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ARTICULADO SUPERVENIENTE
REQUISITOS
Sumário
I. Estando os autos em fase de julgamento, a introdução de novos factos por iniciativa da parte só pode ocorrer com a apresentação de articulado superveniente. II. Apresentado um articulado superveniente, o contraditório apenas ocorre posteriormente à admissão liminar do mesmo. III. Compete a quem apresenta o articulado superveniente demonstrar probatoriamente a superveniência objetiva ou subjetiva dos factos assim alegados. IV. A prova da superveniência subjetiva não se confunde com a prova da existência dos factos alegados por via do articulado superveniente. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de ÉVORA
I – RELATÓRIO
Na ação de condenação, sob a forma de processo comum, em que é Autora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Alentejo Central, CRL e Réus A…, B…, C…, D…, E…, F… Equipamentos Hoteleiros, Ld.ª, G… Cafés, Ld.ª e H… Higiene e Limpeza, Ld.ª, após a realização da sessão de julgamento do dia 15-11-2021, a Autora através do requerimento datado de 25-11-2021 (Ref.ª 1946710) veio expor e requerer o seguinte:
«A) Alegação de factos supervenientes e requerimento de junção de documentos
1. Na audiência do dia 15 do corrente, as testemunhas I… e J… trouxeram ao processo factos segundo os quais, as 8.ª e 9.º rés, respectivamente, F… Equipamentos, e G… Cafés, por alturas de 2011 ou 2012 teriam passado para o nome de um tal sr. (…), os veículos automóveis que utilizavam, os quais no entanto continuavam a ser vistos ao uso e condução de empregados daquelas empresas.
2. Esta matéria era desconhecida da Autora, que por isso não a pode alegar na petição inicial.
3. Contudo, consultado agora na sequência deste conhecimento o registo automóvel, a Autora verifica o seguinte: a) quatro veículos automóveis que estavam antes de Março de 2011 na propriedade da 8.ª ré, foram objecto de registo de novo proprietário, em 28 de Março de 2011, para (…), o mesmo referido pelas testemunhas como acima alegado, o qual, em 15 de Janeiro de 2015, transferiu a propriedade para a EXPOTORRA, conforme: certidões docs. 1 a 4; b) um veículo automóvel antes titulado pela 9.ª ré, em 17 de Maio de 2011 foi colocado com registo de propriedade em nome da 10.a ré (que não era devedora à Autora), a qual em Janeiro de 2015 a transferiu para a EXPOTORRA, conforme doc. 5;
e) verifica-se também que nas datas da primeira mudança de titular, em 2011, todos os veículos já tinham pelo menos uma penhora registada.
4. Uma síntese desta matéria factual completa-se com o quado que em detalhe retirado dos docs 1 a 5 se apresenta assim.
(…)
5. Ora, na petição inicial a A. alegou no artigo 230.º ter existido “uma estratégia dos 2.º e 3.ª RR, em nome próprio e como gerentes das 8ª 9.ª e 10.ª RR., de defraudar os credores, particularmente a A., sabendo que as alienações dos bens em causa e a criação de ónus impedem a satisfação integral dos seus créditos”.
6. E no artigo 71.º alegou que a EXPOTORRA era destinada a receber activos das empresas devedoras, evitando penhoras e lesando os credores.
7. Assim, para prova designadamente desta factualidade, e porque se mostra extremamente relevante ao objecto em discussão na acção, requer-se a V. Exa. se digne admitir a junção aos autos das certidões dos docs. 1 a 5, nos termos do disposto em artigos 423.º nº 3 e em artigo 611.º n.º 1 do CPC.»
Por despacho proferido em 09-12-2021 (Ref.ª 31338487) foi decidido o seguinte:
«Articulado superveniente de 25-11-2021 (ref.ª 1946710)
Admito liminarmente o articulado superveniente apresentado pela autora – cfr. art. 588.º, n.º 4, do C.P.C.
Notifique os réus para, querendo, responderem no prazo de dez dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no art. 587.º do C.p.C. – cfr. art. 588.º, n.º 4, do mesmo código legal.»
Os Réus interpuseram recurso deste despacho, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«I. Recorre-se, deste modo, do douto despacho que admitiu o requerimento apresentado pela A.: "Admito liminarmente o articulado superveniente apresentado pela autora - cfr. art. 588.°, n.º 4, do C.P. C.";
II. A. Caixa Agrícola de Sousel, através dos seus quadros, teve conhecimento dos factos, à data que elos ocorreram e não à data em que essas pessoas prestaram o seu depoimento, razão pela qual entendem, não se tratar de factos supervenientes e como tal inadmissíveis de apresentar no requerimento agora admitido pelo Meritíssimo "Juiz à quo";
III. Resulta do depoimento das duas testemunhas que tiveram conhecimento à data, na Caixa Agrícola, no acesso a documentação bancária que estava na agência, seguros contratados no CA Seguros (Crédito Agrícola Seguros) da propriedade dos veículos em causa;
IV. A partir dessa documentação verificaram que a propriedade desses veículos era de outra pessoa;
V. Resulta também, do depoimento das duas testemunhas, que tiveram conhecimento na mesma data, na Caixa Agrícola, do acesso a documentação bancária que estava na agência, folhas de vencimentos entregues mensalmente na Caixa Agrícola, para pagamento de salários e pagamento à S. Social;
VI. Com base nessa informação tiveram conhecimento que veículos eram conduzidos por trabalhares de uma das empresas ora Ré, que constavam das folhas de vencimento;
VII. Resulta do próprio depoimento e da natureza da informação a que as testemunhas tiveram acesso, que esse período se reporta ao período em que dizem ter as viaturas "passado de nome” e que na data dessa “mudança” terão visto as listas dos seguros dos trabalhadores e as listas de vencimentos desses mesmos trabalhadores;
VIII. O que terá ocorrido em 2010, 2011, 2012 e 2013 segundo o seu depoimento, data em que a A. teve conhecimento desses mesmos factos, sendo certo que a A. apresentou a presente acção, no ano de 2015;
XIX. Factos que já eram do conhecimento da A. à data de apresentação do presente acção e que poderio ter apresentado, bem assim a junção dos documentos que já conhecia;
X. Documentos que segundo o depoimento dos testemunhos o A., já teria em seu poder, antes de apresentar a PI;
XI. O Meritíssimo "juiz a quo" por um lado, proferiu despacho de admissibilidade, e por outro lado, cor cedeu aos RR. a faculdade para lhe responder;
XII.O douto despacho de que agora se recorre, foi proferido, sem que os RR. tivessem possibilidade de se pronunciarem quanto à sua própria admissibilidade;
XIII. Também com este fundamente os RR. interpõem recurso, por entenderem ser inadmissível tal decisão, sem que previamente lhes fosse concedida a possibilidade de exercer o contraditório, quanto à sua admissibilidade;
XIV. No caso “sub judice”, da conjugação do depoimento das duas referidas testemunhas, repita-se quadros da A., resulta que os factos ocorreram em momento anterior à apresentação da Petição Inicial, e que sempre foram do conhecimento da A, como tal podiam e deviam ter sido alegados na Petição Inicial, como aliás o foram em relação a outros dois veículos automóveis;
XV. Foram os próprias testemunhas que relataram ao Tribunal, no seu depoimento, que deles tiveram conhecimento na Caixa;
XVI. Sendo então o tema falado na própria Caixa, na data em que esses factos ocorreram;
XVII. Razão pela qual, tais factos não podem ser considerados supervenientes;
XVIII. A A. não é uma pessoa física, capaz de forma autónoma, de tomar conhecimento deste ou de qualquer outro facto;
XIX. A A. é uma pessoa colectiva que forma as suas decisões com base na informação dos seus quadros de pessoal nomeadamente dos seus quadros técnicos e também dos seus órgãos sociais;
XX. Tomando os seus quadros, conhecimento na própria Caixa, dos factos à data em que eles ocorreram, e foram relatados pelos depoentes, nessa mesma data, a pessoa colectiva, deles teve conhecimento, não podendo agora sustentar, que são novos e deles só agora teve conhecimento;
XXI. Mas fundamentalmente pelo facto dos referidos depoimentos terem sido prestados por ambos os depoentes com recurso à violação de regras que lhe estavam impostos, o sigilo profissional;
XXII. Um e outro dos depoentes, segunde as suas próprias declarações, são presentemente empregados bancários, e tiveram acesso a informação, bancária, por via da profissão e no exercício dessa mesma informação, que revelaram e que por via do sigilo estavam obrigados o não revelar;
XXIII. A depoente Dr.ª I…, enquanto Advogado teve aí conhecimento da lista de seguros das viaturas propriedade das empresas, ora RR., contratadas na CA Seguros, estando pelo facto de ser Advogada e ter conhecimento da referida lista, obrigada a guardar sigilo, enquanto Advogada;
XXIV. A referida testemunha, enquanto Advogada está obrigada ao cumprimento do sigilo profissional, pilar essencial ao exercício da profissão de Advogado;
XXV. O sigilo mostra-se prescrito no Art.ª 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), na sua versão actual aprovada pela Lei n.º 145/2015 de 09/08;
XXVI. A testemunha, no seu depoimento falou de factos e documentos, que estão abrangidos pelo sigilo profissional;
XXVII. Sem requerer que lhe fosse levantado o sigilo profissional;
XXVIII. Este segmento do seu depoimento, não pode ser aproveitado como prova, por violação de forma conjugada do Art.º 92° nº 1 alínea a), nº 3 e n.º 5, todos do EOA;
XXIX. Por outro lado, a testemunha J…, sendo empregado de um Banco, mostra-se também abrangido pelo sigilo bancário nos termos do n.º 1 do Art.º 78° do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiros (RGICSF);
XXX. O sigilo bancário constitui um pilar fundamental de todo a actividade bancária;
XXXI. As testemunhas, poderiam ter-se escusado a depor sobre os factos e os documentos, de que tiveram conhecimento no exercício das respectivas profissões, por estarem abrangidos pelo sigilo profissional, nos termos do n.º 3 do Art.º 417° do CPC;
XXXIII. A recusa em prestarem depoimento, sobre factos/documentos sigilosos mostra-se legitimada na nossa lei adjectiva, nos termos da alínea c) de n.º 3 do Art.º 417° CPC;
XXXIII. Termos em que, entendem os RR ora Recorrentes, também não poder ser aproveitado como prova o depoimento desta testemunhos, quanto o este concreto segmento do seu depoimento, por violação do Art.º 78° n.º 1, do RGICSF aprovado pelo DL n.º 298/92 de 31.12 no redacção que lhe foi conferido pela Lei nº 36/2010 de 02.09;».
A recorrida respondeu, apresentado as seguintes CONCLUSÕES:
«1.º Quanto à superveniência do conhecimento dos factos, os RR. não alegam nem provam que os órgãos sociais, designadamente, o conselho de administração ou algum seu membro tivesse conhecimento dos factos que os funcionários sabiam.
2.º Por outro lado, não existe norma legal que estabeleça uma presunção ou regra, segundo a qual, o que os funcionários sabem, também a administração de um banco o sabe.
3.º Quanto ao alegado sigilo profissional das testemunhas, os RR. não o caracterizam em concreto, designadamente em termos legais nem factuais — é tal ónus competir-lhes nos termos de art. artigo 639.º al. a) do CPC.
4.º Mesmo que viesse claramente recortado o sigilo violado — o que não se admite sequer ter acontecido! — ainda assim, a sua putativa invocação agora é absolutamente extemporânea, uma vez que os RR. não invocaram tal impedimento ou impugnação na audiência, como poderiam ter feito nos termos de art. 514º - 515º e 497º n. º3 do CPC.
5.º Assim, o direito de suscitar tal impedimento das testemunhas já está precludido desde então.»
II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos e ocorrências relevantes para o conhecimento do recurso constam do antecedente Relatório.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1. O objeto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), consubstancia na seguinte questão: se estão reunidos os pressupostos legais para a admissibilidade do articulado superveniente.
2. Defendem os Apelantes a inadmissibilidade do articulado superveniente, com vários fundamentos que passamos de seguida a analisar.
Impõe-se, contudo, a apreciação de uma questão prévia, que se reporta à natureza do requerimento apresentado pela Autora.
A Apelada na resposta às alegações questiona se o requerimento por si apresentado pode ser qualificado como um articulado superveniente.
Alegando assim: «Em bom rigor, a A. não formulou um articulado superveniente. Como ressalta claro do seu requerimento, limitou-se a alegar, por um lado, a factualidade que, nos termos de artigo 423º n.º3 do CPC lhe conferem o direito de junção de docs. posteriores aos articulados (e no caso, está-se em fase de audiência final de julgamento). Por outro lado, alegou que os novos docs. se destinam a provar a matéria (relativamente conclusiva) de artigos 230º e 71e da p.i. Vale isto para dizer que o requerimento da A. talvez não tivesse de interpretar-se como articulado superveniente (…)».
A dúvida que a Apelada suscita, não tem razão de ser.
Desde logo, por no requerimento em causa ter qualificado os factos que pretende introduzir em juízo como subjetivamente supervenientes e, estando os autos em fase de julgamento, portanto já tendo terminado a fase dos articulados, a introdução de novos factos só pode ocorrer com a apresentação de articulado superveniente (cfr. artigo 588.º e 589.º do CPC).
Assim, estipula o n.º 1 do artigo 588.º do CPC: «Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitam, até ao encerramento da discussão».
Ou seja, naquela fase processual a introdução de novos factos pela parte, em ordem a que sejam atendidos no julgamento em curso, com a natureza acima referida, carecem de ser alegados através de um articulado superveniente, caso sejam objetiva ou subjetivamente supervenientes ao encerramento da audiência prévia, ou, não tendo a mesma sido realizada, nos dez dias posteriores à data da notificação para a realização da audiência final (artigo 588.º, n.º 3, alíneas a) a c), do CPC).
Compete a quem apresenta o articulado superveniente demonstrar probatoriamente a superveniência objetiva ou subjetiva por a mesma constituir um requisito de admissibilidade daquele articulado.
Porém, a alegação de novos factos através de um novo articulado é distinta da junção de documentos em fase posterior aos articulados.
Como a regra é a da junção dos documentos com o correspondente articulado onde os factos a demonstrar probatoriamente pelos mesmos foram alegados (n.º 1 do artigo 423.º do CPC), a junção posterior para demonstração desses factos já antes alegados, encontra-se sujeita aos requisitos do n.º 2 do mesmo preceito. Têm um determinado prazo para serem apresentados (até 20 dias antes da data da realização da audiência final) e a parte tem de provar que não os pode oferecer com o articulado, sob pena de incorrer em multa.
Decorrido esse momento processual (e sem prejuízo do regime excecional de apresentação de documentos em sede de recurso – cfr. artigo 425.º e 651.º do CPC), a junção de documentos depende da apresentação não ter sido possível até 20 dias antes da data designada para julgamento, bem como no caso da apresentação se ter tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (n.º 3 do artigo 423.º do CPC).
Essa ocorrência posterior não «respeita a factos supervenientes, pois a alegação desses factos deve ser acompanhada dos respetivos documentos, sendo esse o meio da sua entrada nos autos»[1], como decorre do n.º 5 do artigo 588.º do CPC.
No caso, afigura-se-nos pelo modo como a Autora alegou e requereu a introdução de novos factos em juízo (ainda que possam ser tidos como complemento ou concretização de factos essenciais já alegados de modo pouco concretizado e/ou conclusivo – cfr. artigo 5.º, n.º 2, alínea b), do CPC), que a classificação jurídico-processual do requerimento apresentado mais adequada é aquela que decorre do artigo 588.º do CPC, ou seja, trata-se de um articulado posterior onde foram alegados factos subjetivamente supervenientes, tendo sido junto documentos para comprovação dos novos factos alegados.
A junção de documentos com tal requerimento não faz parte do objeto do presente recurso, pois o mesmo nada refere sobre o mesmo, sendo que, posteriormente, o tribunal recorrido mandou notificar os Réus para se pronunciarem sobre a «admissibilidade e o teor dos documentos carreados para os autos no requerimento sobredito» [articulado superveniente] – cfr. despacho proferido em 07-04-2022 (Ref.ª 31618509), pelo que, manifestamente, o entendimento do Tribunal a quo foi diverso daquele que acima se referiu.
Contudo, em nada tal entendimento contende com o objeto do presente recurso que se encontra delimitado pelo concreto teor do despacho recorrido e que se cinge apenas à questão da admissibilidade do articulado superveniente e não à análise da comprovação dos factos supervenientes ali alegados, matéria que terá ser decidida e analisada pelo juiz da causa, caso se mantenha a admissibilidade do articulado superveniente.
Conclui-se, assim, que o requerimento em apreciação tem a natureza de um articulado superveniente ao qual se aplica o disposto no artigo 588.º do CPC.
Estamos, agora, em condições de aferir da sua admissibilidade.
O artigo 588.º do CPC regula o regime processual aplicável a este articulado.
Apenas é admissível se os factos em causa forem «constitutivos, modificativos ou extintivos» do direito alegado pelo apresentante e se for apresentado «até ao encerramento da discussão» (n.º 1).
Dizem-se supervenientes, como estipula o n.º 2 do mesmo artigo, «tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência», sendo que, na primeira situação, os factos são objetivamente supervenientes e, na segunda, são subjetivamente supervenientes.
Estipula o n.º 4 do artigo 588.º do CPC que «O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária pra responder em 10 dias, observando-se quanto à resposta, o disposto no artigo anterior.»
Alegam os Apelantes nas conclusões XII e XIII que o despacho recorrido foi proferido sem que os mesmos tivessem possibilidade de se pronunciarem quanto à admissibilidade do articulado superveniente, defendendo que, por essa razão, também o mesmo não é admissível.
Nenhuma razão assiste aos Apelantes como linearmente decorre da lei. O contraditório, no caso, apenas ocorre posteriormente à admissão do articulado superveniente, estando, assim, tal requerimento sujeito à prévia prolação de um despacho liminar de admissão ou de rejeição.
A prolação do despacho liminar não posterga o direito à tutela jurisdicional efetiva, o direito a um processo equitativo, o direito à prova, o exercício do princípio do contraditório e da igualdade das partes, direito constitucionalmente consagrados a ambas as partes (cfr. artigos 13.º, 18.º e 20.º, da CRP).
Apenas em relação à parte contrária, se for admitido, é diferido para a fase contraditória do incidente, o exercício desses direitos e princípios.
Ademais, a parte contra quem é deduzido o articulado superveniente, admitido liminarmente, pode reagir interpondo recurso autónomo, ao abrigo do artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC, como sucedeu no caso presente.
Os Apelantes não suscitam qualquer questão quanto à tempestividade da apresentação do articulado superveniente.
Contestam apenas que o mesmo seja subjetivamente superveniente, alegando que decorre dos depoimentos de duas testemunhas ouvidas em julgamento, funcionárias do quadro de pessoal da Autora, que muito antes da interposição da ação, já em 2010, 2011, 2012 e 2013, sabiam através de documentação existente na agência bancária (seguros contratados no Crédito Agrícola Seguros, folhas de vencimento entregues mensalmente na Caixa Agrícola para pagamento de salários e à Segurança Social) que a «propriedade dos veículos em causa» era de «outra pessoa» e que os veículos eram «conduzidos por trabalhadores de uma das empresas ora Ré, que constavam das folhas de vencimento», daí retirando a conclusão que tais factos eram do conhecimento da Autora desde essa altura.
Os Apelantes transcrevem trechos dos depoimentos das testemunhas I… e J… para fundamentarem o conhecimento anterior da Apelada em relação aos factos mencionados no articulado superveniente.
Os factos em causa, relembre-se, reportam-se à transferência de propriedade de 5 veículos pelas 8.ª, 9.ª e 10.ª Rés para outra sociedade, bem como existência de penhoras registadas sobre os mesmos anteriores à primeira mudança de titular, em 2011.
Porém, neste recurso não está em causa a apreciação e valoração desses depoimentos quanto à demonstração probatória dos factos articulados ex novo e acima mencionados.
O que está em causa é saber se a Autora apenas na audiência de julgamento, após a produção dos referidos testemunhos, tomou conhecimento dos factos que pretende introduzir em juízo, ou seja, se o conhecimento da Autora é subjetivamente superveniente em relação à data da p.i.
Alegam os Apelantes que a Autora já tinha anteriormente à data da p.i. conhecimento desses factos por os seus trabalhadores deles terem conhecimento.
Ora, tal asserção, só por si, não pode ser tida como verdadeira, pois o conhecimento só poderia advir à pessoa coletiva através dos órgãos que a representam e vinculam, caso o mesmo lhes tivesse sido transmitido.
Dos testemunhos referidos pelos Apelantes, nada resulta nesse sentido, pelo que não se pode concluir que a Autora tivesse tido conhecimento dos factos supervenientemente articulados anteriormente à data da p.i.
Nestes termos, importa concluir que não havia fundamento para o Tribunal a quo colocar em crise a alegada superveniência subjetiva e, consequentemente, para rejeitar liminarmente o articulado superveniente.
Assim sendo, o despacho de admissão liminar nenhuma censura merece.
Também alegam os Apelantes a violação do sigilo profissional por parte das referidas testemunhas, invocando, por essa razão, que os depoimentos não têm valia probatória.
A questão suscitada terá a sua pertinência no que concerne à valoração desses depoimentos em relação aos factos sobre os quais se pronunciaram nos seus depoimentos, entre eles, os que deram origem à apresentação do articulado superveniente. Mas não sobre a estrita questão da superveniência, porquanto as testemunhas nada disseram sobre essa matéria como acima se referiu. Donde, as mesmas não podem ter violado qualquer sigilo profissional em relação à questão em apreciação neste recurso.
O que significa que a questão da eventual (in)validade dos depoimentos testemunhais referenciados pelos Apelantes em relação à factualidade sobre a qual depuseram, por alegada violação do sigilo profissional, em nada interfere na apreciação do objeto do presente recurso.
Em face de todo o exposto, improcede a apelação.
3. Dado o decaimento, as custas ficam a cargo dos Apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 30-06-2022
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
José Lúcio (1.º Adjunto)
Manuel Bargado (2.º Adjunto)
__________________________________________________
[1] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 499-500 (6)