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CRIME DE DANO
DANO QUALIFICADO
USURPAÇÃO DE IMÓVEL
Sumário
I - A propriedade, enquanto bem jurídico-penal específico (alicerçado na tutela constitucional do direito de propriedade, constante do artigo 62.º, da Constituição), deve ser considerada como uma relação de exclusividade entre a pessoa e a coisa. II - No dano qualificado são também tutelados interesses supra-individuais, como o significado cultural, artístico e histórico da coisa. Nestes casos o ofendido é a comunidade no seu todo. Nos demais casos, o ofendido é o proprietário, possuidor ou detentor legítimo. III - O conceito de coisa destinada ao uso público, a que se refere a alínea c), inclui a coisa móvel ou imóvel caracterizada pela sua finalidade de servir a coisa pública, quer seja pela utilização do público em geral, quer seja pela utilização de organismos ou serviços públicos, podendo a coisa ser propriedade de particulares. IV - No crime de usurpação de coisa imóvel o bem jurídico protegido é a inviolabilidade do património imobiliário. Sendo elementos do tipo objetivo de ilícito a invasão ou ocupação de coisa imóvel alheia, o emprego de violência ou ameaça grave e a intenção de exercer o direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados. Admitindo o tipo subjetivo qualquer das modalidades do dolo, mas a invasão ou ocupação de coisa móvel alheia tem que ser feita com intenção de exercer o direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados por lei, sentença ou ato administrativo.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
1. RELATÓRIO
A – Decisão Recorrida
No processo de inquérito nº 48/19.1GBGDL, iniciado por via da queixa apresentada por AA contra a denunciada C..., pela prática de factos suspceptiveis de integrar um crime de dano qualificado e outro de violação de regras urbanísticas, p.p., respectivamente, pelos Artsº 273 nº1 al. c) e 278-A nº1, ambos do C. Penal, que correu termos nos serviços do Ministério Público da Comarca ..., Secção de ..., foi proferido despacho de arquivamento nos seguintes termos (transcrição):
Iniciaram os presentes autos com base num auto de notícia (fls. 4 a 6), onde se dá conta que entre o dia 16/02/2019 e o dia 22/02/2019, na ..., em ..., a denunciada C..., por determinação do seu representante legal, procedeu à edificação de pilares em alvenaria com vista a colocar eventualmente um portão ou outro mecanismo que impossibilite a ofendida AA de aceder à sua propriedade através do caminho existente nesse local.
Esta factualidade poderá configurar, em abstracto, a prática de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 213.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e a prática de um crime de violação de regras urbanísticas, previsto e punido pelo artigo 278.º-A, n.º 1, do Código Penal.
Foram realizadas as seguintes diligências de inquérito:
- Junção aos autos de relatório de serviço, fls. 14 e 15.
- Junção aos autos de reportagem fotográfica, fls. 16 e 17.
- Junção aos autos de aditamento ao auto de notícia, fls. 29.
- Inquirição de BB, fls. 31 e 32.
- Junção aos autos de declaração emitida pela JF de ..., fls. 37.
- Junção aos autos de reportagem fotográfica, fls. 38 e 39.
- Inquirição de AA, fls. 43 e 44.
- Junção aos autos de fotografia, fls. 45.
- Junção aos autos de carta remetida por CC a AA e de carta remetida em resposta, fls. 47 e 48.
- Junção aos autos de oficio remetido pela CM de ..., fls. 52 a 57.
- Junção aos autos de cópia de escritura de compra e venda, fls. 107 a 111.
- Interrogatório da sociedade C..., fls. 122
- Interrogatório de DD, fls. 125.
- Tomada de declarações para memória futura a AA, fls. 155.
- Junção aos autos de certidão extraída do processo n.º 6694/18...., fls. 185 a 355.
- Apensação do processo n.º 362/19.....
Findo o inquérito, cumpre, assim, analisar se estamos perante a prática dos referidos ilícitos criminais.
Dispõe o artigo 213.º, do Código Penal: 1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável: a) Coisa ou animal alheios de valor elevado; b) Monumento público; c) Coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos; d) Coisa pertencente ao património cultural e legalmente classificada ou em vias de classificação; ou e) Coisa ou animal alheios afetos ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério; é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias. 2 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios: a) De valor consideravelmente elevado; b) Natural ou produzida pelo homem, oficialmente arrolada ou posta sob protecção oficial pela lei; c) Que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público; ou d) Que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico; é punido com pena de prisão de dois a oito anos. 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 204.º e 2 e 3 do artigo 206.º e na alínea a) do n.º 1 do artigo 207.º 4 - O n.º 1 do artigo 206.º aplica-se nos casos da alínea a) do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2.
Por sua vez, dispõe o artigo 278.º-A, do Código Penal: 1 - Quem proceder a obra de construção, reconstrução ou ampliação de imóvel que incida sobre via pública, terreno da Reserva Ecológica Nacional, Reserva Agrícola Nacional, bem do domínio público ou terreno especialmente protegido por disposição legal, consciente da desconformidade da sua conduta com as normas urbanísticas aplicáveis, é punido com pena de prisão até três anos ou multa. 2 - Não são puníveis as obras de escassa relevância urbanística, assim classificadas por lei. 3 - As pessoas colectivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelo crime previsto no n.º 1 do presente artigo. 4 - Pode o tribunal ordenar, na decisão de condenação, a demolição da obra ou a restituição do solo ao estado anterior, à custa do autor do facto.
Findo o inquérito, das diligências de inquérito realizadas resulta indiciado que a sociedade arguida, por determinação do arguido, impediu a utilização (tornou não utilizável) a passagem pelo caminho público que possibilitava o acesso à propriedade da ofendida.
Não resulta indiciado que o arguido tivesse agido com dolo por não ter sido possível apurar se, no momento da prática dos factos, o arguido tinha conhecimento que aquele caminho se tratava de um caminho público.
Quanto aos factos que se consideram indiciados e quanto aos factos que não se consideram indiciados, esta convicção alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria, dos meios de prova acima referidos.
Efectivamente, atendendo ao tipo de caminho em causa (um caminho rural), coloca-se em causa se o arguido teria conhecimento que aquele caminho era público ou se julgava que se tratava de uma servidão de passagem.
Ora, uma vez que uma servidão de passagem não integra o conceito de coisa utilizado na descrição do tipo de crime de dano, já que um direito não é susceptível de ser danificado (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06/10/2021, relator Jorge Jacob, disponível no site www.dgsi.pt), os factos praticados pelo arguido não consubstanciaram a prática dos aludidos crimes se fosse esta a realidade. Como se trata de um caminho público, a conduta do arguido já integra os tipos objectivos de ambos os crimes. No entanto, quanto ao elemento subjectivo de ambos os crimes (dolo), não resultam elementos suficientes que permitam concluir que o arguido sabia que aquele caminho era público e que mesmo assim quisesse agir da forma descrita.
E esta é uma dúvida razoável, tanto mais que a declaração emitida pela Junta de Freguesia ... a comprovar que aquele caminho se trata de um caminho público foi emitida em 07/03/2019, ou seja, em data posterior aos factos que deram origem aos presentes autos.
Pelo exposto, os indícios recolhidos não são suficientes para, a manterem-se em julgamento, determinarem a aplicação de uma pena pela prática dos mencionados crimes, não existindo forma de suprir esta dúvida. Ou seja, dos indícios apurados não resultam indícios suficientes que permitam a sustentação de uma acusação.
Tanto mais que, em caso de dúvida sobre a factualidade típica, deve decidir-se a favor do arguido, atendendo à imposição constitucional “dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao [arguido], quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”, como acontece no presente caso (CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa anotada, Volume I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 2007, p. 519). Assim, a aplicação do princípio in dubio pro reo, o qual tem aplicação prática em todas as fases processuais, incluindo no inquérito (neste sentido vide Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/05/2018, relator Desembargador Orlando Gonçalves), impõe que os autos sejam arquivados quando dos indícios recolhidos resulte uma incerteza que impossibilite a formulação de um juízo de indiciação susceptível de sustentar uma acusação em julgamento.
Uma vez que não se logrou apurar se houve um comportamento ilícito por parte do arguido, deverão os presentes autos ser arquivados por não se obter indícios suficientes da prática dos mencionados tipos de crime.
***
Atento o disposto no artigo 277.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o inquérito deverá ser arquivado quando não foi possível obter indícios suficientes da verificação do crime.
Nesta conformidade, determino o arquivamento dos autos, nos termos do n.º 2, do artigo 277.º, do Código de Processo Penal, por não existirem indícios suficientes de se ter verificado a prática dos crimes de dano qualificado e de violação de regras urbanísticas.
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Cumpra o preceituado pelo artigo 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Inconformada com o assim decidido e constituída assistente, veio a denunciante AA requerer a abertura da instrução pela pronúncia do já constituído arguido DD, proprietário da empresa C..., pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de dano qualificado, p.p., pelo Artº 213 nº1 al. C) do C. Penal e um crime de usurpação de coisa imóvel, p.p., pelo Artº 215 nº1 do mesmo Código, tendo, na mesma peça processual, deduzido pedido de indemnização civil contra o arguido.
Realizada a instrução, foi proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal, Juiz 1, despacho de não pronúncia do arguido DD, em relação aos crimes de dano qualificado e de usurpação de coisa imóvel que lhe era assacado pela assistente AA.
B – Recurso
Inconformada com este despacho, dela interpor recurso a assistente, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
A. Vem o presente recurso interposto contra a decisão proferida nos presentes autos no passado dia 22.03.2022, nos termos da qual a Mma. Juiza de Instrução Criminal decidiu "não pronunciar o arguido DD pela prática dos crimes de dano qualificado p e p artigo 213°, 1 c) C. Penal e de usurpação de coisa imóvel p e p artigo 2150 Código Penai".
B.Para tal, justifica a Mma. Juíza de Instrução Criminal que considerou não verificada a prática do crime de:
i) dano qualificado, porquanto entendeu que: "No caso dos autos, temos um caminho cuja natureza pública ou privada e mesmo a sua utilidade pública, ainda que se considere caminho privado, não está estabelecida, inexistindo qualquer registo ou título que a defina. O facto de o Município ou a Junta de Freguesia afirmarem que se trata de um caminho público não permite concluir que tem efectivamente tal natureza, não competindo tal decisão a estas entidades administrativas. Existindo um conflito relativo à natureza privada ou pública do caminho, cabe aos Tribunais comuns tal decisão. Atenta a natureza subsidiária da intervenção do Direito Penal, o mesmo não pode tutelar situações indefinidas como esta, já que não é possível afirmar com grau de certeza suficiente se o caminho em causa é público, privado e se tem ou não utilidade pública. Não está assim preenchido um dos elementos objetivos do tipo de ilícito respeitante ao crime de dano qualificado ( coisa com utilidade pública) ou mesmo do crime de danos simples ( carácter alheio da coisa), pelo que se impõe a não pronuncie do arguido quanto a este ilícito criminal imputado ".
ii) usurpação de coisa imóvel, porquanto entendeu que "não existiu violência relevante e não há indícios suficientes do carácter alheio da coisa".
C.A Assistente não se pode conformar com tal decisão uma vez que quanto ao crime de:
i) dano qualificado: não corresponde à verdade que exista qualquer conflito quanto à natureza do caminho, uma vez que o Arquido nunca Impugnou nem contestou a declaração da Junta de Freguesia e inclusivamente acatou as ordens da Camara Municipal para reposição do caminho público.
ii) usurpação de coisa imóvel: a coisa em causa, sendo pública, tem carácter alheio e sobre a mesma incidiu violência relevante porquanto o caminho de acesso ao imóvel foi violentamente destruído tendo sido aberta uma vala, tornando-o inutilizável, com recurso a máquinas de elevado porte, nomeadamente, um trator e uma retroescavadora.
D. A Assistente não se conforma ainda com os factos que a Mma. Juíza de Instrução Criminal considerou não suficientemente Indiciados, como abaixo se descreverá.
E. Antes de mais, cumpre contextualizar os factos, pois que a conduta do Arguido com vista a impedir que a Assistente tivesse acesso à sua habitação é por demais óbvia, vejamos:
Na sequência da aquisição do referido prédio confinante por parte da C..., em 21.09.2018 [facto provado em D.], a Assistente instaurou contra a referida sociedade uma ação declarativa de condenação, a qual corre termos sob o número 6694/18...., com vista a exercer o seu direito de preferência legal;
Em 23.05.2019, no âmbito da ação de preferência supra referenciada, foi realizada audiência prévia, em cuja ata se lê que "As partes estão prestes a alcançar uma transação, sendo que precisam de ultimar alguns aspectos da mesma, para além de irem procurar ainda também alcançar acordo noutros processos, nos quais litigam estas partes, pelo que requerem prazo de 15 dias, o que vai deferido"!" .
F.Ora, por não ter logrado chegar a acordo com a Assistente, M. - No dia 08/06/2019, dia seguinte ao termo do prazo fixado pelo Tribunal para o Arguido chegar a acordo com a Assistente, a arguida C..., por determinação do seu representante legal, o arguido DD, procedeu à abertura de uma vala no caminho acima referido (aditamento ao auto de denúncia de fls. 29 e fotos de fls. 38 e 39), tornando-o inutilizável.
G.Quanto aos factos suficientemente indiciados importa, pois, proceder aos seguintes
complementos:
Quanto ao facto K. cumpre acrescentar que, na referida missiva, o Arguido refere que "foi construída, a nossas expensas, uma estrada alternativa que chega ao seu terreno do lado poente e que está perfeitamente visível e transitável". (cfr. fls. 506). Quanto ao facto L. cumpre acrescentar que, na refenda missiva, a Assistente refere que "Acresce que o caminho em questão se encontra no uso direto e imediato do público, desde tempos anteriores à memória das pessoas vivas, que desde sempre por lá passaram sem oposição de ninguém.", bem como que a mesma foi recebida em 22.04.2022 (cfr. fls. 510).
Quanto ao facto M. cumpre precisar que, M.- No dia 08/06/2019, dia seguinte ao termo do prazo fixado pelo Tribunal para o Arguido chegar a acordo com a Assistente, a arguida C..., por determinação do seu representante legal, o arguido DD, procedeu à abertura de uma vala no caminho acima referido (aditamento ao auto de denúncia de fls. 29 e fotos de fls. 38 e 39), tornando-o inutilizável. M.1. - Na sequência da aquisição do referido prédio confinante por parte da C..., em 21.09.2018, a Assistente instaurou contra a referida sociedade uma ação declarativa de condenação, a qual corre termos sob o número 6694j18.3T8STB, com vista a exercer o seu direito de preferência legal-": M.2 - Em 23.05.2019, no âmbito da ação de preferência supra referenciada, foi realizada audiência prévia, em cuja ata se lê que "As partes estão prestes a alcançar uma transação, sendo que precisam de ultimar alguns aspectos da mesma, para além de irem procurar ainda também alcançar acordo noutros processos, nos quais litigam estas partes, pelo que requerem prazo de 15 dias, o que vai deferido . Quanto ao facto N. cumpre precisar que, N. - A partir de 08/06/2019 o marido da assistente só pode continuar a aceder ao Imóvel contornando a vala com um veículo todo o terreno. R.l. - Por notificação expedida em 02.07.2019, a Chefe da Divisão de Planeamento e Urbanismo da Câmara notificou a sociedade arguida "para suspender de imediato as obras de construção de murete técnico e execução de caminho em gravilha", notificação efetuada em 03.07.2019 (dr. documentos constantes da notificação datada de 25.01.2022 com a referência ...14 - fls 590 e ss)
H.J á quanto aos factos não suficientemente indiciados, com o devido respeito, não é razoável que o Tribunal tenha dúvidas acerca dos seguintes factos que deveria ter considerado suficientemente indiciados, pois como veremos tais dúvidas são irrazoáveis e totalmente inverosímeis.
I. Mais se recorde que, nesta sede, bastam apenas indícios, os quais como veremos são sobejamente suficientes para que se proceda à alteração dos factos (não) suficientemente indiciados, sendo certa a consequente elevada probabilidade de o Arguido ser condenado em sede de julgamento.
J. Em primeiro lugar, não podem restar dúvidas de que o Arguido sabia que o caminho em causa era o único acesso à habitação da assistente.
K. Desde logo, porque se assim não fosse não tinha o Arguido referido na sua missiva que "foi construída, a nossas expensas, uma estrada alternativa que chega ao seu terreno do lado poente e que está perfeitamente visível e transitável",
L. Por outro lado, bem sabia o Arguido que a referida estrada alternativa não dava acesso à habitação da Assistente, o que quis na sequência de não ter chegado a acordo com a Assistente no âmbito da referida ação de preferência tal como evidenciou a testemunha EE, em depoimento prestado em sede de instrução no dia 17.03.2022, entre as 10h35m33s e as 10h3ge46s: Entre os 06m16s e 09m00s EE: O Sr. CC depois telefonou-me, falou comigo. Pessoalmente fui lá ao terreno, disse que não queria problemas nenhuns comigo que sabia que o terreno do meu pai era aí colado e se eu tivesse preciso de aceder lá que ele ia lá tapava a vala para eu para eu passar e voltava a abrir que ele tinha lá uma diverqência qualquer com o Sr. FF que queria mudar o caminho para outro lado .. E eu disse-lhe, olhe eu não tenho nada a ver com os vossos problemas
M. Ora, não obstante, conforme refere o Tribunal, a testemunha EE ter referido que o caminho em causa não era o único que permitia o acesso ao imóvel da assistente, existindo também a "estrada cega", a verdade é que esse outro caminho:
caminho
se situava em propriedade do Arguido com placa fixada a indicar tratar-se de "Acesso - Reservado" (cfr. fls. 45);
não era possível percorrer com um veículo automóvel;
não era possível percorrer após o Arguido ter procedido à sua vedação em
03.10.2019.
N. De facto, e conforme esclareceu a testemunha EE, em depoimento prestado em sede de instrução no dia 17.03.2022, entre as 10h35m33s e as 10h3ge46s: Entre os 09m08s e llm02s Advogado da Assistente: Quanto refere que havia outro caminho que usou para tirar a cortiça em que referiu que tinha que dar uma volta maior. Esse caminho era onde? EE: Esse caminho era dentro da propriedade do Sr. CC, mas porque não estava fechado ali aquele canto ainda porque ele se calhar deixou essa parte fechada porque aquilo está tudo fechado. A estrada para lá o caminho de acesso que eu sempre sempre sempre conheci e que as que toda a gente conheceu era esse caminho que estava cortado. Advogado da Assistente: Mas então esse outro caminho alternativo que o Sr. diz que fez foi em terrenos do Sr. CC? EE: Sim Advogado da Assistente: Esse caminho alternativo dava acesso à habitação do Sr. FF? EE: Não era fácil, dava também mas não era muito fácil. Dava tanto que eu passei porque não lhe consigo mostrar o sitio, porque eu tinha que vir, saía da terra do Sr. FF chegava aqui à frente tinha que dar uma volta, voltar para trás que aquilo tem uma entrada e você não consegue virar com um carro para o lado do monte, porque o acesso é de frente entrada e saída do monte que era do Sr. GG. A estrada faz assim, aqui vai para o monte do Sr. FF, aqui vai do Sr. CC desse monte e você para virar para ali não consegue tinha que dar a volta para virar para esse caminho alternativo que eu usei porque tinha que passar e não queria também estar a arranjar problemas e tinha que me desenrascar, não ia o Sr. CC lá com uma máquina tapar o caminho para eu passar ali uma vez, passei lá um dia. porque o Sr. CC disse que você se é preciso passar eu venho aqui tapo a vala e depois volto a abrir .. Advogado da Assistente: Mas porque é que ele pôs a vala? EE: Não sei, porque quis cortar ali o caminho e quis que o caminho alternativo fosse ao lado.
Aos llm40s EE: Isto era a estrada que o Sr. CC quis como alternativa, mas isto não tem acesso a lado nenhum.
Entre os 12m25s e 12m50s Advogado do Arguido: Estava estrada que agora acabámos de ver estava feita e chegava à extrema da propriedade do Sr. FF. EE: Sim, sim à extrema. Advogado do Arguido: Olhe essa outra estrada que o Sr. falou que ia por dentro da propriedade do Sr. DD também era do conhecimento do Sr. FF? EE: Não sei, penso que não. Advogado do Arguido: Então como é que ele fez, como é que ele entrava e sai da propriedade? EE: Não deve ter entrado durante essa altura, não sei, digo eu. Ou então ia a pé.
O. Ainda quanto à inexistência de caminhos alternativos de acesso à habitação da Assistente, esclareceram as testemunhas HH e II, em depoimentos prestados em sede de instrução no dia 17.03.2022, entre as 10h07m36s e as 10h24m23s e entre as 10h41m03s 10h45m55ss respetivamente.
JJ, entre 09m35s a 10m08s HH: Não, fizeram foi esse novo caminho até à extrema, depois da extrema para o interior não havia caminho nenhum, o Sr. é que depois tinha que depois continuar esse caminho até à habitação.
JJ, entre 15m52s e 16mlls Juíza: Era possível construir caminho dessa extrema até à habitação? HH: O alternativo o que fizeram? Juíza: Sim. HH: Tinham que destruir o olival e a parte que a pessoa tinha lá de cultivo.
II, entre 02m55s e 03m 12s Juíza: Olhe e essa vala nesse caminho impedia a passagem? II: Sim, impedia porque era a única, o resto era tudo mato era uoo ervinha cheia de buraco e aquela era a única passagem de acesso à residência.
Não podem restar dúvidas que de o Arguido sabia que o caminho em causa era o único acesso à habitação da assistente e que ao ordenar a realização dos trabalhos descritos nos factos M. e T. impedia que o caminho público desempenhasse a função a que se destinava e atuava contra a vontade e sem o consentimento da assistente, bem como sabia que a vedação colocada em 03/10/2019, em conjugação com a refenda vala, impossibilitava qualquer veículo de ter acesso à propriedade (habitação) da assistente, o que quis na sequência de não ter logrado chegar a acordo com a assistente.
P. Também não podem restar dúvidas de que decorre das mais basilares regras da experiência e bom senso que o arguido sabia que não tinha direito de ocupar o caminho e que a vala, cuja abertura determinou, tendo inclusivamente sido notificado, enquanto legal representante da sociedade arguida, em:
- 22.04.2019, pela Assistente de que o caminho em questão é público e se encontra no uso direto e imediato do público;
- 03.07.2019, pela Chefe da Divisão de Planeamento e Urbanismo da Câmara, para suspender de imediato as obras de construção de murete técnico e execução de caminho [alternativo] em gravilha" (fls. 590 a 603); e
- 21.08.2019, pela vice Presidente da Câmara para "proceder à reposição da vala e do caminho público para que seja passível de utilização" (fls. 610 a 613 a 603).
Q. Aqui chegados dúvidas também não podem restar de que o Arguido sabia que o referido caminho era público.
R. No entanto, não obstante o Arguido nunca ter contestado tais missivas, nem impugnado tais ordens e decisões que acatou, o mesmo em 03.10.2019 ordenou ainda a vedação do acesso que permitia contornar a vala escavada no refendo caminho, tornando absolutamente impossível a sua utilização. S. Em face do exposto, imperioso é, pois, concluir ainda como suficientemente indiciado que:
- O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, na execução de um plano previamente elaborado, que tinha como objetivo impedir a assistente de aceder à sua habitação, mas também de tomar a posse e apropriar-se do caminho, como se o mesmo fosse sua propriedade ou da sociedade por si representada, bem sabendo que o caminho em causa era publico, se destinava ao uso e utilidade pública, estando ciente da natureza alheia do caminho e que sobre o mesmo nem o arguido, nem a sociedade por si representada, tinham qualquer direito real, seja de propriedade, posse uso ou de qualquer outro. - Ainda assim, quis dar ordens naquele sentido destruindo, danificando e tornando não utilizável o caminho público em questão, por meio de violência, recorrendo a máquinas de elevado porte com vista a usurpar, invadir e ocupar o caminho público, com intenção de tomar posse e apropriar-se do mesmo, como se o mesmo fosse sua propriedade ou da sociedade por si representada, impedindo a assistente de aceder à sua propriedade, o que logrou concretizar conforme era sua vontade e intenção. - Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
T. Quanto ao uso das refendas máquinas o mesmo resulta óbvio das regras da lógica e experiência, bem como das fotos do tractor com a menção "DD, S..., Unipessoal, Lda. junto ao como Documento n.o ..., em versão mais visível do que a que consta dos autos a fls. 17 e ainda do depoimento da testemunha KK, militar da GNR, em depoimentos prestado em sede de instrução no dia 17.03.2022, entre as 10h01m30s e as 10h06m40s, aos 04.06 minutos e 04.40 minutos Juíza: Tirou também umas fotografias a um tractor e no relatório de serviço refere que o mesmo pertence a uma sociedade… penso que é isso?... Pertence a DD e a questão tem haver com esta conclusão sua sobre a propriedade do veículo. Como é como que concluiu que o veículo pertence a este senhor? - KK: Porque através do registo da matrícula esse trator e esse atrelado junto a esse caminho pesquisei na base de dados e cheguei a essa conclusão.
U. Por último e quanto ao facto à natureza pública do caminho, considerou o Tribunal que não logrou considerar a mesma suficientemente Indiciada "por inexistir qualquer registo ou documento comprovativo que os fundamente" e por considerar existir "um conflito relativo à natureza privada ou pública do caminho", o que não se poderá admitir pois:
- todos os documentos Juntos aos autos emitidos pelo Município e Junta de Freguesia declaram que o caminho em questão se trata de um caminho público; e
- todas as testemunhas ouvidas relataram que o refendo caminho se encontra no uso direto e imediato do público, desde tempos anteriores à memória das pessoas vivas, que desde sempre por lá passaram sem oposição de ninguém.
V. Note-se que de modo unânime disseram a este respeito as testemunhas HH e LL, em depoimentos prestados em sede de instrução no dia 17.03.2022, entre as 10h07m36s e as lOh24m23s e entre as 10h51m59s e as l1h04m24ss respetivamente, o seguinte:
JJ, entre 06m44s e 07m22s HH: Fomos verificar se era caminho público. Juíza: Sim e então? HH: Pronto .. e a Junta de Freguesia ... disse que fazia a manutenção e que era considerado caminho público. Juíza: Portanto quem declarou que aquilo era caminho público foi a Junta de freguesia é isso? HH: Sim, havia uma declaração.
MM, entre l0m29s e 12m30s Mandatário do Arguido: Então e que estudos é que vocês fizeram na (amara para considerar que a estrada era pública') HH: Pronto, tem lá infraestruturas da parte eléctrica Mandatário do Arguido: Que Infraestruturas? HH: Tipo uns postes da luz Mandatário do Arguido: Portanto uma estrada que tem postes de luz é caminho publico? HH: ... e como é feita manutenção.
LL, entre 04m10s e 05m20s Juiza: O Sr. refere aqui neste documento, refere-se a um caminho deve ser esse caminho que estava aí a mencionar no cortiço que caminho é este! É um caminho que dá acesso a que? LL E um caminho que dá acesso a 2 ou 3 propriedades que existem antes de se chegar lá e aquilo é arranjado pela junta de freguesia, são os caminhos vicinais que nós arranjamos que são públicos, passam toda a gente e arranjamos ali quando nos pedem que está ruim e mesmo a junta de freguesia tem essa obrigação de fazer essa reparação dentro do possível para que aquilo fique no melhor estado possível e ali essa era onde terminava de facto esse caminho que é mesmo a ... que é onde era a escola da ..., havia lá uma escola. Juiza: Mas não dá acesso ainda a outro terreno lá atrás! LL: Olhe a seguir não lhe posso dizer que sim, mas eu nunca, enquanto presidente de Junta, nunca arranjei nada. Até aí, sim. Até aí de facto eu mantinha esse caminho dentro das melhores condições possíveis. E às vezes os proprietários, não só Sr. AA mas como outros proprietários que existiam ali antes que me pediam para dar lá um Jeitinho e a gente dentro do que era a nossa possibilidade fazíamos. Juiza: Faziam isso porque sempre foi feito assim? LL: 21 anos que lá estive, foi sempre o que fiz.
W. Note-se que nunca existiu um conflito quanto à natureza pública de tal caminho, nenhuma prova foi produzida nesse sentido. Antes pelo contrário. Repita-se o Arguido foi notificado, enquanto legal representante da sociedade arguida, em:
- 22.04.2019, pela Assistente de que o caminho em questão é público e se encontra no uso direto e imediato do público;
- 03.07.2019, pela Chefe da Divisão de Planeamento e Urbanismo da Câmara, para suspender de Imediato as obras de construção de murete técnico e execução de caminho [alternativo] em gravilha" (fls. 590 a 603); e
- 21.08.2019, pela Vice Presidente da Câmara para "proceder à reposição da vala e do caminho público para que seja passível de utilização" (fls. 610 a 613 a 603).
E o Arguido nunca contestou tais missivas, nem impugnou tais ordens e decisões que acatou tendo o caminho sido reposto e sendo atualmente usado como sempre foi.
X. Mais se note que conforme referiram as testemunhas nos depoimentos acima transcritos, o caminho tinha postes de eletricidade públicos, sendo inegável que o Arguido disso tinha conhecimento, bem sabia, pois, o Arguido que o caminho em causa era público e nunca contestou tal natureza.
Y. Caso fosse verdade, de acordo com o explanado na decisão, que existe um conflito relativo à natureza privada ou pública do caminho que cabe aos Tribunais comuns decidir, o Tribunal a quo deveria ter suspendido o processo até a resolução de tal questão, tal como assim se determinou, e bem, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, 13.06.200 que: "Justifica-se a suspensão de um processo penal que tem por objecto a prática de um crime de usurpação de coisa imóvel, se se encontra pendente acção cível onde se discute a propriedade do imóvel."
Z. Ora, no caso em apreço, inexistindo qualquer conflito não poderia o Tribunal - por concessão de excessiva latitude ao princípio in dubio pro reo consubstanciada em erro notório - deixar de considerar suficientemente indiciado que o caminho tem natura pública,
AA. Porquanto tal contraria toda a prova quer documental quer testemunhal junta aos autos acerca do referido caminho que sempre foi público, que sempre foi usado por todos, que tem iluminação pública e que é desde sempre arranjado e mantido a expensas da junta de freguesia sem oposição de ninguém!
BB. Resultam, pois, das diligências probatórias realizadas indícios suficientes permitam concluir pela verificação da conduta criminosa do Arguido, pelo que deverão V. Exas. revogar a decisão instrutória recorrida, substituindo-a por outra que:
Complemente os seguintes factos suficientemente indiciados: Facto K. - Datada de 09/04/2019, O arguido remeteu à assistente a missiva de fls. 506, cujo teor se dá aqui por reproduzido e onde consta que" no prazo de quinze dias, será fechado o caminho que V. Exa. vem utilizando de acesso à sua propriedade" e que "foi construída, a nossas expensas, uma estrada alternativa que chega ao seu terreno do lado poente e que está perfeitamente visível e transitável". Facto L. - Datada de 18/04/2019 a assistente enviou a missiva de fls. 510, cujo teor se dá aqui por reproduzido onde refere, nomeadamente, que" o caminho que venho utilizando de acesso à minha propriedade é um caminho público e nào um caminho particular, o qual é usado por mim desde há muitos anos, não apenas por mim, mas por quaisquer outras pessoas, nomeadamente o senhor EE, proprietário da parcela nº ...9 ( ... )" e que "Acresce que o caminho em questão se encontra no uso direto e imediato do público, desde tempos anteriores à memória das pessoas vivas, que desde sempre por lá passaram sem oposição de ninguém.", a qual foi recebida em 22.04.2022. Facto M. - No dia 08/06/2019, dia seguinte ao termo do prazo fixado pelo Tribunal para o Arguido chegar a acordo com a Assistente, a arguida C..., por determinação do seu representante legal, o arguido DD, procedeu à abertura de uma vala no caminho acima referido (aditamento ao auto de denúncia de fls. 29 e fotos de f/s. 38 e 39), tornando-o inutilizável. Facto M.1 - Na sequência da aquisição do referido prédio confinante por parte da ... 51ue, em 21.09.2018, a Assistente instaurou contra a referida sociedade uma ação declarativa de condenação, a qual corre termos sob o número 6694/18...., com vista a exercer o seu direito de preferência legal. Facto M.2 - Em 23.05.2019, no âmbito da açào de preferência supra referenciada, foi realizada audiência prévia, em cuja ata se lê que "As partes estão prestes a alcançar uma transação, sendo que precisam de ultimar alguns aspectos da mesma, para além de irem procurar ainda também alcançar acordo noutros processos, nos quais litigam estas partes, pelo que requerem prazo de 15 dias, o que vai deferido". Facto N.- A partir de 08/06/2019 o marido da assistente só pode continuar a aceder ao imóvel contornando a vala com um veículo todo o terreno. Facto R.l. - Por notificação expedida em 02.07.2019, a Chefe da Divisão de Planeamento e Urbanismo da Câmara notificou a sociedade arguida "para suspender de imediato as obras de construção de murete técnico e execução de caminho em gravilha", notificação efetuada em 03.07.2019.
Elimine os seguintes factos considerados não suficientemente indiciados, acrescentando-os aos factos considerados suficientemente indiciados
- o arguido estava ciente de que o único caminho de acesso à habitação do imóvel da assistente era público.
- Os trabalhos realizados entre os dias 11/02/2019 e 15/02/2019 tinham em vista a que os arguidos iniciassem procedimentos de ocupação do caminho público que sabiam que não lhes pertencia.
- O arguido sabia que não tinha direito de ocupar o caminho que sabia ser público e que a vala, cuja abertura determinou, impedida o acesso da assistente à sua habitação.
- O que se concretizou no dia a seguir ao prazo limite dado pelo Tribunal para chegar a acordo na ação de preferência e o que o Arguido quis na sequência de não ter logrado chegar a acordo com a assistente.
- A vedação colocada em 03/10/2019, em conjugação com a referida vala, concretizava a impossibilidade de qualquer veículo ter acesso à propriedade (habitação) da assistente.
- O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, na execução de um plano previamente elaborado, que tinha como objetivo impedir a assistente de aceder à sua habitação, mas também de tomar a posse e apropriar-se do caminho, como se o mesmo fosse sua propriedade ou da sociedade por si representada, bem sabendo que o caminho em causa era publico, se destinava ao uso e utilidade pública, estando ciente da natureza alheia do caminho e que sobre o mesmo nem o arguido, nem a sociedade por si representada, tinham qualquer direito real, seja de propriedade, posse uso ou de qualquer outro.
- O arguido sabia que tal caminho era o único acesso ao imóvel (habitação) da assistente, e que ao ordenar a realização dos trabalhos acima descritos impedia que o caminho público desempenhasse a função a que se destinava e atuava contra a vontade e sem o consentimento da assistente. - Ainda assim, quis dar ordens naquele sentido destruindo, danificando e tornando não utilizável o caminho público em questão, por meio de violência, recorrendo a máquinas de elevado porte com vista a usurpar, invadir e ocupar o caminho público, com intenção de tomar posse e apropriar-se do mesmo, como se o mesmo fosse sua propriedade ou da sociedade por si representada, impedindo a assistente de aceder à sua propriedade (habitação), o que logrou concretizar conforme era sua vontade e intenção. - Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
CC. Atenta a gravidade dos factos praticados pelo Arguido - note-se facto indiciariamente provado em O. - [após a abertura de uma vala no caminho] Por força do seu estado de saúde a assistente não mais acedeu ao referido imóvel" - que violaram o direito à habitação e de propriedade da Assistente, consagrado nos artigos 65.° e 62.° da Constituição da República Portuguesa, os mesmos merecem, sem sombra de dúvida, a intervenção do Direito Penal.
DD. Factos que o Arguido praticou com manifesto dolo, tal como relatado pela testemunha EE que referiu que "O Sr. CC [Arguido] depois telefonou-me, falou comigo. Pessoalmente fui lá ao terreno, disse que não queria problemas nenhuns comigo que sabia que o terreno do meu pai era aí colado e se eu tivesse preciso de aceder lá que ele ia lá tapava a vala para eu para eu passar e voltava a abrir que ele tinha lá uma divergência qualquer com o Sr. FF [marido da Assistente] que queria mudar o caminho para outro lado .. E eu disse-lhe, olhe eu não tenho nada a ver com os vossos problemas EE. Razão pela qual, se requer, muito respeitosamente, que V. Exas. se dignem revogar a decisão instrutória de não pronúncia, a qual deverá ser substituída por outra que pronuncie o Arguido DD pela prática, dolosa e em autoria material, de um crime de dano qualificado, previsto e punível pelo artigo 213.°, n.º1, al. c) do Código Penal, e, também em concurso efetivo pela prática de um crime de usurpação de coisa imóvel, previsto e punível pelo artigo 215 n.º1 do Código Penal. FF. E não se diga quanto ao crime de usurpação de coisa imóvel que o conceito de violência quando exercido sobre coisas só vale quando se traduza no emprego de meios destinados a vencer os obstáculos postos pelo detentor da coisa para proteção desta, pois que tal fundamentação, de ordem meramente pragmática, viola a lei e do princípio basilar do direito segundo o qual onde o legislador não distingue, não cabe ao intérprete distinguir.
GG. A este propósito, considerou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.09.1993: III - Em termos indiciários, o que é deveras seguro e certo é que ambos os arguidos ocuparam contra a vontade da firma arrendatária de um imóvel (um barracão) deles, violando e trocando as fechaduras, sob pretexto de que lhes não tinham sido pagas as rendas relativas ao imóvel; não agarraram eles mão dos meios legais ao seu dispôr (v.g., acção de despejo), não esperaram por decisão judicial que lhes desse razão: quer dizer, optaram pela violência, quando não era caso para acção directa (art. 336 do CC); nem, por ora, se poderá questionar a respeito de erro sobre as circunstâncias do facto (art. 16 CP), não obstante os agentes se escudarem na falta de intenção (ou dolo). IV - Daí, que os indícios sejam bastantes para permitir alicerçar fundado prognóstico sobre eventual e futura condenacão em julgamento dos arguidos farto 283, n. 2, do CPP) por prática, isso sim, de crime de usurpação de imóvel, descrito no art. 311, n. 1, CP, em co-autoria material (art. 26, CP).
HH. No caso em apreço, o Arguido também não esperou por autorização da Câmara Municipal, a qual aliás, conforme referiu JJ não tinha sido concedida,
II. E optou o Arguido pela violência, escavando e destruindo o caminho público tendo, posteriormente, vedado todo e qualquer acesso ao mesmo.
JJ. Aqui chegados, verdade é que não existe qualquer justificação para se distinguir o uso de violência quando o agente destrói uma fechadura de uma porta tornando-a inutilizável (e colocando outra fechadura), ou destrói um caminho, abrindo uma vala e tornando-o inutilizável (e colocando uma vedação) - com intenção de usurpação de coisa imóvel, pelo que somos forçados a concluir que se encontra preenchido o tipo de ilícito de usurpação de coisa imóvel.
Termos em que se requer, muito respeitosamente, que V. Exas. se dignem julgar procedente o presente Recurso, por provado, e, consequentemente, se dignem revogar a decisão instrutória de não pronúncia, a qual deverá ser substituída por outra que pronuncie o Arguido DD pela prática, dolosa e em autoria material, de um crime de dano qualificado, previsto e punível pelo artigo 213.°, n.o 1, aI. c) do Código Penal, e, também em concurso efetivo pela prática de um crime de usurpação de coisa imóvel, previsto e punível pelo artigo 215.°, n.? 1 do Código Penal.
C – Respostas ao Recurso
Quer o M.P, junto do tribunal recorrido, quer o arguido ofereceram resposta ao recurso.
C.1. Resposta do MP
A resposta do MP tem as seguintes conclusões (transcrição):
1. Não obstante a evidente falta de concisão das conclusões da motivação apresentada e a omissão da indicação das normas jurídicas pretensamente violadas, afigura-se-nos não se justificar o convite ao respectivo aperfeiçoamento. 2. E, tomando posição sobre as questões suscitadas, entendemos não se justificar qualquer complemento aos factos suficientemente indiciados, mormente os pretendidos, quer pela sua redundância, quer pela sua irreleváncia, quer ainda, por serem conclusivos e eivados de subjectividade. 3. No que tange aos factos não suficientemente indiciados, afigura-se-nos, com todo o respeito, que a assistente parece olvidar o princípio da apreciação da prova, plasmado no artigo 1270 do Código de Processo Penal, confundindo a interpretação que ela própria faz dos depoimentos das aludidas testemunhas (e das suas declarações), com a convicção gerada no espírito do julgador, extraindo conclusões diversas que não as extraídas pela Mm" Juiz de Instrução. 4. Os argumentos expendidos na motivação de recurso já haviam sido rebatidos na decisão que não pronunciou o arguido, tendo a assistente repristinado os mesmos, ignorando de todo a decisão instrutória proferida, mormente o segmento sobre a validade da declaração da Junta de Freguesia ... ou da Câmara Municipal no que tange à natureza pública do caminho em causa. 5. A mera invocação de que o arguido nunca contestou as missivas remetidas por aquela, pela Chefe de Divisão de Planeamento e Urbanismo da Câmara e pela VicePresidente da Câmara não basta para que se conclua que o caminho em causa é público, sendo certo que a posição assumida pelos arguidos a fls. 623, deixa antever que tal questão é de natureza controvertida e que discordam da qualificação efectuada pelo Município quanto à natureza do caminho. 6. Resultando do depoimento da testemunha NN que o caminho em causa dava acesso à Escola até 1990, aproximadamente, altura em que a mesma encerrou, passando a partir dessa data a permitir o acesso aos três terrenos, a par da "estrada cega", deixou de estar afecto à satisfação dos interesses colectivos de relevo, colocando-se a dúvida pertinente se não deverá aquele ser qualificado como atravessadouro. 7. Acresce que apenas se justifica a suspensão do processo penal, nos termos do disposto no artigo 7°, n" 2, do Código de Processo Penal, quando se encontra pendente o julgamento de questão não penal, que seja pressuposto para se conhecer da existência de um crime.
o que não sucede no caso vertente. 8. Não estando, deste modo, definida a natureza pública do caminho, ou a sua eventual utilidade pública e inexistindo violência relevante e indiciação suficiente sobre o carácter alheio da coisa, falha o preenchimento dos pressupostos objectivos dos ilícitos imputados pela assistente, sendo certo que o dolo do arguido também não resulta indiciado. 9. Nenhuma censura nos merece, deste modo, a decisão recorrida, de não pronúncia do arguido pela prática dos crimes de dano qualificado e de usurpação de coisa imóvel.
Pelo exposto e pelo muito que por V.as Ex.as será doutamente suprido, deve a decisão proferida, de não pronúncia, ser mantida nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso interposto, como acto de inteira e sã JUSTIÇA.
C.2. Resposta do arguido
O arguido na sua resposta apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
A. Insurge-se a Assistente, com a decisão instrutória de não pronúncia do Arguido pela prática dos crimes de dano qualificado, usurpação de coisa imóvel, entendendo que existem indícios suficientes dos crimes imputados ao Arguido, não merecendo a decisão instrutória qualquer censura
B. As conclusões da Assistente, nada mais são que uma repetição das alegações de facto e de direito, não resumindo a razão do seu pedido, conforme dispõe o artigo 412.° n.º 1 do CPP, não dando cumprimento ao artigo 412.° n.º 2 alínea a), uma vez que omitiu as normas jurídicas violadas.
C. Considerando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n." 14217/02.0TDLSB-AM.Ll-9 de 02/21/2013, em www.dgsi.pt - Não havendo indicação concisa dos fundamentos explanados e desenvolvidos nas alegações, não há conclusões, pelo que, em conformidade, deve o recurso ser rejeitado."
D. Salvo melhor entendimento, as omissões supra referenciadas não são passíveis de convite ao respetivo aperfeiçoamento, devendo o recurso ser rejeitado.
E. Não tem provimento alegar que foi utilizado de forma excessiva o princípio in dubio pro reo, tal principio pressupõe que, após a produção e apreciação dos meios de prova~ o julgador se depare com a existência de uma dúvida razoável (não hipotética e abstrata), assumindo, para o efeito, relevância a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, o tribunal não deveria ter tido.
F. Quanto aos complementos, invocados pela Assistente/Recorrente os mesmos não relevam interesse para a boa decisão da causa, considerando os crimes que a Assistente/Recorrente pretende que sejam imputados ao Arguido, pois como facilmente se alcança, são inúteis, por redundantes, e totalmente irrelevantes para o preenchimento dos elementos do tipo de crime em apreciação, a menção da data em que a missiva foi recebida;
G. Bem como não têm qualquer relevância as inclusões pretendida pela Assistente/Recorrente por conclusiva e eivada de subjetividade, o facto de ter instaurado ação cível de preferência legal em nada acrescenta ao processo crime, pois os crimes vertidos nestes autos, não têm ligação com o processo civel
H. Quanto a acrescentar o facto R.l referente à suspensão de imediato das obras de construção de murete técnico e execução do caminho de gravilha, nada contribui para a boa decisão da causa, pois o fundamento de tal suspensão tem como fundamento a falta de licença ou comunicação prévia, porquanto é totalmente irrelevante para o preenchimento dos elementos do tipo de crime em apreciação, pretendendo a Assistente/Recorrente dar outro sentido à notificação que a mesma não tem.
I. No que tange à Impugnação dos factos não suficientemente indiciados a Assistente/Recorrente faz no seu recurso é confundir a interpretação que a mesma faz dos depoimentos das testemunhas e declarações, com a convição gerada pelo julgador, extraindo conclusões diversas da Juiza de Instrução, desurando totalmente do principio fundamental em processo penal da livre convição e as regras da experiência da apreciação da prova, vertido no artigo 127.0 do CPP,
J. Mais, os argumentos que a Assistente/Recorrente vem debater no recurso, já foram devidamente apreciados em sede de instrução.
K. Tais como a validade da declaração da Junta de Freguesia ... ou da Câmara Municipal no que se refere à natureza pública do caminho em causa, entende e bem o Tribunal a quo que tais declarações não são o bastante para qualificar a natureza do caminho. Aliás a Administração Pública não tem competência nesta matéria, que é reservada aos Tribunais a quem cabe a composição de conflito de interesses.
L. Concluindo que não há registo ou documento comprovativo respeitante à natureza pública ou privada do mesmo, porquanto não se pode concluir que o mesmo é caminho público, não podendo o Direito Penal Titular situações indefinidas.
M. No que respeita à falta de contestação das missivas remetidas pela Assistente, Chefe de Divisão do Planeamento e Urbanismo da Câmara e pela Vice-Presidente da Câmara, por parte do Arguido, não podem levar à conclusão que o caminho é público, até porque a posição assumida pelos arguidos a fis. 623, deixa antever que tal questão é de natureza controvertida e que discordam da qualificação efectuada pelo Município quanto à natureza do caminho.
N. Considerando os depoimentos das testemunhas arroladas pela Assistente, e conforme consta da decisão instrutória a testemunha OO, fiscal da Câmara Municipal ... e arrolada pela assistente, a mesma desconhece a razão pela qual foi atribuida natureza pública ao caminho em causa nos autos, apenas sabendo que a Junta de Freguesia emitiu uma declaração nesse sentido, esclarecendo ainda que aos embargos da obra esclarece de forma clara que a mesma teve como fundamento o facto de não existir autorização para a mesma e não outro qualquer fundamento.
O. A testemunha NN, no seu depoimento e conforme consta da própria decisão instrutória, deixa claro que o caminho em causa dava acesso à Escola até 1990, aproximadamente altura em que a mesma encerrou, já não existindo em 1994, ano em que a assistente adquiriu o imóvel, passando a partir dessa data a permitir o acesso aos 3 terrenos, a par da "estrada cega." O que também consta do recurso da própria Assistente/Recorrente: "Você conseguia passar para outro lado, fazia ali se calhar mais sei lá quantos metros não sei, mas 600, 700, 800 metros mas não era caminho normal era lima estrada que até a gente lhe chama cega. "
P. Porquanto concluir quanto à inexistência de caminhos alternativos de acesso à habitação da assistente ou que o Arguido sabia que o caminho em causa era o único de acesso à habitação da Assistente/Recorrente, não tem qualquer cabimento.
Q. Mesmo que a Assistente/Recorrente pretenda que seja incluídos determinados factos, os mesmos de nada servem, isto porque, dos factos que a Assistente/Recorrente pretende incluir não provam que o caminho seja público, nem mesmo as declarações juntas.
R. A decisão da natureza do caminho, cabe então aos tribunais comuns, sem a mesma não poderá apurar se estão preenchidos os pressupostos do crime de dano simples ou do dano qualificado, nem tão pouco o de usurpação de coisa imóvel.
S. Também não se vislumbra que possa ocorrer suspensão provisória do processo, nos termos requeridos pela Assistente/Recorrente, desde logo porque não ocorreu recurso aos Tribunais comuns para a definição do da questão penal, inexistindo qualquer ação cível pendente, pressuposto para se poder valer do artigo 7.° n.º 2 do CPP.
T. Cumpre ainda salientar que no que tange ao crime de usurpação, sendo elemento do tipo objetivo de ilicito a invasão ou ocupação de coisa imóvel alheia, o emprego de violência ou ameaça grave e a intenção de exercer o direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados, admitindo o tipo subjectivo qualquer modalidade de dolo.
U. Acontece que, não está definida a natureza pública do caminho ou a sua utilidade pública, faltando assim o preenchimento do pressuposto de coisa imóvel alheia, não se verificando que existam indícios de violência, ou dolo. Nestes termos e nos melhores de direito, não deve ser dado provimento ao Recurso interposto pela Assistente/Recorrente, e em consequência manter-se a decisão recorrida, ou seja, o despacho de não pronuncia, desta feita, V. Exas. a costumada JUSTIÇA.
D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista à Exmº Procuradora-Geral Adjunta, que militou pela improcedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foram apresentadas respostas.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extrai das respectivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, a única questão a apreciar é se existem indícios suficientes nos autos para a pronúncia do arguido pela prática dos crimes de dano qualificado, p.p., pelo Artº 213 nº1 al. C) do C. Penal e usurpação de coisa imóvel, p.p., pelo Artº 215 nº1 do mesmo Código, como pela recorrente é peticionado.
B – Apreciação
Definidas as questões a tratar, importa atentar na decisão instrutória, que reza do seguinte modo (transcrição):
DECISÃO INSTRUTÓRIA I – RELATÓRIO
O Ministério Público proferiu despacho de arquivamento nestes autos em que são arguidos C..., Unipessoal, Lda. e DD, entendendo que não havia indícios suficientes da prática do crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 213.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e da prática de um crime de violação de regras urbanísticas, previsto e punido pelo artigo 278.º-A, n.º 1, do Código Penal, tudo como melhor consta do despacho de arquivamento, datado de 23/09/21, de fls. 410 a 414, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
**
Notificada do despacho de arquivamento proferido no âmbito dos presentes autos, não se conformando, veio a assistente, AA, requerer a abertura de instrução, peticionando a pronúncia do arguido DD pela prática da prática de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 213.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e pea prática de um crime de usurpação de coisa imóvel, p. e p artigo 215º, nº1 Código Penal.
Alegou, em síntese, que, ao contrário do que concluiu o Ministério Público, resultam indiciados os factos que integram os ilícitos imputados, nomeadamente o dolo do arguido que bem sabia que o caminho em causa e no qual realizou os trabalhos que impediram o acesso da assistente à sua propriedade é um caminho público.
**
No inquérito foi produzida prova testemunhal e documental.
Aberta a instrução, foram inquiridas as testemunhas arroladas cujo depoimento foi admitido e foram analisados os documentos juntos.
Não se vislumbrando qualquer outro ato instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade material, realizou-se o debate instrutório, mediante a observância dos formalismos legais, nos termos dos artigos 298.º, 301.º e 302.º, todos do CPP.
* II - SANEAMENTO
O Tribunal é competente.
O Ministério Público dispõe de legitimidade.
Inexistem nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
* III - Finalidades da Instrução
Em primeiro lugar, procede-se a uma breve análise dos fins a que se destina esta fase processual.
Resulta do artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal, que a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento. O ponto de partida é a decisão do Ministério Público de acusar ou de arquivar, consoante o seu juízo de prognose sobre a matéria indiciária constante dos autos tenha culminado numa conclusão sobre a solidez desses elementos indiciários ou, pelo contrário, numa conclusão sobre a sua insuficiência, para se comprovar da adequação e bondade dessa decisão. Não se trata de uma repetição da fase de inquérito, nem de um verdadeiro julgamento pois, não se investiga a existência de um crime e a identidade e responsabilidade dos seus agentes, nem se aprecia aqui o mérito da ação penal.
A instrução é uma fase facultativa, iniciada sob impulso do arguido ou do assistente, e que, dirigida pelo juiz, visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar o inquérito, proferida pelo Ministério Público, no final daquele. O atos instrutórios serão aqueles que o juiz considere necessários (artigo 290.º n.º 1 do CPP) e um debate instrutório obrigatório (artigo 297.º do CPP), culminando com uma decisão de pronúncia ou de não pronúncia.
Nos termos do artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal, “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”
Segundo o artigo 283º, nº 2 do Código de Processo Penal, para onde remete o artigo 308º, nº 2, do mesmo código “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”. Esta fase processual não tem por objetivo alcançar a demonstração da realidade dos factos, mas apenas apurar se existem ou não “indícios suficientes” de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido. Finda a instrução, a decisão de pronunciar tem na sua génese um juízo sobre os elementos recolhidos nos autos, sobre o conjunto da prova indiciária. Tudo se resume ao conjunto de indícios dos quais possa resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Para preencher este conceito de “indícios suficientes” teremos que recorrer aos princípios estruturantes do processual penal, nomeadamente, ao princípio “in dubio pro reo”, enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência, que deve ser ponderado no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação e, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra “in dúbio pro reo”, no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas.
Assim, o juiz pronuncia o arguido quando, com base nos elementos de prova recolhidos conclui que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido e que existe uma forte probabilidade de futura condenação do arguido.
Citando Carlos Adérito Teixeira, in “Indícios Suficientes”: parâmetros de racionalidade e instância de legitimação, Revista CEJ, 2.º Semestre de 2004, n.º 1, Almedina, p. 180, refira-se que “apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou da possibilidade elevada de condenação, a integrar no segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção da inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo”.
Em síntese, na instrução deve o juiz compulsar toda a prova recolhida e fazer um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consequência com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.
Note-se, ainda, que também a prova indiciária deve ser sujeita a uma análise racional e objetiva, de acordo com as regras da experiência, da lógica, da razão e dos conhecimentos científicos e técnicos necessário ao caso.
Cumpre esclarecer, por último, que na apreciação deste Tribunal, não cuidamos da eventual responsabilidade civil, mas tão-só de factualidade com a necessária dignidade penal.
* IV - FUNDAMENTAÇÂO DE FACTO
Vejamos antes do mais quais os factos a considerar. Os factos disponíveis com interesse para a decisão, tendo em conta os elementos dos autos, que são a prova documental, as declarações da assistente, os depoimentos das testemunhas ouvidas no inquérito e na instrução, são em resumo os seguintes: Factos suficientemente indiciados (constantes do RAI da assistente com relevo para a presente decisão e excluindo conclusões, factos irrelevantes e questões de direito ):
A.- Pela Ap. ... de 1994/10/06 está inscrita na Conservatória do Registo Predial ..., Freguesia ... a aquisição por compra, pela assistente, AA, do prédio misto, sito em ..., ...06 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...9... e na matriz predial urbana sob o artigo ...68º ( certidão e cadernetas predial de fls. 456 a 461)
B.-O arguido DD, é desde 09/05/2013 o único socio e gerente da Sociedade arguida, C..., Unipessoal, Lda., com o NIPC ... ( certidão da Conservatória do Registo Comercial de fls. 465 a 467)
C.- Pela Ap. ...07 de ...19 está inscrita na Conservatória do Registo Predial ..., Freguesia ... a aquisição por compra, pela sociedade arguida C..., Unipessoal, Lda, do prédio misto, sito em ... de cima, ...04 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...1... e na matriz predial urbana sob o artigo ...56º ( certidão e cadernetas predial de fls. 474 a 477 e escritura de compra e venda de fls. 469 a 473).
D.- Pela Ap. ...86 de ...27 está inscrita na Conservatória do Registo Predial ..., Freguesia ... a aquisição por compra, pela sociedade arguida C..., Unipessoal, Lda, do prédio rústico denominado ..., ...23 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...9... e ( certidão e cadernetas predial de fls. 499 a 504 e escritura de compra e venda de fls. 480 a 498).
E.-O referido prédio denominado ... confina a norte com o prédio da assistente ( certidão da CRP de fls. 499 e ss.).
F.Em 2019 a assistente habitava o imóvel identificado em A juntamente com marido.
G.- Entre os dias 11/02/2019 e 15/02/2019, a arguida C..., por determinação do seu representante legal, o arguido DD, procedeu à escavação de dois buracos num terreno onde se situa o caminho de acesso ao imóvel da assistente.
H.-E em 21/02/2019 procedeu à colocação de dois pilares em alvenaria com uma estrutura metal vermelha.
I.- Tais trabalhos não impediam a utilização do caminho de acesso ao imóvel da assistente.
J.– Na sequência de solicitação da assistente, em declaração datada de 07/03/2019,subscrita pelo presidente da Junta de Freguesia ..., fez-se constar que “ o caminho que liga a Estrada Nacional nº ...61-... do prédio rústico denominado por ..., inscrito na matriz predial de ..., sob o nº ...9, Secção N, se trata de um caminho vicinal público, uma vez que se encontra no uso direto e imediato do público, desde tempos anteriores à memória das pessoas vivas, que desde sempre por lá passaram sem oposição de ninguém” ( fls. 37 e 463).
K.- Datada de 09/04/2019, o arguido remeteu à assistente a missiva de fls. 506, cujo teor se dá aqui por reproduzido e onde consta que “ no prazo de quinze dias, será fechado o caminho que V. Exa. vem utilizando de acesso à sua propriedade.”
L.- Datada de 18/04/2019 a assistente enviou a missiva de fls. 510, cujo teor se dá aqui por reproduzido onde refere, nomeadamente, que “ o caminho que venho utilizando de acesso à minha propriedade é um caminho público e não um caminho particular, o qual é usado por mim desde há muitos anos, não apenas por mim, mas por quaisquer outras pessoas, nomeadamente o senhor EE, proprietário da parcela nº ...9 (...)”
M.- No dia 08/06/2019 a arguida C..., por determinação do seu representante legal, o arguido DD, procedeu à abertura de uma vala no caminho acima referido ( aditamento ao auto de denúncia de fls. 29 e fotos de fls. 38 e 39), tornando-o inutilizável.
N.- A partir de 08/06/2019 o marido da assistente continuou a aceder ao imóvel contornando a vala com um veículo todo o terreno.
O.- Por força do seu estado de saúde a assistente não mais acedeu ao referido imóvel.
P.– Até 2019 o filho do proprietário de uma parcela de terreno confinante, NN, fazia o transporte da cortiça retirada do seu terreno pelo mencionado caminho, passando pelo terreno da sociedade arguida e pelo terreno da assistente.
Q.- Por email datado de 13/09/2019, a EDP informou o marido da assistente que que em 14/08/2019 não conseguiu aceder à propriedade da denunciante para leitura do contador.
R.- Na sequência de um pedido de reposição de Vala e de caminho público apresentado pela Assistente junto da Câmara Municipal ..., por despacho de 07/06/2019, o Presidente da Câmara determinou o embargo de obras de execução do caminho (despacho junto a fls. 592 ) e em 12/06/2019 os respetivos serviços deslocaram-se ao local e elaboraram um auto de embargo de obra de execução de caminho com registo fotográfico ( auto e registo fotográfico de fls. 597 a 598).
S.- Em 29/07/2019 a Vice Presidente da Câmara determinou a notificação da sociedade arguida para “ proceder à reposição da vala e do caminho público para que seja passível de utilização”, notificação esta efetuada em 21/08/219( fls. 601 a 603 e 610 a 613).
T.- Em 03/10/2019, a mando do arguido, foi vedado o acesso que permitia contornar a vala escavada no referido caminho ( auto de notícia e registo fotográfico de fls. 4 e 5 do apenso A) Factos não suficientemente indiciados do RAI (por súmula com relevo para os autos)
- O arguido estava ciente de que o único caminho de acesso à habitação do imóvel da assistente era público.
- Os trabalhos realizados entre os dias 11/02/2019 e 15/02/2019 tinham em vista a que os arguidos iniciassem procedimentos de ocupação do caminho público que sabiam que não lhes pertencia.
- O arguido sabia que não tinha direito de ocupar o caminho que sabia ser público e que a vala, cuja abertura determinou, impedida o acesso da assistente à sua habitação.
-O que quis na sequência de não ter logrado chegar a acordo com a assistente.
- Com o mencionado caminho bloqueado, no ano de 2019 o filho do proprietário de uma parcela de terreno confinante, teve muita dificuldade em proceder ao transporte da cortiça que retirou naquele ano do seu terreno.
- Nem os bombeiros ou qualquer ambulância conseguiam aceder ao imóvel da assistente em caso de necessidade.
- A vedação colocada em 03/10/2019, em conjugação com a referida vala, impossibilitava qualquer veículo de ter acesso à propriedade da assistente.
- O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, na execução de um plano previamente elaborado, que tinha como objetivo impedir a assistente de aceder à sua habitação, mas também de tomar a posse e apropriar-se do caminho, como se o mesmo fosse sua propriedade ou da sociedade por si representada, bem sabendo que o caminho em causa era publico, se destinava ao uso e utilidade pública, estando ciente da natureza alheia do caminho e que sobre o mesmo nem o arguido, nem a sociedade por si representada, tinham qualquer direito real, seja de propriedade, posse uso ou de qualquer outro.
- O arguido sabia que tal caminho era o único acesso ao imóvel da assistente, e que ao ordenar a realização dos trabalhos acima descritos impedia que o caminho público desempenhasse a função a que se destinava e atuava contra a vontade e sem o consentimento da assistente.
- Ainda assim, quis dar ordens naquele sentido destruindo, danificando e tornando não utilizável o caminho público em questão, por meio de violência, recorrendo a máquinas de elevado porte com vista a usurpar, invadir e ocupar o caminho público, com intenção de tomar posse e apropriar-se do mesmo, como se o mesmo fosse sua propriedade ou da sociedade por si representada, impedindo a assistente de aceder à sua propriedade, o que logrou concretizar conforme era sua vontade e intenção.
- Bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Motivação do Tribunal
O tribunal formou a sua convicção pela análise conjunta de todos a prova carreada em sede de inquérito e de instrução. Concretizando;
O inquérito iniciou-se com o auto de notícia (fls. 4 a 6), relatório de serviço de fls. 26 e registo fotográfico de fls. 27 e auto de notícia de fls. 4 e registo fotográfico de fls. 5 do apenso A, dos quais consta a participação criminal efetuada pelo denunciantes e a constatação pelo OPC dos factos referentes ao período de 11 a 22/02/2019 considerados indiciados.
Em 08/06/2019 a assistente apresentou nova queixa que deu origem ao aditamento ao auto de denúncia de fls. 29, onde se dá conta que a denunciante informou que tem o acesso à sua propriedade bloqueado porque o arguido abriu uma vala na estrada ( cfr. fotos de fls. 38 e 39).
Os respetivos autos e relatório , bem como os registo fotográficos foram confirmados pelos militares da GNR que tomaram conta das ocorrências e elaboraram os autos (testemunhas ouvidas em sede de instrução - KK, II, PP).
A assistente foi ouvida no inquérito ( fls. 43 e 44) perante OPC e em declarações para memória futura ( fls. 155 e 156, transcritas a fls. 362 a 408), tendo confirmado o teor do auto e do aditamento de fls. 4 a 6 e 29 e juntou fotos do local onde se podem ver os trabalhos executados e considerados indiciados, de fls. 45, 56, 57, e documentos de fls.
47 a 55 ( missivas trocadas entre o arguido e a assistente- também untas em sede de instrução a fls. 506 e 510- informação da EDP onde informa que não conseguiu aceder à propriedade da denunciante para leitura do contador, comunicação e auto de embargo de obra da Câmara Municipal ...).
A testemunha BB, marido da assistente, foi ouvido na qualidade de testemunha ( fls. 31 e 32).
Considerou-se o teor das certidões, escritura e cadernetas prediais identificadas juntos aos factos indiciados, pontos A a E, para prova indiciária dos mesmos.
Foi analisado o teor da declaração datada de 07/03/2019, de fls. 37, reproduzida no facto J), do presidente da Junta de Freguesia ..., fez-se contar que “ o caminho que liga a Estrada Nacional nº ...61-... do prédio rústico denominado por ..., inscrito na matriz predial de ..., sob o nº ...9, Secção N, se trata de um caminho vicinal público, uma vez que se encontra no uso direto e imediato do público, desde tempos anteriores à memória das pessoas vivas, que desde sempre por lá passaram sem oposição de ninguém”.
O arguido não prestou declarações no inquérito ( fls. 121 e 125).
Em sede de instrução foi produzida prova documental junta pela assistente, (certidões, escrituras e cadernetas prediais mencionadas, correspondência trocada entre a denunciante e o arguido, informação da EDP, foto do trator com identificação doo arguido - fls. 455 a 521).
Para prova indiciária dos factos que constam dos pontos R e S, considerou-se os documentos remetidos aos autos pela Câmara Municipal .... Concretamente, cópia do despacho do Presidente datado de 07/06/2019 após parecer, com auto de participação datado de 06/06/2019 auto de embargo de obra datado de 12/06/2019, e cópia de despacho do vice presidente da Câmara, datado de 29/07/2019, respetivo parecer e duas notificações à sociedade C.... Com os respetivos registos de envio e receção ( fls. 590 a 603 e 610 a 613).
Foram inquiridas seis testemunhas:
KK, QQ II e PP, todos militares da GNR em ... na data dos factos que confirmaram o teor dos autos de notícia, aditamento e relatório serviço, bem como os registo fotográficos acima referidos em que tiveram intervenção direta.
EE, filho do proprietário do prédio confinante, que esclareceu que o acesso ao terreno do seu pai era realizado através do caminho existente no terreno da sociedade arguida, passando pelo terreno da assistente. Que no ano de 2019 transportou a cortiça retirada do prédio do seu pai através de um caminho alternativo que implicava uma volta maior, cerca de 600 a 800 metros, cujo trajeto não era muito fácil e que chamavam de “estrada cega”, que não é conhecida por toda a gente. Mais afirmou não tendo tido dificuldade em efetuar tal transporte. Esta testemunha esclareceu ainda que o imóvel (habitação) que existe no terreno da assistente foi uma escola até finais dos anos 80, inícios do anos 90, altura em que foi encerrada. O caminho em discussão nos autos dava acesso à escola e, depois de esta encerrar, passou a dar acesso ao terreno da arguida, ao terreno da assistente e ao terreno do pai da testemunha. Deste depoimento retiramos indícios suficientes de que o caminho em causa nos autos permitia desde, pelo menos 1990 ( data aproximada em que a escola existente encerrou, sendo certo que em 1994, data da aquisição do imóvel pela assistente, já não existia), aceder aos três referidos terrenos e que não era o único que permitia o acesso ao terreno do pai da testemunha e ao imóvel da assistente, existindo também a “estrada cega”.
LL, ex Presidente da Junta de Freguesia ... que confirmou que elaborou e assinou a declaração de fls. 37 e 463.
HH, fiscal da Câmara Municipal ... que confirmou o teor do auto de embargo de obra de fls. 597 e registos fotográfico de fls. 598, nos quais teve intervenção direta e que foram ordenados por despacho do Presidente da Câmara na sequência de uma denúncia e de uma fiscalização do local. Esclareceu que o fundamento de embargo prendeu-se com o facto de não existir autorização para a obra em curso, não obstante ter entrado nos serviços da Câmara o respetivo pedido. A estrada em construção, objeto de embargo, dava acesso ao terreno da assistente, até à extrema mas não à habitação. Mais referiu que desconhece a razão da atribuição de natureza pública ao caminho em causa nos autos, sabendo apenas que a Junta de Freguesia respetiva emitiu uma declaração nesse sentido porque realizava a sua manutenção. Esclareceu que o caminho servia de acesso a três proprietários de terrenos existentes no local, desconhecendo se existe outro caminho.
Quanto aos demais factos que não se consideraram indiciados, nomeadamente a natureza pública do caminho em causa ou a sua utilidade pública, que implica considerar não indiciado o dolo do arguido que a assistente lhe imputa no seu RAI, importa referir que não foi possível apurar os mesmos por inexistir qualquer registo ou documento comprovativo que os fundamente, como melhor se explicitará em sede de enquadramento jurídico
V- Enquadramento Jurídico
A assistente requer que o arguido seja pronunciado pelos crimes de dano qualificado p e p artigo 213º, 1, c) C. Penal e de usurpação de coisa móvel p e p artigo 215º Código Penal. Alega que arguido agiu com dolo, bem sabendo que o caminho em causa onde realizou os trabalhos descritos é um caminho público. Do Crime de Dano Qualificado
O crime de crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do CP, é cometido por quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia. A qualificação prevista no artigo 213º, 1, c) pressupõem que a ação incida sobre coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicso.
O bem jurídico tutelado é a propriedade plena sobre a coisa danificada (cfr Prof. Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 212).
Como nos ensina Luís Osório “a palavra alheio pressupõe a pertença a outra pessoa” (Notas ao Código Penal Português IV, 2.ª Edição, Coimbra, 1925, p. 24).
A propriedade, enquanto específico bem jurídico-penal (alicerçado na tutela constitucional do direito de propriedade, constante do artigo 62º, da CRP), deve ser considerada como uma relação de exclusividade entre a pessoa e a coisa. No dano qualificado são também tutelados interesses supra-individuais, como o significado cultural, artístico e histórico da coisa. Assim, são também típicas as condutas lesivas de bens próprios nos casos das alíneas b), c) e d) do n.º 1. Nestes casos, o ofendido é a comunidade no seu todo. Nos demais casos, o ofendido é o proprietário, possuidor ou detentor legítimo. Com afirma Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, p. 590, “o elenco das circunstâncias do tipo qualificado é taxativo e de funcionamento automático”, ao contrário do que sucede na técnica dos exemplos-padrão.
O conceito de coisa destinada ao uso público, a que se refere a alínea c), inclui a coisa móvel ou imóvel caracterizada pela sua finalidade de servir a coisa pública, quer seja pela utilização do público em geral, quer seja pela utilização de organismos ou serviços públicos, podendo a coisa ser propriedade de particulares. Como nos ensina Paulo P. Albuquerque (in ob. Cit., p. 590) “ficam excluídas as coisas cuja utilização seja restrita ao funcionamento da administração pública, como os objectos de trabalho e os meios de transporte dos funcionários públicos. Assim, estão excluídos os objectos ou as janelas das celas dos reclusos (acórdão do TRP, de 23/11/88, CJ, XIII, 5, p. 218 e STJ, de 27/01/94, CJ, Acs. STJ, II, 1, p. 208). ” Também Costa Andrade (in Comentário Conimbricense, II, p. 243-244) refere que coisa destinada ao uso e utilidade públicos é aquela cuja finalidade seja precisamente e de forma imediata o serviço ou a utilidade em relação ao público. Como exemplos menciona uma conduta de água, um autocarro de transporte coletivo, um comboio, um chafariz. E, até pode acontecer, como sucede com alguns monumentos, uma coisa de entidade particular, pois não é essencial que pertença a entidades públicas. Refere ainda este autor que os critérios para aferir da utilidade pública da coisa são dois: o critério do fim – devendo tratar-se de coisa cuja finalidade seja precisamente o serviço público - e o critério do carácter imediato da utilidade – estando em causa a utilidade em relação ao público, no sentido de qualquer um do público, mesmo que só após a verificação de algumas considerações gerais, pode retirar vantagens da própria coisa ou um dos seus produtos ou efeitos, sem a mediação de um terceiro legitimado a escolher as pessoas autorizadas a participar ou a beneficiar.
Luís Osório (in Notas ao Código Penal Português, vol. IV, p. 393), escreveu que “coisas de utilidade pública devem considerar-se as coisas de que o público se pode utilizar ou tira um imediato proveito. Assim se compreendem tanto os candeeiros de iluminação pública como os marcos postais, tanto as fontes como os relógios públicos. Se o proveito tirado das coisas pelo público não é imediato, mas mediato, parece que já não estão protegidos pela mesma incriminação. De contrário seriam protegidas todas as coisas públicas e não somente as de utilidade pública.”
Por outro lado, as circunstâncias da qualificação do ilícito têm que ser abrangidas pelo dolo do agente, embora em relação às circunstâncias atinentes ao valor seja exigível apenas um dolo geral (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, p. 591).Referem ainda Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette (ob. cit., p. 573), que basta o dolo eventual. No entanto, o agente deve representar a natureza das coisas sobre as quais atua.
No caso em análise, como acontece com frequência, não há registo ou documento comprovativo respeitante à natureza pública ou privada do caminho. O STJ pronunciou-se sobre esta questão, no Assento de 19-04-1989 (publicado no DR, I serie, de 2-6-89), considerando que “quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afetadas de forma direta e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente. É suficiente, para que uma coisa seja pública, o seu uso direto e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa coletiva de direito público. Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.”
Entretanto, os Tribunais superiores, têm vindo a fazer uma interpretação restritiva deste Acórdão no sentido de que a publicidade dos caminhos também depende da sua afetação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objetivo a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância sob pena de, atendendo-se apenas ao uso direto e imediato pelo público, mesmo que imemorial, se manterem como públicos inúmeros atravessadouros que já não têm essa utilidade. Cita-se, a título de exemplo, o Acórdão do STJ de 10-11-93, disponível in www.stj.pt onde se concluiu que: “ - O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afectação à utilidade pública ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância; II- Quando assim não aconteça, e se destinem apenas a fazer a ligação entre os caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distância, os caminhos devem classificar-se de atravessadouros, figura esta que não foi excluída por aquele assento e que está prevista no artigo 1383.º do Código Civil.
Também o Acórdão do STJ de 10-04-03, relatado por Abílio Vasconcelos, in www.dgsi.pt, refere que: “O Assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir a sua afetação à utilidade pública ou seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância.”
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-12-99, proferido pelo relator Mário Cruz, disponível em www.dsgi.pt, consta que: “I-A doutrina do assento do STJ de 19 de Abril de 1989, segundo o qual “são públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso direto e imediato do público” tem de ser interpretada restritivamente, sob pena de terem de se considerar todos os atravessadouros com posse imemorial como caminhos públicos. II-O assento citado tem de ser interpretado no sentido de que não pode aceitar-se a sua aplicação àqueles caminhos que não apresentem algum dos requisitos de dominialidade e que, segundo Marcello Caetano são: a) existência de preceito legal que inclua toda uma classe de coisas na categoria de domínio público; b) declaração de que certa e determinada coisa pertence a essa classe; c) a afetação dessa coisa à utilidade pública. III- A afetação de uma coisa á utilidade pública tem como um dos pressupostos a satisfação de relevantes interesses coletivos. IV- Não se vendo especial ou considerável relevância de certo caminho para a realização de interesses coletivos, não deve ser qualificada a utilidade proporcionada pelo dito caminho como de verdadeira utilidade pública, devendo o caminho ser qualificado como atravessadouro. V- Qualificado um caminho como atravessadouro, o respetivo leito integra-se no prédio que atravessa, podendo o seu dono usar dos poderes que lhe confere o direito de propriedade, designadamente o da sua destruição, alteração ou mudança, bem como o de impedir que terceiros o utilizem, a menos que o mesmo se mostre estabelecido em favor de prédios determinados, constituindo servidão, ou então quando, havendo posse imemorial, o mesmo se dirija a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não houver vias públicas destinadas a utilização ou aproveitamento de uma ou outra.”
Quanto à validade da declaração da Junta de Freguesia ... ou da Câmara Municipal relativamente ao reconhecimento do caminho em causa como público, é de referir que a Administração Pública não tem competência nesta matéria, reservada aos Tribunais a quem cabe a composição de conflito de interesses (entre particulares ou envolvendo também interesses públicos). Como ficou decidido no Acórdão da Relação Coimbra, de 26-2-2002, Processo 3068/2001, relator Helder Roque, disponível www.dre.pt/dre/detalhe/acordao/3068-2001-92784575 “I - A qualificação de um caminho como público, com a consequente declaração dessa dominialidade, terá de fundamentar-se num de dois factos jurídicos, isto é, ou no seu uso directo e imediato pelo público, desde tempos imemoriais, ou na sua propriedade, por parte de entidade de direito público, com afectação à utilidade pública, resultante de acto administrativo ou de prática consentida pela administração. II - A atribuição da dominialidade a um caminho, por parte de uma Câmara Municipal, traduz-se num acto que não é vinculativo para os particulares, nem para os Tribunais, mera designação de uma realidade que aquela autarquia não pode definir, juridicamente, declarando o Direito da situação em concreto, e muito menos com força de caso juIgado, cuja competência, nem sequer aos Tribunais Administrativos cabe. III - Resultando da afectação ao fim público, ou seja, à satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, a qualificação de um caminho como público, só o domínio público, e não o uso público que os particulares dele realizam, lhe confere o sinal distintivo da dominialidade. IV - Um caminho destinado, apenas, a encurtar a distância, de cerca de 500 metros, em relação a uma estrada pública alcatroada que estacelece a ligação entre as mesmas localidades que aquele, igualmente, serve, traduz-se num atravessadouro, isto é, num atalho ou serventia pública constituído em terrenos privados, cujo leito faz parte destes, sem qualquer utilidade para os prédios contíguos, a quem não presta qualquer serviço, mas antes causa prejuízos, e que a lei considera abolidos, por mais antigos que sejam.” No caso dos autos, temos um caminho cuja natureza pública ou privada e mesmo a sua utilidade pública, ainda que se considere caminho privado, não está estabelecida, inexistindo qualquer registo ou título que a defina. O facto de o Município ou a Junta de Freguesia afirmarem que se trata de um caminho é público não permite concluir que tem efetivamente tal natureza, não competindo tal decisão a estas entidades administrativas.
Existindo um conflito relativo à natureza privada ou pública do caminho, cabe aos Tribunais comuns tal decisão.
Atenta a natureza subsidiária da intervenção do Direito Penal, o mesmo não pode tutelar situações indefinidas como esta, já que não é possível afirmar com grau de certeza suficiente se o caminho em causa é público, privado e se tem ou não utilidade pública.
Não está assim preenchido um do elementos objetivos do tipo de ilícito respeitante ao crime de dano qualificado ( coisa com utilidade pública) ou mesmo do crime de danos simples ( carácter alheio da coisa), pelo que se impõe a não pronuncia dos arguidos quanto a estes ilícito criminal imputado.
Do crime de usurpação de coisa imóvel
Pratica o crime de usurpação de coisa imóvel, p e p artigo art. 215º 1 do C.P. “Quem, por meio de violência ou ameaça grave, invadir ou ocupar coisa imóvel alheia, com intenção de exercer direito de propriedade, posse, uso ou servidão não titulados por lei, sentença ou ato administrativo é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber em atenção ao meio utilizado”
O bem jurídico protegido é a inviolabilidade do património imobiliário.
São elementos do tipo objetivo de ilícito a invasão ou ocupação de coisa imóvel alheia, o emprego de violência ou ameaça grave e a intenção de exercer o direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados.
O tipo subjetivo admite qualquer modalidade de dolo ( artigo 14º C. Penal) mas a invasão ou ocupação de coisa móvel alheia tem que ser feita com intenção de exercer o direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados por lei, sentença ou ato administrativo.
A violência ou ameaça grave - inerente ao conceito de “usurpação” que dá o nome ao crime - não pode ser a mera “violência” contra uma coisa ou um objeto, típica de um crime de dano – ato de destruir/inutilizar/tornar não funcional uma coisa ou objeto. A “violência ou ameaça grave” instrumento da invasão ou ocupação do imóvel tem que ser exercida contra as pessoas. No sentido de, pela força ou intimidação física grave, tomar de assalto (invadir/ocupar) o bem imóvel, vencendo a oposição de outrem que até então detinha a posse desse bem imóvel ocupado ou invadido (ver Acs. da Rel. Porto de 22.05.2002, Des. Esteves Marques; de 27.02.2002, Des. Miguez Garcia, Ac. Rel. Lisboa de 07.11.2001, Adelino Salvado, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Havendo quem defenda que a violência, no âmbito do ilícito em causa, pode ser exercida contra coisas, ainda assim, só se considera relevante quando se traduza no emprego de meios destinados a vencer os obstáculos postos pelo detentor da coisa para proteção desta, designadamente portões, vedações (neste sentido ver Ac. R. Porto de 05.06.1996, sumariado em www.dgsi.pt), o que não ocorre na situação em análise já que inexistiam quaisquer obstáculos que o arguido tenha afastado com a sua ação.
Alega também a assistente que o arguido se apossou de um caminho público. Mais uma vez não sendo possível afirmar com grau de certeza suficiente se o caminho é publico ou privado, sendo certo que se trata de um caminho existente no terreno que é propriedade da sociedade arguida, não podemos concluir pelo caracter alheio da coisa.
Não existindo violência relevante e não havendo indícios suficientes do carácter alheio da coisa, não estão preenchidos os elementos objetivos do crime de usurpação de coisa imóvel.
Assim, de toda a prova recolhida nos autos, e tendo presente os elementos típicos dos crimes em causa acima descritos, é de concluir pela inexistência de indícios suficientes da prática pelos arguidos de factos que consubstanciem os crimes que a assistente imputa.
VI – Decisão
Pelo exposto:
a)Ao abrigo do artigo 308, n.º 1, in fine, do CPP, decido não pronunciar o arguido DD pela prática dos crimes de dano qualificado p e p artigo 213º, 1 c) C. Penal e de usurpação de coisa imóvel p e p artigo 215º Código Penal.
b)Condenar a assistente em taxa de justiça que fixo em 2 UC – artigo 515º, nº1, a)CPP e 8º. 1 e 2 RCP
Notifique.
Oportunamente, arquivem-se os autos
B.1. Suficiência de indícios
Como é amplamente ensinado pela Doutrina e Jurisprudência e decorre explicitamente do disposto no Artº 286 nº1 do C.P. Penal, a instrução, como fase facultativa e preliminar do processo penal, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Face à estrutura acusatória do processo penal português, estipula o nº4 do Artº 288 do CPP, que o juiz não pode investigar autonomamente o caso submetido a instrução, estando vinculado factualmente aos elementos que lhe são trazidos no requerimento de abertura de instrução de forma a poder decidir sobre a justeza ou acerto da decisão de acusação ou arquivamento.
Segundo o Artº 308 nº1 do CPP, o juiz deverá pronunciar o arguido se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos dos quais depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, sendo que, em caso contrário, deverá ser proferido despacho de não pronúncia. Indícios suficientes, são aqueles de onde resulta uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (Cfr. Artsº 283 nº2, ex vi 308 nº2, ambos do CPP)
Os indícios são suficientes, na perspectiva dos normativos invocados, quando, em face dos mesmos, seja, em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição - Cfr. José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal - Do Juiz e da Instrução, Coimbra, 2000, pág. 68 v. e ss.
Como refere também Germano Marques da Silvain Curso de Processo Penal, III, Verbo, pág. 179. “Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”.
Caberá, pois, ao juiz de instrução fazer um pré-juízo que não poderá ser subjectivo mas antes, de natureza objectiva, fundamentando a sua decisão com os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito e de instrução
Nos autos e mau grado a argumentação recursiva, uma matéria há que decide, de forma inelutável e irreversivelmente, a questão em discussão, sobre a apontada autoria ao arguido, dos crimes de dano qualificado e usurpação de coisa imóvel, que lhe são imputados pela assistente.
Prende-se a mesma com o carácter alheio da coisa que foi, na versão do assistente, danificada e usurpada pelo arguido.
A coisa é, aqui, um caminho, o caminho que conduz, entre outras casas, àquela que é propriedade da assistente e que o arguido fechou, nele procedendo à abertura de uma vala, tornando-o inutilizável.
Quer o crime de dano qualificado, quer o de usurpação de coisa imóvel, p.p., respectivamente, pelos Artsº 213 nº1 al. c) e 215 nº1 do C. Penal, exigem, para o seu preenchimento objectivo, que a acção delitiva incida sobre coisa destinada ao uso e utilidade públicos (no caso do dano qualificado) ou sobre coisa imóvel alheia (para a usurpação de coisa imóvel), sendo certo que na dimensão subjectiva, o dolo do agente, como é sabido, tem de abranger todas as circunstâncias atinentes ao respectivos tipos objectivos.
Ora, como exemplarmente analisa a decisão recorrida, em ensinamentos que se subscrevem por inteiro, no caso sub judice não há registo ou documento comprovativo respeitante à natureza pública ou privada do caminho em causa, não se tendo feito prova bastante de uma ou de outra coisa, já que a declaração da Junta de Freguesia ... ou da Câmara Municipal ... - ainda que a funcionária desta tenha afirmado que o embargo à obra do arguido no mencionado caminho apenas se fundou no facto de inexistir autorização para a mesma - no sentido de o caminho em causa ser público, não têm qualquer relevância jurídica/probatória, na medida em que a Administração Pública não tem competência para tal definição que compete, em exclusivo, aos tribunais comuns, a quem incumbe a definição do antagonismo de interesses entre particulares, ou entre estes e os eventuais interesses públicos conflituantes.
A decisão recorrida relata, com rigor e pertinácia, a evolução doutrinária e jurisprudencial relativamente a esta matéria, pelo que nos dispensamos de reproduzir o que ali se plasmou, apenas fazendo notar, como particularmente relevante que os tribunais superiores têm vindo a notar que “…a publicidade dos caminhos também depende da sua afetação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por objetivo a satisfação de interesses coletivos de certo grau ou relevância sob pena de, atendendo-se apenas ao uso direto e imediato pelo público, mesmo que imemorial, se manterem como públicos inúmeros atravessadouros que já não têm essa utilidade”
A verdade é que não se conseguiu provar nos autos, com a necessária certeza indiciária, que o caminho em causa, que o arguido terá tornado inutilizável para a assistente, seja de natureza pública e não, de carácter privado, caso em que, situando-se o mesmo na sua propriedade, nele poderia usar dos poderes que que lhe confere essa relação de posse, designadamente, o de destruição, alteração ou mudança.
Como bem refere a decisão sindicada, “Atenta a natureza subsidiária da intervenção do Direito Penal, o mesmo não pode tutelar situações indefinidas como esta, já que não é possível afirmar com grau de certeza suficiente se o caminho em causa é público, privado e se tem ou não utilidade pública.”
Ora, não estando preenchido um dos elementos objectivos do crime de dano, seja simples ou qualificado (coisa com utilidade pública ou carácter alheio da coisa), é evidente que bem andou a 1ª instância quando decidiu não pronunciar o arguido por este ilícito que lhe era assacado pela assistente.
O mesmo sucede com o crime de usurpação de coisa imóvel, p.p., pelo Artº 215 nº1 do C. Penal, já que, independentemente da natureza da violência exercida pelo arguido sobre a coisa e de a mesma, tanto quanto resulta da factualidade apurada, não ter sido empregue para remover quaisquer obstáculos ali postos pelo alegado detentor da coisa - como exige alguma jurisprudência para que possa ser considerada como relevante na configuração deste ilícito – a verdade é que também aqui, ficou por demonstrar que o caminho de que o assistente se teria usurpado fosse alheio, circunstância absolutamente imprescindível para o imputado desenho criminal.
Mais uma vez, não sendo possível afirmar, com grau de certeza suficiente, ainda que indiciário, que o referido caminho era público, o mesmo é dizer, tinha natureza alheia para o aqui arguido e situando-se o mesmo em sua propriedade, torna-se manifesto que este não pode ser pronunciado pelo ilícito de usurpação de coisa imóvel.
A incapacidade de, com a prova produzida, se poder concluir pela natureza pública do caminho em causa, torna despiciendas e irrelevantes as alterações de facto pretendidas pela assistente, já que, em caso algum, se poderia dar por assente, ainda que a título indiciário, que o dito caminho tinha carácter público, levando assim à hipotética configuração dos crimes assacados pela assistente ao arguido.
Note-se, que do depoimento da testemunha NN, também arrolado pela assistente, resulta que o caminho dava acesso a uma Escola, o que sucedeu até 1990, Escola que já não existia em 1994, ano em que aquela adquiriu o imóvel, passando, desde então, a permitir o acesso ao seu terreno, bem como, a outros dois, de outras pessoas, a par de um outro acesso, bem mais longe e mais difícil, apelidado de estrada cega, pelo que, na esteira da jurisprudência citada na decisão recorrida, parece ser possível concluir que o aludido caminho deixou de estar afecto à satisfação de interesses colectivos de relevo, colocando-se, por isso, a dúvida pertinente se não deverá ser qualificado como um mero atravessadouro, localizado na propriedade do arguido.
Trata-se um matéria que caberá aos tribunais comuns resolver, em acção própria para o efeito, com vista a apurar a natureza do dito caminho, acção essa que, tanto quanto se saiba, nem sequer se mostra intentada, razão pela qual, em caso algum, pode haver lugar à aplicação do disposto no Artº 7 nº2 do CPP, porquanto só se justifica a suspensão do processo penal, ao abrigo desta norma, quando se encontra pendente o julgamento de questão não penal, que seja pressuposto para se conhecer da existência de um crime, o que não é, manifestamente, a situação presente.
A prova constante dos autos, documental e testemunhal, foi criteriosamente apreciada pelo tribunal a quo, conjugada entre si, concatenada, e dela se extraiu, em termos indiciários, uma versão dos factos que se adequa à normalidade da vida e às regras da experiência, através de um percurso lógico-racional que se crê inatacável.
Não podemos esquecer que no juízo indiciário há que levar em linha de conta, como se diz no sumário aposto no Acórdão do Supremo Tribunal de justiça de 28/6/2006, disponível em www.dgsi.pt:
“I - A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final se salde pela absolvição, não é um acto neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais, quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame; II - Por isso, no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a necessidade de defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que entre nós se revestem de dignidade constitucional, como é o caso da Liberdade (art. 3.º daquela Declaração e 27.º da CRP) ”
Dos autos não se retira que, em julgamento, a probabilidade de condenação do arguido DD pelos crimes de dano qualificado e usurpação de coisa imóvel que lhe são imputados pela assistente AA, seja mais provável que a sua absolvição, pelo que bem andou o tribunal recorrido ao ter proferido despacho de não pronúncia.
Assim sendo, o recurso não pode deixar de improceder.
3. DECISÃO
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, manter o despacho recorrido.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça, atendendo ao trabalho e complexidade das questões suscitadas, em 3 UC, ao abrigo do disposto nos Artsº 513 nº1 e 514 nº1, ambos do CPP e 8 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
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Évora, 27 de Setembro de 2022
Renato Barroso (Relator)
Maria Fátima Bernardes (Adjunta)
Fernando Pina (Adjunto)