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SOCIEDADE POR QUOTAS
SÓCIO GERENTE
TRABALHADOR GERENTE
VÍNCULO LABORAL
Sumário
I – Nas sociedades por quotas, como sucede no caso em apreço, podemos afirmar que da lei não resulta qualquer obstáculo à constituição de uma relação laboral entre a sociedade e um gerente, sendo certo que tal vínculo por impor a existência de subordinação jurídica, apenas se poderá formar se e na medida em que o trabalhador já tivesse um contrato de trabalho antes de ser nomeado gerente, continuando a desempenhar as mesmas funções e nos mesmos moldes; ou se e na medida em que seja contratado de entre não sócios e por outro ou outros gerentes designados no pacto social ou em assembleia de sócios. II - É sobretudo em relação aos gerentes não sócios, ou aos trabalhadores que passem a sócios-gerentes que tem sido reconhecida a possibilidade de qualificar o seu vínculo como laboral. São assim restritas as hipóteses em que é configurável a possibilidade da mesma pessoa assumir a qualidade de trabalhador e gerente, sendo certo que a titularidade da gerência tanto pode exercer-se na posição de trabalhador subordinado (casos excepcionais) como na posição de mandatário (o que sucede em regra), havendo assim que apurar os termos em que o contrato foi celebrado e é executado para lhe conferir a qualificação, ou de contrato de trabalho, ou de mandato. III - Dos factos apurados não existe qualquer fundamento para reconhecer que na relação estabelecida entre as partes - a A., como pessoa singular, e a R., como pessoa colectiva -, se formou um vínculo laboral, já que não se provou que a autora exercesse as outras funções, que não a gerência, sob as ordens, direcção e fiscalização do outro gerente ou da sociedade. Incumbindo o ónus da prova nesta matéria à autora é de concluir que não logrou provar a existência de um contrato de trabalho.
Vera Sottomayor
Texto Integral
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães
APELANTE:A. C. APELADA: X-MALHAS E CONFECÇÕES LDA
Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Barcelos – Juiz 2
I – RELATÓRIO
A. C., residente na Rua … n.º …, …, instaurou a presente acção declarativa com processo comum contra X - MALHAS E CONFECÇÕES LDA, com sede no Parque Industrial …, Pavilhão …, … Barcelos, pedindo que se reconheça que foi despedida sem justa causa e consequentemente reclama a condenação da Ré no pagamento dos créditos laborais devidos, no valor global de 16.810,79€, nos quais se inclui o valor de €965,00 correspondente ao pagamento de 22 dias de férias vencidas a 1 de Janeiro de 2020 e não gozadas; o subsídio de férias vencido à mesma data e não recebido de igual valor; 10 dias de proporcionais de férias e 10 dias de subsidio de férias pelos meses trabalhados em 2020, num total de 845,60€; 10 dias de subsídio de natal pelos meses completos trabalhados em 2020, no valor de 422,80€; o montante de 584,89€ referente a trinta e cinco horas anuais de formação dos últimos três anos de vinculo contratual e o valor correspondente à indemnização por despedimento ilícito, no valor de 13.027,50€.
Alega a Autora em resumo que iniciou relação laboral com a Ré em 7 de Abril de 2011, vínculo que se manteve até ao dia 14 de Maio de 2020, data em que, mediante a realização de Assembleia Geral se procedeu ao seu despedimento, utilizando o subterfúgio de destituição de gerente. Mais se alega que, apesar de ter a qualidade de gerente, era efetivamente trabalhadora da Ré, exercendo não apenas as funções de gerente mas também a de responsável da confecção (máquinas de costura), auferindo uma retribuição mensal de 965,00€, com o seguinte horário de trabalho: de segunda à sexta feira, das 9h às 13h e das 14h às 18h. A Autora exercia a sua actividade em exclusivo para a Ré, de quem dependia economicamente, sendo que as funções que exercia sob a autoridade e direcção da Ré, consistiam em supervisionar o trabalho de todas as demais funcionárias da empresa, bem como substituir qualquer pessoa sempre que a mesma se ausentava do seu posto de trabalho, procedendo à confecção dos trabalhos que a empresa tinha em carteira, estando subordinada a todas as regras impostas pelo sócio maioritário da Ré.
Realizada a audiência de partes não foi possível obter a conciliação das partes tendo a Ré, dentro do prazo legal, apresentado contestação, e de novo, após ser notificada da nova petição inicial aperfeiçoada, impugnou a versão apresentada pela Autora, bem como a existência de qualquer contrato de trabalho, alegando que a Autora foi gerente da sociedade demandada, cargo do qual efectivamente foi destituída em assembleia geral, nos termos e com os fundamentos respectivos, disciplinados pelas normas do Código das Sociedades Comerciais, pelo que a Ré nada deve à Autora.
Foi proferido despacho saneador, foi fixado o valor da acção e foi admitida a prova arrolada.
Os autos prosseguiram os seus regulares termos e por fim foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente porque não provada, absolvendo-se a Ré “X – Malhas e Confecções, Lda.” dos pedidos formulados pela Autora A. C.. Custas pela A. Registe e notifique.”
Inconformada com esta sentença, dela veio a Autora A. C. interpor recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes CONCLUSÕES:
“i) O presente recurso de apelação tem por objeto a matéria de facto da sentença de 16 Fevereiro de 2022, que julgou totalmente improcedente a acção proposta pelas recorrente, absolvendo a Ré/Recorrida “X-Malhas e Confecções, Lda.”
ii) O tribuinal dá como “FACTOS NÃO PROVADOS: (…)
iii) Não pode a Recorrente concordar com a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo dado que, sempre com o devido respeito pelas opiniões em contrário, o Tribunal A QUO cometeu um erro quanto à apreciação da matéria de facto e respetiva prova ao ter decidido nos termos supra referidos.
iv) O tribunal a quo dá como não provado que: “tendo ficado acordado entre A. e Ré que receberia como contrapartida do seu trabalho a remuneração mensal de 965,00€, (artigo 7º da p.i.) ”
v) Todavia, foi realizada prova que de que a recorrente auferia esse mesmo vencimento, nomeadamente através da junção de recibo de vencimento, como através da demais prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
vi) a viii) (…).
ix)- O tribunal a quo dá como não provado que:
“ c) e tendo a A. o seguinte horário de trabalho: de segunda à sexta feira, das 9h às 13h e das 14h às 18h; (artigo 8º da p.i.)”
x)- Importa aqui frisar que, o que efetivamente releva, é a verificação do cumprimento de um horário de trabalho por parte da recorrente que fosse comum a todos os trabalhadores.
xi)- Ouvido o depoimento da testemunha D. P. (gravado através de sistema de gravação integrado em uso no tribunal, com início pelas 15h:46m:56s e terminus pelas 16h:22m:40s do dia 17.11.2021, por referência à ata de discussão e julgamento), verificamos que, comummente aos demais funcionários, a recorrente cumpria um horário de trabalho fixado para todos os trabalhadores.
xii- Também ouvido o depoimento da testemunha M. T., (gravado através de sistema de gravação integrado em uso no tribunal, com início pelas 11h:16m:19s e terminus pelas 11h:36m:21s do dia 05.01.2021, por referência à ata de discussão e julgamento), podemos também aferir que a recorrente cumpria um horário de trabalho.
xiii)- Pela prova supra exposta, afere-se que a recorrente sempre cumpriu um horário de trabalho.
xiv) O tribunal a quo dá como não provado que:
“e) A Autora sempre exerceu a sua atividade profissional com todo o afinco e zelo, respeitando as ordens impostas pela Ré a todos os seus trabalhadores, sendo obrigada a executar os serviços que lhe eram dados e acatando as instruções que aquela lhe dava; (artigos 12.º e 13.º da p. i.) f) Os serviços prestados pela Autora, eram objecto de controlo e fiscalização pela Ré; (artigo 14.º da p. i.)”
xv) Todavia, ouvido o depoimento da testemunha L. F., (gravado através de sistema de gravação integrado em uso no tribunal, com início pelas 16h:23m17s e terminus pelas 16h:34m:24s, por referência à ata de discussão e julgamento ocorrida em 17.11.2021) depreendemos que a recorrente executava as suas funções em subordinação a ordem impostas pela Recorrida, acatando as ordens que lhe eram impostas.
xvi) Não existe qualquer prova produzida que comprove que a recorrente tinha dentro da empresa regalias relativamente aos demais funcionários.
xvii) O facto de ser também ela sócia e de ser esposa do sócio maioritário, não pode ser fator determinante para a comprovação de que esta não se comportava como qualquer outra funcionária.
xviii) De toda a prova produzida, várias vezes se descrevem condutas que poderiam ser adotadas por qualquer funcionário, já tendo até sido supra citadas.
xix) Ouvido o depoimento da testemunha D. P. (gravado através de sistema de gravação integrado em uso no tribunal, com início pelas 15h:46m:56s e terminus pelas 16h:22m:40s do dia 17.11.2021, por referência à ata de discussão e julgamento), aferimos que se alguma coisa corresse mal no trabalho, os funcionários recorriam ao sócio maioritário, Senhor A. S., e não à recorrente.
xx) Ouvido o depoimento da testemunha L. F., (gravado através de sistema de gravação integrado em uso no tribunal, com início pelas 16h:23m17s e terminus pelas 16h:34m:24s, por referência à ata de discussão e julgamento ocorrida em 17.11.2021) depreendemos que a recorrente executava as suas funções em subordinação e que as decisões dentro da empresa eram tomadas pelo atual legal representante, senhor A. S..
xxi)-Ouvido o depoimento da testemunha M. S., (gravado através de sistema de gravação integrado em uso no tribunal, com início pelas 10h06m43s e terminus pelas 11h:15m:38s, por referência à ata de discussão e julgamento ocorrida em 05.01.2022) depreendemos que o Sr. A. S., atual legal representante da Recorrida, era quem efetivamente detinha a gestão da Ré.
xxii) Não foi ministrada qualquer formação à recorrente, todavia, o ónus de prova cabe aqui à entidade empregadora.
xxiii) Devendo ser a entidade empregadora a provar que foram ministrada as horas mínimas de formação anual, ou a não se fazer prova nesse sentido, que não se fez efetivamente, deve a ausência de ministração de formação ser dada como facto provado.
xxiv) Em momento algum o tribunal a quo se pronunciou quanto aos créditos laborais da recorrente, remetendo-se a julgar totalmente improcedente a presente ação sem fazer a devida e minuciosa apreciação da prova produzida.
xxv) Dúvidas não restam de que a recorrente se comportava como trabalhadora da Ré, recebendo a respetiva remuneração, cumprindo um horário de trabalho fixo e sujeitando- se, em regime de subordinação, às diretrizes e instruções que lhe são apresentadas pela Ré.
xxvi) -Sendo devidos todos os créditos salariais reclamados por provada a existência de contrato de trabalho.
xxvii) - Encontram-se preenchidos os requisitos dispostos no artigo 12.º do Código de Trabalho para a presunção da laboralidade.
xxviii) - Devendo, por isso, reconhecer-se pela existência efetiva de um contrato de trabalho celebrado verbalmente com a Recorrente, da qual decorrem os diversos direitos e créditos salariais derivados da desvinculação para com a Recorrida.
xxix) Nomeadamente os direitos relativos a férias, subsídio de férias, proporcionais de férias, proporcionais de subsídio de férias, proporcionais de subsídio de natal, horas de formação e valor peticionado a título de indemnização por cessação do contrato de trabalho.
xxx) Julgando assim procedente a ação interposta.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, DAR-SE A PROCEDÊNCIA DO PEDIDO DA RECORRENTE..”
A Recorrida não apresentou contra-alegação.
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.
Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do C.P.T., tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido douto parecer no sentido da total improcedência da apelação.
Não foi apresentada qualquer resposta ao parecer.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II OBJECTO DO RECURSO
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da Recorrente (artigos 635.º, nº 4, 637.º n.º 2 e 639.º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), as questões trazidas à apreciação deste Tribunal da Relação são as seguintes:
1. Impugnação da matéria de facto;
2. Da natureza do contrato celebrado entre as partes e das consequências decorrentes a sua cessação;
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
a) Factos Provados
1º A R. é uma sociedade comercial que se dedica ao exercício da indústria e comercialização de confecções e malhas – cfr. doc. 1 (incompleto: falta folha 10/12 e 11/12) junto com a p.i. complementado com a certidão permanente actualizada ao dia 14/1/2021, junta a fls. 26 a 32. (artigo 1º da p. i.)
2º No dia 14 de Maio de 2020 realizou-se uma Assembleia Geral, na qual foi a aqui Autora destituída do cargo de gerente, que até aí e desde 6 de Abril de 2011 ocupava - cfr. docs. 1 e 2 junto com a p. i.. (artigos 2.º a 4.º da p. i.)
3º A Autora, para além das funções de gerente, era a responsável da linha de produção, na confecção. (artigo 6.º da p.i.)
4º A Autora auferia actualmente uma retribuição mensal de €965,00 – cfr respectivo recibo de remunerações da A., ali constando a sua categoria de gerente, datado de 31 de Maio de 2020 e referente ao mesmo mês, junto como doc. 3 junto com a p. i., que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais. (artigos 7.º e 24º da p. i.)
5º A Autora exercia a sua actividade em exclusivo para a Ré. (artigo 9.º da p. i.)
6º As funções da aqui Autora consistiam, entre outras, em supervisionar o trabalho de todas as demais funcionárias da empresa. (artigo 10.º da p. i.)
7º A retribuição da autora era paga mensalmente a dia certo, pese embora, mais recentemente tenha havido atrasos no pagamento de alguns salários da Autora; existia uma trabalhadora subordinada da Ré que desempenhava uma função de chefia no âmbito do controlo da qualidade. (artigo 17.º da p. i.)
8º Teor da Acta da reunião do dia 14 de Maio de 2020, realizada na sede da Ré perante Notário, assinada por este, pela Autora e pelo actual gerente único da Ré, que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais - cfr. doc. 2 junto com a p. i.. (artigos 18.º a 21.º da p. i. e 6.º e 7.º da contestação)
9º Teor da carta enviada à Ré pela Autora e por aquela recebida, junto como doc. 4 junto com a p. i., que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais. (artigo 42º da p. i.)
10º Teor da carta de resposta enviada à Autora pela Ré e por esta recebida, junto como doc. 5 junto com a p. i., que aqui se dá por reproduzido e integrado para todos os efeitos legais. (artigo 43º da p. i.).
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b) Factos Não Provados
a) Em 07-04-2011, a aqui A. tenha sido admitida, verbalmente, para trabalhar sob a autoridade e direcção da R., para exercer funções de responsável da confecção (máquinas de costura), (artigos 2º e 6º da p.i.) b) tendo ficado acordado entre A. e Ré que receberia como contrapartida do seu trabalho a remuneração mensal de 965,00€, (artigo 7º da p.i.) c) e tendo a A. o seguinte horário de trabalho: de segunda à sexta feira, das 9h às 13h e das 14h às 18h; (artigo 8º da p.i.) d) As funções da A. consistiam em substituir qualquer pessoa sempre que a mesma se ausentava do seu posto de trabalho, procedendo à confecção dos trabalhos que a empresa tinha em carteira, estando subordinada a todas as regras impostas pelo sócio maioritário da Ré; (artigos 10.º e 11.º da p. i.) e) A Autora sempre exerceu a sua atividade profissional com todo o afinco e zelo, respeitando as ordens impostas pela Ré a todos os seus trabalhadores, sendo obrigada a executar os serviços que lhe eram dados e acatando as instruções que aquela lhe dava; (artigos 12.º e 13.º da p. i.) f) Os serviços prestados pela Autora, eram objecto de controlo e fiscalização pela Ré; (artigo 14.º da p. i.) g) A Autora não dispunha de quaisquer privilégios relativamente aos demais funcionários pelo facto de ser esposa do sócio maioritário ou ser gerente da sociedade que ambos representavam (arts. 15.º e 16.º da p. i.). h) Nunca foi ministrada à Autora qualquer formação (artigo 29.º da p. i.).. IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. Da impugnação da matéria de facto.
Dispõe o artigo 662.º n.º 1 do C.P.C. aplicável por força do disposto no n.º 1 do artigo 87º do C.P.T. e no que aqui nos interessa, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A Autora/Recorrente pretende que se proceda à alteração/ampliação da matéria de facto com reapreciação da prova gravada e da prova documental.
Sustenta a Recorrente nos pontos i) a xxiii) das suas conclusões que a decisão proferida pela 1ª instância quanto à matéria de facto se revela de incorrecta, pugnando pela alteração dos pontos de facto não provados sob as alíneas b), c), e), f), g) e h), que deverão passar a constar dos factos provados.
Vejamos.
Em sede de impugnação da decisão de facto, cabe ao Tribunal de recurso verificar se o juiz a quo julgou ou não adequadamente a matéria de facto controvertida em face dos elementos a que teve acesso, de forma a verificar ou não um eventual erro de julgamento na apreciação/valoração das provas, aferindo-se da adequação, ou não, desse julgamento, que possa vir a impor decisão diversa.
Ora, depois de termos ouvido todos depoimentos prestados na audiência de julgamento e analisado os documentos juntos aos autos passamos à apreciação da impugnação da matéria de facto, uma vez que se mostra suficientemente observado o respectivo ónus de impugnação.
O tribunal a quo motivou a decisão da matéria de facto da seguinte forma: “A convicção do Tribunal formou-se no seguinte modo: (…) Ficou ainda claro ainda da conjugação dos depoimentos das testemunhas arroladas por ambas as partes, prestados em audiência, nomeadamente, das testemunhas D. P., S. C., e M. S., M. T. que a aqui Autora dirigia a confecção e agia como “patroa” na aqui Ré. Sendo que do teor dos demais documentos juntos pela Autora com a p. i. resulta exactamente o mesmo. Temos assim que, não obstante a alegação da celebração de um contrato de trabalho verbal, não logrou a Autora demonstrar a factualidade integradora de tal instituto jurídico, nomeadamente, a existência de um horário de trabalho e da sujeição a ordens, directivas, instruções e ao poder disciplinar da Ré. Aliás, o único indício concreto apurado no sentido da existência de uma relação dependente, foi o percebimento pela mesma de uma remuneração concreta e regular, o que, por si só, é insuficiente, pois que a aqui Autora era remunerada enquanto gerente. Assinale-se que incumbia à A. demonstrar a existência de uma relação de trabalho e que tal não ocorreu no caso concreto, nomeadamente, através do depoimento testemunhal carreado pelo mesmo para o processo, resultando da prova documental como vimos de referir justamente o oposto. Por todo o exposto, conclui o Tribunal não ter a A. logrado provar os factos de que a aqui Autora para além das funções de gerente, sendo a mesma ainda sócia minoritária, exercia igualmente funções de trabalhadora, cuja subordinação jurídica perante a sociedade Ré assume a natureza de contrato de trabalho. Consigna-se que relativamente aos demais factos alegados e não mencionados no elenco supra, nomeadamente, constantes da petição inicial e da contestação apresentada, tal resultou da circunstância do Tribunal entender que os mesmos não apresentam relevância para o caso concreto tendo em consideração a pretensão das partes, o direito invocado e o respectivo ónus de prova.”
Pretende a recorrente que os pontos de facto não provados de b) e c) passem a constar da factualidade provada, já que do documento n.º 3 junto aos autos com a petição inicial (recibo de vencimento da autora), bem como do depoimento da testemunha D. P. resulta inequívoco que a autora auferia a quantia em causa, já que lhe era um vencimento tal como aos restantes funcionários, sendo ainda certo que esta cumpria o horário de trabalho fixado para todos os trabalhadores. Acresce dizer que também do depoimento de M. T. resulta suficientemente provado que a Autora cumpria um horário de trabalho.
De tais pontos de facto não provados consta o seguinte: “b) tendo ficado acordado entre A. e Ré que receberia como contrapartida do seu trabalho a remuneração mensal de 965,00€, (artigo 7º da p.i.) c) e tendo a A. o seguinte horário de trabalho: de segunda à sexta feira, das 9h às 13h e das 14h às 18h; (artigo 8º da p.i.)”
No que respeita aos factos que constam da al .b) dos factos não provados teremos de dizer que à recorrente não assiste qualquer razão, pois para além do que se fez constar a este propósito do ponto 4 dos factos dados como provados – “A Autora auferia actualmente uma retribuição mensal de €965,00 – cfr respectivo recibo de remunerações da A., ali constando a sua categoria de gerente, datado de 31 de Maio de 2020”, não se provou a propósito da importância que a autora recebia mensalmente qualquer outro facto relevante, designadamente o que consta da alínea b) dos pontos de facto não provados. Nem dos documentos juntos aos autos nem dos depoimentos de qualquer uma das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento resulta que tenha sido celebrado qualquer acordo entre Autora e Ré no sentido desta receber uma contrapartida pelo trabalho prestado. Na verdade, do recibo junto aos autos apenas consta a quantia que a autora recebia mensalmente como gerente e dos depoimentos das mencionadas testemunhas apenas resulta que estas tinham conhecimento de que a autora recebia uma determinada quantia por mês e que quando havia atrasos nos pagamentos tais atrasos ocorriam com todos, pelo que mais não resta do que manter nos factos não provados a redacção da sua alínea b).
Quanto à factualidade dada como não provada referente ao horário de trabalho cumpre desde já dizer que importava apurar se a autora cumpria um horário de trabalho por determinação da Ré, revelando-se desprovido de interesse o facto da autora por sua iniciativa se obrigar a cumprir determinado horário de trabalho juntamente com os demais funcionários. A este propósito as testemunhas pouco ou nada revelaram saber, designadamente a D. P. e a M. T.. Ao invés dos seus depoimentos resulta que a autora podia entrar e sair sem ter de prestar contas a quem quer que fosse e que frequentemente a Autora já estava na empresa quando chegavam e aí ficava quando terminavam o dia de trabalho. Estes depoimentos não nos permitem de forma alguma concluir que a autora estava obrigada pela Ré a cumprir determinado horário de trabalho.
Improcede assim nesta parte a impugnação.
Pretende a Recorrente que os pontos de facto não provados de e) e f) passem a constar da factualidade provada, já que do depoimento das testemunhas L. F. e S. C. se depreende que a autora executava as suas funções em subordinação a ordens impostas pela Ré, que acatava, sendo o actual representante da Ré quem efectivamente detinha o poder de gestão da Ré.
De tais pontos de facto não provados consta o seguinte: e) A Autora sempre exerceu a sua atividade profissional com todo o afinco e zelo, respeitando as ordens impostas pela Ré a todos os seus trabalhadores, sendo obrigada a executar os serviços que lhe eram dados e acatando as instruções que aquela lhe dava; f) Os serviços prestados pela Autora, eram objecto de controlo e fiscalização pela Ré;
O depoimento da testemunha L. F. revelou ter pouco ou nenhum conhecimento direto dos factos, já que apenas trabalhou em 2019, durante um curto espaço de tempo, por conta da Ré (cerca de 5 meses, já que nos restantes esteve de baixa), nunca tendo trabalhado diretamente com a autora, que identificou como sendo a patroa, relatando ao longo do seu depoimento aquilo que ouvia comentar na empresa. Acresce dizer, que para além da testemunha ter trabalhado sempre com o Sr. A. S., nunca falou sequer com a autora, sabendo apenas que esta era a esposa do Sr. A. S., desconhecendo quem é que determinava o que era para fazer na parte da confecção. O facto do outro sócio da Ré, Sr. A. S., dar ordens aos funcionários que trabalhavam na confecção, bem como o facto de ter sido contratado e despedido por aquele, não significa, nem daí se pode extrair que tais ordens também eram dirigidas à autora, nem de tal factualidade se pode concluir que o Sr. A. S. era o único sócio com poderes de controlo e fiscalização, sendo a autora desprovida de poderes de decisão. Quanto ao depoimento da S. C. também o mesmo não permite concluir pela prova dos factos dados como não provados sob as alíneas e) e f). Ao invés, a referida testemunha referiu apenas a forma como desenvolvia a atividade que prestava à Ré como comercial, daí resultando que tais funções eram por si exercidas como uma certa autonomia, o que nada tem a ver com as funções e a forma como as desempenhava a autora. Acresce dizer que esta testemunha foi perentória ao afirmar que respondia e obedecia às instruções emanadas pelos dois sócios, sendo certo que trabalhava mais diretamente com a autora, por esta estar afeta à produção. “A autora é que era a responsável pela empresa”, afirmou esta testemunha. Em suma, do teor deste depoimento nunca se poderia concluir em conformidade com o pretendido pela recorrente.
Improcede nesta parte a impugnação, sendo de manter as alíneas e) e f) dos factos não provados.
Pretende a Recorrente que o ponto de facto não provados sob a alínea g) passe a constar da factualidade provada, já que dos depoimentos das testemunhas D. P., L. F. e M. S. não se depreende que a autora tivesse dentro da empresa mais regalias que os outros funcionários, ao invés destes depoimentos são descritas condutas que poderiam ser adotadas por qualquer funcionário.
De tal ponto de facto não provado consta o seguinte: “g) A Autora não dispunha de quaisquer privilégios relativamente aos demais funcionários pelo facto de ser esposa do sócio maioritário ou ser gerente da sociedade que ambos representavam.”
Dos depoimentos das referidas testemunhas designadamente nos trechos truncados transcritos pela recorrente em sede de alegação, não resulta minimamente indiciado que a autora não tinha dentro das empresas regalias relativamente aos demais funcionários, nem era tratada pelas funcionárias da Ré como sendo uma colega de trabalho. Apesar da autora trabalhar na produção era esta quem era a responsável, sendo vista por todos como a patroa e não como a colega de trabalho.
No trecho transcrito na alegação de recurso do depoimento de D. P., apenas resulta que a testemunha tratava dos problemas referentes às suas ausências com qualquer um dos sócios da Ré. Do depoimento de L. F., apenas resulta que este por trabalhar diretamente com o Sr. A. S., reportava a este, pouco ou nada sabendo no que respeita à autora, com quem aliás nunca falou. Por fim, no que respeita ao depoimento de M. S. apraz dizer que do mesmo não resulta que o Sr. A. S. era quem detinha o poder de gestão da Ré, nem resulta que a autora não passava de uma mera funcionária. Mais uma vez diremos que o facto do Sr. A. S. ter procedido à contratação de funcionários, só por si não permite concluir que era o único detentor do poder de gestão da Ré. Ao invés do depoimento da referida testemunha resulta não só que tinha dois patrões, como esta afirmou que quem dava as ordens era a autora.
De tudo isto resulta que não foi cometido qualquer erro na apreciação da matéria de facto pelo tribunal a quo que imponha agora que se proceda à pretendida alteração da matéria de facto.
Por fim, pretende a recorrente que o ponto de facto não provados sob a alínea h) passe a constar da factualidade provada, já que cabia à Ré provar que foi ministrada à autora as horas mínimas de formação anual e não tendo sido realizada tal prova, deve a ausência de ministração de formação ser dada como provada.
De tal ponto de facto não provado consta o seguinte: h) Nunca foi ministrada à Autora qualquer formação
Quanto a este ponto de facto dado como não provado apraz dizer que tal factualidade foi impugnada pela Ré (artigo 15.º da contestação) sendo certo que para que se verifique o direito da Autora ao pagamento por crédito de horas de formação é necessário não só que se prove a existência do contrato de trabalho e a prestação de trabalho para o empregador na vigência do contrato, como também incumbe à autora provar que o empregador não lhe proporcionou a formação prevista na lei – cfr. art.º 342.º n.º 1 do CC.
A este propósito não foi produzida qualquer prova, designadamente não se provou que a Ré não tenha proporcionado ou assegurado à autora formação profissional durante a vigência da relação contratual, nem se provou que esta tivesse natureza laboral e sendo tal requisito essencial para acionar o direito ao crédito de horas de formação profissional na sequência da cessação do eventual contrato de trabalho, como melhor resulta do disposto nos artigos 131.º e 134.º do CT, não se vislumbra como possa tal factualidade passar a constar dos factos provados.
É de manter a alínea h) dos pontos de facto não provados.
Em suma, verificando-se da análise de toda a prova produzida que a motivação da decisão recorrida vai de encontro à prova realizada, inexistindo qualquer razão que a ponha em causa, já que os juízos de valor formulados pela recorrente não impõem a sua própria convicção à convicção da juiz a quo, não há que proceder a qualquer alteração da matéria de facto que se mantêm assim de inalterada.
2. Da natureza do contrato celebrado entre as partes e das consequências decorrentes a sua cessação
Mantendo-se na inalterada a factualidade dada como assente em 1ª instância é com base nela que iremos proceder à reapreciação da decisão de direito, quer sobre a natureza do contrato celebrado entre Autora e Réu, quer quanto às consequências decorrentes da sua cessação, bem como o acerto final de contas, que só seria devido caso o contrato tivesse natureza laboral.
A resposta à questão de saber se é possível a mesma pessoa ser simultaneamente gerente de uma sociedade e ter uma relação laboral com esta não é pacífica, quer na doutrina, quer na jurisprudência, contudo maioritariamente tem vindo a ser entendido ser possível a acumulação das funções de gerente e de trabalhador, conforme se expõe na decisão recorrida de forma clara e bem fundamentada e resulta do defendido no Acórdão do STJ de 29/09/1999, processo nº 98S364 (consultável em www.dgsi.pt), referido na decisão recorrida, no qual se refere o seguinte: “Diz-se - e bem - que os sócios gerentes, constituindo os órgãos diretivos e representativos da sociedade participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato de trabalho subordinado. Este, como já se adiantou, pressupõe a existência de uma situação de dependência (jurídica e económica), resultando impossível de compatibilizar na mesma pessoa as duas qualidades. Como é possível - dir-se-á - que a mesma pessoa funcione, a um tempo, como fonte de poder e seu destinatário, subordinado de si mesmo, em suma, empregador e empregado? Todavia, a questão não pode ser resolvida de modo tão simplista - como escreve LUÍS BRITO CORREIA, em "Os administradores de sociedades anónimas", 1993, página 575, acrescentando: - "Em primeiro lugar, o facto de o administrador representar a sociedade não significa que a sua pessoa se confunda juridicamente com a da sociedade: são pessoas distintas a sociedade e o administrador, podendo aquela ser representada também por outros administradores, ou pela vontade coletiva de vários administradores, em cuja formação o administrador - trabalhador pode não ter um voto decisivo ou até não votar de todo. E, por outro lado, a lei admite, em certas condições, o negócio consigo mesmo (C.C. artigo 261/II). De resto, como acentua o mesmo Autor, há interesses atendíveis e razoáveis, quer da sociedade, quer do trabalhador, na cumulação das duas qualidades. A sociedade, pode ter interesse em aproveitar melhor as aptidões do seu trabalhador, promovendo-o a administrador, sem lhe provocar a perda dos benefícios resultantes da legislação do trabalho ou confiar a um administrador também funções técnicas especiais distintas das funções de administração, em posição de subordinação ao Conselho de Administração. O trabalhador, solicitado a exercer funções de administração, hesitará se isso implicar a perda das vantagens do estatuto de trabalhador subordinado, designadamente advenientes da sua antiguidade e da proteção contra a destituição sem justa causa. Além de que - como entre nós acontece com a Lei n. 46/79, de 12 de setembro - pode aos trabalhadores ser reconhecido o direito de elegerem representantes seus para os Órgãos Sociais da empresa, conservando a sua qualidade de trabalhadores - cfr. o artigo 30 daquela Lei 46/79…”
Também o Tribunal da Relação de Évora tem defendido este entendimento, designadamente no Acórdão de 6/4/2017, processo nº 127/15.4T8STR-B.E1(consultável em www.dgsi.pt), no qual se refere a possibilidade de cumulação do exercício da gerência com o contrato de trabalho designadamente nas situações em que anteriormente existia um contrato de trabalho, nas situações em que existem sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes e o exercício de tarefas que não de gerência. Contudo, o Tribunal da Relação de Évora no caso concreto considerou incompatível a acumulação de funções, sem grandes dúvidas, por se tratar de gerente único.
Acresce ainda referir que o Tribunal da Relação do Porto no seu Acórdão de 21/1/2019, processo nº 12602/16.9T8PRT.P1(consultável em www.dgsi.pt), defendeu que a qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas não impede o reconhecimento da qualidade, também, de trabalhador, dependendo esse reconhecimento de um vinculo laboral da demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo, sendo o respectivo ónus de prova do autor. Tendo também aí se defendido que o pagamento, pela sociedade, de um rendimento mensal não chega para se concluir, quer pela existência de um contrato de trabalho, quer pela existência de créditos por retribuições em atraso, subsídios de férias e/ou de natal.
Por fim, no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 13 de Fevereiro de 2014, processo 2690/12.2TBGMR-B.G1, consultável em www.dgsi.pt, defende-se o seguinte a propósito desta temática “Aceitando-se, assim, que um sócio-gerente de uma sociedade comercial por quotas possa ser simultaneamente seu trabalhador a compatibilidade entre estas posições jurídicas fica dependente da prova da existência de uma relação de subordinação jurídica do sócio-gerente, pois o exercício da gerência pode ser de tal modo condicionado (designadamente por um sócio-gerente maioritário) que os poderes que são próprios da entidade patronal não sejam verdadeiramente partilhados.” Sublinhado nosso. E mais recentemente no Acórdão deste Tribunal de 16-12-2021, proc. n.º 1154/20.5T8BCL-A.G1 sumariou-se o seguinte “- Ainda que se admita a possibilidade de exercício de gerência de sociedade mediante contrato de trabalho, tal sempre dependeria da prova da subordinação jurídica, com demonstração do circunstancialismo demonstrativo de tal subordinação, como os efetivos poderes sobre tal gerente, por parte da sociedade ou de outro gerente.”
Em sentido negativo e a título meramente exemplificativo pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/05/2005, processo 0414989 (consultável em www.dgsi.pt), no qual se refere o seguinte: “Como resulta do art. 259º [do CSC], os gerentes devem praticar os actos que forem necessários ou convenientes para a realização do objecto social, com respeito pelas deliberações dos sócios. Trata-se uma disposição semelhante à acima referida quanto às sociedades anónimas e seus administradores. “Igualmente semelhante em ambas as sociedades é o regime de vinculação destas pelos actos dos seus órgãos de administração (arts. 260º, 409º e 431º, nº 3 [do CSC]). “Esta indiscutível afinidade de situações entre os administradores e os gerentes não pode deixar de reclamar que, em relação aos gerentes societários, sócios da sociedade, anteriormente vinculados à sociedade por contrato de trabalho, sendo bem forte o risco de conflitos entre os interesses da sociedade, na prossecução dos seus objectivos, e os dos trabalhadores, tal problema seja resolvido, por analogia, através da incompatibilidade prevista no citado art. 398º. “Na verdade, estabelece o art. 2º (Direito subsidiário): “Os casos que a presente lei não preveja são regulados segundo a norma desta lei aplicável aos casos análogos...” (...) “Aliás, a mesma aplicação analógica do citado art. 398º se impõe no caso das sociedades anónimas, cuja administração seja estruturada sob a forma de direcção, nos termos dos arts. 278º, nº 1, alínea b), e 424º- 445º [do CSC]. “Nesta modalidade de sociedade anónima, no tocante aos directores, e como se vê do art. 428º, o CSC também não previu qualquer preceito como o do citado art. 398º, sendo que, apesar do silêncio da lei, tal regime tem de lhes ser aplicável por analogia.” No mesmo sentido Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 2007, págs. 171-172”.
Ora, a pedra de toque para que um contrato possa ser caracterizado como de trabalho é a subordinação jurídica, verificando-se esta sempre que se verifique a prestação de uma actividade, sob a autoridade de outrem, mediante o recebimento de uma contrapartida (retribuição).
Como se refere no citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-01-2019 “Os elementos essenciais e constitutivos do contrato de trabalho são, assim, a subordinação económica e a subordinação jurídica, traduzindo-se o primeiro no facto de o trabalhador receber certa retribuição do dador de trabalho e o segundo no facto de o mesmo se encontrar na sua actividade sob as ordens, direcção e fiscalização do empregador. Em rigor e posto que a retribuição também existe noutro tipo de contratos (máxime, o de prestação de serviços), até é a subordinação jurídica o elemento fundamental para se reconhecer da existência de um contrato de trabalho. A propósito da definição de subordinação jurídica diz-nos Monteiro Fernandes que esta “consiste numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem” – Direito do Trabalho, 13ªedição, página 136. A subordinação jurídica, que assim é elemento constitutivo do contrato de trabalho, não existe no contrato de prestação de serviços, definido do art. 1154º do Cód. Civil. Neste, quem presta o serviço apenas se obriga, perante a contraparte, a proporcionar-lhe certo resultado, sendo livre e autónomo quanto aos meios e forma de o alcançar. A propósito, veja-se, entre outros, Galvão Telles, in B.M.J., nº 83, pág. 165, em que alude àquilo que se promete (um certo resultado ou uma actividade) para distinguir entre os dois tipos de contrato.”
Nas sociedades por quotas, como sucede no caso em apreço, podemos afirmar que da lei não resulta qualquer obstáculo à constituição de uma relação laboral entre a sociedade e um gerente, sendo certo que tal vínculo por impor a existência de subordinação jurídica, apenas se poderá formar se e na medida em que o trabalhador já tivesse um contrato de trabalho antes de ser nomeado gerente, continuando a desempenhar as mesmas funções e nos mesmos moldes; ou se e na medida em que seja contratado de entre não sócios e por outro ou outros gerentes designados no pacto social ou em assembleia de sócios.
Com efeito, é sobretudo em relação aos gerentes não sócios, ou aos trabalhadores que passem a sócios-gerentes que tem sido reconhecida a possibilidade de qualificar o seu vínculo como laboral. São assim restritas as hipóteses em que é configurável a possibilidade da mesma pessoa assumir a qualidade de trabalhador e gerente, sendo certo que a titularidade da gerência tanto pode exercer-se na posição de trabalhador subordinado (casos excepcionais) como na posição de mandatário (o que sucede em regra), havendo assim que apurar os termos em que o contrato foi celebrado e é executado para lhe conferir a qualificação, ou de contrato de trabalho, ou de mandato.
Na verdade, afigura-se-nos de dificilmente conciliável com a subordinação jurídica, que o contrato de trabalho pressupõe, com a actividade daqueles que não estão em regra sujeitos a ordens de quem querque seja, só prestando contas dos seus actos de gestão à própria sociedade cujos órgãos directivos integram, pelo que o vínculo entre a pessoa colectiva e o gestor (gerente,administrador ou director), que actua com autonomia, sem controle ou superintendência de outrem, e em representação da pessoa colectiva, a revestir natureza contratual, assume a figura do “mandato”, ainda que retribuído, ou, de “contrato de administração”, como defende entre outros, Monteiro Fernandes, in Direito do Trabalho.
Seguindo de perto o citado acórdão do STJ de 29-09-1999, processo 98S364, consultável em www.dgsi.pt no qual se defende a possibilidade de o sócio gerente de uma sociedade por quotas ter um vinculo laboral com a sociedade que gere. Foram considerados relevantes a existência de eventual subordinação jurídica em cumulação com a situação de sócio gerente, os seguintes aspectos:
- a anterioridade ou não do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio gerente;
- a retribuição auferida, procurando surpreender alterações significativas ou dualidade de retribuições;
- a natureza das funções concretamente exercida antes e depois da ascensão à gerência, com vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de actividades;
- a composição da gerência, designadamente número de sócios gerente e respectivas quotas;
- a existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;
- a dependência hierárquica e funcional dos sócios gerentes que desempenhem tarefas não tipicamente de gerência relativamente a tais actividades.
Ali se considera que, no caso do sócio gerente de uma sociedade por quotas, este contrato de trabalho será plenamente válido e eficaz, pois que inexiste impedimento legal à coexistência do exercício da gerência neste tipo de sociedades com a execução de um contrato individual de trabalho subordinado (acórdão do STJ de 30 de Setembro de 2004, processo 03S2053, acessível em www.dgsi.pt).
Assim se conclui neste último acórdão que, “Caso eventualmente, após analisado todo o circunstancialismo do caso, seja de concluir que o modo de execução das funções do gerente administrador ou director se processou num contexto de subordinação jurídica à pessoa colectiva, deverá afirmar-se a existência de um contrato de natureza laboral” (art. 11º do Código do Trabalho). Neste sentido veja-se Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 2006, pág. 320, e Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. III, 1991, págs. 33 a 38.
Retornando ao caso dos autos vejamos se a relação contratual existente entre Autora e Ré se processou em contexto de subordinação jurídica à pessoa colectiva.
Da factualidade provada não resulta que a autora tivesse um contrato de trabalho em data anterior à aquisição de quota ainda que minoritária e ao assumir as funções de gerente. Ao invés resulta dos documentos juntos aos autos que a Autora passou a exercer funções de gerente quando passou a ser sócia da Ré, não constando dos factos apurados que em momento anterior a este tivesse exercido funções por conta e no interesse da Ré. Por outro lado, a recorrente também não logrou provar que não exercesse as funções próprias da gerência, antes se provando o oposto, ou que existisse uma posição de domínio do outro sócio, ou que exercesse funções na dependência hierárquica ou funcional do outro sócio-gerente. Nem logrou provar que cumpria um horário de trabalho pré–estabelecido pelo outro gerente. E por fim, também não logrou provar o estado de sujeição por parte da Autora ao outro gerente ou que cumpria ordens/instruções deste.
Com efeito, afigura-se-nos de irrelevante que a recorrente fosse a responsável da linha de produção, na confecção exercendo funções de supervisão do trabalho dos funcionários, pois é usual nas pequenas empresas os sócios/gerentes estarem na empresa no período de funcionamento da empresa/estabelecimento, exercendo funções idênticas às dos seus trabalhadores, desde que tenham competências profissionais para as desempenharem. Daí que, após a destituição da recorrente da gerência o exercício da função referente à responsabilidade pela linha de produção passou a ser exercida por outro funcionário. Acresce dizer que da factualidade provada resulta que a recorrente exercia as mencionadas funções em cumulação com a gerência da Ré que partilhava com o outro sócio gerente, não resultando apurada qualquer factualidade que nos permita concluir que existia dependência hierárquica e funcional dela para com o outro sócio-gerente, no exercício das funções que não eram típicas da gerência. Por fim, o facto de a autora receber uma contrapartida monetária pelo desempenho das suas funções de gerente também se revela de insuficiente para se concluir pela existência de um contrato de trabalho, pois em regra o mandato, ou o contrato de administração também podem implicar a existência de uma remuneração.
Em suma, dos factos apurados não existe qualquer fundamento para reconhecer que na relação estabelecida entre as partes - a A., como pessoa singular, e a R., como pessoa colectiva -, se formou um vínculo laboral, já que não se provou que a autora exercesse as outras funções, que não a gerência, sob as ordens, direcção e fiscalização do outro gerente ou da sociedade. Incumbindo o ónus da prova nesta matéria à autora é de concluir que não logrou provar a existência de um contrato de trabalho.
Não tendo assim a Autora logrado provar que entre si e a Ré vigorou um contrato de trabalho, deixa de se verificar a causa de pedir dos diversos pedidos que formulava e resultantes da cessação do hipotético contrato de trabalho, uma vez que o despedimento ilícito com direito a indemnização pressupõe a existência de um contrato de trabalho, bem como os demais créditos reclamados, quer a título de subsídios de férias e de natal, quer a título de férias não gozadas e horas de formação não ministrada, ou seja são tudo prestações inerentes ao contrato de trabalho. Ainda que a Autora recebesse um rendimento mensal da Ré, o certo é que não o recebia por força da existência de um contrato de trabalho.
Improcede o recurso, sendo de manter a decisão recorrida.
V – DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em confirmar a sentença recorrida.
Custas da Apelação a cargo da Recorrente
Notifique.
Guimarães, 22 de Setembro de 2022
Vera Maria Sottomayor (relatora) Maria Leonor Barroso Francisco Sousa Pereira