I. Do art. 980.º do CPC resulta, inequivocamente, que o objecto da acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira consiste na apreciação da verificação de certos pressupostos de natureza essencialmente formal e não na apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma sentença.
II. Analisada a sentença estrangeira nos autos em função dos requisitos enunciados nas als. a), b), d) e e) do art. 980.º do CPC entende-se que não existe qualquer obstáculo que, do ponto de vista formal, impeça a respectiva confirmação.
III. No que se refere ao requisito enunciado na al. f) do art. 980.º do CPC, considera-se que a sentença em causa, ao reconhecer a existência de uma “união estável” entre os requerentes, conceito que não se mostra absolutamente transponível para a situação de “união de facto” reconhecida pela lei portuguesa (cfr. art. 3.º, n.º 3, da LN - Lei n.º 37/81, de 03/10, na redacção introduzida pela LO n.º 2/2006, de 17/04), não é atentatória dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
IV. No que concerne ao requisito da al. c) do art. 980.º do CPC, não existe qualquer indício da situação fraudulenta descrita na lei, nem a sentença incide sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
V. Saber se a referida sentença é idónea ou suficiente para que o requerente concretize depois a finalidade enunciada de lhe ser atribuída a nacionalidade portuguesa é questão diametralmente distinta e sobre a qual não tem o tribunal de se pronunciar por extravasar o estrito objecto da presente acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira.
VI. Conclui-se pela verificação dos requisitos previstos no art. 980.º do CPC, devendo a sentença estrangeira ser confirmada, não podendo, porém, de tal confirmação extrair-se que a decisão da sentença seja elemento suficiente para a aquisição da nacionalidade pelo requerente, designadamente no que respeita à equiparação entre o conceito de “união estável”, no âmbito e para os efeitos do direito brasileiro, e o conceito de “união de facto”, no âmbito do direito português e para o efeito previsto no art. 3.º, n.º 3, da LN.
VII. A questão objecto do presente recurso não se confunde com aquela outra questão de saber se uma escritura pública de declaração de união estável celebrada no Brasil deve ser equiparada a uma sentença judicial para efeitos de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses ao abrigo do regime do art. 978.º e segs. do CPC.
1. AA e BB, ambos de nacionalidade brasileira, mas a primeira também com nacionalidade portuguesa, requereram a confirmação de sentença proferida a 14 de Janeiro de 2022 pela ... Vara de Família da Regional da Barra da Tijuca, que homologou o pedido dos requerentes e declarou a “união estável desde 1998, que havia sido acordada por meio de escritura declaratória de união estável de 20 de Agosto de 2009, com separação convencional de bens”, emitida pelo 15.º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, Brasil, explicitando que o interesse desta acção seria a obtenção de nacionalidade portuguesa pelo requerente.
Cumprido o disposto no art. 982.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, os requerentes concluíram pela procedência da acção e a Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto do Tribunal da Relação deu parecer no sentido de se encontrarem reunidos os requisitos legais para ser concedida revisão e confirmação de sentença estrangeira.
Por acórdão de 26 de Abril de 2022 a acção foi julgada improcedente, sendo indeferido o pedido de revisão e de confirmação de sentença estrangeira, com o fundamento assim sumariado:
«A ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira que tem por objeto sentença declaratória da existência de “união estável” entre os Requerentes é meio processual inadequado para preenchimento do requisito legal previsto no Art. 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81 de 3 de outubro), para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, uma vez que aí se pressupõe que deve ser instaurada ação no tribunal cível ... instância, contra o Estado Português, num processo que pressupõe a demonstração judicial dos factos em que se estriba o pedido, com amplo contraditório, o que não se compagina com a finalidade e tramitação próprias do processo previsto nos Art.s 978.º e seguintes do C.P.C.». [negrito nosso]
2. Inconformados, vieram os requerentes interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando apenas a seguinte conclusão:
«Pelo exposto, ausente exigência legal no sentido de obrigar à parte que pretende adquirir a nacionalidade portuguesa pela via do art.º 3.º, n.º 3, da LN que a união de facto seja reconhecida nos tribunais portugueses, por não ser esta uma matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses, e estando presentes os requisitos do art.º 980.º do CPC e ausentes os do art.º 983.º, deve ser revista e confirmada em Portugal a sentença judicial transitada em julgado, proferida pelo competente tribunal brasileiro, que reconhece a união estável, na forma do art.º 10.º, n.º 3, al. a), do CPC, conferindo-se, assim, a boa e correta interpretação aos artºs. 978.º, 980.º e 983.º, todos do CPC, ao citado art. 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03 de Outubro, ao art.º 14.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro, e artºs 50.º e 52.º do Código Civil.».
Conclusão esta que complementam com as seguintes alegações:
«11. (...) o Acórdão recorrido conclui que a ação especial de revisão de sentença estrangeira não é o meio processual idóneo para a finalidade de ver revista e homologada, em Portugal, uma decisão estrangeira, ainda que proferida por juiz de direito - Poder Judicial - pois é mandatório que tal ação tramite na primeira instância em Portugal.
12. Ao assim fundamentar a decisão, o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu o pedido ao argumento de que estão ausentes o interesse em agir e a adequação, pois, o meio processual não é apto a atingir a finalidade pretendida pelos AA., ora Recorrentes.
13. Ora, salvo o devido respeito, com tal decisão não pode a Requerente/ Recorrente conformar-se.
(...)
«14. Conforme já mencionado, não estamos nos presentes autos diante de um pedido de revisão e homologação em Portugal de uma Escritura Pública de “União Estável”.
15. O caso diz respeito à revisão e homologação de uma sentença judicial.
16. Sobre o tema, sabe-se que há divergência jurisprudencial quanto à possibilidade ou não de esta ação especial ser utilizada para a finalidade de conferir eficácia em Portugal de Escritura Públicas.
17. A decisão recorrida, porém, inova ao rejeitar a revisão a uma sentença transitada em julgado, proferida por autoridade competente, segundo a lei do país em que proferida, e que está em conformidade com o disposto nos art.ºs 980.º e 983.º do CPC.
18. O Acórdão recorrido afirma que não é possível conferir à decisão brasileira os mesmos efeitos atribuídos pela lei portuguesa à condição de união de facto, pois: “(...) não são estes efeitos os que estão em causa numa ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira. O que releva nestas ações são os efeitos jurídicos que as partes pretendem obter na nossa ordem jurídica pelo reconhecimento da própria situação jurídica de “união estável”, que só pode ser equiparada no direito português, pela sua intuitiva semelhança, à situação jurídica da “união de facto”.
19. Ocorre que, efectivamente, os ora Recorrentes apresentaram a acção especial de revisão de sentença estrangeira com o objetivo de permitir à Autora, ora Recorrente, apresentar pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa na forma do art.º 3.º da Lei n.º 37/81 de 03 de Outubro (Lei da Nacionalidade - LN) e da norma que a regulamenta, qual seja, o art.º 14 do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro (Regulamento da Lei da Nacionalidade - RLN)
20. Estes dispositivos contém a seguinte redacção:
(...)
21. O que se pode observar é que a norma que regulamenta a Lei em vigor exige apenas que a situação jurídica da união de facto tenha sido reconhecida judicialmente.
22. O Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro foi recentemente alterado pelo Decreto-Lei n.º 26/2022, de 18 de Março, e nenhuma mudança houve no dispositivo.
23. Evidente portanto que não há nenhuma exigência legal no sentido de impedir que o nacional português que teve a sua união reconhecida em tribunal estrangeiro dê a esta sentença estrangeira a devida eficácia em Portugal por meio da ação especial de revisão de sentença estrangeira.
24. A propósito, como bem decidido pelo STJ no Acórdão no Proc. n.º 2247/20.4YRLSB.S1, “se existe norma de conflitos para a “forma do casamento” e para as “relações entre os cônjuges” – artºs 50º e 52º CCiv, mas não existe norma semelhante para a união de facto, seria necessário que existisse tal norma, face à crescente desformalização das relações afectivas, de convívio e de comunhão material entre os seres humanos e à crescente internacionalização de tais referidas relações. VI - Tal lacuna deve ser preenchida pelas normas aplicáveis ao caso análogo das relações entre os cônjuges, que, não tendo eles a mesma nacionalidade, são reguladas pela lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa (artº 52º nº 2 CCiv)”.
25. Ou seja, a existência ou não de uma situação jurídica de união de facto, no caso, só poderia ser resolvida por meio da aplicação da lei brasileira, segundo as normas sobre conflitos de normas do direito internacional privado em Portugal, nomeadamente os art.ºs 50.º e 52.º do Código Civil.
26. Seja pela óptica do direito brasileiro, seja pela óptica do direito português, restou devidamente reconhecido na sentença judicial revidenda que os ora Recorrentes convivem como se cônjuges fossem por período de tempo superior ao exigido pela LN e pelo RLN.
27. Importante ressaltar, aliás, que a redacção da Lei n.º 37/81, de 03 de Outubro, ao fazer alusão ao reconhecimento em tribunal cível, o fez em momento anterior à Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ) e ao seu Decreto-Lei n.º 49/2014, de 27 de Março (Regulamento da LOSJ).
28. À época em que redigido o dispositivo, a legislação não fazia uso da nomenclatura “juízo da família e menores”, fazendo sentido exigir o reconhecimento em “tribunal cível”.
29. No entanto, fosse intenção do legislador excluir a possibilidade de as sentenças judiciais estrangeiras serem admitidas para este fim, assim constaria da Lei; o legislador não o fez, e não cabe ao Tribunal da Relação de Lisboa interpretar a Lei de modo a fazê-lo.
30. Conjugadas estas normas, sempre esteve claro que a intenção do legislador sempre foi exigir de quem requer a aquisição da nacionalidade portuguesa que a situação jurídica da união de facto esteja reconhecida judicialmente, não bastando as escrituras públicas estrangeiras, as declarações de junta de freguesia, etc.
31. É este, precisamente, o caso dos autos, pois houve o reconhecimento judicial da situação análoga à união de facto.
32. Sendo a ação especial de revisão de sentença estrangeira uma acção de natureza declarativa de simples apreciação, importante destacara a redação da citada al. a) do n.º 3 do art.º 10.º do CPC: "2 - As ações declarativas podem ser de simples apreciação, de condenação ou constitutivas. 3 - As ações referidas no número anterior têm por fim: a) As de simples apreciação, obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto";
33. Ora, no caso em exame, o que se busca com a ação especial de revisão de sentença estrangeira é obter a declaração da existência de um facto, qual seja, o de que há houve o reconhecimento judicial da condição análoga à dos cônjuges, por período superior àquele que é exigido pela Lei n.º 37/81 de 03 de Outubro e o seu respetivo Regulamento.
34. No caso aqui examinado, a sentença judicial proferida pelo Poder Judicial do Brasil reconheceu a união dos Recorrentes desde 1998, ou seja, por período muito superior aos três anos exigidos pela Lei que confere os direitos de que dependem a revisão e homologação da sentença judicial estrangeira.
35. Portanto é equivocada a interpretação dada pelo Tribunal a quo no sentido de que o meio processual utilizado não é idóneo para a finalidade pretendida, pois,
36. Conferida em Portugal a eficácia a uma sentença judicial brasileira, que cumpre todos os requisitos do art.º 978.º do CPC, a natural consequência será o reconhecido do direito à nacionalidade portuguesa por ter sido a união reconhecida judicialmente.
37. Está, pois, evidenciado o interesse de agir e a adequação do meio processual eleito.
38. O CPC no seu art. 980.º traz os seis requisitos necessários para que uma sentença judicial estrangeira seja revista e homologada em Portugal:
(...)
39. Adiante no art.º 983.º traz os fundamentos pelos quais o pedido deve ser indeferido:
(...)
40. As alíneas a), c) e g) do art.º 696.º a que se refere o n.º 1 do art.º 983.º trazem as seguintes hipóteses:
(...)
41. Na hipótese concretamente observada nos autos:
42. não há dúvidas sobre a autenticidade da sentença judicial brasileira nem sobre a inteligência da decisão;
43. fez-se prova do trânsito em julgado;
44. o tribunal estrangeiro é competente por serem os AA. ora Recorrentes domiciliados no Brasil, e não se trata de matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses;
45. não há exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português;
46. ambos os Recorrentes na ação que tramitou perante o tribunal estrangeiro apresentaram o pedido em consenso, não havendo que se falar em inobservância aos princípios do contraditório e da igualdade das partes;
47. não há na decisão qualquer elemento que conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português"
48. De referir, ainda, que o Acórdão recorrido contraria frontalmente diversos precedentes do Supremo Tribunal de Justiça, inclusivamente, aqueles que admitem a revisão da escritura pública de união estável de origem brasileira:
"I – A escritura pública, lavrada em cartório do registo civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença. II– Verificados os requisitos previstos no artigo 980.º do CPC, deve a escritura pública de declaração de união estável ser revista e confirmada por tribunal português". (STJ, Proc. n.º 47/20.0YRGMR.S1, Rel. Maria Clara Sottomayor, 13/10/2020)
"Não ofende a ordem pública internacional do Estado português a decisão judicial brasileira que reconheceu a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo, à semelhança da união de facto em Portugal, ainda que a decisão revidenda tenha entendido que “não é necessário que o casal resida sob o mesmo teto para a constituição da união estável. Mesmo na ausência de uma “coabitação contínua”, os factos relatados podem conduzir ao reconhecimento da situação de união de facto, na lei portuguesa". (STJ, Processo n.º 2247/20.4YRLSB.S1, Rel. Vieira e Cunha, 23/9/2021)
49. Também no âmbito da Corte de origem, diversos precedentes contrariam a solução jurídica adotada no Acórdão recorrido:
"Estando em causa uma sentença brasileira onde se reconhece judicialmente a condição de União Estável entre o requerente e o falecido, na aferição da violação dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português deve atender-se, nesta fase, não à decisão propriamente dita, mas sim ao resultado a que conduza o seu reconhecimento. Logo, é perante a decisão que deve ser aferido se se verifica a incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, ou seja, a contrariedade a valores muito significativos e profundos do direito interno." (TRL, Processo n.º 2247/20.4YRLSB-6, Rel. Gabriela Marques, 6/5/2021)
"Reúne as condições para ser revista e confirmada, e produzir efeitos na ordem jurídica portuguesa, a sentença proferida por tribunal brasileiro que reconhece a existência de uma união estável, no Brasil, durante mais de um quarto de século, não obstante o companheiro, já falecido, ser casado com uma portuguesa de quem, porém, esteve separado de facto durante todo aquele período; ainda, o direito da companheira à meação nos bens adquiridos pelo casal de facto durante o período da união; e, finalmente, condena os réus – a esposa e o filho, com quem não teve contacto durante todo o tempo da união de facto – no pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios." (TRL, Proc. n.º 1071/10.7YRLSB-7, Rel. Luís Lameiras, 14/6/2021)
50. Neste sentido, não pode subsistir a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, impondo-se a sua reforma por meio do presente Recurso de Revista.».
3. Foi proferido o seguinte despacho pelo Juiz Desembargador relator do Tribunal da Relação:
«Por estar em tempo (Art. 638.º n.º 1 do C.P.C..), porque a decisão é recorrível (Art.s 627.º e 629.º n.º 1 do C.P.C.), por assistir legitimidade aos Recorrentes (Art. 631.º do C.P.C.), admitimos o recurso, que é de revista (Art. 985.º n.º 1 do C.P.C.), a subir nos autos e de imediato (Art.s 671.º n.º 1 e 675.º n.º 1 do C.P.C.), com efeito meramente devolutivo (Art. 676.º n.º 1 “a contrario” do C.P.C.), porquanto, como é sustentado no acórdão recorrido, a decisão recorrida não tratar de questões sobre o estado das pessoas.».
4. Notificado, veio o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto pronunciar-se nos seguintes termos:
«Sobre a questão de saber se as escrituras públicas brasileiras declaratórias da união estável são suscetíveis de confirmação e revisão pelos tribunais portugueses foi interposto pelo M.ºP.º um recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência que corre termos no NUIPC 151/21.8YRPRT.S1-A.
A questão debatida neste recurso de revista tem manifestas semelhanças com a referida atrás, sendo única diferença a de incidir, no caso, sobre sentença judicial declaratória da existência da mesma união estável.
Por isso, promovemos que seja ordenada a suspensão desta instância recursiva até ser decidido o aludido recurso para uniformização de jurisprudência.».
5. Relativamente à admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça em acções de revisão e confirmação de sentença estrangeira como a presente, dispõe o art. 985.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o seguinte:
«Da decisão da Relação sobre o mérito da causa cabe recurso de revista».
Ainda que os antecedentes históricos deste regime indiciem que esta norma se destinaria essencialmente a resolver a questão da modalidade (apelação ou revista) de recurso em causa (questão que naturalmente surge por, nesta acção especial, a decisão do Tribunal da Relação ser proferida em 1.ª instância), afigura-se que, no caso dos autos, o acórdão recorrido reveste a natureza de decisão de mérito.
Com efeito, por um lado, constata-se que a decisão recorrida é de improcedência da acção e não de absolvição da instância. E, por outro lado, verifica-se que a sua ratio decidendi consiste no estabelecimento de um critério da adequação entre a acção e o fim extraprocessual declarado pelo requerente (obtenção da nacionalidade portuguesa) como requisito para o reconhecimento e confirmação da sentença estrangeira. O que, em última análise, corresponde à adopção de um requisito adicional para o reconhecimento e confirmação de sentença estrangeira para além dos requisitos previstos no art. 980.º do CPC, sendo que, neste tipo de acções, o juízo de mérito consiste precisamente em apreciar se a sentença estrangeira preenche os não os referidos requisitos legais.
No sentido da admissibilidade do recurso em caso idêntico ao dos autos, ver o recente acórdão de 07.06.2022, proferido no processo n.º 641/22.5YRLSB.S1, disponível em www.dgsi.pt; também em caso similar ao dos autos, com fundamento em que o acórdão da Relação pôs termo ao processo, o acórdão de 20.10.2015, proferido no processo n.º 50/14.0YRGMR.S1, consultável em www.dgsi.pt.
Assim sendo, conclui-se pela admissibilidade do presente recurso.
6. Tendo por base a conclusão do recurso de revista, a questão a apreciar é a seguinte:
- Saber se a sentença homologatória proferida pela 3.a Vara de Família da Regional da Barra da Tijuca, transitada em julgado em 28 de Janeiro de 2022, que declarou a existência da “união estável” entre os requerentes desde 1998, é susceptível de revisão e confirmação, nos termos do disposto no art. 978.º, n.º 1, do CPC, para valer como sentença para o Estado Português.
Com o devido respeito perante posição divergente assumida pelo Ministério Público, esclareça-se que esta questão não se confunde com aquela outra questão de saber se uma escritura pública de declaração de união estável celebrada no Brasil deve ser equiparada a uma sentença judicial para efeitos de revisão e confirmação pelos tribunais portugueses ao abrigo do regime do art. 978.º e segs. do Código de Processo Civil. Para resolver esta última e controvertida questão encontra-se pendente neste Supremo Tribunal recurso para uniformização de jurisprudência a proferir no âmbito do processo n.º 151/21.8YRPRT.S1-A.. Porém, não estando a resolução da questão objecto do presente recurso dependente da decisão uniformizadora do Pleno das Secções Cíveis, conclui-se pela inexistência de fundamento para a suspensão da instância.
7. Com interesse para a decisão da causa, o Tribunal da Relação deu como documentalmente provados os seguintes factos:
1 - AA, nascida a .../.../1976, é filha de CC e DD, tendo obtido a nacionalidade portuguesa, conforma averbamento n.º 1 de 2022-01-25 ao assento de nascimento n.º 5421 do ano de 2022 (cfr. doc. de fls. 27);
2 - Consta da “certidão de nascimento” de BB que nasceu a .../.../1971, no ... de Janeiro, ..., filho de EE e de FF (cfr. doc. de fls. 28).
3 - Por sentença datada de 14 de janeiro de 2022, proferida no processo n.º ...09 de homologação de transação extrajudicial – Reconhecimento e/ou dissolução de união estável ou concubinato, pela ... Vara da Família Regional da Barra da Tijuca – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Poder Judiciário, e transitada em julgado em 28 de janeiro de 2022, foi decidido, tendo em vista a escritura pública de união estável de 20 de agosto de 2009, homologar por sentença o acordo manifesto pelas partes e declarar a união estável pelo regime de separação de bens desde 1998 entre AA e BB (cfr. doc. de fls. 31 a 42).
8. No caso sub judice – insiste-se – foi proferida uma sentença, por órgão jurisdicional do Brasil que reconheceu a existência de uma “união estável” entre os requerentes.
Como se afirmou supra, entendeu o acórdão recorrido que o pedido de revisão e confirmação da referida sentença não poderia proceder, uma vez que tal procedimento se mostra inidóneo à prossecução da finalidade que determinou a sua propositura pelos requerentes, que é a de, posteriormente, requerer a atribuição da nacionalidade portuguesa ao requerente.
E, também como se referiu supra, consta do respectivo sumário que «[a] ação de revisão e confirmação de sentença estrangeira que tem por objeto sentença declaratória da existência de “união estável” entre os Requerentes é meio processual inadequado para preenchimento do requisito legal previsto no art. 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de outubro), para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, uma vez que aí se pressupõe que deve ser instaurada ação no tribunal cível ... instância, contra o Estado Português, num processo que pressupõe a demonstração judicial dos factos em que se estriba o pedido, com amplo contraditório, o que não se compagina com a finalidade e tramitação próprias do processo previsto nos arts. 978.º e seguintes do CPC.».
Contra esta posição, insurgem-se os requerentes.
Vejamos.
O art. 978.º, n.º 1, do CPC, prescreve o seguinte:
«Sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.».
Por sua vez, nos termos do disposto no art. 980.º do CPC, para que uma sentença estrangeira seja confirmada é necessário:
«a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.».
Deste preceito legal resulta, inequivocamente, que o objecto da acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira consiste na apreciação da verificação de certos pressupostos de natureza essencialmente formal e não na apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma sentença. Neste sentido, ver, entre outros, o acórdão deste Supremo Tribunal de 23.09.2021 (proc. n.º 2247/20.4YRLSB.S1), consultável em www.dgsi.pt:
«Em matéria de reconhecimento de sentenças estrangeiras, é sabido que a ordem jurídica pode oscilar entre duas posições extremas – seja a da revisão de mérito, seja a da aceitação plena. Entre esses dois sistemas ou posições encontra-se o direito português, consagrando um sistema de delibação, ou seja, de revisão meramente formal, que implica verificar se a sentença proferida satisfaz certos requisitos de forma, recusando o conhecimento do fundo ou mérito da causa, mas sem prejuízo de a mesma sentença dever obedecer a um conjunto de outros requisitos enumerados no artº 980º CCiv (…)». [negrito nosso]
Neste contexto, não pode ser adicionado ao elenco do art. 980.º do CPC qualquer outro requisito – como a exigência de adequação da acção à finalidade visada pelos requerentes – para que seja reconhecida e confirmada a sentença estrangeira. Diferente seria se acaso se constatasse que tal exigência, ainda que imprecisamente formulada pelo tribunal a quo, se reconduzia afinal a algum dos requisitos legalmente previstos.
Analisada a sentença estrangeira apresentada nos autos em função dos requisitos enunciados nas supra transcritas alíneas a), b), d) e e) do art. 980.º do CPC entende-se que não existe qualquer obstáculo que, do ponto de vista formal, impeça a respectiva confirmação.
No que se refere ao requisito enunciado na alínea f) («Que [a sentença estrangeira] não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português»), considera-se que a sentença em causa, ao reconhecer a existência de uma “união estável” entre os requerentes, conceito que, assinale-se não se mostra absolutamente transponível para a situação de “união de facto” reconhecida pela lei portuguesa (cfr. art. 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade - Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, na redacção introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril), não é atentatória dos princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Por fim, e no que concerne ao requisito da alínea c) («Que [a sentença] provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses»), não existe qualquer indício da situação fraudulenta descrita na lei, nem a sentença incide sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
A este propósito, e por se afigurar não ter sido este o entendimento do tribunal a quo, importa esclarecer que saber se a referida sentença é idónea ou suficiente para que o requerente realize posteriormente a finalidade enunciada de lhe ser atribuída a nacionalidade portuguesa é questão diametralmente distinta e sobre a qual não tem o Tribunal de se pronunciar por extravasar o estrito objecto da presente acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira.
Com efeito, na presente acção é apenas peticionada a revisão e confirmação de uma sentença judicial e não também a atribuição da nacionalidade portuguesa a um dos requerentes, sendo que, de resto, os requerentes poderiam ter omitido a finalidade pretendida com a revisão e confirmação da sentença. Na jurisprudência deste Supremo Tribunal, ver o supra referido acórdão de 07.06.2022, que, pronunciando-se sobre caso similar ao que ora nos ocupa, decidiu, que:
«[R]elevante para a revisão da sentença estrangeira é, apurar se se verificam os pressupostos previstos nas alíneas do art. 980.º, do CPC, não sendo relevante saber se a decisão revidenda é suficiente (ou não) para atribuir nacionalidade portuguesa ao membro com nacionalidade brasileira.».
8. Conclui-se, assim, pela verificação dos requisitos previstos no art. 980.º do CPC, devendo a sentença estrangeira ser confirmada, não podendo, porém, de tal confirmação extrair-se que a decisão da sentença seja elemento suficiente para a aquisição da nacionalidade pelo requerente, designadamente no que respeita à equiparação entre o conceito de “união estável”, no âmbito e para os efeitos do direito brasileiro, e o conceito de “união de facto”, no âmbito do direito português e para o efeito previsto no art. 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro, na redacção introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril).
9. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se o acórdão recorrido e decidindo-se confirmar a sentença proferida a 14 de Janeiro de 2022 pela ... Vara de Família da Regional da Barra da Tijuca, que homologou o pedido dos requerentes e declarou a “união estável desde 1998, que havia sido acordada por meio de escritura declaratória de união estável de 20 de Agosto de 2009, com separação convencional de bens”, emitida pelo 15.º Ofício de Notas do Rio de Janeiro, Brasil, confirmação que tem o alcance descrito no ponto 8 do presente acórdão.
Sem custas de parte por não haver parte vencida.
Lisboa, 15 de Setembro de 2022
Maria da Graça Trigo (Relatora)
Catarina Serra
Paulo Rijo Ferreira