AÇÃO DE SIMULAÇÃO E DE PREFERÊNCIA
CUMULAÇÃO
DEPÓSITO DO PREÇO
CADUCIDADE
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário


1. Nada impede nem obriga a que num mesmo processo sejam cumuladas uma acção de simulação e uma acção de preferência.
2. Cabe ao preferente, consoante as informações de que disponha e de acordo com a sua estratégia, decidir se primeiro intenta a acção de simulação, e só após o trânsito em julgado da sentença que a declare intenta a acção de preferência, ou se intenta as duas simultaneamente.
3. Se o preferente intentar as duas acções simultaneamente e alegar na petição inicial as características do negócio dissimulado, concretamente o valor do preço acordado, então está integralmente sujeito ao dever imposto pelo art. 1410º,1 CC de depósito do preço no prazo legal.
4. Quando a tese jurídica que sustentava o recurso improcede, ainda que manifestamente, tal não é suficiente para considerar que o recorrente litigou de má-fé. Em matéria de interpretação da lei, na doutrina e na jurisprudência é possível encontrar as opiniões mais díspares, e todas elas profusamente fundamentadas. Assim, estando em causa puras interpretações da lei, só seria possível fazer assentar uma litigância de má-fé numa tese tão anómala que não tivesse em nenhum sector jurídico vozes que a apoiassem.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

C. G., viúva, residente na Rua …, nº …, freguesia de …, concelho de Montalegre, cabeça de casal da Herança deixada por F. C. (NIF .........), em sua representação,
intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra:

1. C. L.,
2. H. M.,
3. D. F.,
4. H. L., UNIPESSOAL, LDA., NIPC ………,

Formulando os seguintes pedidos:
A. Ser o negócio de doação celebrado entre os Réus declarado nulo, por simulação, enquanto declarado como doação, devendo ordenar-se o cancelamento do respectivo registo, devendo os Réus restituir o que houverem prestado, nos termos do disposto no art.º 289.º, n.º1 do Código Civil;
B. Ser declarado válido o negócio jurídico, enquanto querido como de compra e venda, realizado entre os Réus, devendo ser reconhecido à Herança de F. C., que a ora Autora representa na qualidade de cabeça de casal, o direito de preferência sobre a mesma, e, consequentemente, devendo a Herança de F. C. substituir a posição contratual da 4ª Ré no mesmo, procedendo ao pagamento do preço de 10.000,00€ (dez mil euros) e correspondentes encargos.
C. Condenar-se os Réus ao pagamento de todas as custas e demais encargos com o processo.

Alegam, em síntese, o seguinte:
a) que em 29 de Junho de 2018, os 1ª, 2º e 3ª Réus, através de escritura pública doaram à 4ª Ré, um prédio rústico sito no Lugar da …, o qual se encontrava registado a favor de F. G., no estado de casado com a 1ª Ré, sob o regime de separação de bens.
b) F. G. faleceu no dia - de Fevereiro de 2018, tendo deixado como seus herdeiros únicos a 1ª Ré, o 2º Réu e a 3ª Ré.
c) Tendo estes celebrado tal escritura de doação na qualidade de herdeiros de F. G.,
d) E tendo as partes atribuído o valor de 100,00€ (cem euros) à mencionada doação.
e) A Herança de F. C., de qual a Autora é cabeça de casal e herdeira, é proprietária e legítima possuidora de um prédio rústico sito em Rabinho, com o artigo matricial ..., que é confinante ao prédio objecto do negócio mencionado supra, com o qual confronta; e o prédio doado e em análise nos presentes autos, confronta a sul, em quase toda a sua extensão, com o mencionado prédio propriedade da Herança de F. C. e, numa pequena extensão, com o prédio de J. A..
f) Assim, a Herança de F. C. teria direito de preferência, caso procedessem os 1º, 2º e 3º Réus à venda do prédio rústico sub judice.
g) Todavia, por forma a obstar a esse direito de preferência, os 1º, 2º e 3º Réus decidiram celebrar o negócio de doação supra mencionado, sendo que o que efectivamente pretendiam realizar através daquela escritura era um negócio de compra e venda pelos 1º, 2º e 3ºs Réus à 4ª Ré.

Os réus contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Por excepção, vêm arguir a ineptidão da petição inicial, e a caducidade da acção de preferência.
E por impugnação, afirmando desconhecer ou ser falso muito do alegado na petição inicial.

Chegando à fase de saneamento dos autos, o Tribunal dispensou a realização da audiência prévia, julgou não verificada a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, por falta ou ininteligibilidade do pedido e da causa de pedir, julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção de preferência deduzida pelos réus e, em consequência, absolveu os réus do pedido deduzido pela Herança aberta por óbito de F. C. sob a alínea B).
Mais, quanto ao pedido de ser declarada a nulidade do negócio simulado, o Tribunal decidiu julgar verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir da autora, e consequentemente, absolveu os réus da instância.

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).
Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

1. Nos presentes autos foi proferida sentença pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo no sentido de julgar verificada a excepção peremptória de caducidade procedente e, ainda, a excepção de conhecimento oficioso de falta de interesse em agir, e, em consequência, absolveu os Réus do pedido formulado pelos Autores, ora recorrentes.
2. Contudo, e com o devido respeito, que, aliás, é muito, na decisão recorrida não fez o Meritíssimo Juiz a quo a mais correcta e adequada interpretação para verificação da procedência da excepção de caducidade.
3. A presente acção, s.m.o., não se trata de uma acção de preferência, nos termos do disposto no art.º 1410.º do C. Civil, tratando-se, ao invés, de uma acção declarativa comum, de nulidade de negócio por simulação.
4. Ou seja, a presente acção serve para peticionar a nulidade do negócio celebrado entre os 1º, 2º e 3º RR. com a 4ª Ré, o qual, reitera-se, se trata de um negócio simulado, celebrado por forma a obstar à aquisição de tal prédio rústico por parte da Autora (que teria sempre direito de preferir num negócio de compra e venda).
5. Ora, verificando-se e provando-se o negócio simulado, o mesmo é nulo nos termos do disposto no art.º 289.º do Código Civil, devendo ser restituídos os seus efeitos à situação originária.
6. Pelo que, o que a Autora pretende e peticiona nos presentes autos é a declaração de nulidade do negócio de doação celebrado entre os 1º, 2º e 3º Réus com a 4ª Ré, por simulação relativa, devendo, como consequência estes restituírem tudo o que houverem prestado (art.º 289.º, n.º1 do C. Civil), implicando necessariamente que os efeitos desse negocio nulo retroajam à data da sua celebração, ou seja, ao dia 29.06.2018.
7. Apenas após a verificação dessa nulidade se considerará que possa a ora Autora vir a preferir no negócio jurídico, conforme vertido no pedido B da petição inicial, sendo esse o entendimento de grande parte da jurisprudência, mormente do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-02-2002, proc. n.º 01B4168, Relator: Neves Ribeiro:
8. “O Autor tem o direito de preferir na compra do identificado prédio, pelo que substitui, ocupando a correspondente posição contratual, o Réu E, no aludido contrato de compra e venda que as partes quiseram verdadeiramente celebrar, pagando o preço de 15.000.000$00 e as correspondentes despesas de escritura.”
9. “Tendo os contraentes celebrado entre si, por escritura pública, negócio jurídico que intitularam de "doação" de bem imóvel, quando o que realmente quiseram foi celebrar entre si um negócio "jurídico de compra e venda", assim tendo agido com o intuito de frustrarem a exercitação de um direito de preferência por parte do arrendatário desse imóvel, deve considerar-se um tal negócio como nulo entre os mesmos contraentes como doação (art. 289, n. 1 do C.Civil), mas, todavia, válido como efectiva "compra e venda" em relação ao preferente.”
10. Ou seja, a ora Autora poderia arguir a nulidade a todo o tempo (286º do C. Civil), sendo que, sentido nenhum faria que, mesmo nesses casos, tivesse o eventual preferente que, na acção de nulidade intentada, cumprir requisitos que na mesma acção não são exigidos, mas antes apenas exigíveis numa acção completamente díspar (acção de preferência).
11. No mais, as doações não comportam os elementos essenciais da venda. Assim, enquanto estes não forem determinados e fixados, não existe o direito de preferência, nem o mesmo poderia ser exercido.
12. Apenas após ser provado qual o valor que efectivamente esteve na base no negócio de compra e venda, ou seja, apenas perante o conhecimento e fixação das condições essenciais apuradas na presente acção e após o trânsito em julgado da sentença, é que a Autora poderá preferir no negócio (apurando que se encontre o preço), e, consequentemente, apenas a partir desse data é que se iniciará o prazo de quinze dias para proceder ao depósito do preço.
13. Apesar de a Autora adiantar um preço (10.000,00€) na sua petição inicial, esse apenas seria um valor que hipoteticamente mesma estaria disposta a pagar, entendendo ser o que efectivamente o prédio rústico valeria, e que desconfia poderá ter sido o verdadeiro valor do negócio.
14. Nesta senda, o que por analogia se aplica à caducidade da acção de preferência e ao prazo de seis meses para o exercício do direito, e apenas por mera cautela de patrocínio se equaciona, explica o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.11.2010, Proc. n.º 381/03.4TBVLN.G1.S1, Relator: Cunha Barbosa:
15. “IV -A exigência do depósito do preço no início da acção de preferência –no prazo de 15 dias após a instauração da acção (art. 1410.º, n.º 1, do CC) –tem subjacente a “ideia de garantir, na medida do possível, a utilidade real da acção de preferência, pondo o alienante a coberto do risco de perder o contrato com o adquirente e não vir a celebrá-lo com o preferente».”
16. “V- Não tendo sido dado conhecimento do negócio jurídico nem, consequentemente, dos seus elementos essenciais ao possível preferente para que pudesse exercer o seu direito, e alegando este que a transmissão do direito de propriedade foi concretizada através de doação relativamente à qual ocorre simulação, deixa o transmitente de merecer a protecção visada com aquela exigência do prévio depósito do preço.VI -A manter-se aquela exigência de depósito do preço, o possível preferente ver-se-ia confrontado com a impossibilidade de lhe dar cumprimento, ficando-lhe vedada a possibilidade de acautelar o seu direito de preferência.”
17. “VII -Assim, afigura-se razoável e justo que, no caso de se arguir a simulação do negócio jurídico (que não apenas do preço), cuja acção simulatória se cumule com a acção de preferência, tendo em conta a inexistência de qualquer referência ou declaração ao preço (aparente ou real) fixado para a venda dissimulada, o prazo de 15 dias para depósito do preço deve ser contado a partir do trânsito da sentença em que se julgue procedente a invocada simulação.”
18. Motivo pelo qual, nunca se poderia verificar a excepção de caducidade da acção de preferência, de falta de deposito do preço e do decurso superior a 6 meses para o exercício do direito, uma vez que esses são apenas requisitos para a acção de preferência, o que, reitera-se, não se aplica ao presente caso.
19. Assim, salvo o devido respeito, não andou bem o Meritíssimo Juiz a quo ao decidir nos termos em que o fez, julgando procedente a excepção de caducidade invocada.
SEM PRESCINDIR, para o caso de se entender, como o Tribunal a quo, que a presente acção é uma verdadeira acção de preferência, o que não se concede, sempre se dirá o seguinte:
20. A aplicação do art.º 1410.º do Código Civil deve ser efectuada com as devidas e necessárias adaptações.
21. Entendem a Autora, ora recorrentes, que, de acordo com todas as soluções de direito plausíveis, e até analógicas, tendo até em atenção o que se aplica à execução específica, é perfeitamente equacionável e juridicamente defensável a sua interpretação das mencionadas normas legais, seria excessivamente penalizador a imediata prolação de decisão de improcedência do pedido de reconhecimento do direito legal de preferência, com fundamento na verificação da caducidade do direito.
22. Uma simples “falha processual”, fundada em interpretação jurídica perfeitamente equacionável à luz de todas as soluções de direito plausíveis, não poderá colocar em causa, de forma irremediável ou definitiva, os fins substantivos do processo, sendo de exigir que a arquitectura da tramitação processual sustente, de forma equilibrada e adequada, a efectividade da tutela jurisdicional, alicerçada na prevalência da justiça material sobre a justiça formal, afastando-se de soluções de desequilíbrio entre as falhas processuais – que deverão ser distinguidas, consoante a gravidade e a relevância – e as consequências incidentes sobre a substancial regulação das pretensões das partes.
23. No caso dos autos não se coloca a questão do exercício do direito de acção em determinado prazo, mas mero depósito de uma determinada quantia após o exercício tempestivo daquele direito, sendo que, tampouco notificou o Tribunal a quo para o efeito ou para comprovar o dito depósito.
24. Acresce que, o depósito do preço serve para assegurar que os réus adquirentes receberão o preço, sendo que se tem entendido que a existência do prazo de 15 dias justifica-se na medida em que a alienação a terceiro faz com que a discussão, em torno do direito de preferir, extravase a relação entre preferente e sujeito passivo, criando uma situação de incerteza passível de afectar não só os direitos daquele, como ainda a própria segurança do tráfico jurídico, o que reclama uma rápida clarificação da situação jurídica;
25. E, no caso dos autos, a concessão, neste momento (encontrando-se os autos na fase do despacho saneador), de um derradeiro e último prazo para que a Autora proceda ao depósito do preço, continua a permitir a realização dos fins pretendidos pelo legislador, isto é, continua a assegurar que os Réus receberão o preço, e a clarificar a situação jurídica, pondo termo à situação de incerteza.
26. Ou seja, se o objectivo desta previsão normativa é os Réus recebam efectivamente o preço, zelando assim pela Segurança Jurídica, o mesmo tampouco foi incumprido. Certos que, caso este Venerando Tribunal a quo notificasse a Autora para o efeito, informando-a ser este do entendimento que se trata de uma verdadeira acção de preferência, a mesma havia procedido ao depósito do preço.
27. Sucede que, tampouco a Autora saberia qual o preço a depositar, apenas sugerindo poder ser no valor de 10.000,00€ (dez mil euros).
28. Os fins pretendidos pelo legislador ainda se podem perfeitamente alcançar nesta fase dos autos, não se justificando, salvo melhor opinião, que a Autora seja tão severamente penalizada por ter feito a interpretação jurídica supra exposta, ao ponto de lhe ser imediatamente coarctado o eventual exercício do direito de preferência no caso.
29. Na situação concreta dos autos, caso se entenda que está em causa o exercício do direito de preferência, não tendo a Autora sido notificada para comprovar o eventual depósito, com todos os ónus que lhes eram impostos para avançar com a respectiva acção, é absolutamente inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade ínsito no art.º 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, a interpretação conjugada dos artigos 1410.º do Código Civil e 554.º, n.º 1 do CPC, no sentido de que, se no prazo de 15 dias contados da formulação do pedido de reconhecimento do direito de preferência, o autor não proceder ao depósito do preço do negócio, caduca imediatamente o seu direito de acção, sem que haja necessidade de lhe ser concedido pelo Tribunal um último e derradeiro prazo para proceder àquele depósito.
30. Tão severa “sanção” não é idónea, não é necessária e nem é proporcional, ainda para mais quando entende a Autora, ab initio, que a presente acção não se trata de uma acção de preferência.
31. O douto despacho-saneador recorrido viola, assim, o art.º 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, que determina que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
32. Assim, salvo o devido respeito não andou bem o Meritíssimo Juiz a quo ao decidir nos termos em que o fez, julgando procedente a excepção de caducidade invocada, violando dessa forma o art.º 18.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa.
33. Já no que concerne à verificação da excepção dilatória de falta de interesse em agir, com a consequente absolvição dos RR., sempre se dirá que a mesma é consequência directa da procedência da excepção de caducidade, pelo que, caso seja tal decisão revogada, consequentemente também deverá ser aplicada à verificação desta excepção de conhecimento oficioso.
34. Pelo exposto, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por despacho saneador que julgue improcedente a excepção de caducidade invocada pelos Réus, ordenando o prosseguimento dos autos com a marcação de audiência e discussão de julgamento para produção de prova arrolada pelas partes.

A recorrida H. L., UNIPESSOAL, LDA contra-alegou, apresentando as suas conclusões, e formulou ainda pedido de ampliação do objecto do recurso, que consiste em pretender que o comportamento da recorrente configura abuso de direito (art. 334º CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso. As conclusões apresentadas são estas:

I. A procedência da excepção peremptória de caducidade do direito de acção de preferência por falta do depósito do preço não merece qualquer censura.
II. A Recorrente formulou pedido complexo, entre os quais o (típico) da acção de preferência, onde peticiona (após a simulação relativa) o reconhecimento desse direito procedendo à aquisição pelo pagamento de 10.000 euros.
III. Esses 10.000 euros, são o preço que indica na sua petição inicial e no seu pedido, pelo que nada obstaria – designadamente o desconhecimento do suposto negócio simulado -, ao depósito do referido preço que voluntariamente indicou.
IV. Podia a recorrente ter optado por não indicar qualquer valor, remetendo a opção de preferência para o final, assim como o seu depósito, mas não foi assim que fez/pediu.
V. A Recorrente alega conhecer os elementos essenciais do negócio, designadamente para o que nos aqui importa o preço, e efectua o pedido em conformidade com esse valor de 10.000, pedindo até ao Tribunal a emissão das guias para esse depósito, que nunca chegou a fazer.
VI. Decidiu o Tribunal a quo em conformidade com o direito aplicável e com os factos e pedido da Recorrente, pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida.
VII. A alegação da Recorrente – de que não se trata de uma acção de preferência e de que não tinha de depositar o preço -, revela abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, pelo que deve a sua pretensão improceder.

Esta ampliação do recurso requerida pela recorrida H. L. Unipessoal Lda foi também admitida (artigo 636.º do CPC).

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se ocorreu caducidade da acção de preferência, ou não, e deixando ainda para o final a questão do alegado abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, suscitada pela recorrida.

III
O teor da decisão recorrida é o seguinte:

“2.2. Da excepção de caducidade:

I Os réus invocaram ainda, no seu articulado defensivo, a excepção de caducidade do direito de acção de preferência, designadamente, por falta de depósito do preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção.
Em resposta, a autora pugnou pela sua improcedência, invocando que não propôs uma acção de preferência, mas, outrossim, uma acção de condenação declarativa, sob a forma comum, de nulidade de negócio por simulação, que deverá retroagir à data de celebração do negócio e, só após, poderá preferir na compra – o que entende estar de harmonia com o pedido que formulou em B).
Mais invoca que, de qualquer modo, sendo o negócio simulado uma doação, não comporta os elementos essenciais da venda pelo que, até estes serem determinados, não existe direito de preferência, nem dever de depositar o preço.

II – Cumpre apreciar e decidir.

Como dissemos supra, decorre do artigo 5.º, n.º 1, do CPC, que acolhe os princípios do dispositivo e do pedido, estabelece que é às partes, mormente ao autor, que incumbe à alegação dos factos essenciais atinentes à causa de pedir que serve de fundamento ao peticionado.
Assim, a causa de pedir é o conjunto dos factos essenciais constitutivos da situação jurídica que se quer fazer valer ou negar ou o facto jurídico constitutivo do efeito jurídico pretendido pelo autor.
Por outro lado, o pedido deve, além do mais, ser expressamente referenciado na petição inicial, de forma clara e inteligível, de conteúdo determinado ou determinável e de harmonia com a causa de pedir ou demais pedidos cumulados, sendo que este delimita o objecto da instância e define o âmbito dos poderes do Juiz, com repercussões na sentença a proferir (cf. ainda os artigos 3.º, n.º 1, e 609.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Assim, face à defesa da autora no que tange à excepção invocada pelos réus, importa aclarar o que, face à causa de pedir e os pedidos formulados na petição inicial nos parece resultar à evidência (de resto, já acima aflorado): a autora propôs uma acção complexa, porquanto cumulou uma acção simulatória com uma acção de preferência, sendo os pedidos formulados os paradigmáticos das referidas acções.
Com efeito, sob a alínea B), a autora peticiona que seja declarado válido o negócio jurídico, enquanto querido como de compra e venda, realizado entre os Réus, devendo ser reconhecido à Herança de F. C., que a ora Autora representa na qualidade de cabeça de casal, o direito de preferência sobre a mesma, e, consequentemente, devendo a Herança de F. C. substituir a posição contratual da 4ª Ré no mesmo, procedendo ao pagamento do preço de 10.000,00€ (dez mil euros) e correspondentes encargos. [negrito nosso].
Como se vê, a autora peticiona que seja reconhecido o direito de preferência a que se referiu, sendo certo que, para tal, antes de mais, peticiona que seja declarado nulo o negócio simulado celebrado pelos réus e, bem assim, válido o negócio dissimulado.
Assim, reiterando, analisada a petição inicial – rectius, a causa de pedir e pedidos aduzidos – é forçoso concluir que a autora, quanto ao negócio jurídico concretizado entre os réus, cumulou com a acção simulatória uma acção de preferência.
Determina o artigo 1410.º, n.º 1, do Código Civil que O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção, sob pena de caducidade, como se encontra pacificado na jurisprudência – cf., a título de exemplo, acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães datados de 24-05-2018 e de 23-04-2020, disponível em www.dgsi.pt.
Ademais, a exigência do depósito do preço no prazo de 15 dias após a instauração da acção, que é um prazo de caducidade, constitui, como afirmam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, 2ª Ed., 373-374 e ainda M. J. ALMEIDA COSTA, O depósito do preço na acção de preferência, RLJ, Ano 129º, nº 3868, 195, “( ...) uma garantia para o alienante, pondo-o a coberto do risco de perder o contrato com o adquirente e não vir a celebrá-lo com o preferente, por este se desinteressar entretanto da sua realização ou por não ter os meios necessários para o efeito (…). Deve entender-se, por isso, que o preferente é obrigado a depositar a totalidade do preço, mesmo que uma parte dele (ou todo) não seja ainda exigível – v. também este propósito, AGOSTINHO CARDOSO GUEDES, O Exercício do Direito de Preferência, 652-653 – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 30-10-2018, disponível em www.dgsi.pt.
Assim, o depósito do preço constitui, em si mesmo, um pressuposto de apreciação do pedido formulado na acção de preferência, a aferir ainda antes de enveredar pela análise da existência do direito de preferência.
Baixemos, então, ao caso vertente.
A presente acção deu entrada em juízo 24-03-2021.
Até à presente data a autora não procedeu ao depósito do preço do negócio em discussão.
A autora defendeu, ancorada na jurisprudência que citou, que, no caso sub iudice, o prazo de 15 dias só começará a contar a partir do trânsito em julgado da sentença que julgue procedente o pedido de declaração de nulidade do negócio simulado, pois só a partir daí poderá preferir.
Note-se que a autora pede, como vimos, que seja reconhecido à Herança de F. C., (…), o direito de preferência sobre a mesma [contrato de compra e venda], e, consequentemente, devendo a Herança de F. C. substituir a posição contratual da 4ª Ré no mesmo [contrato de compra e venda], procedendo ao pagamento do preço de 10.000,00€ (…).
Com efeito, a autora alega que os réus celebraram uma doação, invocando que este negócio é nulo por simulado, como forma de “encapotar” um verdadeiro negócio de compra e venda pela 4ª Ré aos demais Réus, negócio que diz ter sido verdadeiramente celebrado e que teve como contrapartida o pagamento do preço no valor de € 10.000,00, tudo com o auspicio de obviar ao seu exercício do direito de preferência – vide pontos 25), 26) e 29) da petição inicial.
Como bem nota a autora, quando não se tenha dado conhecimento prévio dos elementos essenciais do negócio, o direito de preferência apenas surge com a sua concretização e conhecimento pelo preferente.
Por outro lado, em regra, só após a procedência da invocada simulação o preferente se encontrará em condições de exercer o correspectivo direito, sendo certo que a acção de simulação sempre poderia ter sido instaurada prévia e separadamente da acção de preferência. E, nesse caso, só a partir do trânsito da sentença proferida nessa acção de simulação, e em caso de procedência da mesma, se iniciaria a contagem dos prazos para propositura da acção de preferência e do depósito do preço, já que só a partir daí o preferente preterido teria conhecimento da efectiva existência de uma compra e venda e poderia então formular o seu juízo de vir a exercer, ou não, o direito de preferência – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa acima citado.
In casu, a autora optou por deduzir uma acção simulatória cumulada com a acção de preferência e, por conseguinte, não existe qualquer escritura pública de onde resulte o preço acordado entre as partes (uma vez que o negócio simulado consubstancia uma doação).
No entanto, a autora alega que, verdadeiramente, os réus celebraram um contrato de compra e venda (o contrato dissimulado), mediante o pagamento da contrapartida pela 4.ª ré aos demais no valor de € 10.000,00 e quanto ao qual pretendem preferir (veja-se o pedido formulado na alínea B), in fine).
Este foi, aliás, o valor que atribuiu à causa.
Deste modo, tal como se concluiu no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães atrás citado, ainda que não se possa extrair da escritura de doação os elementos do contrato, na versão da autora, dissimulado (ou seja, de compra e venda), a verdade é que é a própria autora que o adianta e manifesta propósito de preferir quanto a esse preço.
Note-se que esta situação é bem diferente daqueloutras em que os preferentes não equacionam o valor pelo qual foi celebrado o negócio sobre o qual tinham direito a preferir, pelo que, só depois de apurado, poderiam, sequer, ponderar exercê-lo por via da acção respectiva.
Assim, a autora devia ter procedido ao depósito do referido montante de € 10.000,00, no prazo a que alude o artigo 1410.º, n.º 1, do Código Civil, sem prejuízo de, em momento posterior, se apurar que o negócio dissimulado foi celebrado por valor diferente, devendo reforçar esse depósito ou ser devolvido o remanescente, conforme fosse superior ou inferior ao efectuado.
Deste modo, não tendo a autora procedido ao necessário depósito, como poderia e deveria, pelo valor que ela própria atribuiu ao negócio dissimulado, incumpriu o ónus que sobre ela incidia, o que importa a procedência da arguida excepção peremptória de caducidade, que é de conhecimento oficioso, podendo ser suscitada pelas partes, e importa a absolvição do pedido – cf. artigos 576.º, nºs 1 e 3 e 579.º, ambos do Código de Processo Civil.

III - Face ao exposto, julgo procedente a excepção de caducidade do direito de acção de preferência deduzida pelos réus e, em consequência, absolvo os réus C. L., H. M., D. F. e H. L., Unipessoal, Lda. do pedido deduzido pela autora Herança aberta por óbito de F. C. sob a alínea B).
Custas pela Autora – cf. artigo 527.º, do CPC.
Registe e notifique.

2.3. Da falta de interesse em agir:
I Em face do acima decidido, importa indagar das consequências da caducidade do direito de acção (de preferência) no que tange ao pedido de que seja declarada a nulidade do negócio simulado, nos termos já amplamente discutidos, em especial, se a autora tem interesse em agir quanto àquele.

II Cumpre apreciar e decidir.
O interesse em agir consiste no direito do demandante em carecer de tutela jurisdicional para uma questão em concreto, surgindo, então, da necessidade em alguém obter por via do processo judicial a protecção de um interesse substancial, de que é titular, pelo que, em regra, pressupõe a lesão (ou risco sério de lesão) de tal interesse e a idoneidade da providência requerida para a sua reparação ou para evitar a sua violação.
Na verdade, o interesse em agir tem natureza processual, que se distingue do interesse substancial, sendo aliás, instrumental deste, tendo por objecto a providência solicitada ao Tribunal, através da qual se pretende a satisfação do interesse substancial.
Neste conspecto, o Tribunal da Relação de Lisboa definiu o interesse em agir, enquanto “interesse processual”, “causa legítima da acção”, “motivo justificativo dela”, “necessidade de agir, ou necessidade de tutela jurídica”, como a necessidade de recorrer ao processo – cf. acórdão datado de 19-01-2017, disponível em www.dgsi.pt.
Do ponto de vista adjectivo, a falta de interesse em agir constitui uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, que procedendo tem como consequência a absolvição do réu da instância subjacente. Vejamos.
Compulsados os autos, constata-se que a autora propôs a presente acção declarativa de condenação peticionando, designadamente, que seja o negócio de doação celebrado entre os Réus declarado nulo, por simulação, enquanto declarado como doação, devendo ordenar-se o cancelamento do respectivo registo, devendo os Réus restituir o que houverem prestado, nos termos do disposto no art.º 289.º, n.º1 do Código Civil.
Por outro lado, na esteira do que já dissecamos supra, também se verifica que tal pedido se alicerça na alegação de que os réus celebraram o negócio simulado de doação do prédio que identificou no n.º 1) da petição inicial, quando, na verdade, pretendiam celebrar um contrato de compra e venda, pelo valor de € 10.000,00, tendo assim actuado por forma a obstar à sua aquisição pela Herança de F. C..
Ora, o artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil estabelece que se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. Já o n.º 2 prevê que O negócio simulado é nulo.
No que tange à legitimidade para arguir a simulação, quanto a terceiros, estabelece o artigo 286.º do Código Civil que A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
No caso, analisada a petição inicial, constatamos que a dita qualidade de interessada radica no direito de preferência de que a autora se arroga. Todavia, face à caducidade do direito de acção, é forçoso concluir que não, agora, qualquer interesse em agir nesta acção, uma vez que não assume a veste de interessado para os sobreditos efeitos.
Face à verificação da excepção peremptória de caducidade, verifica-se, assim, a autora não poderá obter, por via do processo judicial (no que tange à acção simulatória), a protecção de um interesse substancial de que seja titular, uma vez que não logrará preferir no negócio de compra e venda dissimulado.
Pelo que cumpre concluir que a autora carece de interesse em agir para a propositura da presente acção, nos termos e pelos fundamentos aduzidos.
A falta de interesse em agir, enquanto pressuposto processual consubstancia uma excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância – cf. artigo 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, do Código de Processo Civil.

III Em face do exposto, decido:
a) julgar verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir da autora herança aberta por óbito de F. C., representada pela cabeça-de-casal C. G., para a propositura da presente acção;
b) Consequentemente, absolver a C. L., H. M., D. F. e H. L., Unipessoal, Lda. da presente instância.
Custas a cargo da autora.
Registe e notifique”.

IV
Conhecendo do recurso.
A recorrente não se conforma com a decisão que julgou verificada a caducidade da acção de preferência e absolveu os réus do pedido.
A decisão recorrida, numa breve síntese, considerou que a autora cumulou uma acção simulatória com uma acção de preferência, ou seja, a autora peticiona que seja declarado nulo o negócio simulado celebrado pelos réus e, bem assim, válido o negócio dissimulado, para assim poder exercer, com base neste, o seu direito de preferência. E recorda o artigo 1410º,1 CC, que impõe ao putativo preferente que deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção, sob pena de caducidade. Acrescenta ainda que, conforme definido pela jurisprudência e doutrina, o depósito do preço constitui, em si mesmo, um pressuposto de apreciação do pedido formulado na acção de preferência, a aferir ainda antes de enveredar pela análise da existência do direito de preferência.
Como no caso presente, a acção deu entrada em juízo a 24.3.2021, e até à data da decisão recorrida a autora não procedeu ao depósito do preço do negócio em discussão, e podia tê-lo feito, pois foi a própria autora quem alegou que o contrato dissimulado contemplava o pagamento de um preço de € 10.000,00 e se apresentou a preferir por esse valor, o Tribunal recorrido concluiu que não tendo a autora procedido ao necessário depósito, como poderia e deveria, pelo valor que ela própria atribuiu ao negócio dissimulado, incumpriu o ónus que sobre ela incidia, o que importa a procedência da arguida excepção peremptória de caducidade.
Vejamos.
Em primeiro lugar, não vemos qualquer impedimento, nem tal foi sequer aflorado neste recurso, de num mesmo processo serem cumuladas uma acção de simulação e uma acção de preferência (veja-se o acórdão do TRC de 02-05-2000- Artur Dias). Mas também tal não é de todo obrigatório. Ou seja, cabe ao preferente, consoante as informações de que disponha e de acordo com a sua estratégia, decidir se primeiro intenta a acção de simulação, e só após o trânsito em julgado da sentença que a declare intenta a acção de preferência, ou se intenta as duas simultaneamente. Esta apreciação é, como veremos, essencial para a solução.
“O comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda ou da dação em cumprimento tem o direito de haver para si a quota alienada, contanto que o requeira dentro do prazo de seis meses, a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da alienação, e deposite o preço devido nos 15 dias seguintes à propositura da acção” (art. 1410º,1 CC).
Em anotação a este artigo, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela: “a exigência do prévio depósito do preço constitui uma garantia para o alienante, pondo-o a coberto do risco de perder o contrato com o adquirente e não vir a celebrá-lo com o preferente, por este se desinteressar, entretanto, da sua realização ou não dispor dos meios necessários para esse efeito. Deve entender-se, por isso, que o preferente é obrigado a depositar a totalidade do preço, mesmo que uma parte dele (ou todo) não seja ainda exigível”. E, mais adiante: “a segunda variante a considerar é a da dissimulação do preço real, que tanto pode verificar-se, aliás, quando haja notificação, mas do preço simulado, como no caso de falta de cumprimento do dever de notificação. Se o consorte, em tais circunstâncias, está disposto a preferir mesmo em relação ao preço simulado, sem abdicar do poder de reagir contra ele, terá de requerer a preferência e depositar a importância correspondente a este preço, dentro do prazo fixado no art. 1410º (neste sentido o acórdão da Relação de Lisboa de 26 de Janeiro de 1972, sumariado no BMJ, 213, pág. 274). De contrário, se a acção de simulação improceder, ele perderá o direito de preferir, por caducidade deste. No caso de só estar disposto a preferir em relação ao preço que julga ser o realmente fixado pelas partes, o preferente pode aguardar a decisão da acção de simulação, para, na hipótese dela proceder, exercer o seu direito no prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado da decisão que fixa o elemento essencial da alienação, que é o preço”.
Daqui decorre, salvo melhor opinião, que tudo depende da atitude do preferente.
Se ele já tem conhecimento das circunstâncias do negócio, quer do simulado quer do dissimulado, e sobretudo do preço, pode cumular logo no mesmo processo a acção de simulação com a acção de preferência. Ou então, como referem aqueles Mestres supracitados, pode aguardar a decisão da acção de simulação, para, na hipótese dela proceder, exercer o seu direito no prazo de 6 meses a contar do trânsito em julgado da decisão que fixa o elemento essencial da alienação, que é o preço.
Sendo sempre certo e seguro que, se optar pela cumulação no mesmo processo dos dois pedidos, de declaração de nulidade por simulação e de preferência, está integralmente sujeito ao dever imposto pelo art. 1410º,1 CC de depósito do preço.
Assim se respeita a letra e o espírito da lei.
Não colhe, quanto a nós, o argumento de que só após a decisão da acção de simulação está o preferente em condições de saber as condições exactas do negócio dissimulado para só então poder decidir se quer preferir quanto a ele. Esse argumento é válido para os casos em que o preferente não saiba os detalhes do negócio dissimulado, ou o preço dissimulado, e opte, prudentemente, por instaurar as duas acções de forma sucessiva, começando necessariamente pela acção de simulação.
Quando instaura as duas acções simultaneamente, o Julgador tem de presumir, iuris et de iure, que o preferente sabe quais são as condições do negócio simulado e as condições do negócio dissimulado, e apresenta-se a preferir com base nesse conhecimento, conhecimento esse que alega na petição inicial. Assim, nenhuma razão há para o subtrair à obrigação de depósito do preço no prazo fixado no art. 1410º,1 CC.
Aliás, se bem repararmos, nesse caso o preferente está na mesma situação daquele que se limita a instaurar uma acção de preferência, sem qualquer problema de simulação envolvido. Nos dois casos, o preferente vem a juízo apresentar a sua pretensão dizendo que foi efectuado um negócio, com as características que alega, sobretudo o preço e condições de pagamento do mesmo, e dizer que se quer substituir ao adquirente. Tem de depositar esse preço, como determina o art. 1410º,1 CC. A única diferença é que no caso da preferência cumulada com a simulação, o preferente tem de afastar para o lado o negócio simulado, para deixar em cima da mesa só o dissimulado ou escondido.

Repare-se agora, e baixando ao caso dos autos, o que vem alegado na petição inicial:

“1. No pretérito dia - de Junho de 2018, os 1ª, 2º e 3ª Réus, através de escritura pública celebrada no Cartório Notarial da Dra. M. M. … doaram à 4ª Ré, o prédio rústico … .
10. Todavia, por forma a obstar ao direito de preferência da Herança de F. C., os 1º, 2º e 3º Réus decidiram celebraram o negócio de doação supra mencionado, sendo que, o que efectivamente pretendiam realizar através daquela escritura era um negócio de compra e venda pelos 1º, 2º e 3ºs Réus à 4ª Ré.
19. Com o claro intuito de impedi-los de preferir,
20. Decidiram os Réus “encapotar” o negócio que efectivamente pretendiam celebrar com uma escritura de doação,
25. Conforme supra exposto, não foi intenção dos Réus celebrarem a mencionada escritura de doação sobre o prédio rústico in casu, antes tendo sido a forma de “encapotar” um verdadeiro negócio de compra e venda pela 4ª Ré aos demais Réus,
26. Negócio este que foi celebrado através do pagamento da contrapartida pela 4ª Ré aos 1º, 2º e 3º Réus no valor de 10.000,00€ (dez mil euros).
48. Devendo, porém, acautelar-se que a Herança de F. C. tem o direito de preferir sobre tal venda, nos termos do disposto no art.º 1380.º do Código Civil,
49. Consequentemente, ocupando, em sua substituição, o lugar da 4ª Ré no dito contrato de compra e venda que as partes quiseram verdadeiramente celebrar,
50. Pagando o preço de 10.000,00€ (dez mil euros), bem como os correspondentes encargos e custos”.

E, chegando à parte do pedido, sob a alínea B pede que seja “declarado válido o negócio jurídico, enquanto querido como de compra e venda, realizado entre os Réus, devendo ser reconhecido à Herança de F. C., que a ora Autora representa na qualidade de cabeça de casal, o direito de preferência sobre a mesma, e, consequentemente, devendo a Herança de F. C. substituir a posição contratual da 4ª Ré no mesmo, procedendo ao pagamento do preço de 10.000,00€ (dez mil euros) e correspondentes encargos”.
E ainda requereu a emissão das guias para depósito da quantia de 10.000,00€ (dez mil euros.
Ou seja, a autora fez cumular no mesmo processo as duas referidas acções, de simulação e de preferência, mas viu-se que já sabia quais os elementos do negócio dissimulado, sobretudo o preço, tanto que os alegou, e se referiu ao preço exacto no pedido, e ainda indicando o valor da causa decalcado desse preço.
Nestas circunstâncias, que sentido faria aguardar pelo trânsito em jugado da sentença que reconhecesse a simulação e fixasse o preço do negócio dissimulado, para só então depositar esse preço? A nosso ver, nenhum. Aliás, não compreendemos muito bem como seria possível, nos casos em que ocorre cumulação das duas acções ou pedidos (simulação e preferência), emitir primeiro uma sentença sobre o pedido de simulação, e só depois do trânsito em julgado dessa emitir outra, já supondo o depósito do preço, a pronunciar-se sobre o direito de preferência. Seria a negação da cumulação que tinha sido originalmente escolhida pelo preferente e aceite pelo sistema judicial.
Assim, no caso concreto podia e devia a autora ter depositado o preço (que ela própria alegou) no prazo previsto no art. 1410º,1 CC.
Não o fez.
Segue-se o efeito jurídico caducidade, por força da lei.
A argumentação apresentada pela recorrente, salvo o devido respeito, não nos convence.
Começa por dizer que a presente acção não é uma acção de preferência, nos termos do disposto no art.º 1410.º do C. Civil, tratando-se, ao invés, de uma acção declarativa comum, de nulidade de negócio por simulação. Esquece, porém, que um dos pedidos que formulou ao Tribunal é o de “ser-lhe reconhecido o direito de preferência, e consequentemente, devendo a Herança de F. C. substituir a posição contratual da 4ª Ré no negócio, procedendo ao pagamento do preço de 10.000,00€ (dez mil euros) e correspondentes encargos”. Isto depois de ter alegado os factos constitutivos do direito de preferência. Donde, estamos mesmo perante uma acção de preferência, que calhou compartilhar o mesmo veículo processual com uma acção de simulação.
De seguida, afirma a recorrente que “as doações não comportam os elementos essenciais da venda. Assim, enquanto estes não forem determinados e fixados, não existe o direito de preferência, nem o mesmo poderia ser exercido”.
Ora, é verdade que as doações não comportam os elementos essenciais da venda. Sucede que no caso concreto não foi necessário aguardar por qualquer decisão judicial que os definisse, pois eles foram logo alegados pela própria autora na petição inicial. É situação em tudo idêntica ao desenho-tipo definido pelo legislador no art. 1410º,1 CC: o típico preferente aí previsto intenta a acção e alega qual o valor da venda, acrescentando que quer preferir por esse valor. E basta esta alegação para que comece a correr o prazo de 15 dias para depositar esse valor. A lei não diz que é necessário aguardar que essa alegação se transforme em facto provado, e coberto por trânsito em julgado, para começar o correr o prazo para o depósito. Nem conhecemos qualquer doutrina ou jurisprudência que o defenda. É a simples alegação na petição inicial que desencadeia os efeitos jurídicos, no caso o início do prazo de caducidade.
De seguida afirma a recorrente: “apesar de a Autora adiantar um preço (10.000,00€) na sua petição inicial, esse apenas seria um valor que hipoteticamente mesma estaria disposta a pagar, entendendo ser o que efectivamente o prédio rústico valeria, e que desconfia poderá ter sido o verdadeiro valor do negócio”.
Ora, compreende-se que dê jeito neste momento à autora vir afirmar isto. Porém, não é isso, nem de perto nem de longe, o que está alegado na petição. Na petição afirma-se expressamente, no artigo 26: “Negócio este que foi celebrado através do pagamento da contrapartida pela 4ª Ré aos 1º, 2º e 3º Réus no valor de 10.000,00€ (dez mil euros)”.
Assim, são certeiras e incontornáveis as afirmações constantes da decisão recorrida: “Note-se que esta situação é bem diferente daqueloutras em que os preferentes não equacionam o valor pelo qual foi celebrado o negócio sobre o qual tinham direito a preferir, pelo que, só depois de apurado, poderiam, sequer, ponderar exercê-lo por via da acção respectiva. Assim, a autora devia ter procedido ao depósito do referido montante de € 10.000,00, no prazo a que alude o artigo 1410.º, n.º 1, do Código Civil, sem prejuízo de, em momento posterior, se apurar que o negócio dissimulado foi celebrado por valor diferente, devendo reforçar esse depósito ou ser devolvido o remanescente, conforme fosse superior ou inferior ao efectuado. Deste modo, não tendo a autora procedido ao necessário depósito, como poderia e deveria, pelo valor que ela própria atribuiu ao negócio dissimulado, incumpriu o ónus que sobre ela incidia, o que importa a procedência da arguida excepção peremptória de caducidade (…)”.
O recurso improcede na íntegra.
Finalmente, as considerações expendidas nas conclusões 22 a 32 mais não são do que apreciações que valem apenas de jure condendo, que não de jure condito. Como tal não merecem resposta.

E para terminar, umas breves palavras para concluir que não há qualquer litigância de má-fé na interposição do presente recurso.
Corresponde o instituto da litigância de má-fé a uma responsabilidade agravada, que assenta na culpa ou dolo do litigante. Se a parte actuou de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a sua conduta é licita e é condenada apenas no pagamento das custas dos processo, como risco inerente à sua actuação. "Se procedeu de má-fé ou com culpa, pois sabia que não tinha razão, ou não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume-se como ilícita, configurando um ilícito processual a que corresponde uma sanção, que pode ser penal e/ou civil (multa e indemnização à parte contrária), e cujo pagamento acresce ao pagamento das custas processuais".

“Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A reforma processual levada a cabo pelo DL nº 329-A/95 de 12/12 introduziu alterações no Código de Processo Civil em sede de litigância de má-fé. Lê-se no preâmbulo do citado diploma “Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagra-se expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos; (…)”. Assim, ao lado da lide dolosa (que corresponde à violação das regras de conduta processuais de forma intencional ou consciente), passou a ser sancionada a lide temerária (que corresponde à violação das mesmas regras, mas com culpa grave ou erro grosseiro).
É inquestionável que a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.º 542º do Código de Processo Civil. E a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável. Tem-se entendido que para tal condenação se exige que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
Ora, a recorrente assentou o seu recurso em pura matéria jurídica. Não alterou factos, nem impugnou factos que sabia serem verdadeiros, nem alegou factos que sabia serem falsos. O recurso assenta todo ele na interpretação dos institutos jurídicos. E cita alguma jurisprudência que, pelos menos a uma primeira vista, aparenta sustentar a sua tese.
Ora, sendo o recurso exclusivamente assente em opiniões interpretativas da lei -a essência da aplicação do Direito-, seria sempre muito difícil considerar que a recorrente teria litigado de má-fé. Seria preciso que se pudesse afirmar que ela tinha vindo defender uma tese tão surrealista e tão esdrúxula que em sector algum da doutrina ou da jurisprudência a mesma pudesse ter respaldo. E não é o que sucede.
É verdade que o tentar negar que intentou uma acção de preferência, quando é por demais óbvio que intentou, já é bastante forçado.
Assim como a tentativa de dizer que não alegou o valor exacto do preço que constaria do negócio dissimulado, mas sim uma mera estimativa desse valor, também se aproxima da linha de fronteira entre o que é processualmente lícito e o que o não é.
Mas quer num caso quer noutro a recorrente está a tentar sustentar uma certa interpretação da lei, que é a que lhe convém, e que tem apoio em alguma jurisprudência.
Em matéria de interpretação da lei, na doutrina e na jurisprudência é possível encontrar as opiniões mais díspares, e todas elas profusamente fundamentadas.
E por isso entendemos que, apesar de tudo, o comportamento processual da recorrente ainda se situa nos limites do que é processualmente aceitável.
Donde, não deve ser condenada como litigante de má-fé.

Sumário:

1. Nada impede nem obriga a que num mesmo processo sejam cumuladas uma acção de simulação e uma acção de preferência.
2. Cabe ao preferente, consoante as informações de que disponha e de acordo com a sua estratégia, decidir se primeiro intenta a acção de simulação, e só após o trânsito em julgado da sentença que a declare intenta a acção de preferência, ou se intenta as duas simultaneamente.
3. Se o preferente intentar as duas acções simultaneamente e alegar na petição inicial as características do negócio dissimulado, concretamente o valor do preço acordado, então está integralmente sujeito ao dever imposto pelo art. 1410º,1 CC de depósito do preço no prazo legal.
4. Quando a tese jurídica que sustentava o recurso improcede, ainda que manifestamente, tal não é suficiente para considerar que o recorrente litigou de má-fé. Em matéria de interpretação da lei, na doutrina e na jurisprudência é possível encontrar as opiniões mais díspares, e todas elas profusamente fundamentadas. Assim, estando em causa puras interpretações da lei, só seria possível fazer assentar uma litigância de má-fé numa tese tão anómala que não tivesse em nenhum sector jurídico vozes que a apoiassem.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente e confirma na íntegra a decisão recorrida.

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 29.9.2022

Relator
(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto
(Alcides Rodrigues)
2º Adjunto
(Joaquim Boavida)