I - o acórdão uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/1996 ao declarar que face ao exercício do poder de facto que realize sobre uma coisa se presume que o possuidor possui em nome próprio, sem ter necessidade de provar o elemento subjetivo, o animus, da posse não estabelece em face do poder de facto exercido por um possuidor se presuma sempre o animus de proprietário mas sim que se presume o animus correspondente ao direito que corresponde ao poder de facto exercido e que pode ser referente a outro direito que não o de propriedade.
II - A conduta do autor interrompendo a passagem do caminho relativamente ao qual não provou ter qualquer direito configura uma manifesta violação dolosa dos limites impostos pelos bons costumes, traduzindo tal conduta a vontade do autor em fazer justiça pelas próprias mãos sem que tenha provado os pressupostos da ação direta (art. 336º, do CC), o que constitui uma grave afetação do mínimo ético-jurídico exigível na convivência social.
III - Tendo o autor mandado arrasar e demolir um caminho sabendo que ao atuar assim estava a impedir a ré e sua família, caseiros e visitas de circular pelo caminho e aceder ao seu prédio, como vinham fazendo até então, deve concluir-se pelo preenchimento dos pressupostos da ilicitude e da culpa. E reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, estão os autores obrigados a indemnizar a ré pelos danos causados.
IV - Se a violação do direito de propriedade nos casos em que a perturbação não se traduz numa agressão à substância da coisa, nem ao proprietário é retirada a respetiva posse ou ela é usada por um terceiro, mas em que através do comportamento deste apenas são tocados os pressupostos externos sem os quais a coisa não pode ser utilizada de acordo com o fim a que se destina, essa situação deve ser considerada como ilícita do ponto de vista do direito de propriedade.
AA e BB intentaram ação declarativa com forma de processo comum contra CC pedindo:
- a condenação da ré a reconhecer que o prédio dos autores se encontra onerado com uma servidão de passagem em favor do prédio da ré com o fim exclusivo de passagem a pé e de carro agrícola para tarefas de preparação da terra, sementeiras ou plantações e respetiva colheita;
- a mudança da referida servidão a expensas dos autores;
- a aquisição da comunhão no muro que delimita o prédio da ré que confina com o prédio dos AA. mediante o pagamento do preço apurado do muro e solo;
- a condenação da ré na demolição do muro erigido no prédio dos autores que delimita a parte sul no trato de terreno afeto a caminho de servidão.
Na contestação a ré deduziu reconvenção pedindo que seja declarada dona e legítima proprietária da faixa de terreno discutida e, bem assim, a condenação dos autores a pagarem-lhe a quantia de 7.665,48 € por violação desse seu direito.
A ação foi julgada na sentença parcialmente procedente e a ré condenada à comunhão forçada com os autores do muro que veda os seus prédios inscritos na matriz sob os arts. ...79 e ...58, na extensão de 20,505m, que confronta com o prédio inscrito na matriz sob o art. ...78 em nome dos autores, na parte nascente dos portões implantados no referido muro, mediante o pagamento de metade do valor do muro e do solo o qual deve ser calculado em liquidação de sentença, absolvendo-se do demais peticionado.
O pedido reconvencional foi julgado parcialmente procedente condenando o autor AA no pagamento à reconvinte no valor de 4.500,00 € acrescido de juro à taxa de 4% devidos desde a citação até integral pagamento, absolvendo no mais peticionado.
Interpostos recursos, pelos autores e pela ré, vieram ambos a ser julgados improcedentes e confirmada a decisão recorrida, tendo o acórdão determinado, apenas parcialmente, que o apelante seja absolvido do pagamento de qualquer indemnização.
A ré interpôs recurso de revista desta decisão que foi rejeitado.
A recorrente/ré reclamou da rejeição do recurso nos termos do art. 643 do CPC e a reclamação foi julgada procedente tendo sido admitida a revista na qual a recorrente conclui:
“ 1. Provando-se o poder de facto sobre a coisa, prova-se a posse.
2. Provando-se a posse, preenche-se o corpus.
3. “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.”.
4. O animus presume-se relativamente a quem tem o poder de facto.
5. Face do exercício de um poder de facto sobre uma coisa, é de presumir que o possuidor possui em nome próprio, sem ter necessidade de provar o elemento subjectivo da posse.
6. Quem detém o poder de facto sobre o prédio a que corresponde o caminho, nas invocadas circunstâncias beneficia da presunção de posse, não carecendo de demonstrar a intenção de exercer o direito correspondente esse exercício, assim estipula o artigo 1252.º nº2 do Código Civil.
7. A presunção de posse não foi ilidida pelos Reconvindos.
8. A Recorrente beneficia, portanto, dessa presunção.
9. O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e nos demais modos previstos na lei – artigo 1316.º do Código Civil.
10. A prova direito de propriedade é feita através de factos demonstrem a aquisição originária do domínio por parte de quem quer ver declarado o respectivo direito ou dos seus antepossuidores.
11. A Recorrente fez prova desses factos.
12. Fá-lo com o animus de exercer um direito próprio, convicta de que não viola direito de outrem.
13. Os actos praticados pela Recorrente e antepossuidores, foram praticados, dia após dia, de forma pública e pacífica, durante anos mais de trinta anos sem oposição de ninguém.
14. Verificam-se todos os pressupostos para a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade pela Reconvinte do prédio onde está implantado o caminho.
15. Quer pelos diversos actos materiais integradores da posse que, reiteradamente a Recorrente e seus antepossuidores vêm exercendo sobre o trato de terreno em causa - artigo 1263.º alínea a) do Código Civil.
16. Quer porque tal actuação foi exercida de boa-fé e de forma pública e pacífica - artigos 1260.º n.º1, 1261.º n.º1 e 1262.º do Código Civil.
17. Quer, ainda, porque a actuação se prolongou por mais de 30 anos consecutivos e ininterruptos sem oposição, está também verificado o prazo legal necessário para a aquisição do respectivo direito de propriedade - artigo 1296.º do Código Civil.
18. O Acórdão, nesta parte, ao julgar como julgou, violou o disposto no artigo 1252.º nº2 e no artigo 1287.º, ambos do Código Civil.
19. Violou, ainda, quanto à questão do animus, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/1996, proferido no processo n.º085204, que teve como relator o senhor conselheiro Amâncio Ferreira, consultável em www.dgsi.pt onde se firmou que: “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.” (itálico nosso)
Por outro lado,
20. Verificando-se todos os pressupostos para a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio onde está implantado o caminho pela usucapião, o Autor marido violou um direito absoluto da Recorrente.
21. Verificam-se todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos.
22. Decorre dos factos dados como provados nos pontos 21º e 22.º que o Apelado marido agiu com dolo, com dolo intenso.
23. Pelo que a indemnização não pode deixar de corresponder ao valor dos danos causados à Recorrente, dados por provados no ponto
26º da decisão da matéria de facto.
24. O Acórdão, ao julgar como julgou, viola o disposto o n.º1 do artigo 483.º do Código Civil.
Ademais,
25. A conduta do Autor marido viola, também, o disposto no artigo 3.º, aplicável neste caso por via do artigo 2.º, ambos Código da Estrada, Lei n.º72/2013, de 3 de setembro, em vigor à data da entrada do processo em Juízo, mercê dos factos provados nos pontos 12.º, 17.º, 21.º, 22.º, 28.º e 29.º.
Acresce que,
26. Num Estado de Direito, em sociedade, quem age como agiu o Autor marido, merece a maior censura!
27. A conduta do Autor marido integra claramente um facto ilícito, sendo o mesmo culposo e, assim sendo, obriga-o a indemnizar a Recorrente, preenchido que está o pressuposto do nexo de causalidade, apreciado segunda a tese da causalidade adequada, ainda que na perspetiva do abuso de direito.
28. Não se condenando a atuação o Autor marido é permitir que cada vez que não concordar, ou cada vez que uma decisão judicial não vá ao encontro do que pretende, se arrogue o direito de fazer a sua justiça pelas próprias mãos, destruído o que não lhe pertence, achando que o pode fazer impunemente!
29. Dar-se por bom o que se defende no Acórdão recorrido, o enquadramento que se faz da atuação do Autor marido, desobrigando-o de indemnizar, é legitimar a destruição por este mandada executar.
30. É, no fundo, legitimar a anexação pela força, o açambarcamento pretendido pelo Autor marido, não obstante o desfecho da ação anterior.
31. É potenciar-se que venha, novamente, a fazer a mesma coisa.
32. Depois da ação do Apelante marido, materializada na destruição do caminho edificado no prédio entretanto descrito e inscrito na matriz por iniciativa da Recorrente, esta, a sua família, caseiros e visitas, deixaram de conseguir aceder à quinta do modo como vinham fazendo desde há mais de 60 anos.
33. Não tendo outra alternativa viável de acesso.
34. In casu, há responsabilidade delitual, geradora da obrigação de indemnizar, quanto mais não seja pelo abuso de direito perpetrado pelo Autor marido.
35. Interpretando-se este Instituto em sentido amplo, “abrangendo as simples liberdades, designadamente a liberdade genérica de agir e a liberdade especial de contratar, ou convocar “uma proibição destinada a assegurar o mínimo ético-jurídico no relacionamento entre os membros da comunidade jurídica”, independentemente de se encontrarem ou não inseridos em relações contratuais, conduzindo a soluções práticas idênticas às que resultam do recurso ao art. 334º do CC.”. (cfr. Acórdão fundamento 2).
36. “No caso dos autos, a conduta dos réus [Autor marido] - interrompendo a passagem em caminho relativamente ao qual não provaram deter qualquer direito real ou equivalente; utilizando uma máquina retroescavadora para revolver o piso de terra batida a fim de inviabilizar a circulação dos veículos (…) - configura uma manifesta violação dolosa dos limites impostos pelos bons costumes e, simultaneamente, constitui uma grave afetação do mínimo ético- jurídico exigível na convivência social.” (mesmo Acórdão).
37. “Por uma ou por outra via, a conduta dos réus [Autor marido] integra um facto ilícito e culposo que obriga a indemnizar a autora [Recorrente] pelos danos económicos puros provados, desde que preenchido o pressuposto do nexo de causalidade, apreciado segunda a tese da causalidade adequada.” (Mesmo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/9/2016, que teve como relatora a Senhora Conselheira Relatora Maria da Graça Trigo).
38. Defendemos, à semelhança do que já foi defendido anteriormente por outros, “ (…) que a obrigação de indemnizar ocorre não só quando a conduta ilícita é violadora de um direito absoluto alheio ou de disposição legal que protege interesses de outrem, mas também quando o agente age com manifesto abuso de direito, nos termos definidos pelo art. 334°, do CC e com o enquadramento que lhe é dado pela jurisprudência nacional.”. “Impedir alguém de circular por um determinado caminho que dá acesso a uma propriedade , independentemente de tal caminho ser considerado público ou particular, não pode deixar de ser considerado um ato ilícito, tanto mais que os lesantes não tem qualquer direito sobre o caminho em causa, como se veio a provar.” (cfr. citação das conclusões de Recurso do Acórdão fundamento 2).”
Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida e que seja julgado procedente o pedido reconvencional com reconhecimento da ré como legítima proprietária do trato de terreno a que corresponde o caminho controvertido e indemnização nos termos pedidos.
Os autores contra alegaram defendendo a confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
Fundamentação
Está provada a seguinte matéria de facto:
1º Os autores propuseram a ação 1035/08...., que correu termos no ... – Juiz ..., da extinta Comarca ..., peticionando, para além do mais, fosse declarada a extinção do direito de passagem, de pé e carro, para o prédio da ré (descrições do registo predial 3933 e 3934 e artigos matriciais ...58 e ...79), pelo prédio dos AA. (com a descrição no DD e artigo matricial ...78), condenando-se aquela a abster-se de aí entrar e a fechar as aberturas de comunicação existente entre os dois prédios. Subsidiariamente peticionaram fosse a ré condenada a utilizar tal caminho apenas para fins agrícolas, nos momentos próprios para lavrar, semear e colher na parte rústica dos seus prédios.
2º A referida ação foi julgada improcedente.
3º Os autores são donos e legítimos possuidores do prédio descrito sob o número ...66 na Conservatória ..., da freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...78, no ano de 1973, do SF de ..., freguesia ....
4º Tal prédio adveio à titularidade dos AA. por o haverem comprado a EE, a 24.10.1966, tendo sido vendido como uma terça parte indivisa do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...46.
5º A 17.11.2006, os autores adquiriram parcela de terreno com a área de 1650 m2, a desanexar do lado norte do prédio descrito na matriz da freguesia ... sob o artigo ...87, anexado ao prédio referido em 3, com o qual confrontava a nascente deste.
6º O prédio dos autores, 7278, desenvolve-se à margem nascente da EN ...09, confrontando a norte com um caminho e, mais a nascente, após os portões implantados no prédio da R., com este prédio, pertencente à ré, inscrito na matriz sob o artigo ...79 e descrito na CRP sob a ficha nº ...34.
7º A vedar e a delimitar pelo lado sul o prédio da ré, referido em 6, existe um muro, que se inicia na EN...09 e segue pelo limite sul do terreno da R. numa extensão de 28,854m, desenvolve-se em curva para o interior do terreno da R., por 6,40m e por 4,763m –onde estão colocados um portão para acesso de carros e um portão para acesso de pessoas, desenvolve-se novamente para sul, até ao limite sul do terreno, por onde segue para nascente por mais 20,505m, aqui confrontando com o prédio dos autores.
8º Este muro tem, assim, o comprimento total de 60,25 metros, é constituído por blocos de cimento, tijolo de barro vermelho maciço e furado e pedra em taipa, apresenta uma altura média de 2,10 m, na sua zona mais larga, executada em tijolos de taipa, junto ao limite sul/poente, apresenta a largura de 58,1cm e na sua zona mais estreita a largura de 15,5 cm.
9º O custo total deste muro é de €3174,32 e o valor do solo por ele ocupado de €294,84.
10º Foi o mesmo reconstruído, numa extensão de 24,28m, junto do caminho, descrito em 12º, pela R. em março de 2013, na sequência de ter ficado parcialmente destruído após um temporal, no que despendeu a ré o valor de €3240,00.
11º Antes da reconstrução, parte deste muro tinha uma base em pedra sobre pedra, sendo a base mais saída do que os tijolos que lhe davam altura.
12º ... a sul a este muro da R. existe, um caminho que se inicia na EN ...09 e se desenvolve no sentido nascente, em rampa, até atingir o prédio inscrito na matriz sob o artigo ...79, por 40,02 metros.
13º Este caminho, aquando do julgamento realizado na ação nº 1035/08...., apresentava uma largura de 3,90m à face da EN ...09, uma largura de 3,60 a meio do percurso até aos portões que dão acesso ao prédio da R. e 4,50 m um pouco antes de tais portões.
14º Os autores, pelo menos desde que adquiririam a parcela de terreno referida em 5º, utilizam este referido caminho para ali acederem, como se de coisa sua se tratasse, convictos de que o mesmo integra o seu terreno inscrito na matriz sob o artigo ...78.
15º O autor enviou à ré uma carta, datada de 02.05.2003, com o seguinte teor: em princípio de dezembro de 2002 falamos, pelo telefone, onde lhe dei conta de que se estava a abrir uma passagem de um terreno seu para um terreno meu. Da nossa conversação resultou que a senhora não queria problemas. O seu genro telefonou-me no mesmo sentido. Voltei agora, fim de abril de 2003 e verifiquei que nada foi feito da sua parte. Serve esta carta para avisar a Sra. D. FF que vou fechar o meu terreno. Deixo-lhe 30 dias para que tome as necessárias medidas”.
16º A esta missiva respondeu a ré nos seguintes moldes “acuso a receção da carta de V. Exª. que recebi em 6 de agosto. Venho informá-lo de que, desde o seu primeiro telefonema, não consigo vislumbrar em que é que o molestei (…) como sabe existe um caminho de serventia entre o meu muro e o que diz ser o seu terreno. Limitei-me a consolidar o caminho, pois este encontrava-se em vias de derrocada, para cima da sua propriedade, inviabilizando a passagem de qualquer veículo para o meu terreno.
17º Encontra-se ainda inscrito em favor da R. o prédio urbano, descrito na CRP sob o número ...33 e na matriz predial urbana do SF de ... sob o artigo ...58, o qual, conjuntamente com o prédio descrito em 6. forma uma pequena quinta.
18º Os prédios da R., descritos nos FP, confinam com a via pública, EN ...09, a poente, sendo que, no urbano, está aberto um portão por onde pode entrar um veículo automóvel.
19º O caminho referido em 12º estava assente e seguro por um muro de pedra sobre pedra que confrontava com o prédio dos AA. 7278.
20º Este muro de sustentação do caminho era um muro divisório, que delimitava o prédio dos autores do referido caminho.
21º Em 24.03.2013 o autor mandou arrasar e demolir o referido caminho com uma retroescavadora, o que foi feito.
22º Ao assim atuar sabia o autor que estava a impedir a ré e sua família, caseiros e visitas de circular pelo caminho e aceder ao seu prédio, como vinham fazendo até então.
23º A R., após este facto, mandou reconstruir o caminho, partindo do ponto já existente, isto é, da EN ...09, até se alcançar os portões da quinta da ré, fazendo-se a ligação em rampa.
24º Atualmente e após esta reconstrução, o caminho possui a largura média de 3,80m. Está, com relação ao terreno dos autores, no seu início, junto à EN ...09, a uma cota de 0,00m, a meio a 1,39m, no final a 1,54m
25º O caminho encontra-se agora sustentado num muro, em betão, com as cotas antes referidas e com a extensão de 34,867m, que proporciona maior suporte e segurança à passagem das viaturas.
26º Na execução deste caminho, o qual tem uma área total de 145,45m2, a ré despendeu a quantia de € 7 665,48.
27º A reconstrução do caminho impede que os autores acedam do caminho, sem ser a pé, à leira do artigo 7278, contígua à EN ...09.
28º A ré e seus ante possuidores - seus pais e avós, caseiros e visitas, utilizam e fruem deste caminho para aceder, vindos da EN ...09 aos seus prédios, inscritos na matriz predial sob os artigos ...79 e ...58.
29º Fazem-no a pé, de carro, com veículos agrícolas ou pesados, nele deixando marcas de rodados.
30º Vêm mantendo o caminho, tapando buracos que com o tempo, as intempéries e a passagem de veículos foram surgindo e colocando terra e saibro para o manter circulável, bem como mandando cortar a vegetação que ali ia crescendo e assumindo os respetivos encargos.
31º Sempre o fizeram convencidos de que exerciam um direito próprio de passagem sobre o referido caminho.
32º Dia após dia, há mais de 60 anos e à vista de qualquer pessoa que ali passasse.
33º O autor manifestou oposição ao uso que a R. dava ao referido caminho em 2003 e 2013.
34º No início da década de 70, os anteriores proprietários do prédio que veio a ser vendido aos autores em 2006 e referido em 5º, erigiram um muro com cerca de 1,5m de altura a nascente na parte final do caminho, vedando o acesso pelo caminho a esse prédio.
35º O portão de acesso à casa sita no artigo matricial urbano nº ...58, tem 2,26m de largura e encontra-se implantado a 20 cm da EN ...09.
36º Naquele local não existe passeio.
37º Este portão não é usado, comummente, como acesso a qualquer dos prédios da R., mas sim aquele efetuado pelo caminho descrito em 12º.
38º Dois ou três metros após o início do caminho, desde a EN ...09, o terreno da R. situa-se a uma cota superior de cerca de 60 cm, por referência a ele, sendo uma área arável e de pasto.
39º Os autores AA e BB eram casados entre si no regime da comunhão geral de bens.
… …
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art. 679, todos do Código de Processo Civil.
No caso em presença a questão a abordar e a resolver é a de saber se a decisão recorrida deveria ser revertida e julgados preocedentes os pedidos de reconhecimento da propriedade por usucapião por parte dos recorrentes e condenados os réus a pagarem a indemnização pedida.
… …
Como preliminar ao conhecimento do mérito do recurso diga-se que o relator, na decisão que deferiu a reclamação e admitiu o presente recurso, sublinhou que a recorrente fundou a interposição do recurso na previsão do art. 672 nº1 al. c) do CPC, alegando existir contradição de acórdãos entre o proferido e jurisprudência uniformizada do STJ em matéria que se prende com a definição do animus para a posse e usucapião e, num segundo segmento, com o pedido de indemnização que formula. E efetivamente, no concreto das alegações e conclusões a recorrente refere que “o presente recurso tem, assim, por objeto o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 10-2-2022, com referência ...50, na parte em que decidiu julgar procedente a Apelação dos autores/Apelantes que haviam impugnado a decisão de primeira instância que condenara o reconvindo AA a indemnizar a reconvinte”. E pata não deixar dúvidas sobre a finalidade do seu recurso a recorrente, no final, repete que com a revista pretende ver revogada a apelação “quanto a aquisição por usucapião, julgando-se o pedido reconvencional procedente por provado e a reconvinte reconhecida e declarada dona e legítima proprietária do trato de terreno a que corresponde o caminho controvertido.
Deve ser revogada a decisão quanto ao pedido indemnizatório, condenando o reconvindo a indemnizar a reconvinte conforme peticionado.”
Atendendo ao pedido reconvencional formulado, o mesmo consistia em ser “a reconvinte reconhecida e declarada dona e legítima proprietária do trato de terreno a que corresponde o caminho sito em ..., com 35 metros de comprimento a confrontar a norte com a quinta da reconvinte, composta pelo prédio rústico descrito na CRP ... sob o nº ...24 e inscrito na matriz da freguesia ... sob o art. ...58 a confrontar a sul em 34,30 metros de comprimento com o prédio rústico dos reconvindos sito em Igreja ou valada , descrito sob a ficha 4966 da freguesia ... e inscrito na matriz predial da mesma freguesia sob o art. ...78 , a confrontar a poente em 3,90 metros de largura com a estrada nacional nº ...09; a confrontar a nascente em 4,25 metros de largura com a referida quinta da reconvinte e com o terreno adquirido pelos reconvindos em 17/11/2006; com 135 metros quadrados de área por o ter adquirido por usucapião.
Devem os reconvindos ser condenados a abster-se da prática de qualquer ato sobre o trato de terreno a que corresponde o caminho.
Devem ainda ser condenados os reconvindos a pagar à reconvinte a importância de 7.665,48 € a que acrescem juros à taxa legal desde a data de citação até integral pagamento.”
A recorrente configurou a revista que interpôs como excecional nos termos do art. 672 nº1 al. c) do CPC e não revista como normal, reconhecendo ela mesma que, em princípio, o recurso não deveria ser admitido por existir uma situação de dupla conforme que o impediria nos termos do nº3 daquele preceito. Todavia, observando com atenção, o pedido reconvencional na sua integridade não se limitou a uma pretensão de indemnização, abrangendo e pressupondo a de reconhecimento e declaração de um direito de propriedade sobre uma determinada parcela de terreno (e não outro direito); a condenação dos autores a absterem-se de violar esse direito de propriedade e, for fim e em sequência, uma indemnização com fundamento em terem os autores violado esse direito cujo reconhecimento é pedido.
Ambas as instâncias negaram o reconhecimento de qualquer direito de propriedade da ré sobre a parcela de terreno que reivindicava, mas enquanto a sentença fixou uma indemnização por violação de direito diverso do que a ré pretendia ver reconhecido, a decisão recorrida revogou a sentença nesta parte da indemnização não concedendo nenhuma.
Não é assim exato que a coincidência na negação do reconhecimento do direito de propriedade à ré, por parte das instâncias, configure uma dupla conforme no que se refere à totalidade da decisão da primeira instância em sede reconvencional (com exceção da indemnização) que apenas permita a revista na sua forma excecional. Em verdade, tendo a ré ficado vencida numa parte do pedido não se pode reconhecer em sentido técnico jurídico uma dupla conformidade das decisões porque a reconvenção foi julgada na sentença parcialmente procedente e na apelação totalmente improcedente. E a coincidência de ambas as decisões no não reconhecimento do direito de propriedade da ré não se afigura suficiente para segmentar a decisão reconvencional de forma a autonomizar o pedido de reconhecimento do direito invocado pela ré da indemnização pedida com causa na violação desse direito. Tendo a ré pedido que por ser proprietária da faixa de terreno em discussão tinha direito a uma indemnização dos autores por violação desse direito, a circunstância de os autores terem sido condenados na sentença por violação dos direitos dos réus sobre essa faixa de terreno e ter existido absolvição na apelação logicamente que não permite que se aprecie o mérito da condenação da indemnização sem apreciar a eventual existência do direito do réu que se diz violado, daqui decorrendo a ausência de dupla conformidade.
Assim, a revista admitida deve correr sob a forma geral do art. 671, nº1 do CPC não carecendo da verificação dos fundamentos previstos no nº1 do art. 672.
Acresce em explicação que o valor da ação foi fixado em 30.000,01 €, determinando o art. 299, nº2 do CPC que em caso de reconvenção o valor do pedido formulado pelo réu se soma ao valor do pedido formulado pelo autor, mas apenas quando os pedidos sejam distintos, não havendo distinção quando o réu pretenda obter em seu benefício o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
No caso presente, em reconvenção o réu pretende a declaração de propriedade do tereno onde se situa a zona de passagem, isto é, o mesmo que os autores pretendem, razão para que o tribunal a quo tenha mantido como valor da ação (já com a reconvenção) o de 30.000,01 €. Em consequência, a presente revista, reportando ao pedido reconvencional e incluindo todos os segmentos desse pedido, com incidência no reconhecimento do direito de propriedade e condenação dos autores a absterem-se de o violar, não se restringe à indemnização, tendo sido esta a razão para ter sido admitido sem entrave de alçada ou sucumbência.
Definido que está o objeto da presente revista com a advertência explicativa de o pedido indemnizatório não ter autonomia quanto ao de reconhecimento do direito em que se funda, entendendo-se que em termos de precedência lógica, só pode eventualmente ter provimento se a ré reconvinte obtiver do tribunal a declaração de ser proprietária da parcela de terreno discutida, abordaremos de imediato a apreciação do mérito tomando a invocação de contradição de acórdãos por oposição do recorrido ao AUJ de 14.05.1996, publicado no DR II série, de 24.06.96, não como atribuição da excecionalidade da revista (que segue a forma geral) mas sim como remissão para este dos argumentos da recorrente no sentido de abonar a sua pretensão e obter o reconhecimento do direito de propriedade e indemnização pela sua violação
… …
A recorrente esgrime com base nos factos provados, que deveria ser reconhecida como proprietária do trato de terreno discutido na ação, afastando expressamente que seja titular de qualquer outro direito, máxime o direito de servidão, sobre essa passagem, E para sustentar esta pretensão convoca o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/1996, proferido no processo nº 085204, no qual se fixou como entendimento que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.”
Este segmento uniformizador declara que face ao exercício do poder de facto que realize sobre uma coisa, presume-se que o possuidor possui em nome próprio, sem ter necessidade de provar o elemento subjetivo, o animus, da posse.
Como decorre do disposto no artigo 1251 do CCivil, há posse quando se “atua por forma correspondente ao exercício” do direito de propriedade ou de outro direito real (corpus da posse), independentemente de se ser ou não titular do mesmo e, segundo alguns (embora com diversas construções), quando essa atuação (ou seja, o exercício de poderes de facto sobre a coisa) seja acompanhada da “intenção de agir como beneficiário do direito” (art. 1253º, al.a), do Código Civil) – animus da posse.
Não obstante o que resulta do entendimento do acórdão uniformizador, diferentemente do que a recorrente parece pretender, em face do poder de facto exercido pelo possuidor e correspondente a um determinado direito não decorre, obviamente, desta atuação que se presuma o animus de proprietário, mas sim aquele que corresponda ao poder concretamente exercido. É de reconhecimento elementar que antes do animus se tem de provar a corpus o qual, sendo o poder de facto exercido em concreto sobre a coisa, configura e certifica que direto lhe corresponde.
São estruturalmente diferentes os atos exercidos em termos de poder de facto sobre a coisa destinados ao reconhecimento de um direito de servidão de passagem ou de propriedade e, no caso, a prova revela que relativamente ao trato de terreno identificado, a ré e seus ante possuidores utilizara e fruíra esse terreno para aceder aos seus prédios, realizando essa utilização a pé, de carro com veículos agrícolas ou peados nele deixando marcas de rodados diligenciando por manter o caminho, tapando buracos que com o tempo, as intempéries e a passagem de veículos foram surgindo e colocando terra e saibro para o manter circulável, bem como mandando cortar vegetação que ali ia crescendo e assumindo os respetivos encargos. E realizando todos estes atos convencida que exercia um direito próprio de passagem sobre o referido caminho, dia após dia, há mais de 60 anos e à vista de qualquer pessoa que ali passasse.
Esta descrição de comportamento revela sem dúvida que os atos da ré correspondem à materialidade naturalística do exercício de um direito de servidão de passagem pois não existe neles nenhum que especificamente corresponda ou possa configurar especificamente o exercício de um direito de propriedade. Aliás, se a ré pretendia o reconhecimento da propriedade desse terreno afirmando que essa parcela faz parte de um prédio em que se insere, cremos que teria de alegar e provar a propriedade desse imóvel global de que faria parte a parcela discutida e, eventualmente, as razões pelas quais se teria destacado essa faixa de terreno em termos de utilização diversa da do resto do imóvel. Em todo o caso, perante os factos provados, do corpus apurado não se pode presumir o animus de proprietário (sim o de direito de servidão) sendo que, ficaram expressamente provados atos que revelam um poder de facto sobre a coisa correspondentes a um direito de servidão de passagem, mas também o animus desse mesmo direito que não pode, no entanto, ser declarado e reconhecido por não ter sido solicitado.
… …
No segundo segmento de apreciação do recurso a recorrente defende que devem os autores ser condenados na indemnização pedida em reconvenção e faz decorrer em primeiro lugar o ressarcimento da violação do seu direito de propriedade que, como vimos, não lhe é reconhecido.
Num esforço de interpretação das conclusões de recurso da recorrente, verificamos que esta pretende que os autores sejam condenados em indemnização, mas não pela via que a sentença adotou (através do reconhecimento de um direito de passagem que a ré não pediu e como tal não poderia ser reconhecido) antes com base na ofensa do seu direito de propriedade que, no entanto, não lhe é reconhecido. Compreende-se que se a ré pedia o reconhecimento do direito de propriedade sobre o terreno de passagem e não outro direito, soçobrando neste pedido não era legalmente admissível “convolar” o direito de propriedade não reconhecido para um direito de passagem não permitido, até porque, mesmo num raciocínio dentro do principio do pedido não se pode sequer aceitar que a servidão de passagem seja um direito que se encontre contido no de propriedade como um minus de tal forma que não se reconhecendo o primeiro se possa entender que, pelo menos, se possa reconhecer o segundo.
A recorrente na reconvenção afastou expressamente qualquer direito de passagem seu sobre a faixa de terreno discutida e apenas aceitou ser proprietária dessa parcela. Assim improcedendo esse pedido não se pode fazer proceder o reconhecimento de outro direito com base em que os factos provados o permitem.
Diferente é saber se é legalmente admissível a condenação dos autores em indemnização com outro fundamento, designadamente ao abrigo do abuso de direito numa interpretação alargada, como nas conclusões de revista a recorrente defende com base no ac.do STJ de 08-09-2016 no proc. 1952/13.6TBPVZ.P1.S1, in dgsi.pt no qual se entendeu que “Não tendo sido feita prova da titularidade de qualquer situação absolutamente protegida, nem se verificando a violação de norma destinada a proteger os interesses da autora/lesada, resta a possibilidade de recurso ao instituto do abuso do direito, interpretado em sentido amplo, abrangendo as simples liberdades, designadamente a liberdade genérica de agir e a liberdade especial de contratar, ou convocar “uma proibição destinada a assegurar o mínimo ético-jurídico no relacionamento entre os membros da comunidade jurídica”, independentemente de se encontrarem ou não inseridos em relações contratuais, conduzindo a soluções práticas idênticas às que resultam do recurso ao art. 334º do CC.”
A problemática suscitada pela recorrente e importada diretamente do citado acórdão reporta ressarcibilidade dos danos nas hipóteses de responsabilidade civil extra contratual em que ocorre um prejuízo e, não obstante, este não pode ser reparado, porque falta o requisito da ilicitude para que possa ser ressarcido. No modelo de responsabilidade civil extracontratual português, a ilicitude do ato é verificada a partir de três cláusulas normatizadas expressamente: a violação a direito absoluto de outrem; a violação de lei de proteção de interesses alheios; e o abuso de direito. As duas primeiras estão consagradas no artigo 483º, enquanto a terceira se encontra no artigo 334º, do Código Civil. Estas fórmulas de ilicitude são determinantes para a caracterização do dano ressarcível e, sendo assim, acabam por valorizar a ideia de liberdade, em contraposição à incidência da responsabilidade. Efetivamente, o art. 483 do CCivil exige para além da culpa e imputação objetiva que exista comportamento ilícito, o que ocorre quando há violação de direitos absolutos ou disposições legais de proteção de interesses alheios. Contudo, para lá da violação de direitos absolutos e de disposições legais de proteção de interesses alheios, incorpora-se na sistemática, como terceira via da ilicitude, o artigo 334º CCivil que contém, na sua formulação genérica e abstrata, uma cláusula delitual absorvida pelo abuso de direito – vd. Sinde Monteiro, in Responsabilidade por conselhos,181; Vaz Serra, in “Abuso de direito (em matéria de responsabilidade civil) ”, Boletim do Ministério da Justiça, nº85, 252 e Antunes Varela, Das obrigações em geral , vol. I, Almedina, Coimbra, 2003, 563 s. Dessa maneira, ao sofrer um prejuízo patrimonial que não seja decorrente de um ato ilícito (ilicitude normativamente definida), o lesado, em princípio, não logrará êxito em uma pretensão de ressarcimento da perda sofrida, pois, não havendo ilicitude no ato do lesante, não há, por regra, como responsabilizá-lo pelo dano, sendo este tipo de dano, não indenizável de princípio aquele a que se atribui a denominação de dano económico puro ou de dano puramente patrimonial.
Este entendimento regra esbarra, no entanto, na realidade quando esta evidencia situações em que o dano patrimonial puro é decorrente de uma conduta intencional do agente o que faz questionar que estes casos devam ser excluídos da esfera de responsabilidade civil e propender a admitir a sua indenização ao lesado por não se poder aceitar que mesmo diante de uma conduta intencional de infligir danos, essa conduta não seria ilícita. A ideia de primado do Direito, com toda a sua exegese e património axiológico inerente, sobre argumentos puramente económicos autoriza que na finalidade e previsão da responsabilidade civil extracontratual se possam encontrar itinerários para responder em concreto à indemnização de tais danos, na medida em que se afigure excessivo e injusto à consciência jurídica geral a sua impunidade.
No caso da pretensão de ressarcimento dos danos puramente patrimoniais não encontrar fundamento na violação de direito absoluto (primeira cláusula de ilicitude) nem numa norma de proteção que tenha sido desrespeitada e que seja suficiente a fazer incidir a segunda modalidade de ilicitude por violação de um comando de uma norma jurídica, cujo o fim seja a tutela direta de interesses particulares e não do interesse geral, mesmo que reflexamente atinja interesses particulares, importará ainda verificar se a ressarcibilidade é admitida pelo abuso de direito (terceira cláusula de ilicitude).
A figura do abuso de direito tem sofrido constante ao longo (tempo desde a sua origem no direito francês), como um limite à licitude de um direito subjetivo, exercido com a intenção de prejudicar outrem e sem qualquer utilidade do ato praticado. E esta evolução decorre e acompanha ao desenvolvimento evolutivo da própria ideia de direito subjetivo, visto como uma forma de realização da autonomia privada e do próprio exercício da liberdade humana que, por sua vez, abandonou a sua vertente exclusivamente negativa para ser entendida como uma liberdade positiva, isto é, do homem socialmente responsável e, desta maneira, uma liberdade que seja fonte de deveres de solidariedade vd. Fábio Leite Farias Brito, Responsabilidade civil por danos puramente patrimoniais, in VII Encontro Internacional do CONPEDI/BRAGA.
Na abordagem introdutória ao abuso de direito é pacifico aceitar que ele existe quando “um comportamento tenha a aparência de licitude jurídica - por não contrariar a estrutura formal definidora legal ou conceitualmente de um direito, à qual mesmo externamente corresponde - e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício” – Castanheira Neves in Questão de facto e Questão de Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade (ensaio de uma reposição crítica). A Crise, Almedina, Coimbra, 1967 p. 524. A ideia base deste aprumo é a de que se o direito subjetivo é visto como uma forma de realização da autonomia privada, uma forma de exercício da liberdade humana, então, deve implicar-se nele não só a delimitação de uma esfera de ação, mas igualmente uma série de deveres, desde que se entenda a liberdade como uma liberdade em sentido positivo, geradora de responsabilidade e deveres de solidariedade - Mafalda Miranda Barbosa, in um caso de ressarcimento de danos puramente patrimoniais – comentário ao acórdão do supremo tribunal de justiça de 8 de setembro de 2016 (processo nº1952/13.6tbpvz.p1.s1), RJLB, Ano 3 (2017), nº 2 p. 467.
Este é o fundamento para que à semelhança do controle do exercício de um direito quando ele formalmente existe, porque este exercício é uma manifestação da liberdade pessoal seja de admitir a consideração de que o exercício de uma mera liberdade, não conformada como direito subjetivo, possa inscrever o mesmo padrão de análise que o ordenamento disponibiliza, isto é, da liberdade para agir, que foi a perspetiva em que se situou o ac. do STJ de 08-09-2016 reclamado em seu abono pela recorrente onde está presente a preocupação de vitalizar os segmentos da boa-fé, bons costumes e fim económico ou social que integram a previsão do art. 334º do CCivil.
Como sinalizam Vasco da Gama Lobo Xavier e Ferrer Correia “seria incompreensível, senão absurdo, que o comportamento contrário à boa fé e aos bons costumes só originasse a responsabilidade do agente quando correspondesse ao exercício de um direito deste”, com o que pretendem ilustrar que, quando não esteja em causa um direito, nem uma faculdade jurídica mas a liberdade genérica de agir esta pode ainda inscrever-se na previsão do abuso de direito – in Efeito externo das obrigações; abuso de direito; concorrência desleal”, Revista de Direito e Economia, 1979, 12.
No concreto em decisão, adotando o itinerário argumentativo do ac. do STJ invocado pela recorrente - que por sua vez replica o enunciado por Carneiro da Frada/Maria João Vasconcelos, “Danos económicos puros – Ilustração de uma problemática”, in Forjar o Direito, 2015, p. 163 - “as lesões patrimoniais que não envolvem a ofensa de uma posição jurídica absolutamente protegida só dentro de pressupostos relativamente estreitos poderão dar lugar a uma obrigação de indemnizar. Concretamente, na responsabilidade delitual, apenas será de admitir a ressarcibilidade de danos económicos puros nas seguintes situações:
(i) Quando tiver sido violada uma norma de proteção ou “disposição legal destinada a proteger interesses alheios” (art. 483º, nº 1, segunda regra, do CC);
(ii) Quando exista previsão delitual específica que contemple os danos económicos puros, como por exemplo, as normas dos arts. 485 e 495º do CC, ou a norma do art. 8º do Decreto-Lei nº 147/2008, de 29 de julho, relativamente à reparação de danos ambientais;
(iii) Quando se verifique abuso do direito, nas condições em que este constitua fonte de responsabilidade civil.” sendo neste último segmento que se pode incluir também o gozo da liberdade geral de agir antes enunciada e defendida por Sinde Monteiro quando reclama a necessidade de interpretar muito amplamente a noção de direito subjetivo na hipótese de facto do artigo 334 por não existir uma outra norma a que se possa recorrer no caso de um mau uso de uma liberdade de ação, fora dos quadros do exercício de um direito - Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, cit. pág. 180 e 547, nota 325.
No caso em decisão, como naquele que é decidido no acórdão invocado pela recorrente inexiste prova da propriedade e/ou a posse do caminho tanto pelos autores como pela ré sem que se provasse a quem, afinal, pertence. E porque os danos peticionados se situam no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, a verificação dos seus pressupostos enuncia a conduta do autor que em 24.03.2013 mandou arrasar e demolir o referido caminho com uma retroescavadora sabendo que estava a impedir a ré e sua família, caseiros e visitas de circular pelo caminho e aceder ao seu prédio, como vinham fazendo até então, corresponde a um facto voluntário que causou danos à autora.
Afastada anteriormente a violação dos direitos absolutos da ré por não reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno discutido deve afastar-se igualmente a violação de norma legal destinada a proteger interesses alheios por não ter sido alegada e provada que a afetação do livre exercício de atividade económica ou empresarial da ré, mas só a afetação da livre circulação de pessoas e veículos da ré.
O decalque de argumentação enunciada no acórdão do STJ onde a recorrente busca fundamento e que reproduz nas suas conclusões de revista merece a mesma resposta que nesse aresto foi dada no sentido de confirmar que “o impedimento da circulação rodoviária constitui uma conduta ilícita por violação de norma destinada a proteger interesses alheios, desde que estejam em jogo “vias do domínio público” ou “vias do domínio privado quando abertas ao trânsito público” (art. 2º, conjugado com o art. 3º, nº 1, do Código da Estrada).
Tratando-se de um facto constitutivo do direito da A., cabia-lhe, nos termos do art. 342º, nº 1, do CC, fazer prova de que o caminho interrompido constitui via do domínio público ou via do domínio privado aberta ao trânsito público. Não o tendo feito, não pode aqui aplicar-se a norma legal que garante a liberdade de trânsito. Deste modo, encontra-se excluída a alternativa de fundar a ressarcibilidade dos danos económicos puros na violação de norma destinada a proteger interesses alheios.”
No que se refere à possibilidade de inscrever os danos peticionados pela ré no âmbito do abuso de direito, no sentido de ser neste que cobra a sua razão axiológica de ilicitude, como antes deixámos referido, são dois os aspetos que interessam ao caso, o da admissibilidade do abuso do direito como cláusula geral de ilicitude e, na afirmativa, o da sua aplicação à liberdade genérica de agir.
Sendo consensual, a admissibilidade do abuso de direito como fonte autónoma de responsabilidade civil – sustentada por Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1987, I, pág. 474 – este entendimento manteve-se na aceitação de que a não inclusão na secção da responsabilidade civil de uma cláusula residual sindicando como ilícita a causação de danos com violação dos bons costumes, não excluía a sua aplicação nesta sede (da responsabilidade civil) por se encontrar colocada na Parte Geral. E dos três segmentos em que se desdobra o abuso do direito - por ser ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito , interessa a decisão a que reclama a atuação conforme os bons costumes porque, relativamente à boa-fé, a inexistência de relacionamento, pressuposto para a atuação do princípio da boa-fé não existe.
Na dimensão dos bons costumes o enunciado do art. 334 do CCivil em leitura integrada com a do art. 280 nº2 do mesmo diploma - que declara a nulidade do negócio cujo objeto seja contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes - remete para os princípios de valoração intrínsecos da ordem jurídica, só que, o desrespeito dos “bons costumes”, como cláusula geral de ilicitude, repete a mesma dificuldade de resolução dos casos em que não fique demonstrada a titularidade de qualquer direito do lesado, no caso em discussão, sobre a parcela de terreno disputada. E o limite definidor reside na resposta a dar à questão de saber se o abuso do direito é ou não aplicável às simples liberdades, entre as quais se contam a liberdade genérica de agir e a liberdade especial de contratar.
Como antes deixámos escrito, em sentido favorável, parte da doutrina aceita esse alargamento para lá do estrito exercício de um direito com respaldo em ser incompreensível que um comportamento voluntário e culposo lesivo de outrem contrário à boa-fé e aos bons costumes ficasse impune por essa atuação não configurar o exercício de um direito que assim se pudesse dizer abusado - Ferrer Correia/V. Lobo Xavier, op. loc. cit -E em sentido igual, se o abuso de direito é a designação tradicional, para o que se poderia dizer “exercício disfuncional de posições jurídicas” este pode reportar-se a quaisquer situações jurídicas e não, apenas, ao exercício de direitos subjetivos” - cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I – Parte Geral, IV, 2005, pág. 372. Este alargamento de exercício relevante para efeitos de abuso de direito tem também expressão na abordagem que parte da forma de entender na economia do art. 334 do CCivil a palavra “direito” em sentido amplo, abrangendo, não apenas os verdadeiros e próprios direitos subjetivos, mas ainda outras situações, posições ou figuras que não recebam essa qualificação técnica, como sejam os meros poderes, liberdades, ou faculdades diretamente resultantes da capacidade jurídica - cfr. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, pág. 87.
No reforço de uma leitura atualizada do conceito de direito em sentido protetivo de ressarcimento também Sinde Monteiro defende a abertura a um sentido mais amplo que comporte a liberdade geral de agir - Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, pág. 547, nota 326 – o que se explica por, “O exercício de um direito subjetivo ‘em contradição com a ideia da justiça’ é um exercício ilegítimo, por aplicação do art. 334º do Código Civil; o exercício da liberdade geral de agir ou da liberdade especial contratual ‘em contradição com a ideia de justiça’ - concretizada por intermédio das cláusulas gerais da boa fé e dos bons costumes – é, a pari ou fortiri (a majore ad minus), um exercício ilegítimo.” – cfr. Nuno Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, 2011, pág. 995.
Com igual resultado em diferente fundamentação e afastando-se da aplicação “alargada” do art. 334 do CCivil à simples liberdade geral de agir, Carneiro da Frada - Teoria da confiança e responsabilidade civil, 2004, nota 121 - defende a possibilidade de encontrar no sistema, sem auxílio do abuso do direito, uma proibição destinada a assegurar o mínimo ético-jurídico no relacionamento entre os membros da comunidade jurídica, o que permite preservar o instituto do abuso de uma intervenção fora do quadro dogmático do exercício de posições jurídicas absolutas. Essa possibilidade é a de “ uma integração através do reconhecimento de uma norma não escrita, dirigida a salvaguardar o mínimo ético-jurídico exigível aos membros da comunidade jurídica como imposição do próprio conceito de Direito” que se admite não andar distante do comportamento, afinal também ele indeterminado, proscrito genericamente pelo art. 334º, ao referir-se este preceito à manifesta inobservância dos limites impostos pelos bons costumes. Esse mínimo ético radicaria no conteúdo do acionamento imediato da dogmática contida na máxima ‘neminem laedere’ - vinda do Digesto de Ulpiano como expressão de a ninguém ser lícito causar lesão ao direito de outrem - como núcleo indeclinável da dimensão de justiça que lhe é inerente.
Como se refere no ac. do STJ de 08-09-2016 citado, que a recorrente apresenta como fundamento para o que pretende, a jurisprudência deste Supremo Tribunal admite a sujeição da liberdade especial de contratar ao art. 334º do CCivil - cfr. os acórdãos de 21/03/1995 no proc. nº 086835; de 21/10/2003 no proc. nº 03A2822; de 01/10/2009 no proc. nº 118/2000.S1 e de 11/12/2012 no proc. nº 165/1995.L1.S1 - de natureza equivalente à da liberdade geral de agir relevante no caso dos autos. E no primeiro dos acórdãos “A palavra "direito" nesta figura [abuso do direito] tem de ser entendida em sentido muito amplo, abrangendo toda e qualquer prerrogativa jurídica subjetiva, os "poderes", as "faculdades" e as "liberdades". Direito subjetivo seria qualquer coisa que pertence ou "cabe" de direito ao indivíduo, que lhe permita participação nos bens da vida, em conformidade com a ordem jurídica. Interesse e direito subjetivo não são conceitos idênticos.”.
Perante o enunciado da questão em estudo à semelhança do caso decidido no ac. do STJ de 08-09-2016 também aqui se pode concluir que “quer se siga a via da aplicação analógica do art. 334º à liberdade geral de agir dos RR. quer se siga a via proposta por Carneiro da Frada, a resposta será idêntica. A conduta do autor interrompendo a passagem do caminho relativamente ao qual não provou ter qualquer direito configura uma manifesta violação dolosa dos limites impostos pelos bons costumes. Simultaneamente, tal conduta, traduzindo a vontade do autor em fazer justiça pelas próprias mãos sem que tenha provado os pressupostos da ação direta (art. 336º, do CC) constitui uma grave afetação do mínimo ético-jurídico exigível na convivência social.
Tendo o autor mandado arrasar e demolir o referido caminho com uma retroescavadora, o que foi feito, e sabendo que ao atuar assim estava a impedir a ré e sua família, caseiros e visitas de circular pelo caminho e aceder ao seu prédio, como vinham fazendo até então, deve concluir-se pelo preenchimento dos pressupostos da ilicitude e da culpa. E reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, estão os autores obrigados a indemnizar a ré pelos danos causados.
Acrescente-se que uma outra possibilidade para incluir os danos sofridos pela ré reconvinte na obrigação de ressarcimento pelo autor seria a da adaptação das regras existentes ou o reconhecimento (criação) de novos direitos subjetivos – vd. Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, p. 206 - caracterizando a situação jurídica como uma verdadeira violação de um direito absoluto, mesmo que esta violação não esteja aparentemente configurada num entendimento convencional do direito de propriedade, ou, por exemplo, dos direitos de vizinhança. E o exemplo mais presente e mais realizável de adaptação do conceito de um direito absoluto e que tem servido como fundamento de pretensões ressarcitórias de danos puramente patrimoniais é o direito de propriedade, cuja tutela jurídica se pretende alcançar a partir do desenvolvimento de uma noção de propriedade funcional, o que permitiria uma violação de direito absoluto independentemente da existência do dano à coisa.
Na dinâmica transformativa pela qual tem passado o direito de propriedade surpreende-se uma tendência crescente da intangibilidade para uma perspetiva de interação social. Na função social que a propriedade compreende verifica-se que este direito pode não ser violado através de um dano direto à coisa, causando-lhe o perecimento ou a deterioração do bem, mas mesmo sem esse dano físico, impede-se a exteriorização dos efeitos do direito de propriedade, como o seu efetivo e adequado uso e, nesse caso, é possível a configuração de um ilícito civil – cfr. Ana Mafalda Barbosa, Liberdade vs. responsabilidade: a precaução como fundamento da imputação delitual, Almedina: Coimbra, 2006 e, Um caso de ressarcimento de danos puramente patrimoniais – comentário ao ac. do STJ de 8 de setembro de 2016 (processo nº1952/13.6TBPVZ.P1.S1) in RJLB, Ano 3 (2017), nº 2 p. 283 a 486.
Se a violação do direito de propriedade nos casos em que a perturbação não se traduz numa agressão à substância da coisa, nem ao proprietário é retirada a respetiva posse ou ela é usada por um terceiro, mas em que através do comportamento deste apenas são tocados os pressupostos externos sem os quais a coisa não pode ser utilizada de acordo com o fim a que se destina, essa situação “que põe em causa a fruição do bem objeto do direito, tendo em conta as suas diversas funcionalidades, deve ser considerada como ilícita do ponto de vista do direito de propriedade. Dito de outra forma, sempre que a coisa, ainda que não afetada na sua substância, deixe de cumprir a sua função haverá violação do direito. Do mesmo modo, sempre que ela, pese embora cumpra a sua função, importe, por interferências externas, um agravamento da posição do seu titular haverá violação do direito” - Ana Mafalda Barbosa, op. e loc. cit.
Sendo esta via da ampliação das hipóteses de ressarcimento, por adaptação das regras existentes e reconhecimento (criação) de novos direitos subjetivos, um caminho de solução da questão em estudo, julgamos que a deslocalização do centro de atenção da valoração do comportamento ofensivo como ilícito ou “para-ílicito” para o domínio e tutela das disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação jurídica convoca dificuldades ligadas desde logo, à exigência de demonstração de, ainda que momentaneamente, o lesado ficar privado da utilização da coisa com redução da utilidade desta segundo a sua função.
Ora, no caso que nos ocupa, por não se ter alegado nem provado que a ré com a atuação do autor ficou privada da utilização do seu imóvel, nomeadamente por o acesso ao mesmo não se fazer por nenhum outro acesso, desconsideramos esta via alternativa de ilicitude (pela primeira cláusula do art. 483 do CCivil) renovando-se a concordância com o decidido no ac. do STJ de 08-09-2016 em destaque, quanto á possibilidade de ressarcimento dos danos apurados.
No domínio dos danos, tudo o que a prova revela é que o autor sabendo que impedida a ré e sua família, caseiros e visitas de circular pelo caminho e aceder ao seu prédio, como vinham fazendo até então, arrasou e demoliu essa passagem com uma retroescavadora, o que se traduz num prejuízo para a ré que se viu privada da utilidade desse acesso, que tinha e deixou de ter. Porém, a contabilização desse dano não se alcança nem por raciocínio lógico de qualquer facto provado. É certo que ficou assente que a ré mandou reconstruir o caminho, partindo do ponto já existente, isto é, da EN ...09, até se alcançar os portões da quinta da ré, fazendo-se a ligação em rampa e que na execução despendeu a quantia de € 7.665,48.
Ora, os danos a considerar não se identificam com o custo do caminho reconstruído porque não se pode afirmar que essa reconstrução se limitou a fazer a restauração natural do ... anterior. Pelo contrário, a prova indica que existem diferenças não significativas de largura média - facto 24 e 13 dos provados – e não significativa também das cotas do caminho reconstruído, havendo já diferença relevante no próprio modo e material de construção que agora está sustentando (o caminho) num muro em betão com a extensão de 34,867m, que proporciona maior suporte e segurança à passagem das viaturas. E diferença ocorre igualmente quando se dá como provado que o autor tinha acesso e utilizava o caminho como se de coisa sua se tratasse, convicto de que o mesmo integrava o seu terreno inscrito na matriz sob o artigo ...78 para aceder à sua propriedade e se provou também que depois da reconstrução pela ré ficou impossibilitado de aí aceder.
Se por um lado se pode afirmar a existência de danos com a destruição do caminho por parte do autor, de modo algum se pode identificar a extensão desses danos com o que a ré gastou na reconstrução porque a mesma não se destinou a proceder à simples reconstituição natural (arts. 562/1 e 566/1) desconhecendo-se em absoluto o valor em que importaria essa reconstituição. Neste sentido é esclarecedor verificar que a sentença, para fixar a indemnização tenha sido tão parcimoniosa que, depois de acionar a favor da ré o reconhecimento de um direito que esta afastava (o de ser titular de uma servidão de passagem) e no reconhecimento do principio da reconstituição natural se limitou a deixar expresso “No caso, a reconvinte efetuou já a reparação do caminho, pelo que não se coloca já a possibilidade de reconstituição in natura, pelo que deve ser fixada uma indemnização em dinheiro, a qual, deve, à partida, ter em consideração aquela diferença na situação patrimonial do lesado. Todavia, resulta como assente que o material usado para refazer o caminho é mais caro que o pré-existente, tendo a R. referido que fez questão de fazer o caminho mais sólido, o que equivale a dizer, mais caro. Não foi possível, nem parece que o seja por impossibilidade em saber exatamente como se encontrava o caminho que foi arrasado, concluir-se com rigor qual o valor necessário para repor o caminho nas condições em que se encontrava exatamente antes de ter sido ordenado pelo autor o seu arraso. Nessa medida entende-se que será por recurso a regras de equidade que deve ser fixado o valor do prejuízo, nos termos do artigo 566º, nº3 do CC.
Assim sendo, dentro dos limites considerados como provados, muito especificamente atendendo-se ao referido por GG, entende-se equitativa a fixação de uma indemnização no valor de € 4.500,00.”
Este segmento de fundamentação por duas vezes convoca elementos impossíveis se derem tomados em consideração. Com base nas declarações que se dizem ter sido referidas pela ré, mas que não constam dos factos provados diz-se que ela mesmo terá feito questão de realizar o caminho mais sólido equivalendo essa solidez a um custo mais caro; e por outro lado, atendendo ao que se diz ter sido declarado em audiência por GG que foi quem reconstruiu o caminho mas que não se traduz em nenhuma informação de prova, refere-se que o juízo de equidade deve ser o realizado com base no que ele disse.
Importa ter presente que a única matéria que pode ser tomada em consideração é a que se faz constar em factos provados, sendo de todo irrelevante o que as partes e as testemunhas tenham dito em audiência para lá do que conste desses mesmos factos. As declarações das partes e os testemunhos são meios de prova que se destinam a motivar os factos provados e mesmo que quem os prestes afirme matéria que pudesse ser relevante para a decisão, ou essa matéria foi alegada e provada e pode ser fixada como provada, ou então corresponde a factos instrumentais ou complementares e poderá ainda ser incluída se com respeito do art. 5 do CPC. Fora destes casos é absolutamente vedado tomar em consideração na decisão as declarações que as partes ou as testemunhas tenham produzido para interpretar a matéria de facto ou, pior ainda, para introduzir por essa via matéria que a prova não contempla.
No caso pode dizer-se, como o dissemos, que há diferença entre a reconstrução realizada pela ré/recorrente e o caminho como se encontrava antes e que essas diferenças se situam de forma relevante no modo de construção, com suporte num muro de betão, e isto e só isto pode afirmar-se porque é tudo o que consta da prova obtida e nada mais.
Tendo o caminho reconstruído o valor de € 7.665,48 e sabendo-se que esta reconstrução foi significativamente mais cara por ter envolvido outros materiais (um muro de betão) que por sua vez implicam um modo de construção (industrial e não artesanal) mais dispendioso, disciplinaria nesta caso o art. 609 nº 2 do CPC, aplicável a todos os casos em que o tribunal, no momento em que profere a decisão, carece de elementos para fixar o objeto ou a quantidade da condenação, seja porque ainda não ocorreram os factos constitutivos da liquidação da obrigação, seja porque, apesar de esses factos já terem ocorrido e terem sido alegados, não foi feita a sua prova. Estes casos, em que está demonstrada a existência da obrigação habilitam a que o tribunal carecendo de elementos para fixar o seu exato valor, condene naquilo que venha a ser liquidado posteriormente uma vez que o que é relegável ao abrigo do art. 609 nº2 citado não é a existência da obrigação, sim e apenas o objeto ou a quantidade dessa obrigação.
Porém, estando em causa um dano cujo valor exato não é suscetível de apuramento e que apenas poderá ser indemnizado com recurso à equidade, a fixação da respetiva indemnização não poderá ser relegada para posterior liquidação caso existam já os elementos necessários para o juízo equitativo que há de presidir à determinação do valor da respetiva indemnização.
No caso que nos ocupa, não vemos como a remessa dos autos para liquidação possa permitir a concretização dos danos porque para lá do valor em singelo pago pela ré na reconstrução nenhum outro elemento se supõe como habilitante a um juízo de concretização. Não se sabe nem será possível saber, porque os autos não o revelaram anteriormente, como era em concreto o caminho destruído, podendo simplesmente concluir-se com segurança que seria muito mais inconsistente porque a ré se viu na obrigação de o consolidar com um muro de betão aproveitando a oportunidade de reconstruir para o edificar em termos que não poderiam ser idênticos aqueles em que há mais de sessenta anos se encontravam (facto provado 32).
Deste modo o recurso a equidade com tão parcos elementos, num juízo de razoabilidade que reparta os efeitos de benefício e prejuízo de forma equilibrada recomenda, como é indicação de muitas disposições legais, se posicione a referência na média ponderada de metade do obtido. Assim se o valor despendido em termos reais foi de € 7.665,48 julgamos equilibrado perante o que seguramente se obteve em fixar a indemnização em metade desse valor, ou seja, em 3.830,00 € (três mil oitocentos e trinta euros)
Assim, devendo confirmar-se a decisão recorrida quanto ao não reconhecimento do direito de propriedade sobre o caminho, entende-se julgar procedente a fixação de uma indemnização no valor de 3.830,00 €, indemnização esta que fixada nos termos da equidade nos termos do art. 556 nº2 e 3 do CCivil tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal que no caso é a desta decisão.
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Síntese conclusiva
- o acórdão uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 14/5/1996 ao declarar que face ao exercício do poder de facto que realize sobre uma coisa se presume que o possuidor possui em nome próprio, sem ter necessidade de provar o elemento subjetivo, o animus, da posse não estabelece em face do poder de facto exercido por um possuidor se presuma sempre o animus de proprietário mas sim que se presume o animus correspondente ao direito que corresponde ao poder de facto exercido e que pode ser referente a outro direito que não o de propriedade.
- A conduta do autor interrompendo a passagem do caminho relativamente ao qual não provou ter qualquer direito configura uma manifesta violação dolosa dos limites impostos pelos bons costumes, traduzindo tal conduta a vontade do autor em fazer justiça pelas próprias mãos sem que tenha provado os pressupostos da ação direta (art. 336º, do CC), o que constitui uma grave afetação do mínimo ético-jurídico exigível na convivência social.
- Tendo o autor mandado arrasar e demolir um caminho sabendo que ao atuar assim estava a impedir a ré e sua família, caseiros e visitas de circular pelo caminho e aceder ao seu prédio, como vinham fazendo até então, deve concluir-se pelo preenchimento dos pressupostos da ilicitude e da culpa. E reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, estão os autores obrigados a indemnizar a ré pelos danos causados.
- Se a violação do direito de propriedade nos casos em que a perturbação não se traduz numa agressão à substância da coisa, nem ao proprietário é retirada a respetiva posse ou ela é usada por um terceiro, mas em que através do comportamento deste apenas são tocados os pressupostos externos sem os quais a coisa não pode ser utilizada de acordo com o fim a que se destina, essa situação deve ser considerada como ilícita do ponto de vista do direito de propriedade.
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Decisão
Pelo exposto acordam os juízes que compõem estre tribunal em julgar parcialmente procedente a presente revista e, em consequência, acordam em condenar o autor a pagar á ré a quantia de 3.830,00 € (três mil oitocentos e trinta euros) e juros à taxa legal vencidos desde a data desta decisão e vincendos até integral pagamento à taxa legal dos juros civis, confirmando-se no mais a decisão recorrida
Custas pela recorrente e recorrido na proporção do respetivo decaimento que se fixa em 75% para a recorrente e 25% para o recorrido.
Lisboa, 15 de Setembro de 2022
Relator: Cons. Manuel Capelo
1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Nunes da Silva
2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves