CONTRATO DE MEDIAÇÃO IMOBILIÁRIA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PARTILHA DE COMISSÃO
UNIÃO DE CONTRATOS
DEPENDÊNCIA FUNCIONAL
Sumário

I.–Tendo a sociedade de mediação imobiliária (Ré) celebrado um  contrato de mediação imobiliária para venda de moradia  e a sociedade de mediação imobiliária (Autora) angariado comprador para tal moradia, acordando as sociedades a partilha da comissão convencionada com os proprietários na proporção de metade, ocorre uma união de contratos entre a celebração de um contrato de mediação imobiliária ao qual se acoplou posteriormente um contrato de prestação de serviços, celebrado entre a autora e a ré, nos termos do qual a autora proporcionou à ré um comprador elegível para o imóvel.

II.–No caso em apreço estamos perante uma coligação funcional, interna com dependência bilateral porquanto o contrato de prestação de serviços e o contrato de mediação imobiliária estão dependentes um do outro: a Ré ficou em condições de obter um comprador elegível para o imóvel em resultado da prestação de serviços da autora e o pagamento dos serviços da autora decorre da partilha da comissão convencionada pela Ré com os proprietários alienantes.

III.–No que tange ao pagamento da comissão, o nascimento da obrigação de remunerar o mediador imobiliário só nasceu com a celebração do contrato de compra e venda, tornando-se, nesse momento, a obrigação  exigível.

IV.–A ré – na economia da união interna de contratos com dependência bilateral- só está investida na obrigação de partilhar a comissão com a autora no pressuposto de alcançar o seu pagamento por parte do proprietário alienante.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


TT, Lda.  instaurou procedimento de injunção contra CC, Lda.,  pedido a condenação da Ré no pagamento da quantia de 30.558€, sendo 27.675€ referente a capital e 1.730€ referente a juros de mora vencidos, acrescido de juros de mora vincendos até integral pagamento.
Fundamentando tal pretensão, alegou que: é uma mediadora imobiliária da rede (...), tendo angariado um cliente para comprar um imóvel cuja venda se encontrava a ser promovida pela Ré, que é, ela própria, uma mediadora imobiliária da mesma rede; a prática das sociedades de mediação é a de partilharem as suas comissões de promoção e concretização da venda; em 07-03-2019, realizou-se o contrato definitivo de venda, pelo que é devido o pagamento da sua percentagem na comissão devida pela venda, a qual deverá ser paga pela Ré.
A Ré  deduziu oposição, tendo argumentado  que não recebeu o valor em dívida pela mediação imobiliária, mas que obteve condenação dos vendedores, no respectivo pagamento, por decisão transitada em julgado. Porém, tendo os vendedores sido declarados insolventes, o que impossibilita a execução coerciva do cumprimento do contrato.
Pelos fundamentos expostos, a Ré conclui no sentido da improcedência da ação.
Após julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, absolvendo a ré do pedido.
*

Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
«
1)Vem o presente recurso interposto da D. sentença que, incorretamente, julgou improcedente o pedido formulado pela aqui Recorrente contra a ora Recorrida na condenação no pagamento do valor de contrato de prestação de serviços/partilha de negócio de mediação imobiliária, celebrado entre as mesmas (ambas parceiras da Rede (...)) e que, por consequência, determinou a absolvição da Ré.
2)O Tribunal a quo valorou incorretamente a prova documental e a prova produzida em audiência de julgamento, a saber:
3)A Recorrida celebrou contrato de mediação imobiliária para venda de imóvel contra pagamento de comissão até "aquando" a celebração da escritura ou contrato particular autêntico.
4)Por seu turno, desse contrato emergiu outro contrato na gíria imobiliária de "acordo partilha", celebrado entre a Recorrida e a Recorrente/angariadora de cliente comprador para o imóvel, contra o pagamento de valor equivalente a 50% do montante da comissão convencionada no referido contrato de mediação imobiliária, acrescido de IVA, a pagar aquando a escritura/documento particular de compra e venda.
5)Realizou-se o contrato promessa de compra e venda, pelo preço de um milhão quinhentos e cinquenta mil euros, foi celebrado, em 16-11-2018 (com pagamento de duzentos mil a título de sinal) e o contrato definitivo, em 07-032019, com menção de intervenção imobiliária, contra o pagamento, através de cheque bancário, do valor remanescente do preço (cf. Escritura junta à Oposição da Recorrida e declarações de parte e depoimento da testemunha)
6)A Recorrente acordou na partilha, tendo a Recorrida acordado que lhe pagaria aquando a escritura, pois cobraria a sua comissão até à sua outorga em cumprimento do convencionado no contrato de mediação imobiliária (declarações de parte e citado contrato - a testemunha referiu que não presenciou a celebração deste acordo de parceria).
7)Ora, no que tange aos pontos 16 da matéria assente, o contrato de mediação imobiliária junto a oposição, cf. com o disposto no Art. 19° da lei 15/2013, de 8/2, e o acordo de partilha, impunha à Recorrida diligenciar a cobrança da sua comissão até "aquando a escritura".
8)O que não sucedeu, por incúria da Recorrida e a experiência dos seus 20 anos de atividade, contra os contrato de mediação e o acordo de parceria, e, sobretudo contra o previsto no Art. 19° da lei 15/2013, de 8/2 (a ignorância da lei a ninguém aproveita)), que lhe impunham diligenciar a cobrança da comissão até "aquando a escritura".
9)A gravação áudio das declarações das partes e da testemunha (esta funcionária da Recorrida) comprovam que a Recorrida a única diligência que realizou para assegurar a cobrança da sua comissão até "aquando a escritura", foram tão-só V telefonemas 2/3 dias, antes da data agendada para a escritura, para o seu cliente/vendedor levar cheque (nem solicitou cheque visado ou bancário, nem que fosse cheque do comprador) para a dita escritura para pagamento da comissão.
10)Note-se que tem-se tornado prática, ser o preço do imóvel devido aquando a escritura, ser pago através de 2 cheques bancários ou visados, um com o valor da comissão e outro a favor do vendedor, sobremaneira de valores elevados de comissão como o é in casu.
11)Da escritura de compra e venda, junta à Oposição da Recorrida (Ref- Citius 396742350), consta que o remanescente do preço foi pago aquando a escritura, através de cheque bancário, ou seja, houve cuidado.
12)–A experiência na mediação imobiliário da Recorrida, de mais de 20 anos de experiência, não se compadece com a incúria de não ter assegurado a cobrança da comissão através de cheque visado ou bancário,
13)–A Experiência da Recorrida não se compagina com a conduta de solicitar um cheque normal, e do no dia da escritura não ter insistido com o vendedor para que este providenciasse cheque para pagamento da sua comissão.
14)–Nem que se tenha limitado a chegar na hora agendada para a escritura, após almoçar com a testemunha/sua funcionária, não tendo atendido nenhum dos inúmeros telefonemas da Recorrida nesse dia, e aceitar a comunicação do vendedor de que não tinha cheques (ou seja, nem mesmo cheques normais) e de que no dia seguinte faria a transferência do valor da comissão (cf. Declarações de parte da Recorrida e da testemunha/sua funcionária).
15)–Assim, demonstrando-se que deve ser dado como não provado a matéria do ponto 16 dos factos provados (A R tudo não fez tudo ao seu alcance para cobrar a comissão até aquando a escritura e sempre partilhou tais diligências com a A - tão só partilhou com a ora Recorrida as diligências posteriores à escritura e na sequência de instâncias da Recorrente para que procedesse ao pagamento do valor da parceria).
16)–E quanto ao ponto 17 dos factos assentes, deve ser aditado na parte final "até aquando a escritura".
17)–E quanto ao ponto 18 dos factos dados como provados, que «A R só aceitou a partilha no pressuposto de que a remuneração seria devida até a escritura/contrato definitivo.
18)–Também, andou mal o Julgador a quo, ao determinar «Quanto aos pontos de facto que resultaram não provados e vertidos nas alíneas a) a c), não se fez prova de quaisquer usos, orientações ou práticas consolidadas, conforme comprova  esclarecimento prestado pela (...)- Portugal, entrado nos autos a 31-12- 2020» face a estes esclarecimentos, ao referido contrato de mediação imobiliária (contrato tipo da rede (...), elaborado em consonância com o art. 19° da Lei 15/2013, de 8/2) e declarações das partes (a parceria assenta nas condições de pagamento do contrato de mediação - cobrança até aquando a escritura/contrato particular).
19)–Devendo, assim, a decisão ser alterada no sentido de dar como provados de que «Quanto aos pontos de facto que resultaram não provados e vertidos nas alíneas a) a c), fez-se prova de que os usos, orientações ou práticas consolidadas da (...), são no sentido de que a boa cobrança da(s) comissão(ões) é(são) devida(s) até ao momento da outorga do contrato definitivo, conforme resulta do contrato tido de mediação imobiliária constante dos autos, do regime legal que regula a mediação imobiliária e dos esclarecimento prestado pela (...)- Portugal, entrado nos autos a 31-12- 2020»
20)–O exposto, no que tange à parte da motivação da sentença em que se «A A esteve presente e não deduziu oposição à posição do comprador» isto é vendedor, de que não tinha cheques para pagar a comissão no ato da escritura e que faria a transferência no dia seguinte» deve ser alterado para «A A esteve presente e deduziu, perante a Gerente da Recorrida oposição à posição do vendedor, no que se refere ao vendedor não ter cheques para pagar a comissão no ato da escritura e que faria a transferência no dia seguinte (cf. Declarações de parte da Recorrente, mails desta enviados à Recorrida).
21)–Ainda que não se pugne pela tese de que no contrato de parceria as partes convencionaram que a remuneração seria paga aquando a escritura, e se acolha que o pagamento estaria sujeito à boa cobrança acordada no contrato de mediação, sempre é devida à luz do instituto do abuso de direito.
22)–o contrato de prestação de serviços celebrado entre as sociedade de mediação fundamentou-se na existência do contrato de mediação tipo da Rede (...) para todos os seus agentes e no seu cumprimento, isto é, que a Ré e Autora celebraram contrato de parceria no pressuposto de que a ora Recorrida iria garantir a boa cobrança aquando a escritura de compra e venda em obediência ao referido contrato e ao citado art. 19 da Lei 15/2013, e não iria ter uma conduta de incúria.
23)–A Ré criou na Autora a convicção inabalável de que cumpriria o contrato de intermediação, isto é, que iria exercer o seu direito de cobrança da comissão nos termos consignados no contrato de intermediação no citado art. 19° da Lei n.º 15/2013, de 8/2, e que, consequentemente, pagaria a remuneração de serviços acordada.
24)–A Ré ao não cumprir tal contrato e Lei - cobrança da comissão aquando a outorga da escritura - e não diligenciar que a sua comissão fosse paga através de cheque visado ou bancário pelo, sem embargo da sua contabilidade no dia da escritura e ter curado insistido nesse mesmo dia com o vendedor para cuidar de levar cheque (nem mesmo normal) para a escritura para boa cobrança da sua comissão, abalou inexoravelmente a confiança que incutira na Autora, o que configura uma situação de venire contra factum proprium, modalidade do instituto do abuso de direito, plasmado no art. 334° do Código Civil, que se invoca para os devidos efeitos legais
Daí que V. Exas, Requerendo, possam revogar a D. Decisão, por sentença, ora recorrida atribuindo procedência ao recurso, quer alterando a matéria de facto provada, quer considerando que a dada, já como provada, bem como o direito aplicado, é bastante, permitindo nova apreciação, concedendo, no pedido inicial da Autora, justiça.»
*

Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação. Mais argumentou que a impugnação da matéria de facto tem de ser rejeitada porquanto a apelante não cumpriu o ónus do Artigo  640º, nº2, al. a), do Código de Processo Civil .

QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]

Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
1.–Impugnação da decisão da matéria de facto (máxime conclusões 15 a 20);
2.–Abuso de direito (conclusões 21 a 23);
3.–Enquadramento jurídico da pretensão da autora/apelante.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1–As partes são Sociedades de Mediação Imobiliária da "(...)" (acordo);
2–É prática usual estas sociedades partilharem as suas comissões de promoção e concretização da venda, sempre que aquela que angaria o cliente para a compra não é aquela que é titular do contrato de mediação imobiliária (acordo);
3–A aqui Requerida celebrou contrato de mediação imobiliária com CLB e mulher MHF para promover a venda do imóvel Letras F-G que constitui a moradia nº 7 de 2 pisos, com terraços e logradouro, garagem e piscina, do prédio em Propriedade Horizontal, inscrito ma matriz urbana da freguesia de (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o n.º (...), da freguesia de (...)..., que juntamente com o prédio Desc. sob o n.º 474 da freguesia de (...), concelho de (...), forma uma Unidade destinada a Empreendimento Turístico (acordo e cópia de contrato de mediação imobiliária junto como doc. 1, junto com a douta Oposição);
4–A Requerente angariou cliente para comprar o dito imóvel cuja venda era promovida pela Requerida (acordo);
5–O que foi por esta aceite na condição, como sempre foram usos na (...), de partilhar a comissão convencionada com os proprietários, na proporção de metade (acordo);
6–Foi celebrado o contrato-promessa em 16-11-2018 e contrato definitivo, em 07-03-2019, pelo preço estipulado de 1.550.000€, que ficou integralmente pago (acordo e cópia de contrato de mediação imobiliária junto como doc. 2, junto com a douta Oposição);
7–Ficou consignada a intervenção da ora Requerida como mediadora (doc. 2, junto com a douta Oposição);
8–Na data da escritura, o vendedor não pagou a comissão devida, tendo-se desculpado com o facto de não ter cheques, pelo que ficou acordado entre os vendedores e a aqui Requerida que a fatura seria remetida via correio eletrónico para os endereços daqueles;
9–No dia 8 de março de 2019, a aqui requerida enviou aos vendedores. a sua fatura no montante de 45.000 eur + IVA, ou seja, 55.350€ (doc. 5, junto com a Oposição);
10–A comissão não foi paga em momento ulterior;
11–A Requerida interpelou os vendedores pessoalmente e por escrito para procederem ao pagamento, sendo a última diligência feita pelo seu mandatário, por correio eletrónico datado de 22 de março (doc. 5);
12–O mandatário da Requerida voltou a insistir em 3 de Abril e só nessa data recebeu resposta do vendedor marido, onde este pede que se aguarde até 15 de Abril (docs. 5 e 6);
13–Desde então, os vendedores não mais contactaram a Requerida ou o seu mandatário, nem procederam ao pagamento;
14–A Requerida propôs ação de condenação contra os vendedores, na qual peticionou a condenação destes no pagamento da comissão acordada, que correu termos sob o n.º (...), do Juízo Cível de (...), Juiz 2 e que veio a ser julgada totalmente procedente, por sentença transitada em julgado (doc. 7, junto com a Oposição);
15–Os vendedores apresentaram-se à insolvência, a qual veio a ser declarada em 15-11-2019 (proc. (...), Juízo de Comércio de (...), Juiz 6 – doc. 8, junto com a Oposição);
16–A R tudo fez ao seu alcance para cobrar a comissão e sempre partilhou tais diligências com a A;
17– A A aceitou o contrato de prestação de serviços na confiança absoluta de que a R iria pagar-lhe o valor do serviço;
18–A R só aceitou a partilha no pressuposto de que a remuneração apenas seria devida após boa cobrança da comissão.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Impugnação da decisão da matéria de facto.

A apelante pretende que:

  • O facto provado 16 (“A ré tudo fez ao seu alcance para cobrar a comissão e sempre partilhou tais diligências com a autora”) seja revertido para não provado;
  • A redação do facto 17 (“A Autora aceito o contrato de prestação de serviços na confiança absoluta de que a Ré iria pagar o valor do serviço”)  seja alterada para: A Autora aceitou o contrato de prestação de serviços na confiança absoluta de que a Ré iria pagar-lhe o valor do serviço até aquando a escritura;
  • A redação do facto 18 (“A ré só aceitou a partilha no pressuposto de que a remuneração apenas seria devida após boa cobrança da comissão”) para: A Ré só aceitou a partilha no pressuposto de que a remuneração apenas seria devida até a escritura/contrato definitivo.
Nos termos do Artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil,
«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No que toca à especificação dos meios probatórios, incumbe ainda ao recorrente «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”(Artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Ora, consoante sinalizou a apelada na suas contra-alegações, a apelante não cumpriu o ónus da al. a), do nº2, do Artigo  640º do Código de Processo Civil,  porquanto a apelante - apesar de se referir genericamente ao depoimento da testemunha funcionária da recorrida, às declarações prestadas pela gerente da recorrida e pela gerente da recorrente – não indicou as passagens da gravação nem procedeu à transcrição dos segmentos pertinentes de tais depoimentos/declarações.
O incumprimento de tal ónus é motivo, necessário e suficiente, para a rejeição do recurso de impugnação da matéria de facto.
Mesmo que assim não fosse, há que atentar em que a redação alternativa proposta pela apelante para os factos 17 e 18 implica o aditamento de factos complementares , nos termos do Artigo 5º, nº2, al. b), do Código de Processo Civil.
Tais factos só poderiam ser introduzidos no processo no decurso do julgamento em primeira instância, mediante iniciativa da parte ou oficiosamente, sendo que, neste último caso, cabe ao juiz anunciar às partes que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto, sob pena de proferir uma decisão-surpresa (cf. também o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2017, Pinto de Almeida, 1758/10 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de  11.12.2018, Moreira do Carmo, 2053/14). Em qualquer dessas circunstâncias, assiste à parte beneficiada pelo facto complementar e à contraparte a faculdade de requererem a produção de novos meios de prova para fazer a prova ou contraprova dos novos factos complementares – cf.  Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 32.
Não tendo a apelante desencadeado tal mecanismo de ampliação fáctica nem tendo o mesmo sido utilizado oficiosamente pelo tribunal,  está precludida a ampliação da matéria de facto com tal fundamento em sede de apelação porquanto o conteúdo da decisão seria excessivo por envolver a consideração de factos essenciais complementares ou concretizadores fora das condições previstas no art. 5º (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2022, 3ª ed., Almedina, p. 860) ou, segundo Alberto dos Reis, ocorreria erro de julgamento por a sentença/acórdão se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pp.. 145-146). Note-se que a ampliação da matéria de facto (Artigo 662º, nº2, al. c), in fine, do Código de Processo Civil) tem por limite a factualidade alegada, tempestivamente, pelas partes, não constituindo um sucedâneo do mecanismo do Artigo 5º, nº2, al. b), do Código de Processo Civil).
Por fim, quanto à reversão do facto 16 (“A Ré tudo fez ao seu alcance para cobrar a comissão e sempre partilhou tais diligências com a Autora”) para não provado, mesmo a proceder a pretensão recursória da apelante, a mesma seria inócua para a decisão final de mérito. Com efeito, o que a Ré fez tendo em vista a cobrança da comissão já está suficientemente enunciado nos factos provados sob 8 a 15, nada de relevante ou particularmente operativo sendo acrescentado pelo facto provado sob 16. Dito de outra forma, o facto 16 – quer na sua versão provada quer na sua versão não provada – nada de útil acrescenta à discussão sobre o vencimento/exigibilidade da alegada obrigação da Ré perante a Autora.
Ora, o direito à impugnação da decisão de facto não subsiste a se mas assume um caráter instrumental face à decisão de mérito do pleito. Deste modo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.[3] Dito de outra forma, o princípio da limitação dos atos, consagrado no Artigo 130º do Código de Processo Civil,  deve ser observado no âmbito do conhecimento da impugnação da matéria de facto se a análise da situação concreta evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual cuja relevância se projete na decisão de mérito a proferir – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.5.2017, Isabel Pereira, 4111/13.

ABUSO DE DIREITO.

Sustenta a apelante que o pagamento a efetuar pela Ré à Autora sempre será devido, nos termos do instituto de abuso de direito. Isto porquanto a «Ré criou na autora a convicção inabalável de que cumpriria o contrato de intermediação, isto é, que iria exercer o seu direito de cobrança da comissão nos termos consignados no contrato de intermediação do citado artigo 19º da Lei nº 15/2013, de 8.2., e que, consequentemente, pagaria a remuneração de serviços acordada

Improcede a pretensão da apelante por duas ordens de razões.

Em primeiro lugar, a apelante faz uma leitura enviesada e incorreta do disposto no Artigo  19º, nº1, da Lei nº 15/2013, confundindo o nascimento da obrigação de remuneração do mediador com o seu cumprimento.

Conforme refere Higina Orvalho Castelo, Regime Jurídico da Atividade de Mediação Imobiliária Anotado, 2015, Almedina, p. 126:
«O contrato de mediação (sem prejuízo da eventual, e nada habitual, celebração de contratos de mediação condicionais) é plenamente eficaz desde o momento da sua celebração e não tem a sua eficácia ameaçada por qualquer ocorrência futura e incerta. O que nele se passa é que um dos seus efeitos, o nascimento do direito a uma das prestações, concretamente, a remuneração do mediador, está dependente de um evento futuro e incerto: a celebração do contrato visão (regra que comporta exceção no âmbito de alguns contratos com cláusula de exclusividade de que adiante falarei). A celebração do contrato visado depende das atuações do cliente e de um terceiro e permanece na disponibilidade destes.
O contrato de mediação não se classifica como contrato condicional em sentido próprio, mas incorpora uma condição atípica, ou circunstância de eventualidade, cuja ocorrência é necessária à produção de um dos seus efeitos jurídicos principais, o dever de remunerar.
Por causa desta circunstância, que coloca a remuneração na dependência da celebração do contrato visado, o mediador corre um risco específico de não ser remunerado, mesmo tendo cumprido escrupulosamente a sua prestação.»

Ou seja, o nascimento da obrigação de remunerar o mediador só ocorre com a outorga do contrato visado, estando a partir desse momento a contraparte constituída na obrigação de pagar tal remuneração. Questão diversa é a do cumprimento efetivo de tal obrigação logo nesse momento (matéria sobre a qual não rege o Artigo  19º, nº1), sendo que, caso não ocorre o cumprimento voluntário de tal obrigação, tem o credor/mediador o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executador o património do devedor (Artigos 817º do Código Civil e Artigo  1º do Código de Processo Civil).

Em segundo lugar, a factualidade provada é insuficiente para se concluir que a Ré criou na autora a “convicção inabalável”  de que cobraria a comissão aquando da celebração da escritura de compra e venda, sendo que não assistem poderes de ius imperii à ré para efeitos de cobrança da comissão (cf. Artigo  1º do Código de Processo Civil ).

ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA PRETENSÃO DA AUTORA/ APELANTE

Resulta da matéria de facto provada que:
  • A Ré celebrou com CLB e mulher contrato de mediação imobiliária para venda de moradia destes;
  • A Autora angariou comprador para a compra da referida moradia;
  • O que foi aceite pela Ré na condição de partilhar a comissão convencionada com os proprietários, na proporção de metade para a autora e metade para a ré;
  • Foi celebrado o contrato definitivo em 7.3.2019, pelo preço estipulado de €  1.550.000;
  • A Ré ainda não logrou obter o pagamento da comissão de € 55.350 (factos 8 a 14), sendo que os vendedores vieram a ser declarados insolventes (facto 15).
A situação assim delineada configura a existência de uma união de contratos, tendo ocorrido, em primeiro lugar, a celebração de um contrato de mediação imobiliária entre a Ré e CLB e mulher, ao qual se acoplou posteriormente um contrato de prestação de serviços, celebrado entre a autora e a ré, nos termos do qual a autora proporcionou à Ré um comprador elegível para o imóvel (cf. Artigo  1154º do Código Civil).

Têm-se distinguindo três espécies de união de contratos:
a)-união extrínseca ou externa que ocorre quando a ligação entre os diversos contratos  resulta apenas da circunstância de serem celebrados ao mesmo tempo , não estabelecendo as partes qualquer nexo de dependência entre os contratos.
b)-A união interna ou com dependência em que as partes querem a pluralidade de contratos como um todo, um conjunto económico pelo que a validade e a vigência de um ou de ambos os contratos dependerá da validade e vigência do outro.
c)- União alternativa em que as partes prendem ou um ou outro contrato, consoante ocorrer ou não a verificação de determinada condição – cf. Menezes Leitão,  Direito das Obrigações, I Vol., Almedina, 2000, pp. 188/189; Galvão Teles, Manual dos contratos em geral, Refundido e Atualizado, Coimbra Editora, 2002, pp. 475-477, Romano Martinez,  Direito das Obrigações, Apontamentos, AAFDL, 2003, p. 145, Gravato Morais, União de contratos de crédito e de venda para consumo, Almedina, 2004, pp. 387-395.

A coligação é funcional quando o destino dos  contratos está ligado no desenvolvimento e funcionamento das respetivas relações.

Note-se que para haver união de contratos não se torna necessária a identidade de sujeitos. Entende R. Martinez,  Op. Cit., p. 146, que o que é imprescindível é a existência de um sujeito comum aos dois negócios jurídicos, ou seja , parte em um e outro contrato.

No caso em apreço estamos perante uma coligação funcional, interna com dependência bilateral (cf. Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed., p. 465) porquanto o contrato de prestação de serviços e o contrato de mediação imobiliária estão dependentes um do outro: a Ré ficou em condições de obter um comprador elegível para o imóvel em resultado da prestação de serviços da autora; e o pagamento dos serviços da autora decorre da partilha da comissão convencionada pela Ré com os proprietários alienantes.

No que tange ao pagamento da comissão, conforme já foi visto supra, nos termos do Artigo 19º, nº1, do Decreto-lei nº 15/2013, o nascimento da obrigação de remunerar o mediador imobiliário só nasceu com a celebração do contrato de compra e venda, em 7.3.2019. Nesse momento, a obrigação de pagamento da comissão tornou-se exigível. Ou seja, a partir desse momento, a ré ficou habilitada a exigir ao proprietário alienante o pagamento da comissão acordada.

No entanto, não há que confundir exigibilidade com ação direta (artigo 336º do Código Civil) e autotutela, sabendo-se que a ninguém é licito o recurso à força com o fim de realizar ou assegurar o próprio direito, salvo nos casos e dentro dos limites da lei (Artigo  1º do Código de Processo Civil), cabendo ao credor – em caso de incumprimento do devedor, no caso, dos proprietários alienantes – exigir judicialmente o cumprimento da obrigação/(comissão (cf. Artigo  817º do Código Civil).

Neste sentido, não se acompanha o raciocínio da Autora quando, em suma, faz assentar a sua tese principal neste processo na ideia de que cabia à Ré, necessariamente e de forma expedita, cobrar a comissão no próprio ato da escritura.

Há que distinguir as situações. Poderá ocorrer uma prática do comércio jurídico no sentido de que, havendo mediação imobiliária, é recorrente que o pagamento da comissão seja feito logo aquando do nascimento dessa obrigação, aquando da escritura de compra e venda. Mas tal procedimento, desejável e simplificador, não constitui uma emanação legal do regime do Artigo 19º, nº1, do Decreto-lei nº 15/2013. A lei não confere ao mediador imobiliário poderes coercivos para, de imediato, obter o pagamento da sua comissão.

A posição da autora radica, erradamente, numa conceção que atribui tais poderes coercivos à Ré ou, em alternativa, parte do pressuposto de que a Ré se constituiu como garante da obrigação do pagamento da comissão, o que não faz qualquer sentido nem colhe respaldo nos factos provados.

À semelhança do que ocorre em qualquer contrato de compra e venda e muitos outros, o mediador imobiliário está sujeito a que o proprietário alienante entre em mora ou incumprimento definitivo no que tange à sua obrigação de pagamento da comissão. O contrato de mediação não tem, sob este enfoque, qualquer particularidade relevante.

Assim, a ré – na economia da união interna de contratos com dependência bilateral- só está investida na obrigação de partilhar a comissão com a autora no pressuposto de alcançar o seu pagamento por parte do proprietário alienante. Dito de outra forma, a obrigação de pagamento da Ré perante a autora só se torna exigível aquando do pagamento da comissão pelo alienante, o que ainda não ocorreu.

Termos em que improcede a apelação.

A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).


DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).



Lisboa, 27.9.2022



Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
                                    


[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana LuísaGeraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).
[3]Cf.: Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 24.4.2012, Beça Pereira, 219/10, de 14.1.2014, Henrique Antunes, 6628/10, de 27.5.2014, Moreira do Carmo, 1024/12; Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3.10.2019, Paulo Reis, 582/17; Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23.1.2020, Tomé Gomes, ECLI:PT:STJ:2020:4172.16.4T8FNC.L1.S1., de 24.9.2020, Graça Trigo, 127.16, ECLI, de 19.5.2021, Júlio Gomes, 1429/18, de 14.7.2021, Fernando Baptista, 65/18; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 14.7.2020, Rita Romeira, 1429/18, de 12.4.2021, Eusébio Almeida, 6775/19.