INTERDIÇÃO
TUTOR/ACOMPANHANTE
DIRETOR DO CENTRO DE DIA
Sumário


1. A ordem de preferência para a nomeação de acompanhante encontra-se expressamente definida no artigo 143º do Código Civil.
2. É legalmente obrigatório colocar sempre em primeiro lugar o interesse do acompanhado.
3. Não chega, para alterar a ordem de preferências legalmente estabelecida, a simples tomada em consideração da vontade formalmente expressa pelo requerido, sobretudo quando sofre de perturbações mentais que levaram à declaração de incapacidade.
4. Numa situação em que a requerida é solteira e não tem filhos, nem tem qualquer familiar ou parente próximo com quem mantenha contacto, e em que o seu companheiro não permite que a tutora entre na sua residência, a requerida consome bebidas alcoólicas em excesso e, caso tenha disponibilidade, usa o dinheiro que tem para adquirir bebidas alcoólicas e não alimentos, o que sucede ou com a colaboração activa do companheiro ou, no mínimo, com a sua permissão ou concordância, é correcta a decisão de nomear como acompanhante o Director do Centro de Dia que a requerida frequenta, desconsiderando a vontade desta de ser nomeado o seu companheiro.
5. É irrelevante a declaração de vontade de não querer aceitar tal cargo, pois as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.
6. Caso as circunstâncias que levaram à decisão de nomeação de acompanhante se alterem, poderá ser requerida alteração da mesma.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

Nos presentes autos de interdição, intentados pelo Ministério Público, foi decretada por sentença de 10/7/2006 a interdição, por anomalia psíquica, de M. T., solteira, nascida a - de Março de 1968, residente na Rua ..., nº .., em ... Esposende.
Foi-lhe nomeada tutora C. M..
Por requerimento de 24 de Abril de 2018, a tutora vem informar os autos que não consegue exercer devidamente o cargo, informando os autos que com a interdita vivem as irmãs e o A. F., sendo que este não permite que a tutora entre no interior da habitação.
Alega ainda que o referido A. F. não trata a interdita com os cuidados que esta deve ter, não lhe presta cuidados de higiene, saúde, assistência e bem-estar e que tem para com a mesma comportamentos de violência.
Alega ainda que os episódios de consumo excessivo de álcool pela interdita têm vindo a aumentar.
Requereu a realização de reunião do conselho de família.
A reunião do conselho de família veio a realizar-se, mas nela os membros não se pronunciaram quanto à situação da interdita.
Seguiu-se despacho a fls. 142 a ordenar o arquivamento dos autos.
Posteriormente, a tutora veio requerer a sua substituição do cargo, reiterando que a interdita se encontra sujeita a perigos.
Realizou-se nova reunião do conselho de família, onde os membros concordaram que a tutora não tem condições para continuar a assumir o cargo, devido à sua idade e condição frágil de saúde. Mais se pronunciaram no sentido de não terem capacidade para assumir o cargo nem o companheiro da requerida, A. F., nem os irmãos da requerida, por terem todos problemas com o álcool.
Fizeram-se pesquisas para apurar do paradeiro de familiares que pudessem assumir o cargo de tutores.
A tutora em exercício informou os autos que a interdita frequenta a X – Solidariedade Social, sendo reportado por esta instituição à tutora que a interdita aparece frequentemente com marcas no corpo, hematomas e escoriações que aparentam provir de agressão ou quedas, nitidamente alterada por consumos excessivos de álcool e ainda com falta de cuidados de higiene básica, solicitando à tutora que intervencione nestas situações.
Contudo, quando a tutora e restante família tentam visitar a interdita e inteirar-se da sua situação e vivência, são impedidos de lá entrar pelo Sr. A. F. e pelo Sr. E. (irmão da requerida).
A X, através da sua Directora, pronunciou-se sobre a situação da requerida a fls. 168.
Fizeram-se várias diligências com vista a apurar quem poderia assumir o cargo de tutor, sendo que não se encontrou quem pudesse assumir tais funções.

A Digna Magistrada do Ministério Público emitiu parecer defendendo que seja decretado o acompanhamento com representação geral, porquanto, devido à afecção de que sofre, não possui capacidade para governar a sua própria pessoa e bens.
Como sua acompanhante, indicou a Direcção Técnica da X, uma vez que as pessoas que compõem o agregado familiar de M. T. não reúnem condições para desempenhar tal cargo.

A tutora em exercício, por sua vez, defendeu o internamento da interdita em instituição que permita o tratamento do alcoolismo.
Para acompanhante, na falta de outra pessoa que assuma o cargo, indicou o Presidente da Junta de Freguesia.

Realizou-se a audiência de julgamento, com a produção da prova oferecida, e a final foi proferida sentença, que decidiu:

a) Não internar, contra a sua vontade, a beneficiária/acompanhada M. T., mas
b) declarou que M. T. beneficiará da medida de acompanhamento de representação geral, com administração total de bens.
c) determinou o impedimento da beneficiária de celebrar actos de disposição, onerosos ou gratuitos, em vida ou por morte, sem autorização do acompanhante.
d) declarou procedente o incidente de escusa da tutora C. M. e, em consequência:
e) nomeou como acompanhante da beneficiária o Senhor Director da X-Solidariedade Social, Instituição que presta já apoio à beneficiária, podendo o Senhor Director indicar Técnico que assuma a função em causa, devendo comunicá-lo ao Tribunal.
f) o acompanhante deterá a administração total de bens do beneficiário.

A X - ASSOCIAÇÃO SOCIAL CULTURAL E RECREATIVA DA ..., tendo sido notificada da sentença proferida que determinou a nomeação do seu Director enquanto acompanhante de M. T., não se conformando com a mesma, veio interpor recurso, que foi recebido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tudo nos termos do disposto nos artigos 942º,4, 629º,1, 631º, 644º,1,a, 645º,1,a, e 647º,1 todos do Código de Processo Civil.

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferido pelo tribunal a quo que determinou a nomeação do Senhor Director da aqui Recorrente enquanto acompanhante, atribuindo-lhe a administração total dos bens da beneficiária.
II. Antes de avançar com a demais alegação e por uma questão de simplicidade e brevidade processual, é pertinente deixar, desde já, assente a legitimidade da aqui Recorrente porquanto: “Na acção para acompanhamento de maiores, a pessoa colectiva titular da instituição onde o maior se encontra internado tem legitimidade para interpor recurso da decisão que nomeou acompanhante do maior o respectivo «director»” – conforme entendimento da nossa jurisprudência, neste caso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, a 24.10.2019.
III. É princípio assente nos processos de maior acompanhado que o acompanhante deverá ser indicado pelo acompanhado e, só na falta de indicação pelo acompanhado, o Tribunal designará a pessoa que melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário.
IV. Sendo que a requerida indicou como seu acompanhante A. F., seu companheiro, tendo entendido o tribunal a quo que “a falta de sentido crítico evidenciado por A. F. para a situação de M. T. desaconselha a sua nomeação e o torna inidóneo para a função de acompanhante”, e nada mais diz a este respeito.
V. Com o devido respeito, a fundamentação do tribunal é não só omissa, como insuficiente para excluir a indicação efectuada pela beneficiária para seu acompanhante e, pese embora a sensibilidade que nos merece os indícios carreados nos autos, que pudessem levar o douto tribunal a desconsiderar esta pessoa idónea para ser nomeado acompanhante da beneficiária, a verdade é que nenhum deles foi dado como provado.
VI. De tal forma que “a requerida nega em absoluto” os relatos de violência e “mantém o propósito de continuar a residir com A. F. e não há qualquer condenação ou sequer relato de processo criminal pendente”.
Ora,
VII. Não obstante não caber a esta Instituição substituir-se ao tribunal na apreciação da adequação de alguém ao cargo de acompanhante ou tecer conjecturas quanto à relação pessoal da beneficiária com o seu companheiro, os motivos invocados pelo tribunal a quo para desconsiderar a sua nomeação enquanto acompanhante são parcos, insuficientes e vagos.
VIII. E o mesmo acontece no que diz respeito aos irmãos da beneficiária, visto que ao longo da sentença é apenas feita referência ao facto de a requerida residir com irmãos e do facto de estes terem alegada incapacidade para assumir o cargo.
IX. A Recorrente também apresentou argumentos que obstavam à nomeação do seu Director como acompanhante e recusou-se peremptoriamente a assumir o cargo para o qual foi nomeado mas que, por alguma razão que se desconhece, não foram atendidos.
X. O que levou a ser proferida uma decisão que, não só não acautela os interesses da beneficiária pois que os vota aos perigos resultantes de eventuais conflitos de interesses, como violam seriamente a manifestação da vontade expressa da Recorrente que se recusou a assumir o cargo de acompanhante.
XI. É de salientar que a anterior tutora relatou ao tribunal as dificuldades que tinha em exercer as suas funções em virtude dos obstáculos criados pelo companheiro da beneficiária e por alguns dos seus irmãos, questionando-se em que medida é que o tribunal a quo entende que será diferente no caso da nomeação do Director da Instituição.
XII. A criação do regime do maior acompanhado tem como primordial objectivo acautelar os direitos dos beneficiários abrangidos, determinando que a figura do acompanhante deve sempre recair sobre a pessoa que melhor consiga salvaguardar os imperiosos interesses do acompanhado e que com ele mantenha uma relação de proximidade com o acompanhado.
Nestes termos,
XIII. A requerida é utente da Instituição, aqui recorrente, frequentando a resposta social de Centro de Dia, na qual lhe são prestados diversos serviços como alimentação, cuidados de saúde, serviços de animação/socialização, entre outros, pelo que a única relação existente entre a Recorrente e a acompanhada é uma relação contratual de prestação de serviços.
XIV. E, nem tanto se pode alegar quanto ao Director desta instituição que nenhuma relação, pessoal ou minimamente próxima, tem com a requerida.
XV. O Director da Instituição apenas exerce as funções de administração e gestão dos recursos humanos, não sendo a pessoa que habitual e diariamente lida com a requerida e o mesmo acontece com os trabalhadores desta Instituição uma vez que a equipa de trabalho vai alternando, quer por motivos de rotação de turnos, quer por variações na contratação, pelo que nem é correcto admitir-se que os “técnicos” da Instituição privam com a requerida no seu dia-a-dia.
XVI. O que até se comprovou, através da matéria de facto dada como provada resulta que ao longo da pandemia provocada pelo Covid-19, a requerida não frequentou a Instituição porquanto a mesma esteve encerrada por determinação governamental.
XVII. A este respeito, questiona-se o que acontecerá se, no futuro, a beneficiária optar por deixar de frequentar o Centro de Dia desenvolvido pela Recorrente? Ou se simplesmente decidir, repentinamente, deixar de comparecer?
Acresce ainda que,
XVIII. À acompanhada foi aplicada a medida de representação geral, com administração total dos seus bens.
XIX. Ora, o Director da Instituição, enquanto pessoa física (como qualquer outro colaborador da Recorrente), é responsável por garantir o seu normal funcionamento e gestão, designadamente pela validação da facturação dos serviços prestados. Neste sentido, como resulta do senso comum, a beneficiária pode reconhecer-se devedora das quantias em dívida para com a Instituição como também pode optar por não o fazer e, deste modo querer pagar ou não.
XX. Além disso, ao ser o acompanhante da requerida, o director da Recorrente estaria, em boa verdade, a pagar-se a si próprio, pelo que a Recorrente não pode ser responsabilizada pela administração total dos bens da beneficiária, nem ser acometida de tal responsabilidade uma vez que a lei veda, ao acompanhante, o exercício de funções em caso de conflito de interesses ao abrigo do artigo 150º do Código Civil.
XXI. Assim, nada permite presumir que uma pessoa totalmente estranha e sem quaisquer laços íntimos, familiares ou afectuosos com a acompanhada, como é o Director da Instituição, possa substituir outra pessoa que cumpra esses requisitos.
XXII. Conforme resulta do entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, a 24.10.2019, no âmbito do processo nº 887/18.0T8PVZ.P1 e do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09-09-2021, processo nº 4/21.0T8RMZ.E1.
XXIII. Nestes termos, e no demais que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, com todas as consequências legais, designadamente, decidindo-se pela não nomeando como acompanhante da beneficiária a Recorrente, o seu director ou qualquer outro elemento dos seus recursos humanos por absoluta inadequação.

O MP contra-alegou, dizendo que entende que deverá o recurso improceder, mantendo-se a douta decisão recorrida, por não merecer qualquer reparo, por ter procedido ao devido enquadramento jurídico e correcta aplicação do direito à situação em concreto, assim tendo concluído pela nomeação como Acompanhante da Beneficiária M. T. do Director da Recorrente, instituição que presta apoio à Beneficiária, atenta a inexistência de qualquer outra pessoa que devidamente acautele os seus interesses para poder exercer tal cargo.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, a única questão a decidir consiste em saber se se deve manter a nomeação como acompanhante da beneficiária do Director da Recorrente.

III
A sentença considerou provados os seguintes factos:

1. A requerida M. T. nasceu em - de Março de 1954, é solteira e não tem filhos.
2. A requerida foi declarada interdita, por anomalia psíquica, por sentença de 10/7/2006, conforme sentença de fls. 78, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzida.
3. A requerida tem, pelo menos, desde 2018, um companheiro, com quem reside.
4. A requerida frequentou a escola, mas não aprendeu a ler nem a escrever e tem grandes dificuldades em assinar o nome.
5. A requerida apresenta-se vígil, colaborante, orientada no espaço e parcialmente orientada no tempo (só não sabe o ano) e orientada autopsiquicamente.
6. Apresenta um discurso pobre, pouco fluente.
7. Reconhece os principais marcos históricos actuais, como a pandemia e a guerra na Ucrânia, embora não os consiga contextualizar.
8. Evidencia défices cognitivos/intelectuais.
9. Reconhece o dinheiro, mas não o identifica adequadamente, tendo dificuldade em fazer cálculos.
10. Reconhece o relógio, mas não identifica as horas.
11. M. T. padece de uma Deficiência Intelectual Moderada em comorbilidade com consumos abusivos de álcool.
12. O seu quadro clínico e a natureza da patologia de que padece é de natureza crónica, não existindo à data dos conhecimentos científicos actuais tratamentos curativos, apenas tratamento de natureza sintomática, no alívio de sintomas e na tentativa de manter a abstinência de álcool, com ajuda e supervisão na gestão terapêutica e recurso a cuidados médicos necessários.
13. M. T. não tem capacidade para sozinha, realizar tarefas da vida diária como seja higiene e a gestão da terapêutica.
14. A. F. não permite que a tutora C. M. entre na residência da interdita.
15. A interdita frequenta a X – Solidariedade Social.
16. Nesta Instituição, a requerida apresenta-se com cuidados de higiene e vestuário precários.
17. Durante o período de confinamento por COVID 19 a requerida não frequentou a instituição em causa, porque esta encerrou, tendo entretanto retomado a frequência.
18. M. T. reside numa habitação muito degradada, com montes de roupa suja e velha acumulada em cima de móveis.
19. Toda a habitação mostra-se muito suja e degradada.
20. A cozinha não tem electrodomésticos.
21. M. T. consome bebidas alcoólicas em excesso e, caso tenha disponibilidade, usa o dinheiro que tem para adquirir bebidas alcoólicas e não alimentos.
22. Com a frequência do Centro X, o consumo de bebidas alcoólicas é controlado, porque nesta Instituição a requerida não tem acesso a bebidas alcoólicas.
23. Correu termos nos serviços do Ministério Público de Barcelos, o processo nº 32/18.2T9BCL em que era arguido A. F. e ofendida M. T. e em que se investigava a prática de um crime de violência doméstica.
24. Esse processo veio a ser arquivado por não se reunirem indícios do crime investigado, conforme documento junto aos autos a fls. 242 e 243, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
25. A. F. é pescador mas não declara junto da segurança social qualquer rendimento.
26. M. T. nega os consumos excessivos de bebidas alcoólicas.
27. M. T. declara não pretender ser sujeita a qualquer tratamento à dependência alcoólica.
28. M. T. declara não pretender ser institucionalizada.
29. Declara ainda pretender continuar a residir com A. F., que identifica como seu companheiro.
30. Nega quaisquer agressões ou maus tratos perpetrados por A. F..
31. Para seu acompanhante indicou A. F..

Mais se apurou:
32. C. M., tutora nasceu a - de Janeiro de 1941.
33. A tutora não tem actualmente qualquer ligação ou contacto com M. T..
34. M. T. não tem qualquer familiar ou parente próximo com quem mantenha contacto.

2. Factos Não provados
a) A X – Solidariedade Social com sede R. ..., ... haja reportado à tutora que a interdita aparece frequentemente com marcas no corpo, hematomas e escoriações que aparentam provir de agressão ou quedas, nitidamente alterada por consumos excessivos de álcool.
b) A. F. agrida fisicamente M. T..

IV
Conhecendo do recurso.
Está em causa quem deve ser nomeado como Acompanhante (tutor), e mais concretamente, se a nomeação feita se deve manter ou ser revogada.
Em abstracto duas argumentações se podem antever: primeira, a nomeação feita é contra legem, ou seja, não é permitida por lei; segunda, havia outra pessoa que devia ter sido nomeada com prioridade para o cargo, e que foi preterida.

O quadro legal é linear:

Dispõe o art. 143º CC (na redacção da Lei n.º 49/2018 de 14 de Agosto - com entrada em vigor em 10 de Fevereiro de 2019) o seguinte:
1 - O acompanhante, maior e no pleno exercício dos seus direitos, é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente.
2- Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respectivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, designadamente:
a) Ao cônjuge não separado, judicialmente ou de facto;
b) Ao unido de facto;
c) A qualquer dos pais;
d) À pessoa designada pelos pais ou pela pessoa que exerça as responsabilidades parentais, em testamento ou em documento autêntico ou autenticado;
e) Aos filhos maiores;
f) A qualquer dos avós;
g) À pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
h) Ao mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
i) A outra pessoa idónea.
3 - Podem ser designados vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um, com observância dos números anteriores.

Na sentença recorrida, para fundamentar a escolha do tutor/acompanhante, escreve-se o seguinte:
isto posto, cumpre determinar a pessoa acompanhante, certo que C. M. não reúne já condições para o exercício de tal função, quer devido à sua idade, quer ainda e sobretudo ao afastamento da requerida.
Com efeito, quanto a C. M. atenta a sua idade, mostram-se preenchidos os fundamentos de escusa previstos no artigo 144º, nº 3 e 1934, º 1, al. g) ambos do Código Civil.
Ademais, da matéria de facto provada demonstrou-se que a actual tutora não tem qualquer contacto com a requerida, o que só por si justifica e fundamenta que se procure outra pessoa com contacto mais próximo à requerida que possa assegurar as funções de acompanhante. (…)
Ora, do normativo citado decorre que, em primeira linha, o acompanhante deverá ser indicado pelo acompanhado e, só na falta de indicação pelo acompanhado, o Tribunal designará a pessoa que melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário.
No caso concreto, a acompanhada M. T. indicou com acompanhante o seu companheiro A. F..
Entende o Tribunal, porém, que a falta de sentido crítico evidenciado por A. F. para a situação de M. T. desaconselha a sua nomeação e o torna inidóneo para a função de acompanhante.
Na impossibilidade de se nomear acompanhante A. F., deverá o Tribunal designar outra pessoa tendo como critério o imperioso interesse do beneficiário.
Sobre o exercício da função de acompanhante, o artigo 146º, nº 1 do Código Civil estatui que no exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.
Do mesmo normativo decorre ainda que o acompanhante mantém um contacto permanente com o acompanhado, devendo visitá-lo, no mínimo, com uma periodicidade mensal, ou outra periodicidade que o Tribunal considere adequada.
No caso dos autos, verifica-se que não há quem pretenda exercer o cargo.
Com efeito, verificado o contexto social da requerida conclui-se que a mesma não tem quaisquer familiares ou amigos que aceitem assumir o cargo.
Assim sendo, salvo o devido respeito, entendemos que apenas a Instituição que auxilia a requerida se perfila para assumir o cargo.
Com efeito, note-se que é esta Instituição que mais de perto colabora com a requerida e que é já quem lhe presta o auxílio quer nas actividades essenciais, quer nas actividades instrumentais da vida diária.
Temos obviamente noção de que a Instituição, na pessoa da Senhor Director, se recusou a assumir o cargo ou a indicar qualquer funcionário que pudesse assumir o cargo.
Salvo o devido respeito, porém, parece-nos que não poderão validamente negar-se a assumir o cargo.
Com efeito, o normativo citado ao impor ao Tribunal que designe uma das pessoas indicadas, no qual se inclui o funcionário da Instituição onde o requerido se integre, conexamente impõe o dever de o funcionário da Instituição assumir o cargo.
Ademais, sabendo-se e reconhecendo-se as dificuldades das Instituições em causa (que fazem um trabalho social relevantíssimo, do qual os presentes autos são apenas um exemplo), tem-se, no entanto, em consideração que estas Instituições têm uma função social fundamental, na qual se inclui, além do mais o dever de assumirem o acompanhamento das pessoas a quem prestam apoio.
Finalmente, é manifesto que são os Técnicos que acompanham a requerida quem melhor está posicionado para assumir a função em causa, já que são quem priva com a requerida no seu dia-a-dia.
Assim sendo, nomear-se-á para acompanhante o Director da Instituição X, Solidariedade Social que acompanha a requerida, podendo o Senhor Director, por sua vez, indicar técnico da Instituição para exercer o cargo”.

Esta fundamentação parece-nos cristalina, e eivada do mais elementar bom senso, tendo em conta as características da situação que emerge dos factos provados.
Mas cumpre então analisar as razões pelas quais a recorrente se opõe à decisão.
1. Começa a recorrente por referir que a requerida indicou como seu acompanhante A. F., seu companheiro, mas o tribunal a quo entendeu que “a falta de sentido crítico evidenciado por A. F. para a situação de M. T. desaconselha a sua nomeação e o torna inidóneo para a função de acompanhante”, e nada mais diz a este respeito.
Entende que esta fundamentação é não só omissa, como insuficiente para excluir a indicação efectuada pela beneficiária para seu acompanhante. E que os motivos invocados pelo tribunal a quo para desconsiderar a nomeação da requerida enquanto acompanhante são parcos, insuficientes e vagos. E o mesmo acontece no que diz respeito aos irmãos da beneficiária, visto que ao longo da sentença é apenas feita referência ao facto de a requerida residir com irmãos e do facto de estes terem alegada incapacidade para assumir o cargo.
Estamos então perante a segunda via argumentativa acima descrita.

Ora, vem a propósito recordar aqui o que consta no sumário do Acórdão do TRL de 9.9.2014 (Luís Espírito Santo):

I- A ordem de preferência para a nomeação de curador ao inabilitado encontra-se expressamente definida no artigo 143º, aplicando-se in casu a alínea c) do Código Civil, por via do artigo 156º do mesmo diploma legal. Contudo,
II- Neste domínio, há imperativamente que colocar, sempre e em primeiro lugar, o interesse do próprio inabilitado a uma eficaz protecção do seu património e ao restabelecimento possível do equilíbrio da sua situação pessoal.
III- A razão fáctica e jurídica para o afastamento in casu do critério de preferência legal para a nomeação de curador - terá que ser devidamente discutida, em termos contraditórios, preocupando-se o tribunal em coligir os elementos que tenha por pertinentes e pronunciando-se especificamente, com a profundidade necessária, sobre tal questão jurídica.
IV- Não é obviamente suficiente, para este efeito, em matéria tão sensível e delicada, a simples tomada em consideração da vontade formalmente expressa pelo requerido – que sofre das perturbações mentais elencadas supra”.

Ora, tendo isto presente, quanto ao acompanhante A. F., independentemente de saber se o Tribunal recorrido poderia ter escrito uma fundamentação mais desenvolvida (pode-se sempre escrever mais do que se escreveu), o relevante aqui é que a decisão nos parece inteiramente acertada. Basta olhar para os factos provados 3, 14, 19, 20, 21, 22, para perceber que jamais tal pessoa poderia ser nomeada como acompanhante. E importa ainda ter presente que dos autos resulta que o Tribunal procedeu à audição pessoal de A. F., pelo que teve uma percepção real, imediata e directa da pessoa em causa, que nós não temos.
Bem se compreende, pois, que o Tribunal se tivesse limitado a escrever “entende o Tribunal, porém, que a falta de sentido crítico evidenciado por A. F. para a situação de M. T. desaconselha a sua nomeação e o torna inidóneo para a função de acompanhante”.
Não poderia ser outra a decisão, e por ser tão óbvio que assim é, a fundamentação utilizada é clara e suficiente.

2. Afirma de seguida a recorrente que a decisão “não só não acautela os interesses da beneficiária pois que os vota aos perigos resultantes de eventuais conflitos de interesses, como viola seriamente a manifestação da vontade expressa da Recorrente que se recusou a assumir o cargo de acompanhante”.
Porém, parece-nos que, pelo contrário, da matéria de facto provada emerge que a única pessoa que pode acautelar minimamente os interesses da beneficiária é a que foi nomeada pelo Tribunal. Basta ver que está provado que a requerida é solteira e não tem filhos, nem tem qualquer familiar ou parente próximo com quem mantenha contacto. O seu companheiro, A. F. não permite que a tutora entre na residência da interdita. A requerida consome bebidas alcoólicas em excesso e, caso tenha disponibilidade, usa o dinheiro que tem para adquirir bebidas alcoólicas e não alimentos. E é óbvio que isto sucede ou com a colaboração activa de A. F., ou, no mínimo, com a sua permissão ou concordância.
O único sítio onde a requerida é protegida de si própria e dos seus impulsos alcoólicos é justamente no Centro X, onde o consumo de bebidas alcoólicas é controlado.
Quanto à violação da vontade expressa da recorrente, que se recusou a assumir o cargo de acompanhante, é um facto. Porém, tal sucede por imposição directa da lei, pois as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades (art. 205º,2 CRP). E há ainda um afloramento desse princípio, que consta do art. 417º CPC. Donde, apesar de ciente da vontade da recorrente e seu Director em não querer ser nomeados, ainda assim o Tribunal entendeu que era essa a melhor solução, decisão que é obrigatória para os visados.
3. A referência às dificuldades em exercer as funções em virtude dos obstáculos criados pelo companheiro da beneficiária e por alguns dos seus irmãos não releva de todo para saber se a nomeação foi legalmente acertada ou não.
4. Quanto ao argumento da necessidade de uma relação pessoal ou minimamente próxima com a requerida, que o Director da Instituição não teria, basta recordar que o Tribunal recorrido teve o cuidado de, ao nomeá-lo como acompanhante da beneficiária, fixar que o mesmo “poderia indicar Técnico que assuma a função em causa”.
5. Finalmente, quanto ao argumento do alegado conflito de interesses.
Pretende a recorrente que, ao ser o acompanhante da requerida, o director da Recorrente estaria, em boa verdade, a pagar-se a si próprio, pelo que a Recorrente não pode ser responsabilizada pela administração total dos bens da beneficiária, nem ser acometida de tal responsabilidade uma vez que a lei veda, ao acompanhante, o exercício de funções em caso de conflito de interesses ao abrigo do artigo 150º do Código Civil.
Porém, não cremos que da matéria de facto provada resulte o perigo disso suceder.
Nada se apurou sobre pagamentos feitos pela acompanhada à Instituição, a qual, recorde-se, é uma Instituição de solidariedade social, e não uma sociedade comercial que visa o lucro.
E ainda que em abstracto se pudesse antever um qualquer conflito de interesses, o art. 150º,3 CC consagra as regras necessárias para o dirimir.
Resumindo e concluindo, a recorrente não impugnou a matéria de facto dada como provada, pelo que é a ela que temos de atender para decidir este recurso.
E dessa matéria de facto não resulta que o Tribunal a quo tenha cometido qualquer erro jurídico ou erro de julgamento, sendo a decisão recorrida baseada no mais elementar bom senso.
E recorde-se para terminar, indo de encontro às preocupações da recorrente, que se as circunstâncias que levaram à decisão de nomeação de acompanhante se alterarem, poderá ser requerida alteração da mesma.

Sumário:

1. A ordem de preferência para a nomeação de acompanhante encontra-se expressamente definida no artigo 143º do Código Civil.
2. É legalmente obrigatório colocar sempre em primeiro lugar o interesse do acompanhado.
3. Não chega, para alterar a ordem de preferências legalmente estabelecida, a simples tomada em consideração da vontade formalmente expressa pelo requerido, sobretudo quando sofre de perturbações mentais que levaram à declaração de incapacidade.
4. Numa situação em que a requerida é solteira e não tem filhos, nem tem qualquer familiar ou parente próximo com quem mantenha contacto, e em que o seu companheiro não permite que a tutora entre na sua residência, a requerida consome bebidas alcoólicas em excesso e, caso tenha disponibilidade, usa o dinheiro que tem para adquirir bebidas alcoólicas e não alimentos, o que sucede ou com a colaboração activa do companheiro ou, no mínimo, com a sua permissão ou concordância, é correcta a decisão de nomear como acompanhante o Director do Centro de Dia que a requerida frequenta, desconsiderando a vontade desta de ser nomeado o seu companheiro.
5. É irrelevante a declaração de vontade de não querer aceitar tal cargo, pois as decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.
6. Caso as circunstâncias que levaram à decisão de nomeação de acompanhante se alterem, poderá ser requerida alteração da mesma.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso improcedente, confirmando na íntegra a sentença recorrida.

Custas pela recorrente (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 15.9.2022

Relator
(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto
(Alcides Rodrigues)
2º Adjunto
(Joaquim Boavida)