VALOR DA AÇÃO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
Sumário


I- O  art. 297.º, n.º 2, 2.ª parte, do CPC, refere-se à hipótese de se pedirem, além dos juros vencidos, os que se vencerem durante a pendência da causa; o art. 300.º, n.º 1, que está em correlação com o art. 557º (ambos do mesmo diploma), rege o caso de se pedir o pagamento de prestações periódicas que se vencerem enquanto subsistir a obrigação.

II- A primeira norma pressupõe que o pedido de juros, rendas e rendimentos apareça como acessório dum pedido principal; pelo contrário, a segunda aplica-se ao caso de o objeto próprio da ação ser o pagamento de prestações que se vencem periodicamente.

III- Peticionando o A. a condenação do R. a pagar-lhe prestações de reforma em dívida, vencidas e vincendas, e a abster-se de reter percentagem superior a 22,2% da pensão atribuída, a cada momento, pela segurança social, estão em causa prestações periódicas.

IV- Desconhecendo-se durante quanto tempo o A. irá receber a pensão (que é vitalícia), não é possível determinar a duração provável da prestação periódica, pelo que, atendendo ao critério residual previsto na parte final do artigo 300.º, n.º 2, deverá fixar-se o valor da ação em € 30.000,01.

Texto Integral




Revista n.º 5674/21.6T8LSB.L1.S1
MBM/JG/RP

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1.1. Réu/recorrente: BANCO BPI, S.A.
1.2. Autor/recorrido:  AA.

X X X
2.1. Nos presentes autos, o A. demandou o R., pedindo (a título principal) a sua condenação:
a) A pagar-lhe todas as prestações de reforma em dívida, vencidas e vincendas, com efeitos a 14.03.2016 e cujo valor já vencido ascende a € 21.874,34;
b) A pagar-lhe os juros de mora vincendos e vencidos, à taxa legal, por cada prestação em dívida e até integral pagamento;
c) A abster-se de reter percentagem superior a 22,2% da pensão atribuída, a cada momento, pela segurança social.

2.2. Alegou essencialmente: o A. foi trabalhador bancário, encontrando-se reformado; entre 2011 e 2014 verificou-se uma situação de reforma sobreposta entre o sector bancário e o regime de proteção social do sector bancário, pelo que importa proceder à sua repartição nos termos do disposto no art. 136º, do Acordo Coletivo de Trabalho (ACT) para o sector bancário; o A. entende que, para o apuramento dessa percentagem, relevam apenas os anos de serviço sobrepostos (banca/segurança social), enquanto o R. entende que no apuramento daquela percentagem releva, para além do fator tempo, o valor das contribuições registadas nesse período; a R. tem retido 39,46% e não os 22,22% correspondentes a 4/18 da pensão atribuída a cada momento pela segurança social.

3. O BANCO BPI, S.A., veio interpor recurso de revista excecional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou o saneador-sentença proferido na 1ª Instância a julgar a ação totalmente procedente, quanto a duas questões: i) a interpretação da cláusula 136.ª do ACT para o sector bancário; ii) e o valor da ação, sustentando que o mesmo deve fixar-se em  € 111.003,94 ou, assim não se entendendo, em € 30.000,01 (com voto de vencido, o Tribunal da Relação também confirmou a decisão da 1ª Instância na parte em que fixou o valor da ação em € 21.877,22).

4. O recorrido respondeu, pugnando pela inadmissibilidade da revista excecional e, caso venha a ser admitida, pela sua improcedência.

5. O recurso sobre o valor da ação foi admitido nos termos gerais e não como revista excecional, uma vez que está em causa a impugnação de uma decisão respeitante ao valor da causa, com fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre, ou seja uma decisão que admite sempre recurso (artigo 629.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil[1]).

6. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que as partes não responderam.

7. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art.º 608.º, n.º 2, in fine), em face das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir neste momento consiste em saber se foi corretamente fixado o valor da ação.

E decidindo.


II.


8. No tocante à questão em apreço, alinhado com a decisão da primeira instância, ponderou o acórdão recorrido:
“(…)
Estão em causa prestações futuras, que vencerão mais adiante e que originam condenações in futurum, como rendas vincendas (cfr. art.º 557, do CPC).
O que está em causa aqui não é exatamente a prestação periódica mas a forma de cálculo dos montantes exatamente devidos (e que redundam num remanescente e não na totalidade da pensão).
Mas ainda que se queira defender o contrário, afigura-se incontornável que o pedido principal se prende com a determinação do seu montante, da correção de determinados descontos, já que o devedor sabe que deve pensões a cujo pagamento, que se veja, não se eximiu nem pretende eximir, radicando o conflito na interpretação das clausula aplicável e na afirmação dos descontos que se devem ou não efetuar.
Ora, o art.º 300º é aplicável quando o "o pedido formulado contempla, a titulo principal (e não meramente acessório - art.º 297/2, 2ª parte), prestações vencidas e vincendas" (Geraldes, Pimenta e Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I vol, nota 1 ao art.º 300º).
Não sendo esse o caso, é de aplicar o disposto no art.º 297/2, atendendo-se somente aos interesses já vencidos, que correspondem ao valor fixado de 21.877,22 €.”

9. Pelas razões que se passam a expor, desde já se adianta que o valor da ação deve ser fixado em € 30 000,01, nos termos do art. 300.º, n.º 2, in fine, como entendeu a Senhora Desembargadora que neste âmbito lavrou voto de vencido.

10. Nos autos são cumulados pedidos de pagamento de prestações de reforma vencidas e vincendas, discutindo-se se nos encontramos na esfera normativa do art. 297.º, n.º 2, ou do art. 300.º.

Sobre a articulação destas normas, já o Professor Alberto dos Reis[2] assinalava:

“Pode, à primeira vista, parecer que há colisão entre o § único do artigo 312º (correspondente ao atual art. 297.º, nº 2, 2ª parte) e o artigo 314º (correspondente ao atual art. 300.º, nº 1), pois o primeiro exclui os juros, rendas e rendimentos que se vencerem e o artigo 314º manda tomar em consideração as prestações vincendas. Mas não há oposição alguma entre os dois textos. Cada um deles tem domínio de aplicação diferente.  O § único do artigo 312º refere-se à hipótese de se pedirem, além dos juros vencidos, os que se vencerem durante a pendência da causa; o artigo 314º está em correlação com o artigo 276º (correspondente ao atual art. 557.º): rege o caso de se pedir o pagamento de prestações periódicas que se vencerem enquanto subsistir a obrigação.

Como nota o sr. Dr. Lopes Cardoso, o § único do artigo 312º pressupõe que o pedido de juros, rendas e rendimentos apareça como acessório dum pedido principal (…); pelo contrário, o artigo 314º aplica-se ao caso de o objeto próprio da ação ser o pagamento de juros, rendas, (…), etc., que se vencem periodicamente.”.

Na mesma perspetiva, refere Salvador da Costa[3], que o art. 300.º se aplica quando, “com base em relações jurídicas de caráter duradouro ou de trato sucessivo subsistentes, é pedido o cumprimento de prestações vencidas e vincendas, derivadas de obrigações periódicas ou permanentes, independentemente de serem devidas a título principal ou acessório”, enquanto o art. 297.º é “aplicável aos juros, rendas e rendimentos vencidos ao tempo da propositura da ação ou, depois disso, objeto do pedido acessório.”.

Quanto à razão de ser deste regime, explica ainda o mesmo Autor que, no caso do artigo 297.º, n.º 2, “os interesses vincendos não relevam para a determinação do valor da causa porque se ignora, aquando da propositura da ação ou da dedução de reconvenção, o momento em que a causa termina ou em que o montante do capital irá ser entregue ao autor ou ao réu reconvinte. Não é por isso de atender nesta matéria ao valor que poderia ter sido atribuído à causa à data da sentença, ou seja, aos juros, rendas ou rendimentos vencidos durante a pendência da causa”[4].

Diferentemente, como salienta Lebre de Freitas[5], o art. 300º permite “obter uma sentença de trato sucessivo, que permita, ao autor, com base na condenação, promover imediatamente a execução se o réu, no futuro, não realizar a prestação agora ainda vincenda (…)”.

11. No caso vertente, o A. peticiona a condenação do R. a pagar-lhe as prestações de reforma em dívida, vencidas e vincendas, e a abster-se de reter percentagem superior a 22,2% da pensão atribuída, a cada momento, pela segurança social.

Como esta Secção Social já julgou, “na relação previdencial de reforma, existem duas espécies de direitos: o direito à reforma, como direito unitário a receber as respetivas pensões vitalícias, e os direitos que dele periodicamente se desprendem, correspondentes às prestações periódicas em que a reforma se concretiza ao longo do tempo”[6].

E, conexamente, também se entendeu noutro aresto que “os complementos de pensão de reforma são prestações periódicas, que se renovam ao fim de períodos consecutivos, configurando uma pluralidade de obrigações distintas, embora todas emergentes de um vínculo fundamental de que nascem sucessivamente, configurando-se diversas obrigações — tantas quantas as prestações — que vão surgindo a seu tempo, no desenvolvimento de uma relação complexa que a todas coenvolve”.[7]

12. Deste modo, contrariamente ao defendido no acórdão recorrido, afigura-se-nos não estar em causa nos autos apenas o modo de cálculo das prestações, mas também a retenção de parte do seu valor.

O A. pretende que o R. lhe pague os valores que indevidamente reteve, bem como que o devedor fique desde logo condenado a pagar as prestações que se vencerem sem o desconto indevido.  O A. pretende assim obter uma sentença (com trato sucessivo) cujos efeitos se prolonguem enquanto subsistir a obrigação e que, caso o R. não pague o valor devido a título de pensão, possa executar a sentença.

Não nos encontramos perante uma situação em que as prestações vincendas sejam uma mera decorrência de um pedido principal, não suportadas diretamente por um pedido de cumprimento de uma prestação (como seria o caso por exemplo de se deduzir um pedido principal de declaração de ilicitude de um despedimento).

Vale por dizer que in casu o pedido de prestações vincendas não é um pedido acessório, mas principal; e que estamos perante prestações periódicas.

13. Consequentemente, o valor da causa deve ser fixado tendo em consideração as prestações vencidas e vincendas, nos termos do art. 300.º, n.º 1 e 2.

No caso sub judice não está em discussão o valor total da prestação periódica, mas o valor a descontar dessa prestação nos termos da cláusula 136.ª do ACT Bancário. Para efeitos de cálculo do valor da causa deverá, por isso, atender-se à diferença entre o valor que o R. está a descontar (39,46 %) e o valor do desconto que o A. considera ser devido (22,22 %), aqui residindo a utilidade do pedido para o A.

Desconhecendo-se durante quanto tempo o A. irá receber a pensão (que é vitalícia), não é possível determinar a duração provável da prestação periódica, pelo que, atendendo ao critério residual previsto na parte final do artigo 300.º, n.º 2, deverá fixar-se o valor da ação em €30.000,01.





IV.


14. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se em fixar o valor da ação em € 30.000,01, nesta parte se revogando o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrido.

Os autos deverão ser enviados à Formação prevista no artigo 672.º do CPC junto desta Secção Social, para conhecer da admissibilidade da revista excecional.



Lisboa, 21 de setembro de 2022




Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Ramalho Pinto



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[1] Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.
[2] Comentário ao CPC, III, Coimbra Editora, p. 638.
[3] Os Incidentes da Instância, 10.ª edição, pág. 39.
[4] Ibidem, pág. 25.
[5] Código de Processo Civil Anotado, volume I, 4ª edição, pág. 608.
[6] Acórdão de 25.06.2002, Proc. n.º 02S882, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Ac. de 01.06.2011, Proc. 876/08.3TTLRA.C1.S1, também disponível em www.dgsi.pt.