RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
VIOLÊNCIA
ESBULHO
Sumário

I – A propósito da violência enquanto requisito da restituição provisória da posse, pode dizer-se que na jurisprudência começou por prevalecer o entendimento (adoptado na decisão recorrida) segundo o qual a violência exercida sobre as coisas só caracterizará o esbulho como violento se o esbulhador pretender intimidar, directa ou indirectamente, o possuidor e não teriam essa virtualidade os actos de destruição ou de danificação desprovidos de qualquer intuito coactivo ou de condicionar, de alguma forma, o possuidor, propósito que só se revelaria estando o visado presente no momento do esbulho;
II – Porém, desde o início deste século que se assiste a uma inflexão da jurisprudência no sentido do alargamento do conceito de esbulho violento e na actualidade é, claramente, prevalecente o entendimento de que, para esse efeito, é suficiente que do esbulho resulte um obstáculo à continuidade do exercício da posse, que a violência (acção física) exercida sobre as coisas seja meio adequado de constranger uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade;
III - Nesta perspetiva, o arrombamento e subsequente mudança de fechadura da porta de acesso a um imóvel, mesmo na ausência do possuidor, constitui esbulho violento, logo, está justificado o acesso à tutela cautelar nominada.

Texto Integral

Processo n.º 1507/22.4T8MTS.P1
(Procedimento cautelar especificado)
Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Matosinhos (J3)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
Em 03.04.2022, AA veio, como preliminar de acção declarativa a intentar, requerer procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse contra BB e mulher CC, alegando, em síntese, que:
Na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, está inscrita a favor do requerido BB a aquisição, por compra por este efectuada em 28.02.2019, da fracção predial autónoma designada pelas letras “DD”, correspondente ao 5º andar direito frente, do prédio sito na Travessa ..., União das Freguesias ... e ..., concelho de Matosinhos.
A propriedade da identificada fracção predial foi adquirida pelo preço de € 176.000,00, preço este que foi pago por si, com as transferências que, previamente, fez feitas para a conta do requerido, seu filho, com a promessa de que ela, requerente, ficaria com o usufruto da fracção, até á sua morte.
Foi a expensas suas que mobilou e decorou tal fracção e aí permaneceu durante uns meses, regressando depois ao Brasil, com o intuito de regressar todos os anos e aí passar largos períodos e, um dia regressar definitivamente ao Portugal e, ali residir permanentemente.
Entretanto, as relações com o requerido, seu filho, foram-se deteriorando e por isso foi celebrado contrato-promessa pelo qual o requerido prometia vender-lhe, pelo preço de € 176.000,00, o usufruto vitalício da referida fracção.
Estando no Brasil e não podendo voltar a Portugal devido à pandemia de SARS- COV 2, nomeou uma procuradora encarregando-a de se deslocar ao imóvel para arejar a casa e verificar a existência de correio, bem como de pagar todas as despesas, como o IMI, condomínio, água e electricidade, o que sempre aconteceu até á presente data, pese embora os comprovativos de pagamento fossem emitidos em nome do requerido.
Sucede que, no dia 14.03.2022, o requerido, sabendo da sua vinda a Portugal, recorrendo a um serralheiro, “arrombou” a porta de acesso ao imóvel e mudou as fechaduras da porta de entrada.
Conclui a requerente que era ela «quem se encontrava a exercer todos os poderes sobre a dita fracção» e por isso «detinha a posse exclusiva» da mesma fracção.
Com estes fundamentos, formula os seguintes pedidos:
- que seja ordenada a restituição provisória à requerente da posse da fracção supra identificada;
- que os requeridos sejam condenados a absterem-se de praticar actos que impeçam ou dificultem o acesso á referida fracção e
- seja imposta aos requeridos uma sanção pecuniária compulsória de € 100,00 por cada dia de violação da providência que for decretada.
Na sequência de despacho proferido em 31.03.2022, a requerente veio aos autos informar que desiste da instância «quanto á segunda e terceira parte do pedido formulado».
Sem prévia audição dos requeridos, procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas, após o que, por despacho de 22.04.2022[1], foi julgado improcedente o procedimento cautelar instaurado em relação ao requerido e absolvida da instância, por ilegitimidade passiva, a requerida.
Inconformada com a decisão, a requerente dela interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que “condensou” nas seguintes conclusões:
«1. No dia 26 de Abril de 2022 foi no âmbito destes autos, foi prolatada a douta Sentença, que tendo julgado, como julgou, a ilegitimidade da requerida mulher, bem como, improcedente a providencia cautelar de restituição provisória da posse, apresentada pela recorrente
2. Foi entendimento da Meritíssima juíza a quo julgar a requerida CC, esposa do requerido BB, parte ilegítima e, em consequência, absolvê-la da instância.
3. Com o devido respeito, discordamos de tal decisão, já que, no caso de pessoas casadas, há que entrar em linha de conta com o disposto no artº 34º, nº 3, do C.P.Civil, segundo o qual, devem ser propostas contra ambos os cônjuges, entre outras, as acções emergentes de factos praticado por um dos cônjuges, mas em que pretenda obter-se decisão susceptível de ser executada sobre bens próprios do outro.
4. No caso dos autos, no nosso modesto entendimento, está em causa o interesse da conjuge do requerido, ora recorrido, pese embora, só aquele tenha praticado o acto, de arrombamento e troca de fechadura do imóvel.
5. In caso, face á ocupação do imóvel, por arrombamento e troca da fechadura, a cônjuge do esbulhador também frui directamente da coisa esbulhada, dela beneficiando por integração do bem na esfera patrimonial conjugal.
6. E, foi pedida a condenação na restituição da coisa.
7. Pelo que, no nosso modesto entendimento, a Requerida mulher também terá de ser demandada, sob pena de não ser possível atingir o efeito útil e necessário da acção.
8. Na verdade, se existe um pedido que os obriga a restituir o prédio é evidente que a procedência da acção vai implicar uma desvantagem para os requeridos e uma vantagem para a requerente e, para nós, tanto basta para que exista também interesse em agir.
9. Conforme salienta Teixeira de Sousa, nesta situação, “a avaliação pressupõe uma comparação das situações que existem antes e depois da concessão daquela tutela jurisdicional. Assim, o autor tem interesse em demandar quando, relativamente situação em que se encontra antes do processo, aquela tutela lhe atribuir uma vantagem e o réu tem interesse em contradizer quando, em relação a essa mesma situação, aquela tutela representar para ele uma desvantagem.
10. Será assim, de assegurar que a “causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de modo a não voltar a repetir-se (Anselmo de Castro “Direito processual Civil, vol.II)
11. Na verdade, se assim não fosse, a requerida mulher, não sendo também condenada, poderia vir, (no caso de decretamento da providencia) a praticar o mesmo acto (arrombamento da porta e troca de fechaduras) praticado pelo requerido marido.
12. Pelo que, no nosso modesto entendimento a requerida mulher deveria ter sido considerada parte legítima, o que, ora se pretende corrigido.
13. A Meritíssima Juiz na fundamentação da sentença especificou os fundamentos que da matéria de facto foram decisivos para a sua convicção e, deu como provados todos os pressupostos de que depende a aplicação desta providencia, (com os quais concordamos) á excepção da violência
14. Efectivamente, o procedimento cautelar de restituição provisória da posse foi indeferido por: “… a violência só releve se com ela se pretender intimidar directa, ou indirectamente, o primitivo possuidor, limitando a sua capacidade de determinação…”
15. Contudo, talvez por lapso, alguns dos factos dados como não provados, não se coadunam com a decisão, já que, para fundamentar a decisão foram considerados provados.
16. Motivo pelo qual, à cautela, no presente recurso, vai a recorrente impugnar a matéria de facto (artº 640º CPC) e matéria de direito.
17. Quanto ao facto 14, dado como não provado.
Na fundamentação da sentença a M. Juiz a quo, para dar como não provado o facto 14, refere que: “… tanto mais que tais transferências são posteriores á datas em que na escritura de compra e venda se refere ter sido feito o pagamento da primeira prestação do preço (€ 17.500,00).”
Ora, conforme se pode constatar na escritura, realizada no dia 28.02.2019, junta aos autos, é referido que a quantia de 17.500,00€ (sinal), foi paga em 17.07.2018, ou seja, antes da realização da escritura de compra e venda. Aliás, conforme se pode verificar pelos documentos juntos, todas as transferências para o Banco 1.... foram efectuadas antes do dia da escritura de compra e venda, por forma a que, no dia da escritura a conta, tivesse saldo suficiente, para pagamento do preço.
Por outro lado, a testemunha DD, depoimento gravado – 20220422102300-151541549-2871549.mp3, (10.03), á questão que lhe é lhe é colocada: Em que data foi comprado o apartamento e com o dinheiro de quem? refere o seguinte: “Eu a data, não sei ao certo mas, o dinheiro quem pagou foi a AA, isso eu tenho a certeza absoluta. O dinheiro da AA.”
E, á pergunta feita pela M. Juiz “Como é que tem essa certeza? A Testemunha responde: “Porque eu andava sempre com eles e a AA muitas vezes contactava comigo porque o dinheiro vinha para uma conta do Banco 1..., vinha do Brasil para uma conta do Banco 1... que é da AA e depois era transferida para uma conta do Banco 1... do BB.”
(17:15 – “Ela comprou o apartamento para poder usufruir até morrer…”
Pelo que, tal facto 14, deve ser dado como provado.
18. No que concerne ao facto 15, dado como não provado, na fundamentação é referido que: “ quanto ao facto 15 apesar das testemunhas referirem ter sido a requerente a mobilar o imóvel, nenhuma foi ao ponto de dizer que esta o fez a expensas suas, aliás até referiram que foram utilizados elementos decorativos que se encontravam em prédios que integravam herança a dividir entre a requerente e os seus filhos”.
Ora, no que concerne a este ponto, é referido na fundamentação da douta sentença, “ No caso dos autos, provou-se que, não obstante tivesse sido o seu filho a celebrar escritura publica de compra e venda e a ver registada em seu nome a fracção aqui em causa foi a requerente quem a mobilou, ai tencionando passar, por ano, vários períodos de tempo quando se deslocasse a Portugal”
Por outro lado ainda, tal ponto, encontra-se em contradição com o ponto 4 da matéria dada como provada.
Sendo que, a testemunha DD, inquirida – 20220422102300-151541549- 2871549.mp3, quanto a esta matéria referiu. “… decorou o apartamento á maneira dela, comprou os móveis e trouxe alguns objectos decorativos da quinta que ainda está por partilhar e que fica em Paços de Ferreira”, “nas fotografias vejo os móveis da AA e vejo a decoração do tempo dos pais dela que estava na quinta lá em Paços de Ferreira e vejo os móveis que ela comprou no ...” , “ ... ela trouxe para o apartamento todas as coisas dela, do pai, o pai tinha coisas antigas, livros fotografias, da mãe também e tinha bens pessoais…”
Referindo ainda essa testemunha que a requerente: “… a intenção da AA era ter aqui em Portugal um sitio onde ela pudesse vir, estar aqui uns tempos, ela gostava muito da zona de Matosinhos…” “... ela comprou o apartamento para poder usufruir dele até morrer” “a AA tinha a viagem marcada, depois desmarcou pela pandemia e entretanto, quando já podia viajar desmarcou, porque a mãe que já tinha 102 ou 103 anos ficou muito doente e acabou por falecer e ela, filha única, ficou ao lado da mãe e não veio a Portugal, mas sim, tinha a viagem dela preparada para vir cá, nessa altura” “… ela ligou-me a dizer para eu me preparar caso a mãe estivesse assim mal, para eu a representar no Cartório da Dra. EE, em Paços de Ferreira”
Por outro lado a testemunha FF (Gravação- 20220422101001_2871549_2871549,mp3) – (7:40 )- refere: “Ela sempre teve muita vontade de fazer como os pais antigamente faziam, ou seja, passava cá 5/6 meses …”, (10.58) “ … a casa lá de Paços de Ferreira estava a ficar um bocado degradada e dava muito trabalho…”, “ela chegou a mobilar o apartamento, eu até lhe disse, compra os moveis no ... que eles vão lá mobilar e ela acabou por ficar cá uns tempitos, pouco e foi para o Brasil e entretanto, veio a pandemia”
Mandatária – quando diz “uns tempitos pouco”, é em comparação ao tal meio ano que ela queria ficar?
Testemunha – Sim
19. Quanto ao facto 18, dado como não provado, pela testemunha DD (na gravação supra) ao 29.00, foi dito “… tinha coisas antigas dos pais dela…” “…tinha muitas pastas com documentos antigos…”, “outras pastas estavam vedadas com fita cola, não sei o que era...”
20. Quanto aos factos 19, 20, 23, 24, 25 e 26 dados como não provados, sempre se dirá que os mesmos estão em contradição com os factos 8, 9, 10, 11, 12 e 13 dados como provados.
Pelo que, tais factos devem ser considerados como provados.
21. Quanto ao facto 21 e 22 dado como não provado, efectivamente, não obstante a M. juiz a quo o tivesse dado como não provado, o certo é que na fundamentação da sentença refere que: “Embora a matéria provada esteja longe de se revelar farta, ainda assim julga-se a mesma suficiente para se considerar que a requerente detinha a posse da fracção. De facto, os mencionados actos materiais, vistos em si mesmos, revelam-se como manifestação desta sua posse, estando a coisa debaixo da sua esfera de influencia empírica (cfr. os artigos 1252/1 e 1253/c do Código civil.”
Sendo ainda certo que, tais factos, encontram-se em contradição com a matéria dada como provada, nos pontos 9 e 10.
A esse propósito, foi referido pela testemunha DD, na gravação supra referida, o seguinte:
(5:51) – “… um Senhor ligou-me, um vizinho que eu agora não sei dizer exactamente o nome do Senhor, a AA quando comprou deu o meu contacto caso houvesse uma inundação ou outro problema, para me contactar. E o Senhor contactou-me a dizer que estavam a arrombar a porta, que estavam lá 3 Senhores a arrombar a porta…”
(7:02)“... A D. AA sempre que vinha a Portugal, dava-me em numerário dinheiro suficiente para pagar todos os IMIs…”
Assim, com o devido respeito, para alem de outros requisitos (provados) fica demonstrado que a recorrente era vista pelos vizinhos, como possuidora do imóvel.
Pelo que, tais factos, devem ser dado como provados.
22. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo da gravação, impunham que, a decisão fosse dada como efectivamente o foi em relação à demonstração da posse da requerente, a sua perda por esbulho e a violência no desapossamento, sendo que este último, erradamente, foi mal julgado e, em consequência, motivo para indeferimento da providencia cautelar.
23. Efectivamente, a Meritíssima Juiz a quo, ao indeferir a providencia cautelar com base no entendimento de que “… a violência só releva se com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente o primitivo possuidor, limitando a sua capacidade de determinação.”, entende que, a violência em termos de procedimento cautelar de restituição de posse tem que incidir sobre pessoas.
24. Efectivamente, no caso vertente, está sumária e suficientemente demonstrada a posse anterior da requerente, o esbulho, no sentido da privação, contrária à sua vontade, da dita posse e, bem assim, contrariamente à decisão do Tribunal a quo, a violência exercida sobre o imóvel de que o requerido se apropriou, traduzida na provocada inacessibilidade ao mesmo, com prévio arrombamento e troca de fechadura, com que a requerente vedava o acesso ao seu imóvel.
25. Neste contexto, não pode deixar de considerar-se esbulho violento o arrombamento e troca de fechaduras de uma porta, de acesso á fracção, executada pelo requerido, como um obstáculo que constrange de forma reiterada a posse da requerente, impedindo-a de a exercitar como anteriormente fazia.
26. Efectivamente, a violência directamente exercida sobre as coisas, no nosso caso – um arrombamento de uma porta de um andar e troca de fechaduras – constituiu um meio indirecto de atingir a requerente/recorrente, na medida em que, lhe criou, no mínimo, um estado psicológico de insegurança, receio e intimidação.
27. A acção física do arrombamento, por si só, é um meio de coagir, intimidar a requerente/possuidora a permitir o desapossamento e de limitar a sua capacidade de autodeterminação, que se quede sem resistência.
28. E, ainda face ao conhecimento que teve posteriormente á pratica do facto de arrombamento, de o imóvel ser colocado á venda, conforme consta na informação prestada no requerimento (o qual foi indeferido pela Meritíssima juiz a quo) e documento, com entrada no dia 21.04.2021, dia anterior á diligencia de prova - inquirição das testemunhas e, cujo intuito da requerente foi o de justificar o “periculum in mora” e bem assim a intenção do requerido, ora recorrido de intimidar directamente a requerente, ora recorrente, limitando-a na sua liberdade de actuação, nada podendo fazer, atento, até o medo, face ao que passou e, determinou a medida de afastamento do aqui recorrido, por, contra a mesma, ter praticado o crime de violência domestica.
29. Sendo que, nunca poderia tal requerimento ser indeferido, já que, a intenção da requerente, foi a de reforçar qual a intenção do esbulhador, com a pratica de tal acto violento e bem assim, alertar para a consequência da concretização de tal venda.
30. Efectivamente, a jurisprudência adere e defende um conceito mais lato de violência, sem excluir a necessidade de se estabelecer um nexo entre a violência e as pessoas.
31. Com efeito, o arrombamento de uma porta e mudança de fechadura, que impede o exercício da posse deve ser considerado violento, não por via da subsunção de tal comportamento á “coacção moral” mas, por via da subsunção do mesmo ao conceito de coacção física, no sentido de que uma porta assim fechada é como um obstáculo que constrange de forma reiterada a posse da requerente, impedindo-a de a exercitar como anteriormente fazia, corresponde a uma força (uma barreira física) que impossibilita, obstrui, o exercício da posse e que invariavelmente se opõe ao possuidor ( artº 246 do C.c.)
32. Segundo entendimento do Prof Lebre de Freitas, Código processo civil anotado, 2ª edição, volume 2º, pag. 78, “é pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador.(…) a coacção tem de ser sempre, em ultima análise exercida sobre uma pessoa, mas a destruição (ou a construção) duma coisa, ou a sua alteração, pode ser o meio de impedir a continuação da posse, coagindo física ou moralmente o possuidor a abster-se dos actos de exercício correspondente.”
33. Pelo que, para que o conceito de violência se mostre preenchido, basta que a actuação do esbulhador configure uma posição de força ostensiva e de intimidação, não deixando ao esbulhado outra alternativa que não o recurso ao uso da força de sentido contrário, para repor o exercício do seu direito.
34. Sendo certo que, com a restituição se visa, para alem do mais que, em tais circunstâncias, o possuidor esbulhado não tenha necessidade de recorrer á acção directa com vista a retomar o exercício da posse
35. Ora, ao dizer-se que a ora recorrente não se viu limitada na sua capacidade de determinação, que não se sentiu intimidada, poderá entender-se que, poderia ou deveria ter recorrido á acção directa e, também arrombar a porta, para retomar a sua posse.
36. Dai que se nos afigure a todos os títulos razoável que tal relevância da violência sobre as coisas possa abranger, o arrombamento e mudança de fechadura do prédio objecto de esbulho, como sucede no caso vertente, tanto mais que a requerente/recorrente, face á coacção e intimidação que sofreu, decidiu seguir e confiar na protecção jurídica através dos Tribunais, com o procedimento cautelar de restituição provisória de posse, instrumento jurídico processual utilizado para repor a legalidade.
37. Pois, se assim não fosse, permitiria aos cidadãos, para defenderem os seus direitos, tivessem de desencadear um processo de acção directa, que seria uma forma de potenciar conflitos directos e agressivos, que, o direito, pretende evitar.
38. Efectivamente, a violência directamente exercida sobre as coisas, no nosso caso – um arrombamento de uma porta de um andar e troca de fechaduras – constituiu um meio indirecto de atingir a requerente/recorrente, na medida em que, lhe criou, no mínimo, um estado psicológico de insegurança, receio e intimidação.
39. Com o devido respeito, a acção física do arrombamento, por si só, é um meio de coagir, intimidar a requerente/possuidora a permitir o desapossamento e de limitar a sua capacidade de autodeterminação, que se quede sem resistência.
40. Em suma, tudo conduz a que, para a “melhor” Doutrina Jurisprudência o entendimento correcto será antes o perfilhado pela tese menos rigorista, a qual, considera que para existir violência em sede de esbulho não é necessário que seja a mesma exercida sobre as pessoas, por meio de ameaças ou em luta com o esbulhado ou seus representantes, antes basta “(…) que se exerça sobre as cousas, como arrombamento das portas de uma casa, a destruição ou demolição de uma parede, e um aqueduto, etc.“ [cfr. Guerra da Mota (Manuel da Acção Possessória, Vol. I, Porto 1980, pág. 36, e ainda o Prof. Menezes Cordeiro, in A Posse: Perspectivas e Dogmática Actuais, 3ª ed., pág. 142), e, a titulo de exemplo, Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 18.06.2020, sendo Desembargador Carlos Portela “quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físico ao acesso á coisa, seja através de meios que impedem a utilização do possuidor da coisa esbulhada.” e Ac. de Lisboa (Proc. nº 00117461, sendo Relator Azadinho Loureiro, e in www.dgsi.pt, no sentido de que “há esbulho violento sempre que existe a necessidade de vencer um obstáculo como seja o que resulta da substituição de fechaduras.”
41. Não obstante tudo quanto supra se deixou alegado, mesmo que assim não se entendesse (o que não é o caso), ou seja, não estarem verificados os pressupostos para aplicação do procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse, deveria ter-se operado a convolação do presente procedimento num procedimento cautelar comum tal qual previsto no artº 379º C.P.C.
42. A instância recorrida não podia, de forma tão restrita e seca, afastar o preenchimento dos requisitos daquela providencia sem explicitar a insuficiência relevante dos factos que integram a sua causa de pedir
43. Tendo pois, com o devido respeito, a sentença sob recurso violado como violou, diversas disposições legais, designadamente, os artºs. 255º, 1260º, nº 1, 1261º, nº 1, 1262º, 1263º, alínea a), todos do C. Civil, 377º e 378º, 379 ambos do CPC
44. Devendo, por isso, ou seja, por erros quanto ao julgamento, quer da matéria de facto, quer da matéria de direito que se traduziram estes, designadamente, na violação das normas legais supra referidas, ser considerados em sede de apreciação de mérito, (artº 665º CPCivil) já que, na nossa modesta opinião, tais erros, não implicam, a nulidade da sentença.
45. Contudo, se não for esse o entendimento, a inobservância de tais comandos, ou outros que se entenda existir, for sancionada com a nulidade da sentença, sempre será a mesma, de conhecimento oficioso (artº 615º C.P.C)»
O recurso foi admitido (com subida nos próprios autos e efeito suspensivo da decisão) por despacho de 18.05.2022.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Perante as conclusões formuladas, facilmente se constata que as questões a apreciar e decidir são estas:
- se o tribunal não fez uma correcta apreciação da prova produzida, impondo-se uma alteração da decisão quanto aos factos considerados indiciariamente provados;
- se estão reunidos os pressupostos exigidos para que se decrete a providência (restituição provisória de posse) pretendida e, em particular, se está verificado o requisito da violência que deve caracterizar o esbulho.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Delimitado o thema decidendum, atentemos na factualidade que a primeira instância considerou, indiciariamente, provada:
1. A requerente é mãe do requerido BB.
2. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, sob o n.º ... – “DD”, a fracção autónoma “DD”, correspondente ao 5.º andar direito frente, do prédio sito na Travessa ..., União das Freguesias ... e ..., concelho de Matosinhos, com a propriedade plena aí definitivamente inscrita a favor do requerido BB, por o ter adquirido em 28.02.2019, por escritura pública.
3. Tal prédio, foi adquirido pelo requerido pelo preço de 176.000,00€.
4. A requerente mobilou e decorou tal fracção e ali tencionava passar, por ano, vários períodos de tempo, quando se deslocasse a Portugal.
5. Contudo, devido à pandemia, provocada pelo SARS-COV-2, que assolou o mundo, impediu-a de regressar a Portugal, no sentido de ocupar, durante esses períodos de tempo, a referida fracção.
6. Entretanto, as relações entre mãe e filho, (que a requerente considerava o seu braço direito, após a morte de seu marido) foram-se deteriorando.
7. Motivo pelo qual foi celebrado Contrato Promessa de Compra e Venda do Usufruto, relativamente ao imóvel identificado no antecedente art.º 1.º, em que o requerido prometia vender à requerente, pelo preço de 176.000,00€ o usufruto vitalício da referida fracção.
8. A relação entre requerente e requerido ficou deteriorada, ao ponto de a Justiça Brasileira, determinar que o requerido não se podia aproximar da requerente sua mãe, por contra a mesma ter praticado crime de violência doméstica.
9. Não obstante a requerente se encontrar impedida de regressar a Portugal, devido à COVID 19 e à sua avançada idade, nomeou uma procuradora, no sentido de quando em vez se deslocar ao imóvel, abrindo as janelas, para o arejar e verificar a existência de correio.
10. Sendo certo que, essa sua procuradora, também estava incumbida de pagar todas as despesas ocasionadas com o imóvel, como por exemplo, o IMI, condomínio, água e electricidade, o que aconteceu sempre, até à presente data.
11. Em Março deste ano, a requerente teve conhecimento de que, o requerido marido, na presença de um serralheiro, “arrombou”, a porta de acesso ao imóvel, acedendo ao mesmo, trocando-lhe as fechaduras.
12. Encontrando-se assim a requerente impossibilitada de aceder ao imóvel.
13. O requerido, face à carta que lhe enviou a requerente, para vir dar cumprimento ao contrato promessa de compra e venda de usufruto, celebração da escritura, tinha conhecimento que a mesma tencionava vir a Portugal/Matosinhos, durante o presente mês.
Factos não provados:
14. Tal montante foi pago com as transferências previamente feitas pela requerente, para a conta do requerido, com a promessa de que a mesma ficaria com o usufruto de tal fracção, até à sua morte.
15. Foi a expensas suas que a requerente decorou e mobilou a fracção e ali permaneceu durante uns meses.
16. A requerente tinha o intuito de um dia regressar definitivamente ao Portugal e ali residir permanentemente.
17. A porta tinha duas fechaduras.
18. A requerente possui vários objectos de valor e, documentos sigilosos que, nesta altura já se encontram na posse do requerido.
19. Com o presente acto, foi intenção do requerido coagir psicologicamente a requerente.
20. Actuando apenas por forma a criar obstáculos que constrangem a requerente.
21. A requerente, desde o dia 28.02.2019, paga os inerentes impostos, água, electricidade e condomínio.
22. A requerente, desde 28.02.2019 até ao dia da mudança das fechaduras, sempre utilizou a referida fracção à vista de toda a gente, nomeadamente os vizinhos, sem oposição de quem quer que fosse e, na convicção de que utilizava um direito próprio.
23. A mudança das fechaduras teve o fim de a intimidar, limitando a sua liberdade de determinação, de a coagir como possuidora e bem assim, desapossa-la da fruição do bem.
24. O requerido tinha conhecimento que a mesma tencionava ficar na fracção durante uns meses.
25. Motivo pelo qual, com a mudança das fechaduras, coagiu-a física e psicologicamente, por forma a intimidá-la.
26. Por forma a criar obstáculos que constrangem a requerente, nomeadamente, impedindo-a de aceder ao imóvel e, sem capacidade de reagir, no sentido de recear um mal.

*
A reapreciação da decisão em matéria de facto tem carácter instrumental, é dizer, só faz sentido se visar reverter a favor do recorrente uma certa decisão jurídica alicerçada em determinada realidade factual que lhe é desfavorável, pois que, de contrário, essa reapreciação torna-se num acto inútil, num mero exercício cognitivo inconsequente.
A recorrente impugna a decisão de facto porque, na sua avaliação, a prova produzida impõe que todos os factos que integram o elenco dos considerados não provados devem figurar como provados.
No entanto, no “corpo” da motivação do recurso, a recorrente afirma, em jeito de conclusão, o seguinte:
«Assim, pelo que supra fica exposto, pese embora o Tribunal tivesse dado como não provados determinados factos e, existisse contradição entre factos provados e não provados, entende a recorrente que o Tribunal a quo fez um raciocínio correcto da prova feita nos autos, á excepção que levou ao indeferimento da providencia cautelar – não existência de actuação violenta, no esbulho, por entender que a violência só é relevante se intimidar directa ou indirectamente o primitivo possuidor, incorrendo assim, em erro de julgamento, quer quanto á matéria de facto quer quanto á matéria de direito.»
Daqui decorre que a própria recorrente circunscreve a sua impugnação aos factos que revelariam a violência do esbulho e, ainda assim, porque na primeira instância se entendeu que essa violência só será relevante se intimidar, directa ou indirectamente, o possuidor esbulhado (entendimento de que discorda).
A decisão a proferir no procedimento cautelar deve ser estruturada em moldes semelhantes aos de uma sentença, com delimitação do objecto do procedimento, a enunciação dos factos apurados e a motivação probatória (que, podendo ser mais ligeira do que na acção principal, não prescinde de uma breve análise crítica da prova), a subsunção jurídica dos factos e o dispositivo ou conclusão pela procedência ou improcedência da pretensão cautelar do requerente[2].
Compreende-se, pois, que também a impugnação da decisão de facto esteja sujeita aos ónus de especificação que decorrem dos artigos 639.º e 640.º do CPC e não basta a existência de provas que, simplesmente, permitam conclusão diversa, como tem sido sublinhado na jurisprudência dos tribunais superiores e tem merecido geral aceitação.
Ainda assim, não podem perder-se de vista algumas especificidades do processo cautelar.
Para apurar da verificação dos requisitos fundamentais da providência basta a prova sumária (summaria cognititio), é suficiente um juízo de verosimilhança sobre os factos. É no processo principal que se justifica e impõe uma indagação probatória mais aturada sobre os factos.
Por outro lado e em contraponto, há que ter em conta que no procedimento de restituição provisória da posse está excluído o contraditório prévio, o exercício do contraditório é diferido para depois da execução da providência (obviamente, se esta for decretada), nos termos previstos no artigo 366.º, n.º 6, do CPC, pelo que se impõe ao juiz que seja exigente na aferição dos respectivos pressupostos para evitar que se decrete uma providência que venha a revelar-se, de todo, injustificada.
A versão da recorrente (a única de que dispomos) é a de que a fracção predial em causa foi comprada pelo requerido BB (estando a aquisição da propriedade registada a seu favor na competente Conservatória do Registo Predial), mas o respectivo preço foi pago com o dinheiro que ela transferiu para a conta deste seu filho. A contrapartida era que ela, recorrente, teria o usufruto vitalício da fracção. Foi esse o compromisso assumido pelo requerido e só a circunstância de o relacionamento entre eles se ter degradado levou a que, em 20.10.2021, tivessem celebrado o que as partes designaram de “contrato de promessa de compra e venda de usufruto”.
A posse que invoca seria, assim, uma posse titulada e os poderes de facto sobre a fracção predial eram exercidos em termos do direito de usufruto.
Afigura-se, pois, relevante o facto descrito sob o n.º 14, considerado não provado.
Na decisão recorrida, justificou-se assim a exclusão desse facto do elenco dos perfunctoriamente provados:
«São juntos aos autos documentos de transferências feitas do Brasil para conta da autora no Banco 1...; em 12-02-2019 e 24-01-2019, nos valores de R$347-319.22 e R$350.599,27. Acontece que não se sabe qual o destino de tais fundos, designadamente se foram aplicados na compra do imóvel aqui em causa, tanto mais que tais transferências são posteriores à datas em que na escritura de compra e venda se refere ter sido feito o pagamento da primeira prestação do preço (€17.500,00)».
Aceita-se que não é possível ter como certo que aquelas quantias foram aplicadas na compra da fracção, mas não pode ser mera coincidência a circunstância de as transferências terem sido efectuadas imediatamente antes da outorga da escritura da compra e venda (em 28.02.2019) e de os valores transferidos, após conversão em euros, perfazerem o montante correspondente ao preço pago pela fracção predial adquirida.
É, pois, verosímil o alegado pela requerente. Verosimilhança que sai reforçada com o documento que titula o “contrato de promessa de compra e venda de usufruto”, pois não só é estipulado como preço do usufruto da fracção o mesmo montante estipulado como preço da aquisição da propriedade (€ 160.000,00), mas também o “promitente-vendedor” declara já ter recebido esse valor.
Estes factos, devidamente conjugados entre si, permitem, sem esforço, o tal juízo de verosimilhança sobre o facto descrito no ponto 14, que deverá passar para o elenco dos provados.
*
Está indiciariamente provado que a requerente mobilou e decorou a fracção em causa e aí tencionava passar, em cada ano, vários períodos de tempo, quando se deslocasse a Portugal (ponto 4), mas não se considerou provado que foi a expensas suas que a mobilou e decorou e, bem assim, que lá permaneceu durante uns meses (ponto 15).
Não há dúvidas quanto à relevância destes factos, pois traduzem o exercício de poderes de facto sobre a coisa.
Na motivação probatória da decisão, argumentou-se:
«Quanto ao facto 15 apesar das testemunhas referirem ter sido a requerente a mobilar o imóvel, nenhuma foi ao ponto de dizer que esta o fez a expensas suas, aliás até referiram que foram utilizados elementos de decoração que se encontravam em prédios que integravam herança a dividir entre a requerente e os seus filhos.
Nada também tendo referido quanto ao facto de esta ali ter passado meses.
(…)
Não se fez qualquer prova de que a requerente tivesse chegado a habitar a fracção nos termos referidos em 22.»
A recorrente contra-argumenta alegando que o depoimento da testemunha DD impõe decisão diversa da recorrida e que existe contradição entre o facto provado (ponto 4) e o não provado (ponto 15).
Ressalvado o devido respeito, é manifesto que não existe a invocada contradição.
Deu-se como provado que a recorrente decorou e mobilou, mas isso não implica que tenha sido a expensas suas.
Deu-se como provado que a recorrente tencionava vir a Portugal todos os anos e que seria na fracção predial que passaria os períodos em que aqui estivesse, mas não provado que aí já tivesse permanecido uns meses.
O que resulta do depoimento da testemunha DD (que, tal como a outra que foi ouvida, foi considerada credível porque, apesar da relação de amizade que tem com a recorrente, depôs de forma «honesta e precisa» e revelou conhecimento dos factos) é que a fracção foi decorada com objectos vindos de uma “quinta” que os pais da recorrente tinham em Paços de Ferreira, mas mobilada com móveis por ela comprados no ....
Também aqui há que reconhecer, em parte, razão à recorrente.
*
É nos pontos 19, 20, 23, 25 e 26 que estão descritos os factos que importam para a caracterização do esbulho como violento.
O tribunal a quo considerou que não estão indiciariamente provados porque «nenhuma prova foi feita de que, ao mudar as fechaduras, tivesse o requerido a intenção de amedrontar e coagir, física ou psicologicamente, a requerente. Nem resultou dos depoimentos ouvidos que a requerente, quanto a este especifico acto se tenha sentido amedrontada ou coagida.
Não se provou, assim, esta factualidade.».
Estamos perante factos subjectivos que, como é bom de ver, normalmente, só se provam por via indirecta (através da chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial) e não através de depoimentos de testemunhas.
Nesse âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo)[3] e para factos subjectivos ou com um forte pendor subjectivo a sua comprovação faz-se, necessariamente, por meio de prova indirecta.
Ora, estando adquirido que o requerido BB, em Março de 2022, arrombou a porta de acesso ao imóvel, assim acedendo ao mesmo e trocando as fechaduras, tal facto não pode dissociar-se da comunicação que lhe foi feita pela requerente, através de carta datada de 15.02.2022, em que se arrogava legítima possuidora da fracção predial e interpelava o requerido para comparecer no dia 18.04.2022 no Cartório Notarial da Dra. EE, em Paços de Ferreira, para outorgar no contrato prometido, ou seja, na compra e venda do usufruto do imóvel e, bem assim, do facto de o relacionamento entre eles se ter deteriorado ao ponto de a Justiça do Brasil ter proibido o requerido de se aproximar da requerente por contra ela ter exercido violência doméstica.
O requerido não podia ignorar que era propósito da requerente, sua mãe, utilizar a fracção como sua casa de residência quando e enquanto estivesse em Portugal, para o que até já a tinha mobilado e decorado, pois considerava-se já sua legítima possuidora.
Mostra-se, pois, fundado o juízo inferencial segundo o qual, ao praticar aquele acto sobre o imóvel, o requerido quis impedir a requerente de nele entrar e permanecer, constrangendo-a ou coagindo-a a aceitar a privação da posse.
Em conclusão, não há contradição alguma entre os factos, considerados provados, dos números 8 a 13 e os considerados não provados dos pontos 19, 20, 23, 24, 25 e 26.
O que acontece é que na primeira instância não se extraiu dos factos base assentes as ilações que era possível (e que se impunha) tirar.
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A recorrente vislumbra mais uma contradição entre os factos (considerados provados) descritos sob os n.ºs 9 e 10 e os (considerados não provados) descritos nos pontos 21 e 22.
O pagamento do IMI e de despesas de consumo de água, electricidade, etc., por si só, não constituem actos materiais de posse.
Por outro lado, a circunstância de um vizinho ter comunicado à testemunha DD que estavam três pessoas a arrombar a porta de entrada da fracção não faz com que a posse da requerente seja uma posse pública e pacífica.
De resto, a posse não tem que ser pública para que o possuidor possa recorrer a este instrumento de tutela judicial.
Por isso, quanto a este ponto, a razão não está com a recorrente.
*
Pelas razões sumariamente expostas, procede parcialmente a impugnação da decisão quanto à matéria de facto, pelo que nela se introduzem as seguintes alterações:
O ponto 4 passa a ter a seguinte formulação:
«4. A requerente mobilou, a expensas suas, tal fracção predial e decorou-a, pois aí tencionava passar, por ano, vários períodos de tempo, quando se deslocasse a Portugal.»
O ponto 14 do elenco de factos considerados não provados passa para o elenco dos indiciariamente provados com o seguinte conteúdo:
«14. O montante indicado no ponto 3 como preço da fracção predial foi pago com as transferências previamente feitas pela requerente para a conta do requerido, com a promessa de que esta ficaria com o usufruto vitalício de tal fracção.»
É aditado ao elenco de factos indiciariamente provados o ponto 15 com o seguinte conteúdo:
«15. Com a actuação descrita no ponto 11, o requerido BB quis impedir a requerente de entrar na fracção predial e nela permanecer nos períodos em que estivesse em Portugal, impondo-lhe o obstáculo resultante da mudança de fechaduras e assim a constrangendo ou coagindo a aceitar a privação da posse do imóvel».
Consequentemente, são eliminados do elenco de factos considerados não provados os pontos 19, 20, 23, 23, 24, 25 e 26.
Desse elenco, passa a constar o seguinte:
«16. A requerente tinha o intuito de um dia regressar definitivamente a Portugal e ali residir permanentemente.
17. A porta tinha duas fechaduras.
18. A requerente possui vários objectos de valor e documentos sigilosos que, nesta altura, já se encontram na posse do requerido.
19. A requerente, desde o dia 28.02.2019, paga os inerentes impostos, água, electricidade e condomínio.
20. A requerente, desde 28.02.2019 até ao dia da mudança das fechaduras, sempre utilizou a referida fracção à vista de toda a gente, nomeadamente os vizinhos, sem oposição de quem quer que fosse.»

2. Fundamentos de direito
Quando alguém é esbulhado ou perturbado no exercício da sua posse, é-lhe facultado o recurso ao procedimento cautelar comum regulado nos artigos 362.º e segs.
Quando o esbulho é acompanhado de violência, já o procedimento cautelar adequado é o de restituição provisória de posse (artigos 377.º e 378.º do CPC).
Para lançar mão, com sucesso, deste meio de tutela jurisdicional, é necessário que o requerente alegue e prove (ainda que indiciariamente) os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência.
Na decisão recorrida concluiu-se pela verificação dos dois primeiros requisitos, mas não do terceiro, com o que não está de acordo a requerente.
Vejamos, de forma muito breve, como se revelam esses dois primeiros requisitos para depois nos determos no pressuposto da violência no esbulho.
Existe posse quando alguém tem uma actuação correspondente a um direito que engloba poderes de facto sobre uma coisa (por exemplo, o direito de propriedade ou outro direito real, designadamente um dos chamados direitos reais menores como é o usufruto).
A posse envolve, portanto, um elemento empírico (o exercício de poderes de facto) e um elemento psicológico-jurídico - em termos de um direito real (cfr. Prof. Orlando de Carvalho, “Introdução à Posse”, estudo publicado na Rev. Leg. e Jurisp., 122.º, 66 e seg.s).
A posse não é entrar em contacto com as coisas, ela existe logo que a coisa entre na esfera de disponibilidade fáctica da pessoa, logo que sobre ela possamos exercer, querendo, poderes empíricos.
É este elemento que, comummente, se designa por “corpus”. O elemento intencional ou psicológico é designado por “animus”, que se presume uma vez verificado o “corpus”. A uma certa actuação de facto corresponde determinada intenção jurídico-real, uma vontade de agir como titular de um direito real.
Na decisão recorrida ponderou-se:
«No caso dos autos, provou-se que não obstante tivesse sido o seu filho a celebrar escritura pública de compra e venda e a ver registada em seu nome a fracção aqui em causa, foi a requerente quem a mobilou, ali tencionando passar, por ano, vários períodos de tempo, quando se deslocasse a Portugal.
O que só não fez devido à pandemia, provocada pelo SARS-COV-2, que assolou o mundo e que a impediu-a de regressar a Portugal.
Não obstante, nomeou uma procuradora, no sentido de quando em vez se deslocar ao imóvel, abrindo as janelas, para o arejar e verificar a existência de correio.
Sendo certo que, essa sua procuradora, também estava incumbida de pagar todas as despesas ocasionadas com o imóvel, como por exemplo, o IMI, condomínio, água e electricidade, o que aconteceu sempre, até à presente data.
Sendo a requerente quem detinha as chaves para acesso ao imóvel, como decorre de ter tido o seu filho que arrombar a fechadura para lhe vedar o acesso.
Embora a matéria provada esteja longe de se revelar farta, ainda assim julga-se a mesma suficiente para se considerar que a requerente detinha a posse da fracção.
De facto, os mencionados actos materiais, vistos em si mesmos, revelam-se como manifestação desta sua posse, estando a coisa debaixo da sua esfera de influência empírica (cfr. os artigos 1252º/1 e 1253º/c), do Código Civil.»
Nenhuma objecção nos merece esta análise: embora não abundem, está efectivamente provada a prática, pela recorrente, de actos materiais de posse sobre a fracção predial autónoma que o requerido comprou com o dinheiro que aquela lhe proporcionou.
Isso é claro em relação ao facto de ter sido a requerente quem mobilou a fracção, a expensas suas, e a decorou, sinais evidentes de que iria fazer dela a sua casa de habitação quando viesse a Portugal e aqui permanecesse por períodos mais ou menos longos, como planeava, o que não terá, ainda, acontecido (pelo menos, não se fez prova de que a requerente já esteve a habitá-la), primeiro, porque a pandemia a reteve no Brasil e depois porque o requerido arrombou a porta de entrada e mudou-lhe as fechaduras.
Também de destacar é a circunstância de o requerido, até então, não ter acesso ao interior da fracção, uma vez que teve de arrombar a porta de entrada para nela se introduzir. Esse facto é revelador de que a requerente tinha o gozo da fracção de modo exclusivo e que é verosímil a alegação de que o requerido lhe assegurou que ela teria o usufruto vitalício do imóvel.
Evidente é, ainda, o acto de esbulho praticado pelo requerido, que privou a requerente do exercício da fruição da coisa possuída e da possibilidade de o continuar ao mudar as fechaduras da porta de entrada.
Centrando-nos no requisito da violência que há-de caracterizar o esbulho para efeitos de restituição provisória da posse, a questão que há muito divide a doutrina e a jurisprudência consiste em saber se ela tem de ser exercida directamente sobre a pessoa do possuidor (mediante um constrangimento físico ou moral), não se configurando a violência se a pessoa desapossada não estiver presente ou se, diversamente, basta a violência exercida sobre a coisa quando esta esteja ligada de algum modo à pessoa do esbulhado.
Na decisão em crise perfilhou-se a primeira das referidas posições[4] (embora se comece por afirmar «Segue-se, neste ponto, a tese de que a violência para este efeito tanto pode ser exercida sobre a pessoa do possuidor como sobre a própria coisa, embora neste caso com a precisão que abaixo se mencionará») e a opção está assim fundamentada:
«Sendo o esbulho uma das formas através da quais se pode adquirir a posse, a sua qualificação como violento não pode deixar de resultar da aplicação do art. 1261º, do CC, pelo que há que ter em conta o disposto no art., 255º, do CCivil que integra na actuação violenta tanto aquela que se dirige directamente à pessoa do declaratário (possuidor), como aquela que é feita através do ataque aos seus bens (cfr. António Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Volume, 2001, pág. 45), embora neste último caso, a violência só releve se com ela se pretende intimidar, directa, ou indirectamente, o primitivo possuidor, limitando a sua capacidade de determinação.
Ora foi exactamente este intuito de intimidar directa, ou indirectamente, o primitivo possuidor, limitando a sua capacidade de determinação, que não se logrou provar.
E daí que não possa proceder a presente providência de restituição provisória de posse.»
Cabe fazer notar que o autor citado não defende que a actuação violenta que se concretiza através do ataque aos bens possuídos só releva para este efeito se com ela se pretende intimidar, directa ou indirectamente, o possuidor[5].
Essa é a posição defendida pelo Professor Dias Marques (Prescrição Aquisitiva, Lisboa, 1960, I, pág. 277) e pelo Professor Orlando de Carvalho (ob. cit., pág. 293).
No entanto, a orientação que tem prevalecido na doutrina não exige que o esbulhador, na sua actuação violenta, seja guiado por um propósito intimidatório, de coagir, dirigido ao possuidor.
Como expendem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre: «Que a coação tem de ser sempre, em última análise, exercida sobre uma pessoa, não é duvidoso; mas a construção ou destruição duma coisa, ou a sua alteração, pode ser o meio de impedir a continuação da posse, coagindo, física ou moralmente, o possuidor a abster-se dos atos de exercício do direito correspondente. Segundo uma variante mais aberta da segunda orientação jurisprudencial referida, a violência diretamente exercida sobe as coisas constitui meio indireto de atingir as pessoas (…)».
Orientação com a qual estes autores concordam, mas que consideram incompleta, pois basta que «a ação física exercida sobre as coisas seja um meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade», para o que pode ser despicienda a indagação sobre a presença do esbulhado no momento e no local da acção violenta, pois que «a coisa não deve ser vista como um obstáculo à apropriação do esbulhador até ao momento em que ele atua, mas como um obstáculo à atuação do possuidor a partir do momento da atuação do esbulhador. É, pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída, em consequência dos meios usados pelo esbulhador» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª edição, Almedina, págs. 93-94)[6].
Como anotam Maria dos Prazeres Beleza, Rita Lynce de Faria e Pedro da Palma Gonçalves «…0 entendimento da violência sobre coisas, suficiente para integrar o conceito de esbulho violento, também tem variado entre uma conceção que considera esbulho violento todo o apossamento levado a cabo com emprego de força e uma conceção que “apenas considera relevante a violência contra a coisa se essa violência for apta a, indiretamente, determinar a atuação”»[7].
Pode dizer-se que até ao final do século passado, na jurisprudência prevaleceu o entendimento adoptado na decisão recorrida, segundo o qual a violência exercida sobre as coisas só caracterizará o esbulho como violento se o esbulhador pretender intimidar, directa ou indirectamente, o possuidor. Não teriam essa virtualidade os actos de destruição ou de danificação desprovidos de qualquer intuito coactivo ou de condicionar, de alguma forma, o possuidor, propósito que só se revelaria estando o visado presente no momento do esbulho[8].
A partir do início deste século, ocorre uma clara inflexão da jurisprudência no sentido do alargamento do conceito de esbulho violento e na actualidade é, claramente, prevalecente o entendimento de que, para esse efeito, é suficiente que do esbulho resulte um obstáculo à continuidade do exercício da posse, que a violência (acção física) exercida sobre as coisas seja meio adequado de constranger uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade.
Nesta perspetiva, o arrombamento e subsequente mudança de fechadura da porta de acesso a um imóvel, mesmo na ausência do possuidor, constitui esbulho violento, logo, está justificado o acesso à tutela cautelar nominada[9].
Neste enquadramento, considerando a factualidade sumariamente provada, a acção do requerido (arrombamento seguido de mudança das fechaduras da porta de acesso à fracção predial de que é proprietário, mas cuja posse pertence à recorrente) configura, sem qualquer dúvida, uma situação de violência sobre coisa que constrange a requerente a suportar o desapossamento, impedindo-lhe o acesso ao imóvel.
Em face do circunstancialismo apurado (com realce para o facto de o requerido estar impedido pela Justiça Brasileira de se aproximar da requerente, sua mãe, por ter exercido violência contra ela), difícil mesmo é não se vislumbrar nessa acção do requerido sobre a fracção um meio indirecto de atingir a pessoa da sua progenitora, de a intimidar, de lhe causar receio e de a inibir de reagir para recuperar a posse de que foi privada.
Ressalvado o devido respeito pelo entendimento diverso expresso na decisão recorrida, temos para nós que houve esbulho e houve violência e por isso estão reunidos todos os pressupostos de que depende o decretamento da providência requerida.
*
Resta uma (breve) referência final ao inconformismo da recorrente com a decisão de absolvição da instância da requerida CC.
A recorrente discorda da decisão porque «no caso de pessoas casadas, há que entrar em linha de conta com o disposto no artº 34º, nº 3, do C.P.Civil, segundo o qual, devem ser propostas contra ambos os cônjuges, entre outras, as acções emergentes de factos praticado por um dos cônjuges, mas em que pretenda obter-se decisão susceptível de ser executada sobre bens próprios do outro» (conclusão 3.ª).
Manifestamente, não é o caso, pois a fracção predial em causa não é bem próprio da requerida CC.
Aliás, nem sequer se pode afirmar que se trata de bem comum, pois que se desconhece qual o regime de bens do casamento dos requeridos.

III - Dispositivo
Pelas razões que ficam expostas, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto por AA e, em consequência,
1) ordenar a restituição à requerente da posse da fracção predial autónoma designada pelas letras “DD”, correspondente ao 5.º andar direito frente, do prédio em regime de propriedade horizontal sito na Travessa ..., União das Freguesias ... e ..., concelho de Matosinhos, descrita na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, sob o n.º ... – “DD”, nessa parte revogando a decisão recorrida;
2) no mais, confirmar a decisão recorrida.
Por que decaiu parcialmente, as custas ficam a cargo da recorrente na proporção de metade (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 12.09.2022
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
_______________
[1] Notificado à requerente por expediente electrónico elaborado em 26.04.2022.
[2] Cfr. A. S. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., Almedina, 1998, pág. 209.
[3] Aliás, na tese de L. Pires de Sousa, Prova por presunção no direito civil, Almedina, 2012, p. 18, a não ser no caso da inspecção judicial, toda e qualquer prova é, em alguma medida, prova indiciária. O que distinguiria a prova dita directa da prova dita indirecta seria o número de passos inferenciais requeridos para estabelecer o factum probandum. “Toda a prova assenta numa inferência e sempre que julgamos presumimos” (p. 20).
[4] Criticada por dar «prevalência a juízos lógico-formais que, aplicados aos casos da vida real, determinam, com frequência, resultados irrazoáveis e inaceitáveis» (António Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV vol., pág. 44.
[5] No Código de Processo Civil Anotado, de que o Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes é co-autor juntamente com L.F. Pires de Sousa e P. Pimenta (vol. I, pág. 446), isso está bem claro quando, em anotação ao artigo 377.º, se afirma que as decisões judiciais sobre a demarcação dos casos de esbulho violento, em regra, «seguem o rumo que é mais ajustado à efetiva tutela dos direitos, incluindo no conceito de “violência” não apenas a que é exercida contra a própria coisa mas também, e de uma forma que nos parece inteiramente justificada, a que é exercida contra o possuidor, sem exclusão sequer dos atos intimidatórios que se repercutam na manutenção da paz pública que a providência visa finalisticamente assegurar».
[6] Em idêntico sentido, Marco Carvalho Gonçalves, in Providências Cautelares, 4.ª edição, Almedina, pág. 277.
[7] Comentário ao Código Civil, Direito das Coisas, UCE, pág. 81.
[8] Representativo desta corrente é o Ac. STJ de 29.06.1993, no qual se considerou que «só é violenta a posse obtida através de um constrangimento físico ou moral sobre uma pessoa», pelo que a utilização de força contra a coisa (p.ex., um arrombamento) não se configura como violência para este efeito se a pessoa desapossada não estiver presente (fizemos uso da informação constante da nota de pé de página n.º 48 da obra de A.S. Abrantes Geraldes “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV volume, Procedimento Cautelares Especificados”, Almedina, pág. 43, por não termos localizado este aresto na base de dados do IGFEJ).
Também no Ac. STJ de 29.09.1993 se decidiu não configurar esbulho violento a mudança da fechadura da porta (mesmo que tivesse sido precedida de arrombamento) de prédio arrendado, sem consentimento ou autorização do arrendatário, não estando este presente, este não estivesse presente, já que nenhum constrangimento foi exercido sobre ele.
Ao nível da segundo instância, podemos apontar como representativos desta corrente os acórdãos da Relação do Porto de 12.12.2000 (JTRP00030181) em que se considerou que «o esbulho só é violento se a violência tiver sido exercida sobre as pessoas», da Relação de Lisboa de 10.11.1987, no qual se entendeu que o arrombamento da porta de entrada de um escritório e a remoção de material diverso, não se encontrando ninguém no interior, não constitui esbulho violento, e da Relação de Évora de 26.09.1996 (CJ, 1996, T. IV, 281).
[9] Assim, no Ac. STJ de 19.10.2016 (processo n.º 487/14.4 T2STC.E2.S1) ponderou-se e decidiu-se:
«IV - A respeito do requisito da “violência”, a jurisprudência firmada no STJ oscilou ao longo dos anos entre a tese do acórdão recorrido – que considerou violência relevante aquela que é exercida contra a pessoa do possuidor – e a tese do acórdão-fundamento – que considerou bastante para integrar o requisito em causa a violência exercida sobre a coisa.
V - O conceito de violência encontra-se plasmado no art. 1261.º, n.º 1, do CC, que define como violenta a posse adquirida através de coacção física ou de coacção moral nos termos do art. 255.º do mesmo Código.
VI - A violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia – pelo que se sufraga a acepção mais lata de esbulho violento.
VII - A interpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, actuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa.
VIII - Não pode deixar de se considerar esbulho violento a vedação com estacas de madeira e rede com uma altura de 1,50m executada pelos requeridos como um obstáculo que constrange, de forma reiterada, a posse dos requerentes, impedindo-os de a exercitar como anteriormente faziam, merecendo, por conseguinte, tutela possessória cautelar no âmbito do procedimento de restituição provisória de posse.»
Já no Ac. STJ de 19.05.2020 (processo n.º 1988/17.8T8PTM-A.E2.S1) defendeu-se que a violência exercida sobre as coisas reclama uma actuação constritiva, mas que vá para além da privação não consentida da posse, sendo necessário que, «pela forma como essa constrição é efectuada, o possuidor se mostre coagido a permitir o desapossamento, ficando colocado numa situação de incapacidade de reagir perante o acto de desapossamento», mas não se requer que essa violência ofensiva da posse ocorra na presença do possuidor.
Da jurisprudência das Relações, importa destacar os acórdãos da Relação de Évora de 20.10.2016, processo n.º 469/16.1T8ABT.E1 («II. A violência no esbulho tanto pode ser exercida contra a pessoa do esbulhador como contra os seus bens, bastando, neste caso, que o acto sobre as coisas e os meios usados traduzam um cariz intimidatório, de ameaça latente, que pode vir a repercutir-se sobre o esbulhado, impedindo-o de aceder ou utilizar a coisa possuída.»), da Relação de Coimbra de 24.01.2017, processo n.º 1350/16.0T8GRD.C1 («a violência sobre as coisas, para relevar em termos de restituição provisória de posse, terá de ter reflexos, ainda que indirectos, como forma de intimidação, sobre as pessoas.») e de 11.04.2019, processo n.º 28/19.7T8MBR.C1 («1. Para deferir a restituição provisória da posse, a violência, caracterizadora do esbulho, poderá ser exercida sobre pessoas e/ou sobre coisas, mas neste caso desde que ela se repercuta nas pessoas em termos de intimidá-las ou coagi-las. 2. Se a acção recair sobre coisas e não directamente sobre pessoas, esta só poderá ser havida como violenta se, indirectamente, coagir o possuidor a permitir o desapossamento, pois apenas assim estará em causa a liberdade de determinação humana.») e da Relação de Guimarães de 14.09.2017, processo n.º 99/17.0T8AMR.G1 («Quando direcionada às coisas [a violência] é relevante desde que a coisa seja obstáculo do esbulho e impeça o exercício do direito do esbulhado ou potencie a intimidação ou constrangimento, de forma direta ou reflexa, do esbulhado.»).