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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
AGRAVANTE QUALIFICATIVA
Sumário
I – As previsões expressas constantes do n.º 1 alínea d) – «que com ele coabite» – e do n.º 2 alínea a) do artigo 152º. do CP – «praticar o facto no domicílio comum» – não são idênticas, nem exatamente sobreponíveis. II – O que o legislador quis valorar na previsão do crime de violência doméstica, na sua forma simples, constante da alínea d) do n.º 1, foi a existência da relação de coabitação, que, por si só, torna mais propícia a dependência económica e as fragilidades da vítima perante o agressor, mas que não consome o juízo de agravação das condutas resultante da circunstância de as mesmas ocorrerem no interior do domicílio, pelo que a violência doméstica praticada sobre pessoa particularmente indefesa que coabite com o agressor é mais grave se os factos que a integram forem praticados no interior do domicílio comum, devendo subsumir-se à agravação prevista no n.º 2, alínea a) do artigo 152.º do CP.
Texto Integral
Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.
Nos presentes autos de processo comum com intervenção do Tribunal Singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de Olhão - Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, com o n.º 820/19.2PAOLH.E1, foi o arguido AA, nascido em .../.../1974, filho de BB e de CC, natural da freguesia e concelho ..., solteiro, ..., residente no ..., condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da sua progenitora, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 al. d) do Código Penal[1], da seguinte forma:
- Na pena principal de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, acompanhada de regime de prova (a cumprir de acordo com o plano de reinserção a elaborar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais) e com subordinação à condição de o arguido ser sujeito a um acompanhamento médico-psiquiátrico (frequência de consultas de psiquiatria e sujeição a eventual tratamento para a dependência e a qualquer outro que venha a revelar-se medicamente adequado, a desenvolver em coordenação com a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais).
- Na pena acessória de frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), desenvolvido e coordenado pela DGRSP;
- A pagar à vítima uma indemnização de € 180 (cento e oitenta euros) até ao final do período da suspensão.
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Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever: “1. O Ministério Público concorda com a factualidade dada como provada e não provada, mas discorda da não aplicação do n.º 2, alínea a), do artigo 152.º, do Código Penal, por entender que os factos assentes e a prova em que o Tribunal se apoia, a serem correctamente valorados, impõem a condenação do arguido pela prática deste ilícito na forma agravada. 2. No caso em apreço, ficou assente que o arguido e a ofendida são filho e mãe, respetivamente, existindo uma relação de filiação entre ambos; que o arguido tem actualmente 47 anos e a ofendida tem 76 anos; o arguido e a ofendida vivem ambos na mesma casa (coabitação); a ofendida é uma pessoa especialmente indefesa, dada a idade avançada da mesma e o seu estado de vitimização que nem sequer é capaz de perceber que merece ser melhor tratada, desculpando todos os comportamentos do arguido, como se a culpa não fosse dele, encontrando-se, por medo, amor e baixa auto-estima, além da sua idade, numa situação de especial incapacidade de se defender e num estado de desespero e desamparo, que a torna uma pessoa especialmente vulnerável; que em mais de três anos (2019-2021), de forma reiterada, o arguido exigiu à ofendida que lhe desse o dinheiro da sua reforma, única forma de sustento do agregado, ao ponto de fazer a ofendida passar fome ou não ter como ir comprar comida, passando a vergonha de ter de pedir fiado nas lojas porque a sua pensão era gasta pelo arguido; que a ofendida dorme no chão de sua casa, num colchão, quando o arguido dorme na única cama existente, tendo partido toda a restante mobília; que o arguido quando é contrariado pela ofendida, cospe-lhe na cara, deita comida pelo chão, anda em trajes menores pela casa e destrói a casa, que já quase não tem mobílias, e insulta-a, além de aterrorizar com as suas alucinações. 3. Diante deste quadro factual, é incontroverso que a conduta do arguido se enquadra na alínea a), do n.º 2, do artigo 152.º, do Código Penal, na medida em que resultou provado que o arguido e a ofendida residiam na mesma casa, pelo que o Tribunal a quo deveria ter aplicado a agravação prevista neste preceito. 4. Ao agir como se descreve nos factos provados, o arguido fez com que a ofendida se sentisse constrangida e humilhada, bem sabendo que as expressões que lhe dirigiu e a forma como a abordou nas situações descritas eram aptas a provocar-lhe receio de vir a sofrer algum mal, não obstante saber que ela não era capaz de defender-se nem de reagir contra tais tratamentos, sendo certo que sobre si recaía o dever de a tratar com respeito e consideração, atentos os laços que os uniam. 5. Os factos dados como provados não deixam dúvidas relativamente à relação de filiação entre o arguido e a ofendida e ao modo de vida em comum. 6. Ao agir da forma descrita, bem sabendo que molestava psicologicamente a ofendida, com quem sempre viveu, bem como conhecedor de que com a sua conduta atentava contra a dignidade desta e de que os seus comportamentos eram ilícitos e criminalmente puníveis, o arguido actuou com dolo e com dolo directo. 7. A aplicação da agravação do limite mínimo da moldura penal consagrado na alínea a), do n.º 2, do artigo 152.º, do Código Penal, na parte que interessa ao nosso caso, decorre do facto do arguido ter agido da forma descrita dentro do “domicílio comum” ou “domicílio da vítima”. 8. Não podemos olvidar que o propósito do legislador foi o de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica oculta, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas (cfr. Teresa Pizarro Beleza, “Violência Doméstica”, in Revista do CEJ n.º 9, pág. 289 e op. cit., pág. 406). 9. Por conseguinte, a nosso ver, como o arguido e a ofendida coabitavam no mesmo espaço, o Tribunal a quo deveria ter aplicado a agravação prevista na alínea a), do n.º 2, do artigo 152.º, do Código Penal. 10. Em face do exposto, e considerando a factualidade provada, o arguido cometeu o crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a), do Código Penal. 11. Da conjugação dos artigos 40.º, n.ºs 1e 2, e 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal decorre que na operação de escolha da pena e de graduação da pena o julgador deve atender à culpa e às exigências de prevenção, geral e especial, bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente. 12. No caso dos autos, devem ser sopesados: o grau de ilicitude dos factos que se afigura elevado, a intensidade do dolo, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, a situação pessoal do arguido que resulta das suas declarações, a conduta anterior ao facto e posterior a este, a ausência de antecedentes criminais, as exigências de prevenção geral, traduzida na necessidade de manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das normas violadas, são elevadas atento o facto do crime de violência doméstica ser sentido pela comunidade como sinal de desprezo pela dignidade humana, um dos valores mais preciosos; as exigências de prevenção especial, as quais assumem menor relevância uma vez que o arguido é primário. 13. Assim, consideramos adequado e suficiente aplicar ao arguido a pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova assente num plano de reinserção social, elaborado e executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, e subordinada à condição de o arguido ser sujeito a um acompanhamento médico-psiquiátrico (frequentar consultas de psiquiatria e sujeitar-se a eventual tratamento para a dependência e qualquer outro que venha a revelar-se medicamente adequado, a desenvolver em coordenação com a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais).”
Termina pedindo a revogação parcial da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, al. a) do Código Penal na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
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O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, tenho o arguido sido notificado da sua admissão, não apresentou qualquer resposta no prazo legal.
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O Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, nada tendo o arguido respondido.
Procedeu-se a exame preliminar.
Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – Fundamentação. II.I Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP e atendendo à Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.
No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a apreciar e a decidir, a saber: A) - Apreciar se a factualidade considerada provada deveria ter sido subsumida à agravação constante do n.º 2, al. a) do 152.ºdo Código Penal e, consequentemente, se o arguido deveria ter sido condenado pela prática docrime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, al. a), do Código Penal. B) - Caso se conclua pela agravação, reapreciar a medida concreta da pena.
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II.II - A decisão recorrida.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que deu como provados e não provados, com relevo para a apreciação da situação do arguido recorrente, os seguintes factos: “II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO FACTOS PROVADOS Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa, atentas as várias soluções jurídicas pertinentes, resultaram assentes os seguintes factos constantes da acusação pública: 1. O arguido está registado como filho da ofendida CC (nascida a .../.../1946), com quem reside desde sempre, no ..., em .... 2. O arguido é consumidor de produtos estupefacientes há mais de 20 anos e consome diariamente bebidas alcoólicas em excesso, apresentando atualmente um estado de saúde muito débil com doença hepática crónica, infeção VHC, hábitos etanólicos, alucinose alcoólica, síndrome de abstinência e hábitos toxicófilos. 3. O arguido não trabalha desde agosto de 2019, nem aufere qualquer subsídio ou prestação social, dependendo assim da pensão de reforma da sua progenitora, que ascende a valor não inferior a € 457, para se alimentar, vestir, comprar produto estupefaciente, álcool e tabaco. 4. Desde o dia 11 de setembro de 2019 e até à presente data, o arguido dirigiu mais do que uma vez à ofendida CC, diariamente e no interior da residência de ambos, as expressões “cabra”, “vaca”, “filha da puta”, “bruxa”, “vai para a rotunda, vai ter com os velhos”. 5. Quanto o arguido está sob o efeito do álcool e das drogas, tem alucinações, diz que vê espíritos, dizendo à ofendida que vão acontecer coisas terríveis, provocando nesta medos e terrores, ao ponto de não a deixar dormir durante a noite, acordando-a frequentemente, para lhe perguntar se está a ver os espíritos ou então porque lhe quer contar os sonhos dele. 6. Como a reforma da ofendida é insuficiente para sustentar os vícios do arguido, desde setembro de 2019 que esta fica sem dinheiro para comer quase todos os meses e, para não passar fome, pede nas lojas para lhe venderem fiado, com a promessa de pagar a conta no mês seguinte, quando voltar a receber a pensão. 7. A casa onde vivem o arguido e a ofendida foi atribuída a esta última pela Câmara Municipal ... e foi mobilada com a ajuda da Ação Social da Câmara. 8. O Arguido desfere murros nas portas na habitação comum, destruiu maçanetas e tem por hábito agarrar em objetos que estão no interior da habitação e parti-los, tanto que a residência comum já não tem quase mobílias, que foram destruídas pelo arguido. 9. A única coisa que ainda subsiste é a cama da ofendida, mas o arguido dorme nesta cama, obrigando a ofendida a dormir num colchão no chão, ao seu lado. 10. Desde o início do mês de abril de 2021 e até à presente data, com frequência quase diária, o arguido pede dinheiro à progenitora para comprar drogas, álcool e/ou tabaco, mas como a ofendida algumas vezes se recusar a dar-lhe dinheiro, o arguido, com a intenção de fazer a ofendida mudar de ideias e dar-lhe dinheiro: 10.i) Cuspia-lhe para a cara; 10.ii) Deita comida no lixo ou espalha-a pelo chão; 10.iii) Anda em trajes menores pela casa; 10.iv) Dorme na cama da ofendida, não lhe dando alternativa que não seja a de dormir num colchão no chão. 11. Quando o dinheiro da reforma da ofendida acaba – o que acontece todos os meses e logo no início da quinzena, atendendo a que o arguido lhe pede 20 euros diariamente – a ofendida recorre às vizinhas para a ajudarem a matar a fome. 12. A ofendida recebe cabazes alimentares da ACASO uma vez por mês e num mês não concretamente apurado, mas no ano de 2021, o arguido abriu o cabaz que a ofendida tinha recebido e espalhou a comida toda pelo chão da casa. 13. No dia 26 de julho de 2021 o arguido foi internado no ... na ala da psiquiatria, acompanhado por agentes de autoridade, por estar agressivo e com alucinações, tendo tido alta médica a 11 de agosto de 2021. 14. O arguido fica por vezes deitado no chão de casa inanimado, atualmente já não sai de casa e exige à progenitora que lhe vá comprar vinho, tabaco e comida, pedidos que a ofendida acata por medo e por ser o seu filho a pedir-lhe. 15. A ofendida tem medo do arguido, sofre, chora, ficou mais magra de há uns anos para cá e vê-se numa situação sem solução, pois é incapaz de expulsar o arguido de casa, abrindo-lhe a porta sempre que ele aparece. 16. O arguido, quando praticou os factos descritos, agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que causava sofrimento psicológico e físico à progenitora, que sabe ser pessoa de idade e que com ele vive na mesma casa, lesando, com a sua conduta, a integridade física de CC e que causava sofrimento psíquico e emocional à ofendida, bem como medo e inquietação, perturbando o seu bem-estar no interior do lar. 17. Além do mais, e apesar do seu estado de saúde débil, o arguido tinha consciência que humilhava a sua mãe com estes comportamentos, que lhe ofendia a honra e consideração, a fazia recear a presença do seu próprio filho, condicionando a liberdade de movimentos, a decisão e a gestão financeira da vítima CC, com gravidade e intensidade crescentes. 18. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Mais se apurou com relevância que: 19. O arguido é primário. 20. O arguido não tem filhos, nem companheira. 21. Exerceu atividade profissional de ...- 22. Foi às urgências do ... no passado dia 07.03.2022 com ideação suicida, dizendo que se quer tratar na sequência deste processo-crime. 23. Enquanto habilitações literárias tem o 5.º ano de escolaridade.
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FACTOS NÃO PROVADOS Com relevância para a decisão a proferir, não se provou da factualidade da acusação pública, que: A) Que o arguido alguma vez tenha chamado a ofendida de “coirão”, nem “és a maior puta de ...” ou que lhe tenha dito para ir “para o caralho” ou que se morresse a levaria com ele, nem a que hora do dia tais nomes foram verbalizados, nem se foi de madrugada quando a ofendida estava a dormir. B) Que o arguido, durante esse período temporal de setembro de 2019 até à presente data, acordasse a ofendida durante a noite e de madrugada, perturbando o seu descanso, para lhe exigir dinheiro, ao mesmo tempo que lhe levantava o punho fechado no ar, dando a entender que lhe ia dar um soco, que lhe ia bater se esta não lhe desse o dinheiro que o arguido queria para ir comprar drogas, álcool e tabaco, nem que empurrasse a ofendida. C) Que a ofendida, com medo que o arguido lhe batesse ou até que a matasse, tenha pedido dinheiro emprestado à vizinha da frente (do ....), para dar ao arguido. D) Que no dia 08-04-2021, pelas 20h00, no interior da residência comum, o arguido se tenha dirigido à ofendida exigindo-lhe dinheiro, e mediante a negação da sua demanda, tendo-lhe explicado a ofendida que precisava do dinheiro para comprar comida e pagar as despesas da casa, o arguido tenha levantado a mão no ar, na direção da ofendida, dando a entender que lhe ia bater dizendo-lhe “as putas não comem para não cagar”. E) Que fosse no dia específico de 08 de abril de 2021 a ofendida tenha passado fome, por ter dado ao arguido o dinheiro que tinha com medo que ele lhe batesse ou destruísse mais coisas em casa. F) Que o arguido se tenha dirigido ao frigorífico, agarrado na pouca comida que a ofendida lá tinha e tivesse deitado tudo no lixo para a obrigar a dar-lhe dinheiro. G) Que no dia 15 de abril de 2021, pelas 11h45, no interior do domicílio comum, o arguido se tenha dirigido à ofendida exigindo-lhe dinheiro, e quando a mesma lhe disse que não lhe dava porque não tinha, o arguido tenha levantado a mão no ar, na direção da ofendida, dando a entender que lhe ia bater, ao mesmo tempo que lhe cuspiu para a cara, e lhe dirigiu as seguintes palavras: “cabra, “vaca”, “coirão”, “Filha da puta”, “puta nojenta”, nem que lhe tenha dito que só saia de casa pendurado numa corda. H) Que por referência ao facto provado 10 o arguido tenha despejado pacotes de vinho em cima da ofendida ou que tenha agarrado na panela que estava em cima do fogão e tenha deitado tudo fora ou pela janela, nem que impeça a ofendida de tomar banho ou utilizar a casa de banho. I) Que tenham sido concretamente café quente e pão que a vizinha que ajudou a ofendida lhe tenha dado, nem que o arguido impeça a ofendida sua mãe de receber ajuda das vizinhas. J) Quais as expressões que o arguido verbalizou quando foi admitido no ... a 26.07.2021. K) Que o Arguido tenha convivido com um gato morto dentro de casa e tenha continuado a alimentá-lo ou a dar-lhe água mesmo depois de morto, impedindo a sua mãe e ofendida de se livrar do corpo do animal. L) Que desde setembro de 2021 a situação do arguido se tenha agravado por este ter voltado a consumir drogas duras e a quantidade de litros de vinho que o arguido bebe por dia.”
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II.III - Apreciação do mérito do recurso. A) Da agravação constante do n.º 2, al. a) do 152.ºdo Código Penal e da subsunção dos factos provados ao crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, al. a) do Código Penal.
Atentemos, antes de mais, na redação da norma penal que prevê e pune o crime de violência doméstica pelo qual o arguido foi condenado. Trata-se do artigo 152º do CP, que preceitua da seguinte forma:
“Artigo 152.º Violência doméstica
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos.”
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A criminalização, pelo legislador, do crime consubstanciado na inflição de maus tratos a outras pessoas com quem o arguido mantenha relações familiares ou afetivas ou que com o mesmo coabitem é o resultado da progressiva consciencialização da gravidade de tal tipo de condutas, fenómeno que passou a denominar-se de violência doméstica, tendo-se procurado conferir dignidade penal e proteção jurídica a uma série de comportamentos que adquirem gravidade individual e social por via do ambiente onde ocorrem: no seio das relações familiares, afetivas e/ou de coabitação.
Quanto ao bem jurídico tutelado, a dupla integração na sistemática do Código Penal, nos crimes contra as pessoas (Título I do Livro II) e nos crimes contra a integridade física (Capítulo III do Livro II do Título I), poderia indicar a tutela da integridade física, ainda que de forma agravada. Esta interpretação, consensualmente tida por redutora, tem vindo a ser afastada pela doutrina, que tem assinalado uma ratio própria e autónoma ao tipo criminal de violência doméstica. Neste sentido, tem vindo a ser defendido que a “ratio do tipo não está na proteção da comunidade familiar conjugal, mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana [pelo que] deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental (…) afetado por uma multiplicidade de comportamentos”[2].
Encontra-se, pois, sedimentado o entendimento de que o bem jurídico protegido pelo crime em referência é a saúde, um bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal.[3]
O tipo objetivo de ilícito pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação com o sujeito passivo dos comportamentos, tratando-se de um crime específico[4] impróprio[5], precisamente porque é esse contexto relacional que confere autonomia a condutas tipificadas noutros tipos criminais. A vítima, será a pessoa que se encontre, para com o agente, numa relação de subordinação existencial, própria, entre outras situações, das relações de coabitação. As condutas podem ser de várias espécies: maus-tratos físicos (ofensas corporais simples), maus-tratos psíquicos (humilhações, provocações, ameaças não configuradoras em si do crime de ameaça), tratamento cruel ou desumano.
Quanto ao tipo subjetivo, previsto na forma dolosa, nos seus elementos intelectual e volitivo, necessário é que o agente conheça, saiba, represente corretamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenchem o tipo de ilícito objetivo (artigo 16º do C.P.), perfetibilizando uma correta e voluntária orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico da ação e para o seu carácter ilícito.
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No caso dos autos, ao arguido foi condenado pela prática do crime de violência doméstica praticado sobre a sua mãe com quem coabitava, tendo a sua conduta sido subsumida ao disposto no artigo 152.º, n.º 1, al. d) do Código Penal. A questão que é objeto do presente recurso cinge-se à discordância do Ministério Público, que assume a qualidade de recorrente, relativamente à não subsunção dos factos à agravação constante da alínea a) do nº 2 do artigo 152º do CP e que se traduz na circunstância de aqueles terem sido praticados no domicílio comum do agressor e da vítima.
Vejamos se lhe assiste razão.
O tipo da condenação pune “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:(…) d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;(…)”
Resulta evidente da análise da factualidade tida por provada que a conduta do arguido configura a prática de maus tratos, essencialmente psíquicos, uma vez que se consubstanciou em atos de expressão violenta, em insultos, em ameaças e coações, praticados de forma reiterada, que atingiram fortemente a saúde da vítima. Certo é ainda que o que permite afirmar a tipicidade dos comportamentos do arguido é a verificação cumulativa de duas as circunstâncias:
a) A de os mesmos terem tido como vítima a mãe do arguido com mais de 73 anos, que não pode deixar de ser tida como “pessoa particularmente indefesa” “em razão da idade”;
b) A de o arguido e a vítima coabitarem.
Assim o impõe a redação da alínea d) do nº 1 do artigo 152º do CP: “d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite”.[6]
Pese embora a imagem global dos factos assumisse sempre contornos de extrema gravidade, independentemente da existência ou não de coabitação entre o agressor e a vítima, a verdade é que o tipo de crime em apreciação faz depender a sua verificação da existência de tal circunstância.
A questão que deve colocar-se para apreciação do presente recurso é a de saber se a qualificativa agravante constante do nº 2, alínea a) do artigo 152º do CP – “2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto (…) no domicílio comum ou no domicílio da vítima;”– equivale à previsão da coabitação exigida pelo nº 1, alínea d) de tal preceito. Assim entendeu o Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação quando no seu douto parecer referiu que “(…) O tipo de crime p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1. alínea d), no qual, na sentença recorrida, foi subsumida a conduta do arguido, exige como elemento típico objetivo a coabitação. O ambiente facilitador da agressão por via da coabitação é o exato fundamento da agravação do juízo de censurabilidade que justifica a valoração global da conduta criminosa que na sentença se destacou nos factos provados 16 e 17, pois que no caso dos adultos-idosos dependentes ou especialmente vulneráveis é exatamente esse contexto, que deveria ser de proteção e cuidado, que agrava a censurabilidade da conduta do agente agressor, por evidente desigualdade em relação à dependência ou vulnerabilidade da vítima. Posto isto, não tem que acrescer a agravação do n.º 2, alínea a) o mesmo artigo quando já esse juízo de qualificação da conduta como violência doméstica está contido no n.º 1 alínea d) do mesmo artigo, pois coabitar é residir no domicílio comum e agravar a conduta pela valoração do mesmo elemento típico e qualificativo da violência doméstica é entrar no campo da proibição da dupla agravação.(…)”
Não nos parece, porém, que a reposta à questão que acima enunciámos encontre resposta tão linear na redação das normas transcritas. De facto, as previsões expressas constantes do nº 1 alínea d) – “que com ele coabite”– e do nº 2 alínea a) do artigo 152º do CP – “praticar o facto no domicílio comum” – não são idênticas, nem exatamente sobreponíveis. Com vista a ilustrarmos as diferenças entre as referidas previsões, podemos equacionar uma situação semelhante à dos presentes autos em que os maus tratos houvessem sido infligidos à vítima, que com o arguido coabitasse, não no interior do domicílio comum, mas na via pública ou em qualquer outro local. Subsumir-se-ia tal situação ao tipo legal pelo qual o arguido foi condenado? Não temos dúvidas que sim, mas sem a agravação constante do nº 2, alínea a), precisamente porque o crime não teria sido praticado no domicílio comum.
A nosso ver, o que o legislador quis valorar na previsão do crime na sua forma simples constante da alínea d) do nº 1 foi a existência da relação de coabitação, que, por si só, torna mais propícia a dependência económica e as fragilidades da vítima perante o agressor, mas que não consome o juízo de agravação das condutas resultante da circunstância de as mesmas terem ocorrido no interior do domicílio.
Dito de outro modo, a violência doméstica praticada sobre pessoa particularmente indefesa que coabite com o agressor é mais grave se os factos que a integram forem praticados no interior do domicílio comum, pelo que deverá subsumir-se à agravação prevista no nº 2, alínea a) do artigo 152º do CP. À semelhança, aliás, do que sucede com a violência doméstica praticada sobre cônjuges, ex-cônjuges, namorados ou unidos de facto que coabitem com o agressor, sendo que o que difere, entre estas situações (previstas nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 152º do CP) e a situação dos autos (prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 152º do CP) é que, naquelas, o legislador quis alargar a previsão do crime na sua forma simples também às situações em que inexiste coabitação e, nesta última, estabeleceu a coabitação como elemento da tipicidade objetiva. Porém, todos os casos previstos no nº 1 serão mais gravemente punidos se se verificar uma das circunstâncias agravantes estabelecidas pelo nº 2 do referido preceito legal.
Não subscrevemos, pois, o teor do parecer do Exmº. Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação quando refere que o “juízo de qualificação da conduta como violência doméstica está contido no n.º 1 alínea d) do mesmo artigo, pois coabitar é residir no domicílio comum e agravar a conduta pela valoração do mesmo elemento típico e qualificativo da violência doméstica é entrar no campo da proibição da dupla agravação”, pois que a agravação constante da alínea a) do nº 2 do artigo 152º não consiste em “residir no mesmo domicílio” - que, de facto significa o mesmo que coabitar - mas em “praticar o facto no domicílio comum”, circunstância que se afere após a verificação da existência de coabitação e cujo juízo valorativo faz agravar a ilicitude do crime. Tal como vem sendo entendido na doutrina e na jurisprudência nacionais, a proibição da dupla valoração apenas ocorre quando as circunstâncias agravantes correspondam a uma mesma dimensão da ilicitude ou da culpa[7], o que não sucede na situação dos autos.
Não estamos, assim, em nosso entender, e com o devido respeito por opinião diversa, perante a proibição da dupla valoração da mesma circunstância, não podendo confundir-se a descrição típica do ilícito penal e os fundamentos da incriminação com a motivação do legislador para a agravação. No caso em análise, a agravação decorrente da circunstância prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 152º do CP pressupõe que os maus tratos infligidos no quadro relacional típico – arguido coabitante com a vítima particularmente indefesa – e praticados no domicílio comum, constituem, em regra, situações mais desvaliosas por se entender que em tais circunstâncias a vítima se encontra ainda mais desprotegida, já que tudo se passa na intimidade do lar, local subtraído aos olhares e à ajuda de terceiros, o que, nos últimos tempos, tem legitimado a consideração, por parte de alguns autores, de que o domicílio é um dos lugares mais perigosos das sociedades modernas[8][9].
Uma última nota para referir que não procede, de todo, a fundamentação constante da sentença recorrida para excluir a agravação do tipo legal. De facto, a este propósito, ali apenas se consignou que “(…) É de salientar que a prática do crime de violência doméstica por banda do arguido em relação à ofendida, sua mãe, se consolidou na sua versão simples, porquanto não se entende que a imagem global dos factos imponha a aplicação da agravante que consagra o artigo 152.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal.(…).Ora, ao contrário do que se pressupõe em tal fundamentação, a subsunção dos factos às agravações do nº 2 do artigo 152º do CP não demanda qualquer apreciação da “imagem global dos factos”, bastando-se com a verificação de um dos circunstancialismos agravantes consignados nas várias alíneas de tal preceito[10], o que, no caso dos autos, como já vimos, se verifica.
B) Da determinação concreta da pena
O recorrente põe em causa a pena aplicada no que diz respeito à sua medida concreta, o que faz, naturalmente, na sequência do pedido de agravação do crime da condenação, nos termos acima explicitados.
Pela prática do crime de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 al. a) do Código Penal, a sentença recorrida optou pela aplicação ao arguido da pena principal de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos.
Sobre a matéria da determinação das medidas das penas que agora nos ocupa, discorreu a sentença recorrida nos seguintes termos: “(…)4.2DA MEDIDA CONCRETA DA PENA (ESPÉCIE): A determinação da medida concreta da pena, encontrada dentro dos limites abstratos, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial. Os critérios concedidos pelo legislador para a escolha e determinação da medida da pena encontram-se ainda nos artigos 70.º e 71.º do Código Penal e é com base nestes que o Tribunal tem de determinar, considerando a moldura penal abstrata aplicável aos factos dados como provados no processo, a espécie e o quantum concreto da pena em que a arguida deve ser condenada. Havendo alternatividade estabelecida pelo legislador na moldura penal abstrata entre penas de prisão e multa, há que atender ao que dispõe o artigo 70.º do Código Penal quando determina que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Inexistindo esta alternatividade no crime em causa, a escolha da pena é a de prisão, sendo sempre privativa da liberdade a pena a aplicar, por só assim lograrem asseguradas as finalidades da punição (cf. artigo 40.º do Código Penal).
4.3DA MEDIDA CONCRETA DA PENA (QUANTUM): No que tange à medida concreta da pena, esta situa-se dentro da moldura penal fixada no tipo incriminador, encontrada em função da culpa do agente (que baliza o limite máximo da pena aplicável) e as expectativas comunitárias de tutela do bem jurídico (que ditam o limite mínimo da pena, abaixo do qual, ficaria afetada a crença na validade da norma e a confiança nas instituições jurídico-penais). Culpa e prevenção constituem, assim, o binómio com auxílio do qual será atribuída uma pena à arguida, justa e proporcional às necessidades que o caso concreto convoca. Analisando a culpa do agente, as exigências de prevenção especial e geral e, ainda, outros fatores que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido, considerou-se: GRAU DE CULPA/DOLO: situado no patamar mais elevado, a atuação do Arguido foi levada a cabo com dolo direto, sendo, por isso, a sua culpa intensa – milita contra o arguido na ponderação global da medida da pena. GRAU DE ILICITUDE: a conduta do Arguido revela-se, por um lado, grosseira quando à forma como foi levada a cabo, não tendo sido utilizado nenhum meio especialmente ardiloso nem expressões particularmente malvadas para atacar a ofendida, sendo ainda de ponderar a amplitude da atuação, não obstante – favorece o arguido na ponderação global da medida da pena. CONDUTA ANTERIOR/POSTERIOR AOS FACTOS: à data dos factos o arguido era consumidor de estupefaciente e álcool numa base diária, o que se compagina como uma doença, não obstante, nada nos autos demostra que o arguido alguma vez tenha tentado tratar-se, só o tendo feito no passado dia 07.03.2022 dirigindo-se às urgências, dizendo se quer tratar por causa da existência deste julgamento [FP 22], não tendo demonstrado arrependimento sincero a respeito da ofendida, antes justificando o seu comportamento como se a culpa não fosse sua. Quanto aos sentimentos manifestados no cometimento do crime ou vontade criminosa, na vertente de posição do agente face à própria ordem jurídica, revelam-se elevados, atendendo ao facto de o Arguido compreender totalmente o desvalor da sua conduta e ainda assim apresentar uma postura de vitimização, não consciencializando a incorreção do seu comportamento – milita contra o arguido na ponderação global da medida da pena. CONDIÇÕES PESSOAIS E SITUAÇÃO SOCIOECONÓMICA: o arguido não trabalha desde 2019, mas o estado de saúde também se tem vindo a deteriorar, estando agora com uma saúde muito frágil, é toxicodependente e alcoólico, além de ter problemas psicológicos e alucinações, não tendo sofrido condenações no passado de 47 anos – favorece-o na ponderação global da medida da pena. Em termos de PREVENÇÃO GERAL E ESPECIAL: as exigências de prevenção geral são elevadas, atendendo à frequência com que este tipo de crime é praticado e o alarme social que provoca, no que concerne às exigências de prevenção especial, as mesmas são moderadas, considerando, para tanto, que o arguido não tem antecedentes criminais, contudo, a sua personalidade e sistema de crenças são desajustadas da realidade. Assim, sopesando todos os elementos elencados, tendo em conta o limite máximo imposto pela culpa, que se encontra assegurado e a moldura abstrata do tipo de crime em causa, tem-se por adequada e proporcional a aplicação de uma pena de 1 ANO E 6 MESES ANO DE PRISÃO pela prática de 1 CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PESSOA DA SUA PROGENITORA CC.
4.4PONDERAÇÃO DA SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO Face ao que se deixou vertido supra, e tendo-se determinado a escolha concreta de uma pena de prisão, haverá que verificar se ela pode/deve ser objeto de substituição, em sentido próprio ou impróprio, e determinar a sua medida. Esta operação de ponderação da substituição da pena aplicada não traduz um poder discricionário, antes um poder vinculado cometido ao Tribunal, também submetido ao dever de fundamentação e, sobretudo, determinado por finalidades exclusivamente preventivas (necessidade da pena). Resulta da leitura do Código Penal que é notória a intenção do legislador de evitar a execução de penas de prisão de curta duração, o que bem se compreende face ao efeito estigmatizante que o cumprimento de uma pena de prisão pode acarretar para um condenado, podendo mesmo ter o efeito contrário à pretensão de reintegração do agente que subjaz à aplicação de qualquer pena. Por conseguinte, atendendo à pena concretamente aplicada ao Arguido, poderá ponderar-se a sua comutação por TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO que tem como vocação o trabalho gratuito cumprido em liberdade e pressupõe a prévia determinação da medida da pena de prisão a substituir em moldura concreta não superior a 2 anos (artigo 58.º do Código Penal); pela SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO, cujo pressuposto formal é a existência de uma medida concreta da pena aplicada não superior a 5 anos e o pressuposto material é a existência de um juízo de prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, a convicção de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, e, por fim, a possibilidade de cumprimento da pena de prisão concretamente aplicada em REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO (pena de substituição em sentido impróprio). Tendo em conta que as penas substitutivas pressupõem uma possibilidade de regresso à prisão principal, condicionando-se o seu cumprimento particularmente ao não cometimento de novos crimes e impendendo sobre o arguido a ameaça da prisão até à extinção daquela, é ancorando a decisão a critérios de exclusiva necessidade da pena (e já não a critérios de conveniência ou da maior adequação da pena que se elevam na escolha da pena principal), que subjaz à escolha da pena substitutiva. Considerando o caso vertente, entende-se que é de arredar a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, por se entender que não acautela suficientemente as finalidades da punição. Prevê o artigo 50.º do Código Penal que, “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Mas considerando a referida previsão legal e a medida concreta da pena em que o Arguido vai condenado nestes autos, admite-se formalmente a possibilidade da sua suspensão. A suspensão da execução da pena, uma medida de substituição automática, apenas deve ser aplicada nos casos em que o Tribunal considere, em face da personalidade do agente, das condições de vida, da conduta anterior e posterior ao crime, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão se bastam para afastar o agente do cometimento de novos factos ilícitos. O Arguido é primário, mas tem um percurso de vida complexo e sistema de crenças enraizado que lhe tolda os princípios basilares de como deve tratar a sua progenitora, estando entregue ao vício da droga e do álcool, sem que se tenha conhecimento de se ter submetido a quaisquer tratamentos. Não obstante, resulta que este arguido sofrendo a ameaça da execução da pena de prisão ganhará uma maior consciência, já demonstrada pela sua ida ao Hospital no dia 07.03.2022 [FP 22] e ver-se-á obrigado a afastar-se do caminho delituoso que tem seguido nos últimos três anos, dando indicação ao Tribunal de que continuará a importunar a sua mãe, ofendida. Assim sendo, e atendendo a todas estas circunstâncias, acredita o Tribunal que a mera ameaça do cumprimento de uma pena de prisão efetiva, é suficientemente dissuasora da reiteração de comportamentos ilícitos iguais ou parecidos com aqueles perpetrados nestes autos, motivo pelo qual, nos termos do artigo 50.º Código Penal, decide-se suspender a pena de prisão aplicada ao Arguido pelo período de 2 (dois) anos (cf. artigo 50.º, n.º 5 do Código Penal). Esta suspensão não poderá deixar de ser acompanhada de um regime de prova, por se considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade (cf. artigo 53.º do CP), significando isso que se procederá à elaboração de um plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, pelos serviços de reinserção social (DGRSP). A suspensão da execução da pena deverá estar também condicionada à frequência de consultas de psiquiatria e sujeição a eventual tratamento para a dependência, sem descurar o que venha a revelar-se medicamente adequado ao arguido, por se considerar de extrema utilidade para a reintegração do condenado na sociedade e este ter-se manifestado favoravelmente à possibilidade de ser tratado, conforme facto provado 22 (vide artigo 52.º, n.º 3 do CP).
4.5. DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONTACTOS COM A VÍTIMA E/OU OUTRA OBRIGAÇÃO Nos presentes autos, há ainda que ponderar da aplicação de uma pena acessória de proibição de contactos com a vítima ou qualquer outra que se entenda conveniente, nos termos do artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal. Decorre ainda do artigo 152.º, n.º 4, do Código Penal, que “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica”. No caso vertente e considerando que tanto o arguido como a ofendida pretendem continuar a manter uma relação familiar e a viver na mesma casa, a eventual proibição de contactos (aliás, já fixada em sede de medida de coação) revelar-se-á infrutífera, porque a própria ofendida abre a porta ao arguido, não sendo capaz de não ajudar o seu filho. Avançando e tendo em mente o caso concreto e a forma como os factos foram cometidos, não se antevê como necessária a aplicação de pena acessória neste âmbito. Não obstante, e atendendo às exigências de prevenção que no caso se fazem sentir, o Tribunal entende ainda adequado e proporcional que o condenado seja obrigado, a título de pena acessória, à frequência num Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), com vista a interiorizar absoluta e definitivamente todos os conteúdos que lá lhe foram transmitidos (cf. artigo 152.º, n.º 4 do CP).
4.6. DO ARBITRAMENTO DE INDEMNIZAÇÃO EM CASOS ESPECIAIS Quanto ao arbitramento de indemnização a que aludem o artigo 82.º-A, n.º 1 do Código de Processo Penal, o artigo 21.º, n.º 2 do Regime Jurídico da Violência Doméstica (Lei n.º 112/2009, de 16.09) e artigo 16.º, n.º 2 do Estatuto da Vítima (Lei n.º 130/2015, de 04.11), Decorre do artigo 82.º-A, n.º 1, do Código de Processo Penal, que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a titulo de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vitima o imponham”. Por seu turno, o artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, preceitua que “para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”. Considerando que a ofendida não se opôs ao recebimento desta indemnização e tratando-se a mesma de indemnização fixada oficiosamente pelo tribunal, sempre estará sujeita a critérios de equidade e conformada pelos factos constantes da acusação, em relação aos quais incide a produção de prova na audiência de discussão e julgamento. Considerando que a ofendida diz que o arguido atualmente lhe pede € 2 por dia para o vinho, entende-se adequado que este seja obrigado a pagar à ofendida, até ao final do período da suspensão (2 anos) uma indemnização de € 2, por dia, durante três meses, como forma de simbolicamente compreender o que é pedir dinheiro todos os dias a uma pessoa que já tem pouco. Assim, condena-se o arguido a pagar à vítima CC uma indemnização de € 180 (€ 2 por dia x 90 dias). (…).”
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A sentença recorrida contém a respeito da questão que nos ocupa uma fundamentação coerente, factual e racionalmente sustentada, que acima transcrevemos e com a qual concordamos, com exposição clara do processo motivacional do julgador no qual assentou a fixação da medida concreta da pena de prisão e a decisão de suspender a sua execução.
Neste contexto, a medida da pena fixada pelo tribunal “a quo”, dentro da moldura abstrata prevista para o crime na sua forma simples – pena de prisão de 1 a 5 anos – afigura-se-nos absolutamente ajustada à culpa do arguido, às exigências de prevenção geral e às necessidades de prevenção especial. Considerando a moldura abstrata legalmente prevista para tipo agravado ao qual, como vimos, deverá subsumir-se a conduta do arguido – pena de prisão de 2 a 5 anos – entendemos que, aplicando os mesmos critérios explicitados na sentença recorrida, se revela adequada e proporcional a fixação da pena de prisão em 2 anos e 4 meses, suspensa na sua execução por igual período, conforme propugnado pelo recorrente, mantendo-se em tudo mais o decidido quanto às penas na sentença sob recurso.
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Nesta conformidade, atendendo às considerações acima expostas, procede o recurso interposto pelo Ministério Público, pelo que se decidirá alterar a qualificação jurídica dos factos e, bem assim, a medida concreta da pena principal de prisão aplicada o arguido e o período de suspensão da sua execução.
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III- Dispositivo.
Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso, decidindo, consequentemente, alterar a sentença recorrida e condenar o arguido como autor de um crime de violência doméstica agravado, praticado na pessoa da sua progenitora, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 al. d) e nº 2, alínea a) do Código Penal nos seguintes termos:
- Na pena principal de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova (a cumprir de acordo com o plano de reinserção a elaborar pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais) e com subordinação à condição de o arguido ser sujeito a um acompanhamento médico-psiquiátrico (frequência de consultas de psiquiatria e sujeição a eventual tratamento para a dependência e a qualquer outro que venha a revelar-se medicamente adequado, a desenvolver em coordenação com a Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais).
- Na pena acessória de frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), desenvolvido e coordenado pela DGRSP;
- A pagar à vítima uma indemnização de € 180 (cento e oitenta euros) até ao final do período da suspensão.
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Sem custas.
(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelas signatárias)
Évora, 13 de setembro de 2022
Maria Clara Figueiredo
Fernanda Palma
Maria Margarida Bacelar
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[1] Tendo sido acusado prática de um crime de violência doméstica agravado, praticado na pessoa da sua progenitora, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1 al. d) e nº 2, alínea a) do Código Penal.
[2] ..., in Comentário Conimbricence ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2012, p. 512.
No mesmo sentido se pronunciou GG e HH no seu artigo sobre o crime de maus tratos conjugais, publicado na Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42: “O art. 152.º do CP protege em primeira linha a integridade, a saúde, nas suas dimensões física e psíquica. Contribui, desta forma e em uníssono, com os outros tipos incriminadores do capítulo, para densificar o valor constitucional da integridade, que se analisa no n.º 1 do art. 25.º da Constituição, em integridade moral e física”.
[3] Também II, no seu texto “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o direito penal e a criminologia”, Julgar, 12, 2010, pp. 49-50, identificou o bem jurídico do crime de violência doméstica como uma “concretização do direito fundamental da integridade pessoal (art. 25.º da Constituição), mas também do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 26.º, n.º 1, da Constituição) (...), ambos emanações diretas do princípio da dignidade da pessoa humana”.
[4] Isto é, um delito que só pode ser levado a cabo por certas e determinadas categorias de pessoas.
[5] Ou seja – e seguindo de perto a lição do Prof. JJ – um crime em que a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar, uma vez que só o agente com essa característica subjetiva relacional é passível de o cometer.
[6] Negrito acrescentado.
[7] Neste sentido, se pronunciaram, entre outros, os acórdãos do STJ de 18.01.2012, proferido no processo n.º 306/10....; de 13.11.2013, proferido no processo n.º 2032/11.... e de 18.09.2018, proferido no processo n.º 359/16...., todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[8] Referência extraída do Acórdão da relação de ..., de 19.10.2021, relatado pelo Desembargador KK e disponível em www.dgsi.pt.
[9] Conforme refere LL, no seu Comentário do Código Penal, Universidade ..., 1ª Edição, 2008, pág. 406, “(…) com esta agravação esta agravação “o legislador quis também censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a ação do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas.”
[10] Neste sentido, abordando questão diversa, mas com fundamentação semelhante no tocante ao preenchimento da tipicidade, cfr. Acórdão da Relação ... de 09.01.2018, relatado pelo Desembargador MM, disponível em www.dgsi.pt.