Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
GARANTIA BANCÁRIA
ON FIRST DEMAND
RECUSA DE PAGAMENTO
FRAUDE
ÓNUS DA PROVA
ÓNUS INVESTIGATÓRIO
Sumário
I.–No âmbito de um contrato de garantia bancária à primeira solicitação (on first demand), se é certo que o banco/garante pode recusar o pagamento da garantia em caso de fraude manifesta ou abuso evidente, isso não significa que lhe incumba o ónus de investigar se ocorrem factos que possam sedimentar a fraude manifesta ou o abuso.
II.–Confrontado com um pedido de pagamento do beneficiário, cabe apenas ao garante avisar o dador da ordem que lhe foi solicitado o pagamento.
III.–Por sua vez, caberá ao dador da ordem facultar de imediato ao garante a prova – caso ocorra – pronta e inequívoca da inexistência, na esfera jurídica do beneficiário, de qualquer crédito emergente do contrato base entre o dador da ordem e o beneficiário. Entender que o garante está investido num ónus investigatório a este propósito seria negar a automaticidade e autonomia da garantia, descaracterizando-a.
IV.–A circunstância de o contrato de garantia autónoma perdurar por um longo período apenas poderia dar azo a que o garante denunciasse tal contrato, o que não ocorreu, ou requeresse o reforço de garantias.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
RELATÓRIO
Por apenso à execução que B, SA move contra PR, SA, deduziu esta última embargos de executado, invocando, para tanto, a inexistência de título executivo por as livranças dadas à execução servirem para garantir garantias bancárias que caducaram.
Contestando, o exequente pugnou pela improcedência dos embargos, sustentando nomeadamente que, em 11.2.2021, honrou as garantias sendo que, nessa data, inexistia qualquer decisão judicial que pudesse impedir o pagamento, não se encontrava o banco exequente a nenhum título judicialmente notificado ou acionado, sendo certo que as garantias se encontravam acionadas, tendo a beneficiária expressamente declarado que os trabalhos garantidos não se encontravam concluídos.
Foi proferido despacho saneador-sentença que julgou procedentes os embargos e, em consequência, determinou a extinção da execução.
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES, que se reproduzem: A)–O presente recurso tem por objeto a sentença proferida, em 06.06.2022, que julgou os embargos de executado procedentes, determinando a extinção dos autos principais nos termos do disposto no artigo 732.°, n.º 4 do Código de Processo Civil, entendo que as garantias bancárias, subjacentes às livranças dadas à execução, sempre estariam caducadas por conta do tempo decorrido desde a data da sua constituição. B)–Ora o Recorrente não se conforma com este segmento decisório, entendendo que tal decisão é, inclusive, contraditória com a doutrina citada pelo Tribunal a quo na descrição da garantia autónoma à primeira solicitação. C)–A garantia autónoma e automática é paga de imediato, após o recebimento de uma interpelação regular (aquela que é feita de acordo com o contrato de garantia, documentado através do chamado "termo de garantia"), sem quaisquer delongas, afastando a admissibilidade de hiatos temporais entre o momento da interpelação e o do pagamento. Lê-se, assim, em Galvão Telles, Manual, p. 515: "Contudo, desde que se respeite esse teor e se reclame o que à face do título de garantia é devido, o banco não tem outro remédio senão pagar: deve pagar ao primeiro pedido escrito, imediatamente, sem discussão". D)–Os factos 6., 7., 8. e 9. transcrevem o texto das garantias autónomas à primeira solicitação, subjacentes às livranças preenchidas e dadas à execução.
E)–O clausulado dos termos da garantia é similar, sendo idêntica a cláusula de automaticidade (à primeira solicitação), conforme texto que se transcreve:
"(...) garante as obrigações contratuais assumidas perante a E, SA. e o seu integral cumprimento nestas se incluindo nomeadamente multas contratuais aplicadas, danos ou prejuízos e deficiências de execução. 2–O Banco obriga-se a pagar à E, SA., mediante simples interpelação escrita desta, sem interferência da afiançada, no prazo de 48 horas, toda e qualquer quantia devida pela Indutora, Lda. nos termos e até ao limite referido no n.º 1 precedente, não tendo que apreciar justiça ou direito e nomeadamente não podendo recusar o pagamento sob a alegação de que não se encontra demonstrado o incumprimento da Indutora, Lda.. 3–Por força desta garantia, o Banco pagará até ao montante acima estabelecido, as quantias que a E, SA., lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento. 4.–A presente garantia é válida enquanto subsistir qualquer relação obrigacional entre a Indutora, Lda. e a E, SA., emergente do contrato referido em 1, e caduca com a receção definitiva da obra (ou dos trabalhos ou do fornecimento) sem quaisquer reservas, deficiências ou omissões, o que será também comprovado pelo respetivo auto assinado pela Indutora, Lda. e a E, SA."
F)–Interpretando a garantia, o garante (Banco) obrigou-se, a pedido da ordenante (I, Lda. (agora denominada PR, SA), a pagar à beneficiária E, SA. (agora denominada EE, SA.): i.-Qualquer quantia, decorrente das obrigações contratuais assumidas pela ordenante perante a beneficiária e o seu integral cumprimento, incluindo, nomeadamente, multas contratuais aplicadas, danos ou prejuízos e deficiências de execução; ii.-Mediante mediante simples interpelação escrita da beneficiária, sem interferência da ordenante, no prazo de 48 horas, toda e qualquer quantia devida pela ordenante nos termos e até ao limite referido no n.º 1 precedente, não tendo que apreciar justiça ou direito e nomeadamente não podendo recusar o pagamento sob a alegação de que não se encontra demonstrado o incumprimento da ordenante, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento.; iii.-Enquanto subsistir qualquer relação obrigacional entre a ordenante e a beneficiária, emergente do contrato, caducando com a receção definitiva da obra (ou dos trabalhos ou do fornecimento) sem quaisquer reservas, deficiências ou omissões, o que será também comprovado pelo respetivo auto assinado pela ordenante e a beneficiária.
G)–O Tribunal a quo defende que o Banco deveria ter recusado o pagamento das garantias à beneficiária invocando a caducidade das mesmas, pedindo À beneficiária o comprovativo da denúncia de defeitos e avaliando a sua tempestividade:« Deveria, pois, ter exigido junto da EE, SA que comprovasse manter-se a relação obrigacional entre essas duas partes, nomeadamente por que razão, volvidos tantos anos ainda a subempreitada não se encontrava integralmente cumprida sem defeitos, pedindo comprovativo da denúncia dos defeitos. H)–Porém, não é isso o que resulta do texto dos termos de garantia. I)–O clausulado dos termos de garantia dispõe que a caducidade ocorre com a "receção definitiva da obra (ou dos trabalhos ou do fornecimento) sem qualquer reservas, deficiências ou omissões, o que será também comprovado pelo respetivo auto assinado pela ordenante e a beneficiária." J)–Embora o banco não tenha sido demandado em nenhuma ação ou procedimento cautelar relacionado com o pagamento das garantias bancárias, é certo que, tal como resulta do facto 13. dos Factos Provados, a ordenante enviou um email ao banco, dando nota da propositura de uma providência cautelar contra a beneficiária. K)–Sucede que, lida a petição inicial da referida providência cautelar, junta aos autos como DOC 14, é alegado (e confessado) pela ordenante a inexistência de um auto de receção definitiva da obra. Que é o evento e documento do qual o texto da garantia faz depender a verificação da caducidade.
L)–Com efeito, é alegado nos artigos 17.° e 33.° dessa peça processual o seguinte: " 17.°-Nunca chegou a ser assinado um auto de receção definitivo, relativo às obras que a I realizou para a EDIFER no âmbito dos trabalhos acima identificados".
"33.°-Conforme o já referido, não houve auto de receção assinado entre a I e a EDIFER". Pelo que, logicamente, se conclui que, à luz do acordado entre as partes, plasmado no texto das garantias, não ocorreu a caducidade.
M)–Ainda que se entendesse, o que não se concebe nem se concede face às características da garantia autónoma à primeira solicitação, que competiria ao ordenante, indagar pela denúncia de defeitos e sua tempestividade, o certo é que, das comunicações trocadas entre a ordenante e a beneficiária, resulta o conhecimento da ordenante e aceitação de reparação de defeitos que decorram no âmbito da garantia da obra, cf. facto 12. dos Factos Provados. N)–Exigir que o banco, como garante, proceda a uma instrução dos factos e à interpretação do contrato subjacente às garantias constitui um dever que supera de forma inaceitável e que contraria as obrigações contratuais a que se vinculou no âmbito das garantias autónomas à primeira solicitação. O)–Desvirtuando, isso sim, o regime que tão aturadamente foi descrito pelo Tribunal a quo relativamente a este tipo de garantia. P)–Com efeito, observando de modo perfunctório a jurisprudência, encontramos arrimo para justificar o pagamento das garantias efetuado pelo banco, nestas circunstâncias: Cf. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11-12-90, in CJ, 1990, V, p. 136: "Em 21-2-86 (...) a Sociedade Turística pôs fim ao contrato alegando que queria ver a piscina concluída e que estava a sofrer prejuízos pelo não cumprimento do Tecnifiltro. Em 1-4-86, a Tecnifiltro escreveu ao Banco dando- lhe conhecimento de que a Sociedade Turística tinha posto fim ao contrato e que, portanto a garantia também se extinguia. Denunciou as obrigações assumidas com o BESCL e solicitou a devolução da livrança. Em 8-4-86, o Banco respondeu que não podia anular a garantia enquanto a Sociedade Turística não oficiasse nesse sentido ou fosse devolvido o termo de garantia." Q)–Cf. Acórdão da Relação de Lisboa, de 19-01-2017, Proc.: 7693/15.2T8LSB.L1-2, disponível in www.dgsi.pt: constando expressamente do texto da garantia bancária aqui em causa o seguinte: (...) Nós irrevogavelmente comprometemo- nos a pagar-vos, sem mais do que o necessário para nossa confirmação que as condições especificadas nesta garantia foram cumpridas (...) - v. N° 5 da Fundamentação de Facto - é quanto basta para se considerar que estamos perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, não obstante se preveja a necessidade da invocação, por parte do beneficiário, de determinados elementos, como acima se fez menção, sem que no entanto, o Banco réu, enquanto garante, possa efetuar um juízo de cumprimento ou de incumprimento da relação principal. R)–A declaração de vontade do beneficiário, ainda que acompanhada dos elementos referidos na garantia bancária é, não só, unilateral, como é também potestativa, porque se impõe eficazmente, independentemente da vontade do mandante da garantia ou do garante, o que significa que o pagamento deverá ser feito após potestativa interpelação do beneficiário e sendo certo que o garante só poderá opor ao beneficiário as exceções literais que constem do próprio texto da garantia: nunca as derivadas da relação principal. S)–Analisando o contrato de garantia bancária, colhe-se que, pese embora nele se encontre uma referência ao Contrato de Distribuição datado de 2007.04.26 (contrato base), a verdade é que a garantia bancária foi outorgada tendo por validade um período de seis meses a partir da sua emissão, sendo automaticamente renovada por iguais períodos de tempo, (tal como já constava da proposta de emissão de garantia bancária, datada de 11.02.2008), a menos que fosse denunciada pelo Banco garante, pelo menos 90 dias antes da respetiva data de validade - v. N°s 4 e 5 da Fundamentação de Facto. T)–O Banco réu não denunciou o contrato de garantia celebrado com a autora e, provou-se que a autora, mandante da garantia, apesar das cartas emitidas, invocando a caducidade do Contrato de Distribuição, apenas apresentou notificação judicial avulsa de 25.09.2014, da qual a ré dela tão somente teve conhecimento em 02.10.2015, para fazer cessar com efeitos imediatos a garantia bancária aqui em causa - v. N°s 9,13 e 14 da Fundamentação de Facto. U)–Sucede que a 29.08.2014, a beneficiária fez acionar a garantia bancária autónoma, acompanhada dos elementos nela referidos, estando a mesma ainda em vigor, por não ter sido denunciada e, não tendo sido efetuada prova do pagamento referenciado pela beneficiária, nada mais restou à ré do que honrar a aludida garantia - v. n°s 10 a 12 da Fundamentação de Facto. V)–Ademais, e considerando que, como acima ficou dito, o contrato autónomo de garantia cria uma obrigação autónoma para o Banco a qual não é -nem pode ser -afetada pelas vicissitudes da obrigação principal, não pode ser invocada a caducidade do contrato base que esteve na origem da celebração da garantia bancária autónoma à primeira interpelação, ainda que dúvidas pudessem não restar de que o Anexo do Contrato de Distribuição, datado de 30.09.2011, o qual teve em vista uma revisão de preços, o volume de compras e as condições de pagamento, nenhuma relação tivesse com o anterior Contrato de Distribuição datado de 26.04.2007, já que na sua cláusula 2.2. se previa a cessação do mesmo nos três anos posteriores, ou seja, em 26.04.2010. W)–Como refere MÓNICA JARDIM, ob. cit. 108 e 275, "O fim do prazo de validade da garantia pode ser marcado com uma data ou com a verificação de um evento, sendo que este elemento é muito importante, porquanto o beneficiário deve fazer apelo à garantia antes do fim do prazo e tal apelo deve chegar ao garante também antes do fim do prazo". X)–Não consta do contrato de garantia qualquer alusão ao prazo de vigência do contrato base ou à correspondência da vigência do mesmo com a garantia bancária autónoma prestada pela ré que, aliás, tinha um prazo de vigência próprio. Provou-se inclusivamente que a ré desde a data emissão da garantia sempre debitou na conta da autora a comissão pela emissão desta e respetivas despesas - v. N°s 15 da Fundamentação de Facto - sem que haja ficado demonstrado que a autora, atempadamente, se tenha insurgido contra tal Ora, não tendo sido denunciada a garantia bancária autónoma prestada pela ré antes de a mesma ter sido accionada pela beneficiária, continuava evidentemente a ré vinculada a honrar a garantia, caso a mesma viesse a ser acionada - como foi - antes da caducidade do contrato de garantia bancária autónoma à primeira solicitação, não estando provado que o Banco réu detivesse em seu poder prova inequívoca da eventual existência de fraude ou abuso evidente do beneficiário na execução da garantia, pelo que impedido estava o garante de recusar o pagamento da garantia.
Z)–Cf. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11-02-2016, Proc.: 11767/11.0YYLSB-A.L1- 8: "Em primeiro lugar, porque o auto de receção definitiva da obra se insere no âmbito do contrato de empreitada e não é lícito ao Banco enquanto garante invocar qualquer vicissitude inerente ao negócio subjacente. Ao assumir que o auto de receção definitiva da obra pelo dono da obra e beneficiário da garantia implicava o cumprimento da obrigação garantida, o Banco entrou no domínio da interpretação de quais as obrigações constantes do contrato de empreitada e objeto da garantia "on first demand". Repare-se que a garantia emitida menciona apenas a responsabilidade do Banco, enquanto garante, pelo pagamento das quantias necessárias se o empreiteiro "faltar ao cumprimento das suas obrigações (...) ou com elas não entrar em devido tempo". Portanto, não podia o Banco considerar extinta a garantia bancária, simplesmente por ter recebido do empreiteiro o documento de receção da obra pelo dono da obra. Não cabe ao Banco definir quais são as obrigações que ele próprio garante, a não ser que venham discriminadas na própria garantia, o que, como acabámos de dizer, não acontece. Ao considerar que o auto da recepção da obra equivalia ao cumprimento das obrigações garantidas o Banco entrou na interpretação do contrato de empreitada, no sentido de definir quais são as obrigações do empreiteiro. E não só não o podia fazer enquanto garante, como o fez sem consultar o beneficiário da garantia e ora exequente. O que se estranha, tanto mais que o próprio Banco afirma desconhecer as cláusulas do contrato garantido (art. 15° das alegações de recurso). No âmbito da garantia "on first demand" o garante só pode recusar o pagamento invocando circunstâncias que digam respeito, exclusivamente, ao teor da garantia, aos seus termos e condições. Se, por exemplo, o beneficiário reclama o pagamento da garantia sem invocar a verificação do evento que a desencadeia ou invocando um motivo que não se encontra previsto na garantia, o Banco pode recusar o pagamento. É certo que ficam sempre ressalvadas as situações em que ocorra má fé ou abuso de direito por parte do beneficiário. Não é esse o caso dos autos, já que o beneficiário invocou uma obrigação incumprida pelo empreiteiro, nos termos da previsão da cláusula 34° do contrato de empreitada (garantia especial de dez anos para todos os equipamentos ou materiais). A garantia dos autos não contempla um prazo de duração. Na medida em que a garantia tem subjacente o contrato de empreitada celebrado entre o empreiteiro C... e o dono da obra A..., responsabilizando-se o Banco "por fazer a entrega on first demand de quaisquer quantias que se tornem necessárias, se a referida Firma faltar ao cumprimento das suas obrigações, objeto desta Garantia, ou com elas não entrar em devido tempo" parece indiscutível que tal garantia cobre o incumprimento de obrigações da C... para com a A..., emergentes de qualquer das cláusulas do contrato de empreitada. Por outro lado, o empreiteiro "não responde pelos defeitos da obra, se o dono a aceitou sem reserva, com conhecimento deles" - art. 1219° n° 1 do Código Civil. E nada nos presentes autos nos permite concluir que tal conhecimento tenha existido. A reclamação da beneficiária da garantia, ao acionar esta, diz respeito à fatura correspondente à reparação do equipamento de ar condicionado no edifício em causa, reparação essa que a empreiteira recusou efetuar. Face a isto, não se vislumbra qualquer má fé ou abuso de direito da exequente, ao reclamar o pagamento da quantia inserida na garantia bancária. Do mesmo modo, não existe qualquer caducidade da garantia, a qual, insiste-se não prevê um período de duração, não cabendo ao Banco - sob pena de fazer aquilo que censura à sentença recorrida, ou seja entrar na interpretação do contrato subjacente - decidir, face ao ato de receção definitiva da obra, que a garantia se extinguiu. Nestes casos, em que não está previsto um prazo de duração para a vigência da garantia - ou a ocorrência de um evento extintivo - o Banco poderá diligenciar junto do beneficiário no sentido de obter a extinção da garantia ou exigir do mandante ou dador da ordem a prestação de uma caução com vista a assegurar o reembolso - ver Mónica Jardim, "A Garantia Autónoma", pág. 113 - posição igualmente seguida na sentença recorrida." AA)–Este Acórdão refere, expressamente, no seu sumário que: "- Sendo o contrato subjacente um contrato de empreitada, não é lícito ao garante recusar o pagamento da garantia quando solicitado para tal, invocando a extinção por caducidade da garantia com base no auto de aceitação definitiva da obra pelo beneficiário."
Pelo exposto, a interpretação do Tribunal a quo relativamente à caducidade das garantias enferma de erro.
Termos em que, dando provimento ao presente recurso de apelação e revogando a decisão do Tribunal a quo nos termos requeridos, farão Vossas Excelências Inteira e Sã Justiça!»
*
Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes: i.-Se o Embargado/Garante devia ter recusado o pagamento das garantias com fundamento na sua caducidade; ii.-Se o banco Embargado/Garante tinha em seu poder prova inequívoca da eventual existência de fraude ou abuso evidente do beneficiário na execução das garantias.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade: 1.–A 29 de Outubro de 2021, foi apresentado à execução ordinária n.º 5007/21.1T8FNC, em apenso, 4 livranças, que aqui se dão por integralmente reproduzidas. 2.–Nas livranças constam as seguintes referências:
N.º livrança
Data de emissão
Data De vencimento
Valor
Montante
500873631033025835
13.12.2004
29.06.2021
garantia da garantia bancária GAVA n.º
805-02-0034005
€59.382,10
500873631033025746
03.11.2004
29.06.2021
garantia da garantia bancária GAVA n.º
805-02-0033239
€74.211,87
500873631033026513
02.08.2004
29.06.2021
garantia da garantia bancária GAVA n.º
805-02-0031865
€11.253,2
500873631043097537
20.04.2005
29.06.2021
garantia da garantia bancária GAVA n.º
805-02-0035852
€3.185,09
3.–A sociedade embargante subscreveu a mencionada livrança, tendo à data da assinatura das livranças a denominação de I, Lda. — cf. certidão permanente junta como documento n.º 1 com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzida. 4.–As livranças foram assinadas em branco, tendo a exequente procedido ao preenchimento dos demais campos. 5.–As livranças dadas em execução foram assinadas para garantir as obrigações assumidas pela executada advenientes das garantias bancárias mencionadas no título.
6.–Na garantia bancária n.º 805-02-0034005, datada de 15 de Dezembro de 2004, consta:
«O B, SA, Sociedade Aberta, (...) adiante designado “Banco” vem, pela presente, por instrução da empresa I, Lda. (...) adiante designada por “I, L.da”, prestar uma garantia bancária no valor de EUR.: 58.421,89 (Cinquenta e oito mil, quatrocentos e vinte e um Euros e oitenta e nove cêntimos) a favor da empresa EDIFER-Construções Pires Coelho & Fernandes, S.A. (...) adiante designado por “E, SA.”, nos termos seguintes: 1-A presente garantia destina-se a substituir o depósito de garantia para reforço de caução no montante de 58.421,89 (Cinquenta e oito mil, quatrocentos e vinte e um Euros e oitenta e nove cêntimos), equivalente a 10% (Dez por cento) das facturas N.º(s) 200400801, 200400802, 200400803, 200400832, 200400833, 200400834, 200400835, 200400855 e 200400876 da Empreitada “(...)”, montante aquele que a I, L.da se encontrava obrigada a depositar nos termos do contrato e garante as obrigações contratuais assumidas perante a E, SA. e o seu integral cumprimento, nestas se incluindo nomeadamente multas contratuais aplicadas, danos ou prejuízos e deficiências de execução. 2-O Banco obriga-se a pagar à E, SA., mediante simples interpelação escrita desta, sem interferência da afiançada, no prazo de 48 horas, toda e qualquer quantia devida pela I, L.da nos termos e até ao limite referido no n.º 1 precedente, não tendo que apreciar justiça ou direito e nomeadamente não podendo recusar o pagamento sob a alegação de que não se encontra demonstrado o incumprimento da I, L.da. 3-Por força desta garantia, o Banco pagará até ao montante acima estabelecido, as quantias que a E, SA., lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento. 4-A presente garantia é válida enquanto subsistir qualquer relação obrigacional entre a I, L.da e a E, SA., emergente do contrato referido em 1, e caduca com a recepção definitiva da obra (ou dos trabalhos ou do fornecimento) sem quaisquer reservas, deficiências ou omissões, o que será também comprovado pelo respectivo auto assinado pela I, L.da e a E, SA.» — cf. documento n.º 7, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
7.–Na garantia bancária n.º 805-02-0033239, datada de 4 de Novembro de 2004, consta:
«O B, SA, Sociedade Aberta, (...) adiante designado “Banco” vem, pela presente, por instrução da empresa I, Lda. (...) adiante designada por “I, L.da”, prestar uma garantia bancária no valor de EUR.: 73.011,84 (Setenta e três mil, e onze Euros e oitenta e quatro cêntimos) a favor da empresa EDIFER-Construções Pires Coelho & Fernandes, S.A. (...) adiante designado por “E, SA.”, nos termos seguintes: 1-A presente garantia destina-se a substituir o depósito de garantia para reforço de caução no montante de 73.011,84 (Setenta e três mil, e onze Euros e oitenta e quatro cêntimos), equivalente a 10% (Dez por cento) do valor total do contrato de EUR: 730.118,40 referente facturas N.º(s) 200400559, 200400627, 200400659 e 200400660 da Empreitada de “INSTALAÇÕES ELÉCTRICAS DO (...)”, montante aquele que a I, L.da se encontrava obrigada a depositar nos termos do contrato e garante as obrigações contratuais assumidas perante a E, SA. e o seu integral cumprimento, nestas se incluindo nomeadamente multas contratuais aplicadas, danos ou prejuízos e deficiências de execução. 2-O Banco obriga-se a pagar à E, SA., mediante simples interpelação escrita desta, sem interferência da afiançada, no prazo de 48 horas, toda e qualquer quantia devida pela I, L.da nos termos e até ao limite referido no n.º 1 precedente, não tendo que apreciar justiça ou direito e nomeadamente não podendo recusar o pagamento sob a alegação de que não se encontra demonstrado o incumprimento da I, L.da. 3-Por força desta garantia, o Banco pagará até ao montante acima estabelecido, as quantias que a E, SA., lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento. 4-A presente garantia é válida enquanto subsistir qualquer relação obrigacional entre a I, L.da e a E, SA., emergente do contrato referido em 1, e caduca com a recepção definitiva da obra (ou dos trabalhos ou do fornecimento) sem quaisquer reservas, deficiências ou omissões, o que será também comprovado pelo respectivo auto assinado pela I, L.da e a E, SA.» — cf. documento n.º 6, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
8.–Na garantia bancária n.º 805-02-0031865, datada de 10 de Agosto de 2004, consta:
«O B, SA, Sociedade Aberta, (...) adiante designado “Banco” vem, pela presente, por instrução da empresa I, Lda. (...) adiante designada por “I, L.da”, prestar uma garantia bancária no valor de EUR.: 11.071,32 (Onze mil, setenta e um Euros e trinta e dois cêntimos) a favor da empresa EDIFER-Construções Pires Coelho & Fernandes, S.A. (...) adiante designado por “E, SA.”, nos termos seguintes: 1-A presente garantia destina-se a substituir o depósito de garantia para reforço de caução no montante de 11.071,32 (Onze mil, setenta e um Euros e trinta e dois cêntimos), equivalente a 10% (Dez por cento) do valor total do contrato de EUR: 110.713,20 referente facturas N.º(s) 200400350, 200400351, 200400498 e 200400499 da Empreitada de INSTALAÇÕES ELÉCTRICAS DO (...) (SANTANA) montante aquele que a I, L.da se encontrava obrigada a depositar nos termos do contrato e garante as obrigações contratuais assumidas perante a E, SA. e o seu integral cumprimento, nestas se incluindo nomeadamente multas contratuais aplicadas, danos ou prejuízos e deficiências de execução. 2-O Banco obriga-se a pagar à E, SA., mediante simples interpelação escrita desta, sem interferência da afiançada, no prazo de 48 horas, toda e qualquer quantia devida pela I, L.da nos termos e até ao limite referido no n.º 1 precedente, não tendo que apreciar justiça ou direito e nomeadamente não podendo recusar o pagamento sob a alegação de que não se encontra demonstrado o incumprimento da I, L.da. 3-Por força desta garantia, o Banco pagará até ao montante acima estabelecido, as quantias que a E, SA., lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento.» — cf. documento n.º 1, junto com a contestação inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
9.–Na garantia bancária n.º 805-02-0035852, datada de 26 de Abril de 2005, consta:
«O B, SA, Sociedade Aberta, (...) adiante designado “Banco” vem, pela presente, por instrução da empresa I, Lda. (...) adiante designada por “I, L.da”, prestar uma garantia bancária no valor de EUR.: 58.421,89 (Cinquenta e oito mil, quatrocentos e vinte e um Euros e oitenta e nove cêntimos) a favor da empresa EDIFER-Construções Pires Coelho & Fernandes, S.A. (...) adiante designado por “E, SA.”, nos termos seguintes: 1-A presente garantia destina-se a substituir o depósito de garantia para reforço de caução no montante de 3.133,60 (Três mil, cento e trinta e três Euros e sessenta cêntimos), equivalente a 10% (Dez por cento) das facturas N.º(s) 200400877, 200400878 e 185/2005 da Empreitada “(...)”, montante aquele que a I, L.da se encontrava obrigada a depositar nos termos do contrato e garante as obrigações contratuais assumidas perante a E, SA. e o seu integral cumprimento, nestas se incluindo nomeadamente multas contratuais aplicadas, danos ou prejuízos e deficiências de execução. 2-O Banco obriga-se a pagar à E, SA., mediante simples interpelação escrita desta, sem interferência da afiançada, no prazo de 48 horas, toda e qualquer quantia devida pela I, L.da nos termos e até ao limite referido no n.º 1 precedente, não tendo que apreciar justiça ou direito e nomeadamente não podendo recusar o pagamento sob a alegação de que não se encontra demonstrado o incumprimento da I, L.da. 3-Por força desta garantia, o Banco pagará até ao montante acima estabelecido, as quantias que a E, SA., lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento. 4-A presente garantia é válida enquanto subsistir qualquer relação obrigacional entre a I, L.da e a E, SA., emergente do contrato referido em 1, e caduca com a recepção definitiva da obra (ou dos trabalhos ou do fornecimento) sem quaisquer reservas, deficiências ou omissões, o que será também comprovado pelo respectivo auto assinado pela I, L.da e a E, SA.» — cf. documento n.º 8, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
10–A EDIFER-Construções Pires Coelho & Fernandes, S.A. foi incorporada, por fusão, na sociedade EE, SA-Engenharia, S.A. — cf. certidão permanente junta com a contestação, como documento n.º 9, que aqui se dá por integralmente reproduzida. 11–Por cartas datadas de 28 de Dezembro de 2020, a EE, SA accionou junto do exequente as mencionadas 4 garantias bancárias — cf. documentos n.os 10 a 13, juntos com a contestação, que aqui se dão por integralmente reproduzidos. 12–A embargante, por e-mail de 8 de Janeiro de 2021, com conhecimento para o exequente, deu conta à EE, SA de que «sempre se mostrou disponível e continua disponível para quaisquer reparações necessárias que decorram no âmbito da garantia de obra, pelo que não entendeos tal atitude intempestiva e pouco ética por parte da Elevo.
Estando em causa valores na ordem de 150.000 euros em tempos de pandemia e de crise, que podem por em causa o grupo I, por esse motivo e pelos anteriormente mencionados, solicitamos que nos seja comunicada a lista de trabalhos de correção necessários, referente a nossa empreitada e por sua vez solicitem o cancelamento do accionamento das garantias em causa.
Face ao exposto e atendendo ao facto de Vossas Excelências jamais se terem dignado a contactar-nos no sentido de serem resolvidas as eventuais desconformidades, informamos que caso não seja retirado o pedido ilegítimo de execução das garantias acima mencionadas, agiremos judicialmente contra a vossa empresa por uso intempestivo e abusivo dos referidos documentos» — cf. documento n.º 9, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
13–Por e-mail de 18 de Janeiro de 2021, a embargante deu conhecimento ao exequente:
«É do nosso conhecimento que a empresa EE, SA., solicitou o pagamento das garantias que foram prestadas há muito tempo e que se identificam com os números 805-02-0031865, 805-02-0034005, 805- 02-0033239 e 805-02-0035852. Porque é nosso entendimento, igualmente sufragado pelo nosso Advogado, que semelhante solicitação de pagamento é completamente extemporânea e ilegal por parte da EE, SA., deu entrada em Tribunal no passado dia 16 deste mês, um procedimento cautelar a impedir que esse pagamento seja judicialmente suspenso, revogado e não realizado por V. Exas.
Para que possa ser apreciado pelos V. serviços jurídicos a justeza da nossa pretensão, enviamos cópia da peça jurídica que deu entrada em Tribunal.
Na esperança da V. colaboração, muito agradecíamos que o pagamento da(s) garantia(s) supra identificada(s) ficasse de momento suspensa, e só após validação judicial fosse efectuado, validação essa da qual serão formalmente notificados pelo Tribunal.» — documento n.º 12, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
14.–O procedimento cautelar a que se alude no e-mail do ponto anterior não foi instaurado contra o exequente — cf. documento n.º 13 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 15.–Do mesmo modo, a embargante deu conhecimento ao exequente da instauração de acção judicial respeitante às mencionadas garantias bancárias — cf. documento n.º 14 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 16.–Essa acção não foi instaurada contra o exequente.
17.–Por e-mail de 14 de Junho de 2021, a embargante deu conhecimento ao exequente de que tinha obtido vencimento na mencionada acção nos seguintes termos:
cf. documento n.º 18, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido. 18.–Tal sentença foi notificada à embargante a 9 de Junho de 2021, na qual se decidiu: «Face ao exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente e, em consequência: a)-Declaram-se caducadas todas as garantias prestadas pela autora [embargante] à ré [EE, SA] e, consequentemente, caducado o direito da ré em solicitar os pagamentos daquelas; -Condena-se a ré a restituir à autora o pagamento do valor que receber das garantias que logrou acionar e cujos valores recebeu;
- Condena-se a ré a restituir à autora o pagamento do valor vier a receber provenientes das garantias que, no decorrer dos presentes autos, foram acionadas;
- Declara-se que a ré tem a obrigação de notificar a autora, primeiramente, para a correcção de eventuais defeitos de obra, antes de accionar qualquer garantia bancária; d)-Absolve-se a ré do demais peticionado» — cf. documento n.º 19, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
19.–Na decorrência do accionamento das 4 garantias, o exequente honrou-as a 11 de Fevereiro de 2021.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
SE O EMBARGADO/GARANTE DEVIA TER RECUSADO O PAGAMENTO DAS GARANTIAS COM FUNDAMENTO DAS GARANTIAS COM FUNDAMENTO NA SUA CADUCIDADE
Resulta da matéria provada sob 6 a 9 que as partes outorgaram vários contratos de garantia bancária autónoma, o qual constitui um negócio jurídico de cariz atípico e causal, assente no princípio da liberdade contratual consagrado no Artigo 405º do Código Civil, traduzindo-se na eventual atribuição de um crédito correspondente ao valor garantido, que representa, mediante retribuição.
Neste tipo de negócio, o banco obriga-se a pagar a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de inexecução de determinado contrato (o contrato base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.
No caso da garantia autónoma, o garante não se obriga a satisfazer dívida alheia; nos termos contratuais assumidos, ele assegura ao beneficiário o recebimento de certa quantia em dinheiro; e terá de, como garantia, proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário comunique que o não recebeu da outra parte, sem que possa apreciar o bem ou mal fundado dessa alegação, isto é, isentando o beneficiário do ónus da proa dos pressupostos do seu crédito contra o banco. O garante autónomo não é admitido a opor ao beneficiário as exceções de que pode prevalecer-se o cliente garantido – cf. Acórdãos da RE de 4.6.98, António Silva, CJ 1998 – III, p. 265, da RL de 16.11.99, Pais do Amaral,CJ 1999 – V, p. 86, do STJ de 25.5.99, FerreiraRamos,CJ 1999- II, p. 114.
A garantia bancária autónoma pode assumir as modalidades de simples ou à primeira interpelação (on firstdemand), sendo que a simples é uma garantia condicional e a on first demand é incondicional (ou quase incondicional). Na explicação do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.11.1996, Santos Lourenço,www.colectaneadejurisprudencia.com, «(…) na chamada garantia simples, o beneficiário, para exigir a obrigação do garante, tem de provar a ocorrência dos pressupostos que condicionam o seu direito, na garantia à primeira solicitação não tem esse ónus. Por não ter esse ónus o pagamento não pode ser recusado por não se demonstrar que se verificam os pressupostos do incumprimento por parte do garantido.» A garantia bancária simples garante o corredor beneficiário a prestação por terceiro mas sem eliminar o risco de ser exigida ao credor a prova da ocorrência dos pressupostos que condicionam o seu direito – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15.12.2005, 4830/05, www.colectaneadejurisprudencia.com.
Há que interpretar, no caso concreto, as cláusulas da carta de garantia de modo a determinar se se deve entender tal garantia com simples ou à primeira solicitação – cf. Artigos 236.1 e 238.1. do Código Civil.
No caso em apreço, consta do texto da carta de garantia que: 2-O Banco obriga-se a pagar à E, SA., mediante simples interpelação escrita desta, sem interferência da afiançada, no prazo de 48 horas, toda e qualquer quantia devida pela I, Lda. nos termos e até ao limite referido no n.º 1 precedente, não tendo que apreciar justiça ou direito e nomeadamente não podendo recusar o pagamento sob a alegação de que não se encontra demonstrado o incumprimento da I, Lda. 3- Por força desta garantia, o Banco pagará até ao montante acima estabelecido, as quantias que a E, SA., lhe solicite, sendo-lhe vedado deixar de o fazer sob qualquer pretexto ou fundamento.
Deste teor textual resulta que a garantia bancária é à primeira interpelação ou on first demand.
Nas relações contratuais geradas entre os vários intervenientes existem, assim, três negócios jurídicos: a)-O contrato-base celebrado entre o beneficiário e o dador da ordem ou garantido; b)-O contrato pelo qual o garante se obriga perante o dador da ordem a prestar-lhe certo serviço, mediante remuneração (contrato de cobertura); c)-O contrato de garantia autónoma celebrado entre o garante e o beneficiário.
Na síntese do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.1.2004, Távora Victor, 3254/03, www.colectaneadejurisprudencia.com, «(…) no processo genético de emissão de uma "garantia bancária autónoma" existe, em primeiro lugar, um contrato-base entre o mandante da garantia e o beneficiário, a que se segue um contrato, qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário e, por último, o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se venceu e não foi paga, e solicite o pagamento, sem possibilidade de invocar a prévia excussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída. A emissão da garantia envolve pelo menos três tipos de relações contratuais, dando origem a um grupo de contratos relacionados entre si.»
A relação contratual estabelecida entre o devedor da relação principal/ordenante e o banco garante (cf. supra, alínea b)) tem sido qualificada como sendo um contrato de mandato sem representação nos termos do Artigo 1157º e 1180º do Código Civil, «(…) pelo qual o banco garante se obriga perante o devedor da relação principal, também designado ordenante, em contrapartida de certa retribuição, a estabelecer com o correlativo credor uma relação no âmbito da qual prestará uma garantia bancária autónoma, mediante certas condições. O banco vai atuar em nome próprio, pois será ele quem responderá pela obrigação de prestar garantia, sendo esta uma obrigação própria. O banco atua em nome próprio, mas por conta do dador da ordem (devedor garantido).» - Lisete Rodrigues e Miguel Archer, Garantia Bancária Autónoma,http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/cfa_MA_11811.pdf.
No que tange ao terceiro negócio jurídico (supra, alínea c)), o mesmo tem por regra a seguinte tramitação. Retomando a análise de Lisete Rodrigues e Miguel Archer, Garantia Bancária Autónoma, http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/cfa_MA_11811.pdf,
«A prática é a de que o beneficiário recebe um documento (uma carta de garantia) enviado pelo banco garante. Defendendo-se que a garantia autónoma assenta num contrato, o conteúdo desta carta consistirá na proposta contratual, tendo necessariamente que ser completa, precisa e formalmente adequada, a qual terá que ser aceite pelo beneficiário, nos termos do art. 232.º CC.
Ora, a prática é também no sentido de que não haverá uma resposta por parte do beneficiário a essa carta de garantia.
Defende-se, então, nestes casos, que há uma aceitação tácita por parte do beneficiário, quer anterior quer posterior. Por um lado, é anterior porque resulta de um comportamento manifestado no contrato base, exigindo ao devedor que arranjasse um garante que emitisse a garantia. Por outro lado é posterior, porque o beneficiário, nos termos do art. 234.º CC, não manifestou por qualquer forma não a pretender.
Nestes termos, justifica a doutrina que o facto de a garantia constar normalmente apenas de um documento assinado pelo banco, não lhe retira o seu carácter contratual: é necessária aceitação da proposta contratual, mas esta não tem que ser escrita (219.º CC); e essa declaração pode ser tácita.»
No que tange à caraterização da autonomia da garantia, «A autonomia da obrigação de garantia consiste em o banco garante não poder opor ao beneficiário os meios de defesa próprios do devedor garantido, tanto relativos ao contrato base como ao contrato de mandato, mas apenas os respeitantes ao contrato de garantia.» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.6.2000, Dionísio Correia, 316/2000,www.colectaneadejurisprudencia.com.
Na explicitação mais desenvolvida de Mónica Jardim, A Garantia Autónoma, Almedina, 2002, pp. 115-116,
«Em virtude da autonomia da garantia face ao contrato base, o garante não pode usar face ao beneficiário as exceções fundadas na relação principal, ou seja, os meios de defesa de que se pode prevalecer o garantido. A obrigação do garante de entregar uma determinada quantia pecuniária ao beneficiário depende exclusivamente da verificação das condições definidas no contrato de garantia. Não há, em princípio, interferência da convenção que liga o dador da ordem ao beneficiário da garantia. Assim, e segundo a doutrina maioritária, o garante não se pode furtar a entregar ao beneficiário a quantia pecuniária fixada alegando: a nulidade do contrato base resultante da violação de regras imperativas do ordenamento a que pertence o devedor; a sobrevinda impossibilidade de cumprimento do contrato; a compensação invocada pelo devedor perante o credor; o direito de retenção que assiste ao devedor face ao credor, etc.»
Conforme referem ROMANO MARTINEZ E FUZETA DA PONTE, Garantias de cumprimento, 2ª Ed., p. 71,
“ (...) esta autonomia não vai, obviamente, obstar a que o garante recuse o cumprimento com base em elementos constantes do próprio contrato. Deste modo, com a autonomia pretende-se que não possam ser apostas exceções relacionadas com o contrato garantido, ou seja, objeções exteriores ao contrato de garantia, mas que podem opor-se exceções próprias deste contrato, como seja o erro na celebração do negócio jurídico ou do prazo de pagamento nele acordado.
(...) a garantia autónoma tem sido mais frequentemente usada como caução de uma eventual indemnização derivada do incumprimento contratual, em especial para o caso de não cumprimento do contrato de empreitada. Desta última situação ainda se pode subdistinguir uma garantia autónoma prestada como caução: primeiro, de que o proponente, se a proposta for aceita, celebrará o contrato (por exemplo, garantia de que o concorrente num concurso para a adjudicação de empreitada de obras públicas, sendo-lhe esta adjudicada, celebrará o respetivo contrato), trata-se da chamada garantia de subsistência de oferta, cuja função é desempenhada pelo bid bond; segundo, de que o contraente realizará a prestação a que se vinculou (verbi gratia, garantia de que o empreiteiro efetuará a obra no prazo acordado); terceiro, de que o contraente cumprirá a prestação de forma não defeituosa (por exemplo, garantia de boa execução do contrato, sem defeitos). Estas duas últimas garantias correspondem à designada performance bond (garantia de [boa] execução”.
Também há unanimidade na doutrina no sentido de que o garante pode excecionar o dolo, a má fé ou o abuso de direito verificados no recurso à garantia pelo beneficiário – a recusa de pagamento com esta motivação pode ter lugar desde que o garante esteja na prova líquida dum comportamento abusivo do beneficiário. É o caso a afirmação pelo beneficiário de que a mercadoria não chegou, dispondo o garante de documentos de consignação – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.3.95, Miranda Gusmão, CJ 1995 – I, p. 140.
Na síntese expressiva no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5.7.2012, Abrantes Geraldes, 219/06, www.colectaneadejurisprudencia.com,
«São limitadíssimos os motivos que podem ser invocados pela entidade garante para recusar o seu cumprimento. A jurisprudência e a doutrina têm procurado isolar algumas das exceções que ficam situadas, em regra, numa estreita faixa integrada pelas regras da boa fé ou do abuso de direito ou pela necessidade de evitar benefícios decorrentes de factos ilícitos, envolvendo fraudes ou falsificação de documentos. Ademais, é generalizado o entendimento de que os factos pertinentes devem resultar de uma prova sólida e irrefutável, não bastando a formulação de meros juízos de verosimilhança sobre a ocorrência dos respetivos requisitos substanciais.
A legitimidade da recusa tem sido defendida designadamente nas seguintes circunstâncias:
- Manifesta má fé ou a má fé patente, isto é, que não oferece a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental em poder do ordenante ou do garante;
- Casos de fraude manifesta ou de abuso evidente por parte do beneficiário;
- Quando o contrato garantido ofender a ordem pública ou os bons costumes;
- Sempre que exista prova irrefutável de que o contrato-base foi cumprido.
O entendimento fortemente restritivo acerca da delimitação dos casos de legítima recusa de cumprimento da garantia encontra acolhimento da jurisprudência deste Supremo, como bem o revelam, entre outros, os Acs. de 27-5-10 (SERRA BATISTA), de 13-4-11 (MOREIRA CAMILO) e de 20-3-12 (FONSECA RAMOS), em www.dgsi.pt. Outrossim o Ac. de 12-9-06 (SEBASTIÃO PÓVOAS), no qual se refere que "a automaticidade da garantia só cede se o beneficiário estiver inequívoca e claramente de má fé em qualquer das modalidades deste conceito normativo. Sob pena de se frustrar o escopo das garantias à primeira solicitação que só viriam a ser pagas após longa controvérsia, quando existem precisamente para evitar dilações, deve ser-se muito restritivo e exigente na demonstração da quebra pelo beneficiário dos deveres acessórios de conduta, como a boa fé".»
Sobre esta mesma questão, afirmou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.6.2021, Rosa Tching, 15932/16, que:
«Característica fundamental da garantia bancária é, pois, a sua autonomização em relação ao contrato-base.
Daqui resulta que o garante não pode prevalecer-se dos meios de defesa facultados ao dador da ordem para recusar-se a pagar a garantia ao beneficiário, estando-lhe vedada a possibilidade de opor-lhe quaisquer exceções fundadas na relação principal entre o ordenante e o beneficiário, a menos que constem do próprio texto da garantia[7] ou que seja colocada à sua disposição prova inequívoca e irrefutável da “má fé patente”, da fraude manifesta ( exceptio doli) ou de abuso evidente por parte do beneficiário; de que o contrato garantido ofende os valores da ordem pública ou os bons costumes; de que o contrato-base foi cumprido; de que houve resolução do contrato-base por facto não imputável ao devedor ou ainda de que houve incumprimento do beneficiário, quer por ter declarado de que não está em condições de cumprir, por ter modificado unilateralmente os termos do contrato ou quando não acate regras fiscais locais [8].»
A razão da recusa de pagamento em caso de fraude manifesta ou abuso evidente radica na circunstância de existirem princípios cogentes em todo e qualquer ordenamento jurídico que devem ser respeitados, não podendo as garantias autónomas violar grosseiramente os referidos princípios: os da boa fé e os do abuso de direito – cf. FERRER CORREIA, “Notas para o estudo da garantia bancária”, in Temas de direito comercial e direito internacional privado, Coimbra, 1989, p. 22. Por força do princípio da boa fé (Artigos 334º e 762º do Código Civil), o beneficiário, parte do contrato autónomo de garantia bancária, está vinculado a um verdadeiro dever de boa fé no cumprimento desse contrato, de comportamento leal e correto, que o impede de reclamar abusivamente a garantia, pelo que o garante tem o direito de, neste caso, recusar tal pretensão.
Feito este enquadramento geral, atentemos nas particularidades do caso.
O tribunal a quo decidiu pela procedência dos embargos com base neste raciocínio:
«Por fim, a embargante invoca que as garantias bancárias sempre estariam caducadas por conta do tempo decorrido desde a data da sua constituição.
Nesta matéria parece-nos que assiste razão à embargante.
Nesta matéria, o exequente limita-se a escudar-se na natureza das garantias sem equacionar que dado o tempo decorrido entre a constituição das garantias e o seu accionamento não estaríamos perante a verificação da primeira situação de caducidade da garantia, a saber, ausência de persistência da relação entre embargante e EE, SA.
Na verdade, existem prazos para que defeitos da obra sejam invocados. Prazos que não são extensos.
Volvidos 15 anos, o Banco não poderia deixar de ponderar ser de recusar honrar a garantia por conta da verificação da primeira hipótese de caducidade da mesma, a saber «A presente garantia é válida enquanto subsistir qualquer relação obrigacional entre a I, L.da e a E, SA., emergente do contrato referido em 1». Deveria, pois, ter exigido junto da EE, SA que comprovasse manter-se a relação obrigacional entre essas duas partes, nomeadamente por que razão volvidos tantos anos ainda a subempreitada não se encontrava integralmente cumprida sem defeitos, pedindo comprovativo da denúncia dos defeitos.
Outro entendimento conduziria a que uma garantia bancária persistisse no tempo sem prazo, fazendo tábua rasa da jurisprudência citada pela embargante que se refugia em institutos de abuso de direito para legitimar o Banco a não cumprir a garantia.
Em suma, entende-se que tendo as garantias bancárias sido accionadas 15 anos depois da sua constituição, não havendo nada em que o Banco pudesse apoiar-se de que a relação jurídica subjacente entre embargante e EE, SA devesse persistir nestes 15 anos, o Banco não deveria ter pago as garantias e invocado a sua caducidade.
Tanto mais que sabendo que se tratava de garantia bancária para garantir obrigações respeitantes a subempreitada, não poderia desconhecer os curtos prazos para denunciar defeitos, cabendo-lhe, pois, um especial cuidado antes de pagar, mormente pedindo à EE, SA um comprovativo da denúncia dos defeitos. Ainda mais quando foi alertado pela embargante de que haveria um diferendo recente quanto à existência de defeitos por não terem sido invocados no passado.»
Não podemos acompanhar o raciocínio do tribunal a quo.
Conforme explica Mónica Jardim, A Garantia Autónoma, Almedina, pp. 301-302:
«35.4.1.–A tomada de conhecimento da fraude por parte do garante e a inexistância a seu cargo de um dever de investigação.
Um garante só dificilmente está em condições de, por si só, se dar conta da fraude do beneficiário. Fraude esta que resulta da ausência de direito do beneficiário tendo em conta o contrato base. Isto porque, por um lado, o dever de verificação de um garante, a quem seja solicitada a entrega da soma objeto da garantia, se traduz, apenas, no dever de examinar a conformidade formal da solicitação face ao previsto no contrato. E por outro, porque a autonomia da obrigação, assumida pelo garante, o impede de toda a investigação sobre o bem fundado do pedido.
Como o garante não pode discernir, só por si, o carácter fraudulento da solicitação, ele deve colocar o dador da ordem em posição de poder invocá-lo, logo após a solicitação da garantia e antes da entrega da soma combinada. Deve, por isso, o garante avisar o dador da ordem que o beneficiário solicitou a entrega da soma objeto da garantia.
E, por força da referida incapacidade, regra geral, o garante só tem o dever de recusar a entrega da soma objeto da garantia ao beneficiário se o dador da ordem, por uma prova pronta (preestabelecida) e inequívoca (desprovida de toda a ambiguidade), lhe der a certeza de que o beneficiário, no momento da solicitação da garantia, não tinha qualquer crédito decorrente do contrato base, qualquer que fosse o ponto de vista jurídico pelo qual a situação pudesse ser, razoavelmente, tomada em consideração.»
Este ensinamento é totalmente pertinente e está de harmonia com as característica do contrato celebrado no que tange à autonomia da obrigação assumida pelo garante/embargado, sendo pertinente para o caso em apreço.
Ou seja, se é certo que o banco/garante pode recusar o pagamento da garantia em caso de fraude manifesta ou abuso evidente (cf. supra), isso não significa que lhe incumba o ónus de investigar se ocorrem factos que possam sedimentar a fraude manifesta ou o abuso. Confrontado com um pedido de pagamento do beneficiário, cabe apenas ao garante avisar o dador da ordem que lhe foi solicitado o pagamento. Por sua vez, caberá ao dador da ordem facultar de imediato ao garante a prova – caso ocorra – pronta e inequívoca da inexistência, na esfera jurídica do beneficiário, de qualquer crédito emergente do contrato base entre o dador da ordem e o beneficiário. Entender que o garante está investido num ónus investigatório a este propósito seria negar a automaticidade e autonomia da garantia, descaracterizando-a.
Ora, no caso em apreço, em 28.12.2020, a beneficiária acionou junto do garante/exequente as quatro garantias (11.).
Embora não esteja autonomizado um facto nos termos do qual o garante/embargado tenha, de imediato, informado o dador da ordem/embargante do pedido de acionamento, a matéria provada permite inferir por presunção judicial (sobre a utilização de presunções judiciais na Relação, cf. Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª ed., pp. 183-189) que a embargante teve conhecimento de tal pedido porquanto, logo em 8.1.2021, a embargante dirigiu um correio eletrónico ao beneficiário, com conhecimento para a exequente/garante, sustentando que “sempre se mostrou disponível para quaisquer reparações necessárias que decorram no âmbito da garantia”, solicitando “que nos seja comunicada a lista de trabalhos de correção necessários”, concluindo que o acionamento das garantias é intempestivo e abusivo (12).
Dez dias depois (18.1.2021), a embargante enviou um correio eletrónico à embargada/garante afirmando ter conhecimento do pedido de acionamento das garantias, reputando tal pedido como completamente extemporâneo e ilegal, razão pela qual a embargante afirma ter instaurado, em 16.1.2021, um procedimento cautelar para impedir tal pagamento. Ainda nessa comunicação, a embargante solicitou à embargada que suspendesse o pagamento das garantias, só sendo efetuado “após validação judicial” (13).
Em 11.2.2021, a exequente honrou as garantias (19).
Posteriormente, em 9.6.2021, a embargante obteve sentença favorável (em ação intentada apenas contra a beneficiária das garantias), nos termos da qual foram declaradas caducadas as garantias prestadas pela embargante ( 18).
Resulta deste excurso que, após o acionamento das garantias e do conhecimento de tal acionamento por parte da embargante/dadora da ordem, esta não fez chegar ao garante/embargado prova pronta e inequívoca da inexistência - no âmbito do contrato base – de qualquer obrigação incumprida da embargante perante a beneficiária. O que a embargante transmitiu ao garante foi o seu entendimento que não ocorria incumprimento da sua parte porque estava disposta a fazer as reparações necessárias (facto 12) bem como que a solicitação de pagamento era extemporânea e ilegal. Todavia, semelhante posicionamento não integra, tanto mais que foi desacompanhado de uma prova documental concludente, a constituição de uma prova pronta e inequívoca da inexistência de qualquer obrigação da dadora da ordem perante a beneficiária, no âmbito do contrato base.
No que tange à validade temporal da garantia, o que ficou a constar dos contratos foi que:
«A presente garantia é válida enquanto subsistir qualquer relação obrigacional entre a I, L.da e a E, SA., emergente do contrato referido em 1, e caduca com a recepção definitiva da obra (ou dos trabalhos ou do fornecimento) sem quaisquer reservas, deficiências ou omissões, o que será também comprovado pelo respectivo auto assinado pela I, L.da e a E, SA.»
Tratando-se de garantias prestadas com referência a contratos de empreitada, o que as partes convencionaram foi que a garantia caducaria com a receção definitiva da obra sem reservas, a comprovar por auto assinado pelas partes. Não se encontra provado que a embargante tenha facultado ao garante/embargado cópia do auto de receção definitiva.
E quanto a outro tipo de factualidade suscetível de conduzir à cessação do contrato de empreitada e/ou das garantias contratuais conexas emergentes do mesmo, não cabia ao garante – conforme analisado supra – investigar por motu proprio a sua ocorrência, cabendo – pelo contrário – à dadora da ordem facultar ao garante – caso existisse – prova inequívoca da sua ocorrência, o que não está demonstrado nos autos.
«Não é excessivo sublinhar este ponto: para que o banco/garante deixe de pagar é necessário que seja colocada à sua disposição prova “líquida e inequívoca” da “má fé patente”, da “fraude evidente” ao ponto de “entrar pelos olhos dentro”. Caso contrário estar-se-ia a atentar contra a essência da própria garantia. Havendo causa de discussão sobre os factos que o ordenante avança como demonstrando o abuso de direito, o garante deve pagar. A questão deverá ser discutida depois entre as partes do contrato base» (Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, 2010, p. 133; sublinhado nosso).
A circunstância das garantias terem sido constituidas em 2004 e só terem sido acionadas em 2021 não tem o relevo que lhe foi assinalado pelo tribunal a quo. Com efeito, os contratos de garantia tinham um termo final claro (auto de receção assinado pelas partes), sendo que a extinção do contrato base com outros fundamentos prévios à assinatura do auto de receção teria de ser demonstrada pela dadora da ordem, o que não ocorreu.
A circunstância de o contrato de garantia autónoma perdurar por um longo período apenas poderia dar azo a que o garante denunciasse tal contrato, o que não ocorreu, ou requeresse o reforço de garantias.
Na verdade, «(…) por via de regra, as partes não podem ser obrigadas a permanecer indefinidamente adistritas à realização das prestações a que se vincularam em determinado momento. (…) Assim, se um contrato se protela sem limite temporal, ad perpetuam, qualquer das partes pode fazê-lo cessar, recorrendo à denúncia. (…) Cremos ser esta uma solução decorrente da impossibilidade de se admitirem vínculos contratuais ou obrigacionais de carácter perpétuo, eterno ou excessivamente duradouro» - Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3ª ed., pp. 216-217.
Conforme se afirma, na mesma linha, no Acórdão do STJ de 20.3.2012, Fonseca Ramos, 7247/08:
«Se o atraso na reclamação pelo beneficiário causava prejuízo, poderia o garante interpelar o beneficiário para exercer o seu direito num prazo considerado razoável, ou exigir do ordenante o reforço de garantias sob pena de se considerar que o não fazendo no prazo concedido, renunciaria à garantia.
Não o tendo feito, é duvidoso, no mínimo, que o direito da Autora tenha sido afetado por um prazo de caducidade não estabelecido, repete-se no contrato de garantia.
No citado Estudo do Dr. Jorge Duarte Pinheiro, o tratadista, a fls. 49/450, responde à interrogação:
“Quid juris se nada se convencionou acerca da duração da garantia?
O art. 777.°, nº1, do Código Civil, parece conferir ao beneficiário o direito de exigir o cumprimento da garantia a todo o tempo.
Ao entregar ao banco a carta de garantia, o beneficiário renunciaria aos seus direitos sobre o garante.
Noutra ótica, o silêncio sobre o prazo faria do contrato de garantia um contrato de duração indeterminada.
Consequentemente, ao banco caberia um direito de denúncia, implícito na generalidade dos contratos de duração indeterminada, em virtude de ao Direito desagradar a perpetuidade das obrigações (…). A denúncia, pelo banco, do contrato de garantia marcaria o momento a partir do qual a solicitação do beneficiário poderia ser desatendida.
Por nosso lado, ao banco aproveitam, para efeitos de desvinculação, duas situações (o cumprimento da obrigação principal, invocável logo que o banco possua “prova líquida” ou equivalente (…); a prescrição da garantia.
O garante não tem um direito de denúncia, tal como não tem o fiador no caso de obrigação principal sem termo.” »
Flui de tudo o que fica exposto que, em 11.2.2021, o exequente/embargado honrou corretamente as garantias, razão suficiente e necessária da procedência da apelação.
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, sendo os embargos julgados improcedentes.
Custas pela apelada na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).
Lisboa,11.10.2022
Luís Filipe Sousa José Capacete Carlos Oliveira
[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115. [2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana LuísaGeraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, FonsecaRamos, 971/12).