 155º do Código de Processo Civil, a contar da referida disponibilização, faz recair sobre as partes um dever de diligência que as onera com o encargo de diligenciarem pela rápida obtenção da gravação dos depoimentos, que são disponibilizados no prazo máximo de 2 dias, a contar do acto em causa, e, num prazo curto (10 dias), averiguarem se tal registo padece de vícios, a fim de que os mesmos sejam sanados com celeridade perante a primeira instância.

9. Assim, verificando-se que, no caso, estão em causa as gravações da audiência de 23/05/2019, que foram gravadas, como consta indicado na respectiva acta, e ficaram disponíveis na mesma data, como se consignou no despacho recorrido, o prazo de 10 dias para arguir a nulidade decorrente da “deficiência das gravações” iniciou-se naquela data, pelo que tendo a dita nulidade sido apenas invocada em 13/08/2019 (cf. fls. 386-389), após se ter solicitado cópia das gravações 06/08/2019, a mesma foi invocada após o decurso do prazo legal, estando, por conseguinte, sanada, como se decidiu.
Improcede, assim, o recurso.
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Decisão:

Nos termos expostos, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Lisboa, 10/10/2022

                                                                       

Ramalho Pinto

Domingos Morais

Mário Belo Morgado

                                                                                  

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[1] Esta questão não foi suscitada junto do Tribunal de 1ª instância.