PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
FATURA
CRÉDITO ILÍQUIDO
POSTERIOR LIQUIDAÇÃO
VENCIMENTO DE JUROS
Sumário


1 - Na ação declarativa que siga a forma de processo comum, como é o caso, a não junção da fatura correspondente aos serviços prestados não constitui pressuposto processual nem a sua falta obsta ao conhecimento dos autos.
2 - A fatura é um mero documento contabilístico e não existe qualquer regra específica no direito comercial que liberte o vendedor/prestador do serviço, do ónus probatório dos factos constitutivos do seu direito, podendo prová-los por qualquer meio de prova, designadamente através de prova testemunhal e/ou documental.
3 - Sempre que o tribunal der por provada a prestação de serviços, mas não tiver elementos para fixar o seu valor exato, quer se tenha pedido um montante determinado ou formulado um pedido genérico, cumpre-lhe relegar a fixação do valor/preço dos mesmos para incidente de liquidação posterior.
4 – Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto não se tornar líquido.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

C. F. interpôs requerimento de injunção contra “A. L. – Companhia de Vinhos e Azeites, Lda.”, peticionando que a requerida lhe pague a quantia de € 27.373,00, acrescida de juros de mora e indemnização pelos custos de cobrança da dívida, proveniente de serviços de terraplanagem e construção civil que prestou à requerida, a seu pedido, e que não foram pagos.
A requerida contestou, alegando que nunca contratou os serviços do requerente, que este nunca lhe prestou os serviços identificados no requerimento de injunção, nem lhe enviou qualquer fatura respeitante aos mesmos. Pede a condenação do autor como litigante de má-fé em multa e indemnização no valor de € 5000,00.
Dispensada a audiência prévia, foi definido o objeto do litígio e elencados os temas da prova.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, cujo teor decisório é o seguinte:
“Pelo exposto, julga-se a presente ação, parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
Condenar a ré A. L. – Companhia de Vinhos e Azeites, Lda., a pagar ao autor, a quantia que vier a ser liquidada, correspondente ao preço dos trabalhos executados, descritos em 2., quantia essa que, após liquidação, deverá ser acrescida de juros de mora legais à taxa comercial relativa a créditos de que sejam titulares empresas comerciais, calculados desde 15-02-2017 até integral e efetivo pagamento, não podendo tal valor ser superior ao peticionado nos autos.
Condenar a ré A. L. – Companhia de Vinhos e Azeites, Lda., a pagar ao autor a quantia de € 40,00 a título de indemnização pelos custos suportados com a cobrança da dívida, absolvendo-a do demais peticionado.
Julgar não verificada a litigância de má fé da ré e do autor”.

A ré interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1- Deve ser alterada a matéria de facto dada como provada;
2- Devem ser eliminados dos factos provados, os factos constantes dos pontos 2, 3, 4, 6, 7, 8, 9 e 10, devendo ser dados como NÃO PROVADOS;
3- Para a alteração da matéria de facto, deve-se ter em conta a total ausência de prova, acerca dos serviços que o Autor alega ter efetuado para a Ré, e de que tenha havido uma contratação de serviços ao Autor, como bem resulta do depoimento de parte do Autor (minuto 4:43, minuto 8:42, minuto 16:06, minuto 17:46 e 19:45) e das testemunhas A. F. (minuto 05:50, minuto 06:10, minuto 19:34, minuto 21:43, minuto 25:06, minuto 26:45, minuto 32:08, minuto 32:45, minuto 36:03 e minuto 36:49), D. R. (minuto 03:43, minuto 08:10, minuto 10:15, minuto 11:03, minuto 12:20 e minuto 12:45) e A. P. (minuto 03:15, minuto 05:00, minuto 06:29, minuto 08:20, minuto 10:28 e minuto 10:55);
4- O Autor não provou a existência de um contrato/acordo, nem a existência de um orçamento, nem da data da execução das obras;
5- Não colhe a tese do Autor, que nem sequer se lembra dos trabalhos efetuados, sendo que na ausência total de documentos, fatura e orçamento, e de uma interpelação não logrou provar os factos alegados;
6- Não pode o tribunal recorrido valorar o depoimento da testemunha A. F., pois o mesmo revelou de forma inequívoca ser ele o verdadeiro empresário e, com isso, que tinha um interesse direto na causa;
7- Deve ser confrontada a factualidade dada como não provada com a dada como provada, para se perceber que o pedido do Autor foi completamente inventado e sem fundamento;
8- Não se provando que existiu um orçamento (ponto a), b), c), d), e) e f)), nem que existiu uma fatura, o tribunal estava impedido de considerar provada a factualidade contante do ponto 2;
9- Há assim uma evidente contradição na fundamentação da decisão ora em crise, nomeadamente quanto à adjudicação dos alegados serviços ao Autor e quanto à alegada execução material e efetiva pelo pai, sem que existisse qualquer relação contratual, como considerou o Tribunal “a quo” no ponto m) dos factos provados;
10- Resultou provado que durante muitos anos A. F. fez trabalhos naquele local, mas anteriores a 2014, e todos foram pagos.
11- O Autor não conseguiu provar, como lhe competia que em momento algum tenha efetuado trabalhos para a Ré, nem que tivesse funcionários para o fazer ao seu serviço, pois estava a estudar em Bragança, e a sua atividade era uma mera fachada, para o seu pai poder realizar trabalhos, enganando o Estado, e os seus credores, ao ocultar os rendimentos provenientes da atividade de construção civil.
12- O Autor e o seu pai A. F., afirmaram ao tribunal que por este ter dividas fiscais tinha de ser o filho, a figurar como Autor, quando o mesmo nunca realizou ou mandou realizar nenhum trabalho para a Ré;
13- Para além de, confessadamente, ter servido para a frustração de créditos fiscais, corrobora a tese da Ré de que nunca contratou os serviços ao Autor, mas sim ao pai deste;
14- Como supra se disse, e tendo por base os depoimentos transcritos, deve ser alterada a matéria de facto, nos moldes requeridos;
15- Existe uma ausência de conteúdo, um “vazio”, que que não foi preenchido pelo Autor, como era seu ónus, e deve ter como consequência a improcedência da ação;
16- Não deveriam os presentes autos ter ultrapassado a fase do saneador e prosseguido para julgamento, como prosseguiram, circunstância que redundou na prática de atos inúteis e proibidos pela lei, nos termos do disposto no artigo art.º 130.º do CPC.
17- Contudo e sem prescindir, a mera remissão para documentos manuscritos e sem rigor, sem a correspondente fatura, é claramente insuficiente, pois estamos perante alegações vagas e genéricas, uma vez que a causa de pedir é constituída pelos concretos negócios/contrato celebrados e não por documentos manuscritos e que nem sequer foram entregues à parte contrária.
18- A insuficiência de prova é patente atentos os documentos manuscritos, a ausência de fatura ou orçamento, e o desconhecimento pelo Autor dos serviços, pelo que ficou mal definida a relação contratual;
19- O Autor não soube expor devidamente os factos fundamentadores da sua pretensão, de, como já se referiu, não haver alegado o “regulamento contratual” combinado, nem sequer ter emitido qualquer fatura.
20- Assim, não podia o tribunal subsumir os factos aqui em discussão ao regime do contrato de empreitada, pois não existem nos autos elementos suficientes para que seja assim feita tal qualificação.
21- Ainda, contudo, e sem prescindir, a remessa dos autos para liquidação de sentença não é possível in casu, pois não se verificam os requisitos necessários para tal incidente;
22- Só é possível o recurso ao incidente de liquidação caso não seja possível aferir de tais elementos no processo declarativo.
23- O Autor apresentou-se a juízo pedindo uns alegados trabalhos que não soube situar no tempo e lugar, nem identificou o número de horas que despendeu, nem a quantidade de pedra que disse ter aplicado;
24- A Mm.ª Juiz “a quo”, em violação do art.º 349.º do C. Civil, inverteu o ónus da prova no julgamento de uma das questões essenciais deste pleito, ou seja, a de quem a Ré terá contratado para execução das obras, quem as executou, recebeu o respetivo preço acordado;
25- Com efeito, não poderia ser imposto à Ré fazer a prova diabólica de que não contratou o Autor, pois esta consistira num ónus de fazer prova negativa, inadmissível no nosso sistema jurídico;
26- A consequência para a falta de prova do Autor, por culpa exclusivamente sua e não corresponder à verdade, não passaria por encontrar uma saída para esta, com o recurso ao incidente de liquidação, mas sim a improcedência total da ação.
27- Acresce ainda, que não são devidos juros de mora, pois não ficou provada o vencimento da dívida a existência de qualquer interpelação para pagamento e resulta que a dívida não é certa e líquida ou sequer se já está vencida;
28- Por todo o exposto, violou a douta Sentença recorrida, o disposto nos artigos 358º e ss., 549º e 609º, e 615º nº1 al. c), d) e e) do CPC, artigo 10º do Decreto-Lei nº 269/98 e 804º, 1207º, 1210º, 1211º, do Código Civil, entre outros.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, e substituída por outro que julgue a ação totalmente improcedente, no que farão V.Ex.ªs, a sempre Inteira e Costumada JUSTIÇA!

O autor contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão de facto, a necessidade de junção da fatura dos serviços prestados como pressuposto processual, a possibilidade de liquidação posterior dos valores em dívida e o vencimento de juros em créditos ilíquidos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

Factos provados:

1. O autor está coletado desde 24-01-2014, tem o NIF ……… e enquadra-se na atividade com o CAE Principal .... – Outras Atividades Especializadas Construção Diversas.
2. O autor prestou à ré, a pedido desta, entre datas não concretamente apuradas dos anos de 2014 e 2015, os serviços de terraplanagem e de construção civil, destinados a permitir o exercício da sua atividade industrial, a saber:
a) Construção do muro envolvente da corriça que integra o prédio sito no ...., freguesia de ...., concelho de Vila Flor;
b) Perfuração do solo com auxílio de retroescavadora para a colocação de manilhas em valas:
i. manilhas do ribeiro – 25m*60cm;
ii. manilhas do parque – 27m*30cm;
iii. manilhas do parque – 15m*40cm;
iv. 2 caixas em cimento;
v. Abertura de valas e cobertura de valas;
c) Construção da fossa do edifício existente no prédio sito no ...., freguesia de ...., concelho de Vila Flor (abertura de buraco e colocação de 5 manilhas) e casa para balança e respetivas caixas tipo saneamento;
d) Construção de paredes no interior da construção que ocupa o prédio sito no ...., freguesia de ...., concelho de Vila Flor e colocação de chão no interior da construção;
e) Criação de um lancil e construção de um muro e seu revestimento em pedra.
3. Os serviços contratualizados foram realizados por fases, no hiato compreendido entre datas não concretamente apuradas, mas entre os anos 2014 e 2015.
4. Os trabalhos acordados apenas previam a contratação de mão-de-obra e disponibilização de pedra, sendo que os materiais eram fornecidos pela ré.
5. Por carta datada de 15/02/2017, o autor, por intermédio do seu mandatário, declarou que “Escrevo-lhe na qualidade de advogado do Senhor C. F., a propósito dos diversos serviços de construção realizados pelo m/ constituinte à v/ empresa, consubstanciados na construção de muro envolvente do v/ prédio sito no ...., freguesia de ...., concelho de Vila Flor, perfuração do solo com auxilio de retroescavadora para a colocação de manilhas em valas, construção da fossa do edifício existente no mencionado prédio, construção de paredes no interior da habitação que ocupa o mencionado prédio e colocação de chão no interior da habitação, criação de um lancil e construção de um muro e seu revestimento em pedra, entre outros. Como é do conhecimento de V/ Exas., os serviços adjudicados foram efetuados de forma faseada, de acordo com as v/ instruções, sem que até ao momento tenha sido efetuado qualquer pagamento ao m/ constituinte, apesar de diversas vezes solicitado. Os serviços mencionados estão concluídos e, como tal, é imperioso regularizar a v/ divida, que atualmente se cifra nos € 16.455,50 (dezasseis mil quatrocentos e cinquenta e cinco euros e cinquenta cêntimos). (…) Mas informo que, caso V. Exas. não procedam àquele pagamento no prazo máximo de 8 dias, intentaremos imediatamente procedimento judicial, o que terá graves consequências para V. Exas. em termos de perturbação da v/ tranquilidade, acréscimo de custos provenientes de taxa de justiça, honorários e despesas e perda de reputação de credito na praça e junto do Banco de Portugal, a quem será comunicada a situação de incumprimento. (…)”
6. Em 22/05/2017 o autor promoveu um requerimento de injunção contra a ré, através do qual reclamava o pagamento do respetivo preço.
7. O autor é um jovem trabalhador da construção civil, que na data da adjudicação dos serviços aqui reclamados à ré, era também estudante universitário, e os serviços/trabalhos que lhe iam sendo adjudicados, na prática do dia-a-dia eram, na maior parte das vezes, para não dizer quase sempre, executados pelo seu pai.
8. Na relação profissional descrita em 7. entre o autor e o pai, aquele não adotava uma postura de direção e chefia quanto a este último, diversamente do que sucedia com os demais funcionários.
9. Os trabalhos descritos em 2. foram adjudicados ao autor, estando os legais representantes da ré de acordo que os trabalhos fossem executados, maioritariamente, pelo seu pai.
10. Sempre houve ótimas relações comerciais e pessoais entre os legais representantes da ré, o autor e o pai deste.

Factos Não Provados:

a. Os trabalhos descritos na alínea a) do ponto 2. da matéria de facto provada, foram orçamentados no valor de € 11 917,50.
b. Os trabalhos descritos nas alíneas b) e c), do ponto 2. da matéria de facto provada, foram orçamentados no valor de € 9 090,00.
c. Os trabalhos descritos nas alíneas d), do ponto 2. da matéria de facto provada, foram orçamentados no valor de € 5 253,00.
d. Os trabalhos descritos na alínea e), do ponto 2. da matéria de facto provada, foram orçamentados no valor de € 812,50.
e. O valor dos serviços mencionados nas alíneas a., b., c. e d. perfaz o quantitativo de € 27 373,00.
f. Os orçamentos, a descrição dos trabalhos, as horas de trabalho contabilizadas e a conta corrente, eram lançados em folhas manuscritas e apresentadas aos legais representantes da ré, antes, durante e após a conclusão dos trabalhos que confirmavam a correspondência.
g. O autor ia executando os trabalhos, na medida em que essa execução lhe ia sendo solicitada pela ré, consoante a disponibilidade financeira desta.
h. Imediatamente após a conclusão de cada um dos trabalhos contratualizados, o autor solicitava à ré o respetivo pagamento.
i. Só com a conclusão de todos os trabalhos adjudicados ao autor é que seria formalizado o acerto de contas fiscais, salvaguardando a ré, no seu interesse ou não, na emissão do respetivo recibo fiscal.
j. Os trabalhos foram-se cumulando sem que a ré tenha efetuado qualquer dos pagamentos acordados com o autor e que foram oportunamente reclamados por este.
k. O autor suspendeu a execução de outros serviços que a ré lhe tinha adjudicado.
l. O autor acabou por desistir do procedimento referido em 6. visto que os legais representantes da ré sempre lhe garantiram que iriam proceder ao pagamento do preço logo que ré tivesse liquidez financeira, sem que, contudo, o tenham concretizado.
m. O pai do autor trabalhava em regime idêntico ao da subempreitada.
n. O autor pagou a título de honorários, ao seu mandatário, a quantia de € 350,00 com vista a recuperar o crédito em dívida.

A apelante discorda da decisão de facto.
Entende que os factos considerados provados sob os números 2, 3, 4, 6, 7, 8, 9 e 10, devem ser dados como não provados. Ou seja, da matéria de facto provada ficaria apenas o n.º 1 – que o autor está coletado desde 24/01/2014 – e o n.º 5 – carta enviada à ré pelo mandatário do autor em que dá conta dos trabalhos efetuados e do valor em dívida.
A questão da falta de pressuposto processual da ação por não ter sido junta com o requerimento inicial a fatura devida pelos trabalhos alegadamente realizados – a que o apelante volta – já foi decidida no despacho saneador, tendo-se aí concluído, e bem, do nosso ponto de vista, que na ação declarativa que siga a forma de processo comum, como é o caso, é indiscutível que a junção daquele documento não constitui pressuposto processual nem a sua falta obsta ao conhecimento dos autos. Diga-se, também, em abono desta tese, que a fatura é um mero documento contabilístico e que não existe qualquer regra específica no direito comercial que liberte o vendedor/prestador do serviço, do ónus probatório dos factos constitutivos do seu direito, donde, estar aquele submetido ao regime geral do art. 342.º, n.º 1 do CC. O autor pode provar a prestação dos serviços por qualquer meio de prova, designadamente através de prova testemunhal e/ou documental.
E foi o que o autor fez.
Ao contrário do sustentado pela apelante, entendemos que o autor provou a existência do acordo de vontades/contrato no sentido da realização das obras a que se refere o ponto n.º 2 dos factos provados, bem como as datas (ainda que sem pormenorização) em que os trabalhos terão sido realizados e a forma como foram levados a cabo. Para o efeito, foram determinantes os depoimentos das testemunhas A. F., D. R., J. B. e A. P. que tinham conhecimento direto dos factos, pois foram eles que realizaram tais trabalhos, trabalhos que, aliás, foram confirmados pelo legal representante da ré nas suas declarações de parte. O facto de estes trabalhadores trabalharem sob as orientações do pai do autor (que trabalhava com eles), em nada contraria a tese do autor e, ao contrário, por si só, não confirma a tese da ré de que nunca contratou nada com o autor. Veja-se, aliás, que a ré não refutou o recebimento da carta em que o autor, por intermédio do seu mandatário, lhe lembra os trabalhos efetuados e o montante em dívida, ameaçando com a cobrança judicial. A questão fiscal, a que o apelante dá muita importância, também não releva do ponto de vista civil, uma vez que o autor estava coletado desde janeiro de 2014 e enquadrado na atividade com o CAE Principal .... (Outras atividades especializadas construções diversas), pelo que, sozinho ou com a colaboração de seu pai, que desde sempre se dedicava a este tipo de obras, podia celebrar contratos com os seus clientes (veja-se que as testemunhas disseram que quem lhes pagava era o autor, o pai ou, até, a mãe, mostrando, assim, que se tratava de pequena empresa familiar em que, apenas o filho estava vinculado juridicamente, mas em que todos colaboravam).
Também ao contrário do que pretende a apelante, não ocorreu nos autos, nem foi determinado pelo juiz, qualquer inversão do ónus da prova. A prova dos factos constitutivos do direito alegado pelo autor – a existência de uma relação comercial entre ele e a ré, a prestação/execução de serviços no âmbito da mesma e o não pagamento dos mesmos – foi efetuada pelo autor, com base nos documentos e testemunhas por este oferecidos, bem como nas suas declarações de parte. As frases que o Sr. Juiz incluiu na motivação da decisão de facto e que a apelante considera consubstanciarem uma verdadeira inversão do ónus da prova, de modo nenhum devem entender-se como tal, pois apenas mostram o percurso lógico e racional que conduziram à formação da convicção do julgador, designadamente, considerando a “normalidade do acontecer” e o que resulta das “máximas da experiência comum”.
Finalmente, diga-se que do depoimento das testemunhas ouvido não pode retirar-se a conclusão pretendida pela apelante quanto à não prova de todos os factos considerados provados, pois tais testemunhas descreveram os trabalhos realizados, dentro de um lapso temporal que não souberam precisar com rigor, mas que foi o que ficou a constar nos pontos 2 e 3 dos factos provados, bem como o relacionamento que tinham com o autor e o pai e a mãe deste, relacionamento entre todos que, aliás, foi também confirmado pelo legal representante da ré, que conhecia a história pessoal de pai e filho e sabia bem que só o filho poderia contratar com a sociedade que representava (como resulta, também, da carta enviada posteriormente).

Finalmente, vem colocada a questão da remessa dos autos para liquidação de sentença. Entende a apelante que não estão reunidos os pressupostos necessários à liquidação posterior.
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 609.º, n.º 2 do CPC “Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado…”
O tribunal recorrido considerou que ficou provada a realização dos trabalhos solicitados pela ré e descritos no ponto n.º 2 dos factos provados, com o complemento do ponto n.º 4, de acordo com o qual os trabalhos acordados apenas previam a contratação de mão-de-obra e disponibilização de pedra, sendo que os materiais eram fornecidos pela ré, e que tais trabalhos foram desenvolvidos entre os anos de 2014 e 2015. Contudo, não foi possível apurar o “quantum” dos mesmos, o preço da empreitada – alínea e) dos factos não provados e restantes alíneas quanto aos valores orçamentados.
O autor alegou o valor dos trabalhos e do seu crédito sobre a ré, mas não logrou provar tais valores.
Ora, no caso de estar provada a existência da prestação de serviços, mas não o valor/preço dos mesmos, o tribunal pode condenar no que vier a ser liquidado em momento posterior – artigo 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
Quando se relega para liquidação posterior (artigo 358.º, n.º 2 do CPC) o apuramento do valor a receber pelo credor, tal significa, desde logo, que o Tribunal reconheceu a existência de um direito de crédito, que só não foi quantificado, ou seja, liquidado em montante certo, por não haver elementos para determinar o respetivo “quantum”, ou porque o Autor formulou pedido ilíquido, ou genérico, ou tendo formulado pedido líquido, o tribunal não apurou o exato valor em dívida.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/4/2014, processo 593/09.7TTLSB.L1.S1 (Conselheiro Mário Belo Morgado), disponível em www.dgsi.pt: “Em face da insuficiência de elementos para determinar o montante indemnizatório, nada obsta a que se profira condenação ilíquida, com a consequente remissão do apuramento da responsabilidade para momento posterior, desde que essa segunda oportunidade de prova não incida sobre a existência dos danos, mas apenas sobre o respetivo valor”, esclarecendo-se, em tal aresto, em fundamentação a que aderimos: “....Segundo a tese mais “restritiva”, a falta de elementos a que alude o art. 609.º. nº 2, do NCPC (e, identicamente, no art. 661.º, n.º 2, do anterior CPC), deve resultar não do fracasso da prova, mas do facto de ainda não se conhecerem com exatidão todas as consequências do facto ilícito, nomeadamente por elas ainda não se terem revelado ou estarem em evolução. Numa primeira abordagem, não são, na verdade, imediatamente atingíveis as razões que explicam que, em caso de fracasso da prova, seja concedida à parte interessada uma segunda oportunidade para procurar e produzir melhor prova. Em sentido contrário, para além de parte significativa da doutrina (Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vols. I, pp. 614 e segs., e V, p. 71, Vaz Serra, RLJ, ano 114.º, p. 309, e Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, p. 233), vai a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça, mormente desta Secção (Acs. de 18-09-2013, P. 1582/07.1TTLSB.L2.S1 (Fernandes da Silva), de 30-04-2013, P. 382/09.9TTALM.L1.S1 (Leones Dantas), de 16.01.2008, P. 07S2713 (Vasques Dinis) e de 2.02.2006, P. 05S3225 (Fernandes Cadilha), o primeiro com sumário disponível no sítio do STJ (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos) e os demais em www.dgsi.pt) segundo a qual nada obsta a que, em face da insuficiência de elementos para determinar o montante em dívida se profira uma condenação ilíquida, com a consequente remissão do apuramento da responsabilidade para momento posterior, desde que – como acontece no caso dos autos (uma vez que apenas não se apuraram os custos inerentes a determinadas vertentes da formação do recorrente que se encontram cabalmente identificadas no conjunto dos factos provados) - essa segunda oportunidade de prova não incida sobre a existência dos danos, mas apenas sobre o respetivo valor (pois, relativamente aos danos que não tenham sido provados, forma-se caso julgado material quanto à sua inexistência , não podendo a questão voltar a ser discutida). Este entendimento é o mais consentâneo com o princípio da igualdade, uma vez que não se vislumbra fundamento material para tratar diferentemente aqueles que formulam ab initio um pedido genérico e os que apresentam, logo à partida, um pedido específico. Por outro lado, como se refere no Ac. de 10-12-2013 deste Supremo (P. 12865/02.7TVLSB.L1.S1, 1ª Secção, Gregório Silva Jesus), “não seria curial que, tendo a [parte em questão] provado a existência de uma situação de direito à reparação do dano – artigo 562.º do CC –, apesar disso, a ação devesse ser julgada improcedente apenas porque se não provou o exato montante que se encontra, a esse título, em dívida”. Reafirmamos, pois, esta orientação jurisprudencial, cujos fundamentos reputamos válidos, sendo certo que nas decisões que proferir o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito (artigo 8.º, n.º 3, C. Civil).”

No mesmo sentido vai o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.5.2009 – Processo 2684/04.1TBTVD.S1 (Conselheiro Azevedo Ramos), disponível em www.dgsi.pt:
“Sempre que o tribunal verificar o dano, mas não tiver elementos para fixar o seu valor, quer se tenha pedido um montante determinado ou formulado um pedido genérico, cumpre-lhe relegar a fixação do montante indemnizatório para execução de sentença.
Mesmo que se tenha deduzido na ação um pedido líquido, se o tribunal não puder fixar o valor exato dos danos (nem mesmo com recurso à equidade), deve relegar-se a fixação da indemnização, na parte que não considerar ainda provada, para posterior liquidação – art. 609, nº2, do Código de Processo Civil.
Nem se diga que, ao relegar para posterior liquidação, se está a conceder nova oportunidade de prova ao autor, violando o caso julgado.
Mesmo que se possa afirmar que se está a conceder uma nova oportunidade ao autor do pedido, não se vislumbra qualquer ofensa do caso julgado, material ou formal (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 880/96, de 8-10-96)”.
É que a existência de trabalhos efetuados já está provada e apenas não está determinado o seu exato valor, ou seja, o seu concreto montante.
“É neste sentido a melhor doutrina e jurisprudência (Alberto dos Reis, “Código do Processo Civil Anotado”, vol. 1º, pág. 641; Vaz Serra, R.L.J., Ano 114-31; Rodrigues Bastos, “Notas ao Código do Processo Civil”, vol. III, págs. 232/233, Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 21-1-98, BMJ 473-445, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 23-9-98, BMJ 479-498; Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 7-10-99, BMJ 490-212, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 19-4-01, CJSTJ, II, 33, Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 11-5-05, na revista nº 4007/04, da 6ª Secção; Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 20-9-05, na revista nº1980/06-6ª Secção; Ac Supremo Tribunal de Justiça, de 21-11-06, na revista 3.600/06, da 6ª Secção, entre outros)” – último acórdão do STJ citado.
Este é também o entendimento de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, in CPC anotado, vol. I, pág. 729, onde se pode ler: “Na ação em que se formule pedido genérico é natural que a sentença culmine com uma condenação também genérica, sujeita a posterior liquidação. Mas não é esta a única situação que pode determinar esse resultado. Mesmo em casos em que o autor tenha quantificado a sua pretensão, a ação pode culminar com uma sentença de teor genérico ou ilíquido desde que, sendo apurada a existência do direito e da correspondente obrigação, os elementos de facto se revelem insuficientes para a quantificação, mesmo com recurso à equidade” e, acrescentam estes autores, que esta posição encontra na jurisprudência um larguíssimo consenso.
Assim, tendo-se apurado que o autor realizou os trabalhos que lhe foram solicitados pela ré, mas não se tendo apurado, ainda, o respetivo valor, é adequado relegar a sua liquidação para momento posterior, nos termos dos artigos 609.º, n.º 2 e 358.º, n.º 2, ambos do CPC.

Uma última palavra para dizer que a apelante tem razão quanto à questão dos juros.
Não se tendo fixado prazo de vencimento da obrigação, náo tendo esta prazo certo, só com a interpelação para cumprimento começaria a correr a contagem dos juros. Contudo, a carta enviada pelo autor à ré, refere um valor muito diferente do peticionado nestes autos. Assim, porque se trata de um crédito ilíquido, não pode considerar-se que a ré se encontra em mora enquanto o crédito não se tornar líquido – artigo 805.º, n.º 3 do Código Civil.
Daí que proceda, nesta parte, a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, apenas no que diz respeito à questão dos juros de mora, que apenas serão devidos após a liquidação do valor correspondente ao preço dos trabalhos executados, confirmando-se a sentença recorrida quanto ao mais.
Custas por apelante e apelado, na proporção de 9/10 para aquela e 1/10 para este.

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Guimarães, 15 de setembro de 2022

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira