IMUNIDADE JURISDICIONAL
EXECUÇÃO
TRABALHADOR DE CONSULADO
CONTRATO DE TRABALHO
Sumário


I- Desde logo numa interpretação literal do artigo 22º da Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas, os depósitos bancários não se se enquadram na previsão normativa do seu número 3 (“Os locais da missão, o seu mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução”), o qual apenas se reporta a determinados bens (corpóreos) – e não a quaisquer direitos/créditos.

II- Compreensivelmente, os bens aí elencados são precisamente aqueles – e apenas aqueles – que, a serem objeto de “busca, requisição, embargo ou medida de execução”, colocariam em sério risco a funcionalidade da missão e, para além disso, afetariam desproporcionadamente a própria dignidade do Estado demandado, cuja soberania exige a cabal inviolabilidade do local e bens afetos à atividade consular, não podendo deixar de reconhecer-se algum paralelismo entre esta norma e a do direito interno que consagra  a regra (não absoluta) da impenhorabilidade dos bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica (art. 737.º, n.º 3, CPC), numa lógica de salvaguarda dos interesses vitais do executado.

III- Para efeitos do disposto no art. 18.º, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, uma Embaixada (ou um Consulado) de um Estado estrangeiro situado no território de um Estado-Membro constitui um estabelecimento na aceção desta disposição num litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado entre esta em nome do Estado acreditante.

IV- Numa interpretação do art. 22.º, n.º 3, da Convenção de Viena, integrada e articulada com a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, poderá atribuir-se a esta última a força vinculativa própria do direito internacional consuetudinário, apesar de a mesma não se encontrar em vigor em Portugal.

V- Decorre dos arts. 19.º, alínea c), e 21º, n.º 1, alínea a), desta Convenção que, para além dos bens, também não são passíveis de penhora as contas bancárias utilizadas ou destinadas a ser utilizados no exercício das funções da missão diplomática do Estado ou dos seus postos consulares.

VI- Todavia (e para além do especial tratamento que devem merecer os processos judiciais emergentes de relações laborais), nestas situações não basta à embaixada ou consulado invocar que suas contas bancárias ou os seus bens estão vinculados à prossecução das finalidades da missão diplomática ou consular, impondo-se que seja efetiva e claramente comprovado que os bens ou direitos penhorados, ou indicados para penhora, têm relação direta com as respetivas atividades.

Texto Integral




Revista n.º 10736/18.4T8LSB.1.L1.S1
MBM/JG/FM

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. AA, deduziu execução com base em sentença condenatória transitada em julgado, contra o CONSULADO GERAL DO BRASIL EM LISBOA, para pagamento da quantia de € 16.191,98, acrescida de juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento.

2. Foi pedida e realizada a penhora de saldo em conta bancária do executado, o qual foi notificado e não deduziu oposição, nem à execução nem à penhora.

3. Entretanto, o Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros veio aos autos, espontaneamente, opinar no sentido de que a penhora efetuada nos autos “é contrária ao Direito Internacional, em especial as garantias relativas à imunidade de execução de Estados estrangeiros...”, no que foi acompanhado por requerimento do Ministério Público de 16.12.2019, que, em termos similares, diz ser “entendimento do MP que as penhoras das contas bancárias do Executado, Consulado Geral do Brasil em Lisboa, violam a Lei Internacional”, pelo que as mesmas devem ser dadas sem efeito.

Ouvida a exequente, veio esta dizer que “deverá manter-se a penhora ao saldo bancário no B..., SA, devendo o Executado, no prazo concedido para a apresentação dos embargos de executado, querendo, provar que aquele saldo bancário está afeto às finalidades essenciais inerentes à representação diplomática ou consular, através da demonstração detalhada dos valores que integram o seu orçamento e as despesas efetivadas e pendentes com a missão”.

4. Em seguida foi proferido o seguinte despacho:

“Veio o executado suscitar a impenhorabilidade das contas bancárias invocando a impenhorabilidade das mesmas. Sustenta a exequente que nos termos da Convenção de Viena (art. 22° n° 3) a impenhorabilidade cinge-se unicamente aos bens afetos à missão diplomática.
(…)
Cremos (…) que a exigência da convenção de Viena neste tocante reside no facto de os bens sobre os quais existe imunidade, serem “utilizados para os fins da missão” para que se enquadrem no conceito de “locais de missão”.

Ora, pugna o exequente pelo facto de caber ao executado demonstrar que as contas bancárias estão afetas à missão consultar, não lhe bastando invocar que assim seja.

Mas não cremos que tenha razão.

Uma conta bancária de um consulado serve precisamente, e em primeira mão, para assegurar a atividade inerente à missão consular, não cabendo que seja demonstrado qual o orçamento previsto para assegurar essa atividade e se algo excede o mesmo. Dizem as regras da experiência comum que assim é, que uma missão diplomática não se dedica a atos de comércio, ou de outra natureza especulativa ou com fito no lucro, mas sim à manutenção e gestão da sua atividade. Donde, essa conta bancária necessariamente está afeta aos fins da missão.

E por tal motivo, sem necessidade de maiores demonstrações, considero impenhoráveis as contas bancárias da executada, por estarem abrangidas pela imunidade prevista no art. 22° n° 3 da Convenção de Viena.

E por isso mesmo declaro a impenhorabilidade das contas bancárias, determinando o levantamento da penhora sobre as mesmas.”

5. A exequente apelou, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), julgando o recurso procedente e revogando aquele despacho, decidido “manter as penhoras das contas bancárias efetuadas nos autos, determinando o retomar da normal tramitação da execução, encontrando-se findo o prazo para dedução de oposição à penhora”.

6. Deste acórdão recorre o R., agora de revista.

7. A A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

8. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em parecer a que o recorrente respondeu, em linha com o antes sustentado nos autos.

9. Em face das conclusões das alegações de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do Código de Processo Civil[1]), as questões a decidir[2]  (pela ordem resultante do nexo de precedência lógica e prático-jurídica que entre elas existe) são as seguintes:

– Se as contas bancárias em causa eram (são) impenhoráveis;

– Na afirmativa, se o Tribunal de 1ª Instância podia apreciar oficiosamente tal questão.

E decidindo.

II.
Quanto à primeira questão:

10. Neste âmbito, ponderou a Relação:

“A decisão recorrida entendeu que não existe uma impossibilidade absoluta de penhora de bens de outros Estados sitos nas suas Embaixadas ou Consulados. E neste particular recolheu a concordância da apelante/exequente.

Entendimento que também acompanhamos, remetendo-se aqui (…) para o teor do Ac. da Relação de Lisboa de 16/1/2019, P. n° 12515/16.4T8LSB.2.L1-4 (Rel. Desemb. Maria José Costa Pinto) que aborda exaustivamente tal matéria a propósito da questão da incompetência absoluta dos tribunais portugueses.

A divergência surge, porém, porque a Mma Juíza a quo conclui que a quantia em dinheiro existente nas contas que foram penhoradas, porque pertencentes a uma missão diplomática e segundo a regras da experiência, “necessariamente está afeta aos fins da missão”.

Ora a Mma juíza não tem qualquer base factual para poder sustentar a decisão que tomou, sendo que as regras da experiência também nos dizem que existindo uma conta bancária titulada por uma entidade, seja ela qual for, não é possível saber, sem mais, qual o destino efetivo que seria dado ao dinheiro nela existente. Todo o dinheiro era para os fins da missão? Nenhum? Só parte? Não sabemos.“.


11. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.01.2019, invocado pelo acórdão recorrido, analisou com grande profundidade e de forma exaustiva a problemática da imunidade de execução dos Estados soberanos, em termos que é oportuno relembrar e que são os seguintes:

«(…)
9.3.2. No contexto da imunidade de jurisdição dos Estados soberanos – que se suscita quando um Estado é demandado no tribunal de um outro Estado em virtude de atos neste praticados – autonomiza-se a imunidade de execução.
(…)
9.3.2.1. Ao nível do direito escrito, três convenções internacionais versam sobre esta matéria.

9.3.2.1.1. Em primeiro lugar, a Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas celebrada em 18 de abril de 1961 e aprovada pelo Estado Português através do Decreto-Lei n.° 48295, de 27 de Março de 1968[…].
(…)
Esta convenção cuida das imunidades e privilégios pessoais dos agentes diplomáticos (imunidades diplomáticas) e não propriamente da imunidade do Estado acreditante, enquanto pessoa jurídica de direito público, face à jurisdição local do acreditado (imunidades jurisdicionais), a não ser quando nos seus artigos 22.º e 23.º estabelece regras sobre a inviolabilidade dos bens da missão, o que, por se tratar de matéria atinente a imunidades de execução do Estado acreditante, convoca a sua análise no caso vertente.
(…)




9.3.2.1.2. Em segundo lugar, a denominada Convenção de Basileia sobre a Imunidade dos Estados surgida no âmbito do Conselho da Europa e aberta à assinatura dos Estados membros e à adesão dos Estados não membros em 16 de maio de 1972[12].

A Convenção de Basileia, de cujo preâmbulo consta que se manifesta no direito Internacional uma tendência para restringir os casos em que um Estado pode invocar a imunidade diante dos tribunais dum outro Estado, enuncia de modo específico as situações e relações jurídicas relativamente às quais é aplicável a exceção ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros (artigos 1.º a 14.º). Com interesse para este foro laboral dispõe no seu artigo 5.º que:

“1- Um Estado contratante não pode invocar imunidade de jurisdição perante um tribunal de um outro Estado contratante se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular, se o trabalho dever ser realizado no território do Estado do foro.
2 – O parágrafo 1 não se aplica:
a) se a pessoa física tiver a nacionalidade do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado;
b) se na altura da celebração do contrato a pessoa singular não tinha a nacionalidade do Estado do foro nem residia habitualmente nesse Estado; ou
c) se as partes do contrato acordaram em sentido contrário, por escrito, a menos que, de acordo com a lei do Estado do foro, os tribunais desse Estado tivessem jurisdição exclusiva em virtude do objeto do processo
3...”.

E no seu artigo 23.º, já relativamente à imunidade de execução, que:

“Não podem ser tomadas medidas de execução ou medidas preventivas contra a propriedade de um Estado Contratante no território de outro Estado Contratante, salvo se, e na medida, em que o Estado consentiu expressamente, por escrito, na aplicação de tais medidas”.

Portugal assinou esta Convenção em 10 de maio de 1979, mas nunca a ratificou […], razão por que não se encontra em vigor na ordem jurídica interna.
(…)

9.3.2.1.3. Em terceiro lugar, e uns anos mais tarde, foi aprovada no âmbito das Nações Unidas, a Convenção sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens. A Comissão de Direito Internacional (CDI) iniciou em 1978 os trabalhos de codificação sobre imunidades jurisdicionais dos Estados, vindo a ser aberta à assinatura em Nova Iorque em 17 de janeiro de 2005 esta que veio a designar-se como a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens (ou Convenção de Nova Iorque).

Em Portugal, a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 46/2006, de 20 de junho e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 57/2006, ambos publicados no DR, 1ª série, de 20 de junho de 2006, tendo o instrumento de ratificação sido depositado junto do Secretário-Geral das Nações Unidas em 14 de setembro de 2006, conforme aviso n.º 698/2006, publicado no DR, 1ª série, de 12 de outubro de 2006.

O artigo 5.º da Convenção de Nova Iorque define como regra a imunidade dos Estados, ao dispor que “[s]ob reserva das disposições da presente Convenção, um Estado goza, em relação a si próprio e aos seus bens, de imunidade de jurisdição junto dos tribunais de um outro Estado”.

Mas, num evidente acolhimento da teoria da imunidade jurisdicional relativa no que diz respeito a ações declarativas, os seus artigos 10.º a 16.º enunciam os atos sujeitos a restrição à imunidade.

A propósito dos “contratos de trabalho”, o artigo 11.º rege do seguinte modo:

“1—Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo judicial que diga respeito a um contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular para um trabalho realizado ou que se deveria realizar, no todo ou em parte, no território desse outro Estado.

2 — O n.º 1 não se aplica se:

a) O trabalhador foi contratado para desempenhar funções específicas que decorrem do exercício de poderes públicos;
b) O trabalhador for:
i) Um agente diplomático, tal como definido na Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas de 1961;
ii) Um funcionário consular, tal como definido na Convenção de Viena sobre as Relações Consulares de 1963;
iii) Um membro do pessoal diplomático das missões permanentes junto de organizações internacionais, de missões especiais, ou se for contratado para representar um Estado numa conferência internacional;
ou
iv) Uma qualquer outra pessoa que goze de imunidade diplomática;
c) O processo judicial se referir à contratação, renovação do contrato ou reintegração do trabalhador;
d) O processo judicial se referir à cessação unilateral do contrato ou ao despedimento do trabalhador e, se assim for determinado pelo chefe de Estado, chefe de governo ou ministro dos negócios estrangeiros do Estado empregador, esse processo puser em causa os interesses de segurança desse Estado;
e) O trabalhador for nacional do Estado empregador no momento da instauração do processo judicial, salvo se a pessoa em causa tiver residência permanente no Estado do foro; ou
f) O Estado empregador e o trabalhador acordaram diversamente por escrito, sob reserva de considerações de ordem pública conferindo aos tribunais do Estado do foro jurisdição exclusiva em função do objecto do processo.”

No que diz respeito à execução, rege o artigo 19.º, sob a epígrafe “Imunidade dos Estados relativamente a medidas de execução posteriores ao julgamento”, nos seguintes termos:

«Não poderão ser tomadas, em conexão com um processo judicial num tribunal de outro Estado, quaisquer medidas de execução posteriores ao julgamento contra os bens de um Estado, tais como o arrolamento, arresto ou penhora, salvo se e na medida em que:

a) O Estado consentiu expressamente na aplicação de tais medidas:
i) Por acordo internacional;
ii) Por acordo de arbitragem ou por contrato escrito; ou
iii) Por declaração num tribunal ou por comunicação escrita após o litígio entre as partes ter surgido; ou
b) O Estado reservou ou afetou bens para satisfação do pedido que constitui o objecto desse processo; ou
c) For demonstrado que os bens são especificamente utilizados ou destinados a ser utilizados pelo Estado com outra finalidade que não a do serviço público sem fins comerciais e estão situados no território do Estado do foro, com a condição de que as medidas de execução posteriores ao julgamento sejam tomadas apenas contra os bens relacionados com a entidade contra a qual o processo judicial foi instaurado.»

Depois de no seu artigo 20.º a mesma Convenção referenciar o efeito do consentimento para o exercício da jurisdição sobre a adoção de medidas cautelares e de execução (…), o artigo 21.º enumera exemplificativamente categorias de bens do Estado que não são considerados como bens especificamente utilizados ou destinados a ser utilizados pelo Estado com outra finalidade que não a de serviço público sem fins comerciais ao abrigo da alínea c) do artigo 19.º.

Não serão assim considerados, de acordo com a norma do artigo 21.º, nomeadamente:

«a) Os bens, incluindo qualquer conta bancária, utilizados ou destinados a ser utilizados no exercício das funções da missão diplomática do Estado ou dos seus postos consulares, missões especiais, missões junto de organizações internacionais, ou delegações junto de órgãos de organizações internacionais ou de conferências internacionais;
b) Os bens de natureza militar ou utilizados ou destinados a serem utilizados no exercício de funções militares;
c) Os bens do banco central ou de outra autoridade monetária do Estado;
d) Os bens que fazem parte do património cultural do Estado ou dos seus arquivos e que não estão à venda ou que não são destinados a serem vendidos;
e) Os bens que fazem parte de uma exposição de objetos de interesse científico, cultural ou histórico e que não estão à venda ou que não são destinados a serem vendidos.»

Quanto a estas categorias de bens que o Estado estrangeiro detenha no território do Estado do foro, vale integralmente a imunidade de execução.

O n.º 2 do preceito indica que o seu n.º 1 se aplica sem prejuízo do disposto nos artigos 18.º (que rege sobre a imunidade dos Estados relativamente a medidas cautelares anteriores ao julgamento) e nas alíneas a) e b) do artigo 19.º.

A referida Convenção não se encontra em vigor na medida em que, de acordo com o seu artigo 30.º, apenas vigorará “no 30.º dia seguinte à data do depósito do 30.º instrumento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão junto do Secretário-Geral das Nações Unidas” e no momento presente há 28 assinaturas e apenas 21 países a ratificaram, aceitaram ou aprovaram […].

Ainda que nestes países se inclua Portugal, não tem a Convenção força vinculativa a se, não podendo ser diretamente invocada.

9.3.2.1.4. Como vimos, a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas vincula Portugal (…)

Quanto às Convenções de Basileia e de Nova Iorque, embora nenhuma destas convenções internacionais se encontre em vigor na ordem jurídica portuguesa, tal não significa que não se deva conferir relevância ao seu conteúdo, na medida em que o costume internacional é fonte formal de direito (artigo 8.º, n.º 1 da CRP e art. 38.º n.º 1 do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça) e o conteúdo destes instrumentos é revelador da evolução do pensamento dos Estados no que respeita à imunidade de execução, é revelador do crescente peso que vem assumindo na comunidade internacional, tal como na doutrina e na jurisprudência dos diversos países, a conceção restrita da imunidade judiciária dos Estados, bem como é, igualmente, revelador da configuração das exceções ao seu afastamento.

Conforme tem constituído entendimento pacífico da jurisprudência portuguesa[…], o facto de estas convenções sobre a imunidade dos Estados não serem vinculativas a se não as torna inócuas, na medida em que, evidenciando uma certa tendência na definição do princípio da imunidade dos Estados estrangeiros, na prática internacional, pode ajudar a definir o conteúdo, a marcha evolutiva e o sentido atual da correspondente regra consuetudinária, o que deve dizer-se quer quanto à Convenção de Basileia, quer quanto à Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades dos Estados e dos seus Bens[…].
 
Também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem afirmado que os preceitos da Convenção de Nova Iorque – ainda que esta não tenha sido ratificada pelo Estados em causa nas suas decisões –, têm força vinculativa na medida em que refletem o direito internacional consuetudinário […].

As duas identificadas Convenções de Basileia e de Nova Iorque, nas suas disposições sucessivas, traduzem uma tendência generalizada da prática dos Estados no sentido do alargamento – ainda que muito limitado – das exceções ao princípio da imunidade da execução dos Estados estrangeiros (que inicialmente se restringia aos casos de consentimento expresso na adoção das medidas de execução), sendo ainda indicativas de que hodiernamente não pode, em princípio, ser invocada a imunidade de execução se os bens se integrarem nas categorias das alíneas a) a c) do artigo 19.º da Convenção de Nova Iorque, o que tem reflexos na delimitação do conteúdo objetivo da referida regra costumeira, a atender nos termos do artigo 8.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

9.3.3. (…)

Da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (…) que se aplica diretamente (…), decorre que não existe uma impossibilidade absoluta de se proceder à aplicação de medidas de execução a uma Embaixada, pois que a impossibilidade apenas ocorre quando estamos perante bens afetos às finalidades da missão diplomática.

Na verdade, se é certo que no seu art. 22.º, n.º 3 a Convenção estabelece que “[o]s locais da missão, o seu mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução”, é igualmente certo que, de acordo  com a alínea i) do seu artigo 1.º  os “locais de missão” vêm definidos como “os edifícios, ou parte dos edifícios e terrenos anexos, seja quem for o seu proprietário, utilizados para as finalidades da missão, inclusive a residência do chefe da missão”.

Ou seja, os bens da missão diplomática que estão excluídos da execução são os afetos às finalidades da missão (não estando excluído que possa haver bens com distinta afetação), não sendo exata a afirmação (…) de que a imunidade de execução “consubstancia um privilégio de direito internacional que impede que se penhore qualquer bem da titularidade das missões diplomáticas”.

Perante a exigência convencional de que os bens sejam “utilizados para as finalidades da missão” para que se enquadrem no conceito de “locais de missão” salvaguardados das medidas de execução nos termos do artigo 22.º, n.º 3 da Convenção, é manifesto que, havendo bens que se não enquadrem em tal conceito, inexiste qualquer imunidade que os subtraia às medidas de execução.

Além disso, também a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, de 2 de dezembro de 2004, admite que o direito de executar possa atingir o património de um Estado estrangeiro sito no Estado do foro, ainda que apenas nos casos e dentro dos limites estabelecidos no próprio instrumento internacional.
 (…)
Deve acrescentar-se que “toda a restrição ao princípio da imunidade deve estar generalizadamente radicada na consciência jurídica das coletividades, o que impõe grande prudência e muita segurança na sua aplicação”[…], pelo que é de considerar que o âmbito das restrições que podem admitir-se àquela regra consuetudinária da imunidade de execução dos Estados, não pode ultrapassar as restrições que constam da Convenção da ONU sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, texto convencional este que mais recentemente expressou os contornos da regra consuetudinária em causa.
(…)
Na jurisprudência estrangeira, a jurisprudência espanhola […] e brasileira[…1] têm-se orientado no sentido de imunidade relativa e a prática americana em matéria de imunidade de execução, segundo dá nota Catherine Kessed-Jian[…], tem vindo também a sedimentar-se no sentido de uma imunidade de execução restrita.

Assim, tendo em consideração as prescrições da Convenção de Viena de 1961 [artigos 22.º, n.º 3 e 1.º, alínea i) e tendo em consideração que na ordem jurídica interna, vigora a regra consuetudinária emergente dos citados preceitos convencionais da Convenção da ONU de Nova Iorque, nos termos do artigo 8.º, n.º1 da Constituição da República Portuguesa (costume internacional de âmbito geral), regra que emerge também da jurisprudência que vem sendo emitida em vários Estados incluindo o americano, não podia o tribunal a quo concluir que existe imunidade absoluta de execução do Estado estrangeiro relativamente a medidas de execução posteriores ao julgamento e daí retirar a afirmação da incompetência internacional dos tribunais portugueses para tramitar a presente ação executiva (…).
(…)
Por outro lado, (…) não nos podemos olvidar que o que esteve na génese da instauração da presente execução, foi uma decisão condenatória proferida por um tribunal português e na qual foi o seu despedimento declarado ilícito e a recorrida condenada no pagamento de diversas quantias, quer a título de indemnização, quer a título de créditos salariais, sendo a ação declarativa apreciada e julgada em Portugal, nos termos do Regulamento (UE) n.° 281/2015, de 25/02 – que no n.º 2 do seu art. 20.º estipula que “[s]e um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio num Estado-Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num Estado-Membro, considera-se, quanto aos litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado-Membro” – em conformidade com o entendimento do Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 19 de Julho de 2012 (à luz do correspondente n.° 2 do art. 18.° do Regulamento CE n.° 44 /2001) de que o referido preceito deve ser interpretado “no sentido de que uma Embaixada de um Estado estrangeiro situado no território de um Estado-Membro constitui um estabelecimento na aceção desta disposição num litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado entre esta em nome do Estado acreditante”.

Em suma, radicada a competência internacional dos tribunais portugueses neste quadro normativo (bem como nos artigos 10.º e 14.º do Código de Processo do Trabalho, sobre os quais, de todo o modo, prevalece o Regulamento n.º 281/2015 – cfr. o artigo 59.º do CPC) e tendo em consideração que não é de reconhecer à ora recorrida imunidade absoluta de execução, não pode acompanhar-se a decisão final constante do despacho de indeferimento liminar.

Recorde-se que no requerimento executivo apresentado no caso sub judice o exequente não nomeou bens à penhora, razão por que o tribunal da 1.ª instância não tinha quaisquer elementos para afirmar que os eventuais bens que viessem a ser penhorados nestes autos se enquadravam nas hipóteses de imunidade de execução reconhecidas pelo direito internacional, vg. que os mesmos se destinavam a ser utilizados para as finalidades da missão.

Pelo que inexistiam razões para afirmar a incompetência internacional dos tribunais portugueses para tramitar a presente ação executiva.
(…)»

Sobre a problemática, em geral, da imunidade de jurisdição dos Estados, no seu confronto com as (distintas) imunidades diplomáticas e consulares, vide ainda, v.g., os Acórdão desta Secção Social de 13.11.2002, Documento DGSI/ITIJ n.º SJ200211130021724, de 18.02.2006, Documento DGSI/ITIJ n.º SJ200602180032794, e de 04.06.2014, Proc. 2075/12.0TTLSB.L1.S1. 

Posto isto.

12. A Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas, que é a única convenção internacional que sobre a matéria em discussão nos autos se encontra realmente em vigor na ordem jurídica portuguesa, dispõe no seu art. 22.º:

1. Os locais da missão são invioláveis. Os agentes do Estado acreditador não poderão neles penetrar sem o consentimento do chefe de missão.

2. O Estado acreditador tem a obrigação especial de adotar todas as medidas apropriadas para proteger os locais contra qualquer intrusão ou dano e evitar perturbações que afetam a tranquilidade da missão ou ofensas à sua dignidade.

3. Os locais da missão, o seu mobiliário e demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da missão, não poderão ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução.

Quanto ao “local da missão”, o mesmo é definido termos amplos, na alínea i) do artigo 1.º da mesma Convenção, abrangendo, como bem se compreende, “os edifícios, ou parte dos edifícios e terrenos anexos, seja quem for o seu proprietário, utilizados para as finalidades da missão, inclusive a residência do chefe da missão”.

Antes do mais, não pode deixar de notar-se que, desde logo numa interpretação literal deste bloco normativo, os depósitos bancários (cuja penhora se encontra em causa no presente recurso) de forma alguma se enquadram na previsão do número 3 daquele artigo 22º, o qual apenas se reporta a determinados bens (corpóreos) – e não a quaisquer direitos/créditos.

 Compreensivelmente, os bens aí elencados são precisamente aqueles – e apenas aqueles – que, a serem objeto de “busca, requisição, embargo ou medida de execução”, colocariam em sério risco a funcionalidade da missão e, para além disso, afetariam desproporcionadamente a própria dignidade do Estado demandado, cuja soberania exige a cabal inviolabilidade do local e bens afetos à atividade consular, não podendo deixar de reconhecer-se algum paralelismo entre esta norma e a do direito interno que consagra  a regra (não absoluta) da impenhorabilidade dos bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica (art. 737º, n.º 3), numa lógica de salvaguarda dos interesses vitais do executado.

Acresce que o direito processual executivo português distingue claramente, para efeitos de penhora, os bens corpóreos (móveis e imóveis) dos direitos/créditos, não confundindo estes dois planos, que são naturalmente distintos (cfr. arts. 755º e ss., 764º e ss. e 773º e ss.), pelo que a interpretação acolhida se revela sistematicamente coerente, para além de teleologicamente ajustada, uma vez que não se descortina qualquer razão para estender a imunidade de execução aos depósitos bancários.

Na verdade, e como refere Celso de Mello, citado por Mireli Pereira Celestino[3], e em linha com a mais recente jurisprudência brasileira sobre a matéria, “privilégios diplomáticos não podem ser invocados, em processos trabalhistas, para coonestar o enriquecimento sem causa de Estados estrangeiros, em injusto detrimento de trabalhadores residentes em território [nacional], sob pena de essa prática consagrar inaceitável desvio ético-jurídico, incompatível com o princípio da boa-fé e com os grandes postulados do direito internacional”.

Por fim, refira-se que esta leitura da norma em questão é congruente com o que dispõe o art. 20.º, n.º 2, do Regulamento (UE) n.° 281/2015, de 25/02  (“se um trabalhador celebrar um contrato individual de trabalho com uma entidade patronal que não tenha domicílio num Estado-Membro mas tenha uma filial, agência ou outro estabelecimento num Estado-Membro, considera-se, quanto aos litígios resultantes do funcionamento dessa filial, agência ou estabelecimento, que a entidade patronal tem o seu domicílio nesse Estado-Membro”), bem como com o Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção) de 19.07.2012, aresto que, à luz do correspondente n.º 2 do art. 18.° do Regulamento (CE) n.º 44 /2001, decidiu que este preceito deve ser interpretado “no sentido de que uma Embaixada de um Estado estrangeiro situado no território de um Estado-Membro constitui um estabelecimento na aceção desta disposição num litígio relativo a um contrato de trabalho celebrado entre esta em nome do Estado acreditante”.

No mesmo sentido decidiu o Ac. de 25.11.2014, desta Secção Social, Proc. 1298/13.0TTLSB.L1.S1, assim sumariado:

I - Em detrimento da teoria da imunidade jurisdicional absoluta, é de perfilhar a teoria da imunidade jurisdicional relativa, hoje dominante na comunidade internacional, segundo a qual os Estados beneficiam de imunidade para os atos jure imperii, mas não para os atos jure gestionis, por tal se entendendo aqueles em que os Estados intervêm como pessoa de direito privado em relações de direito privado.
II - Uma embaixada deve considerar-se um "estabelecimento", para efeitos do disposto no art. 18.º, n.º 2, do Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, quando as funções dos trabalhadores estejam ligadas à atividade de gestão levada a cabo pela mesma.

13. É certo que numa interpretação do art. 22.º, n.º 3, da Convenção de Viena, integrada e articulada com a Convenção das Nações Unidas sobre Imunidades Jurisdicionais dos Estados e dos seus Bens, poderá atribuir-se a esta última a força vinculativa própria do direito internacional consuetudinário, apesar de a mesma não se encontrar em vigor em Portugal.

Decorre dos arts. 19.º, alínea c), e 21º, n.º 1, alínea a), desta Convenção que, para além dos bens, também não são passíveis de penhora as contas bancárias utilizadas ou destinadas a ser utilizados no exercício das funções da missão diplomática do Estado ou dos seus postos consulares.


Todavia (e para além do especial tratamento que, pelas razões já explanadas, devem merecer os processos judiciais emergentes de relações laborais), nestas situações, como decidiu o acórdão recorrido, não basta à embaixada ou consulado invocar que suas contas bancárias ou os seus bens estão vinculados à prossecução das finalidades da missão diplomática ou consular, impondo-se que seja efetiva e claramente comprovado que os bens ou direitos penhorados, ou indicados para penhora, têm relação direta com as respetivas atividades (por exemplo, alegando e provando de forma detalhada as verbas orçamentadas e as despesas previstas neste âmbito, embora não possa deixar de se notar que o Estado representado sempre terá ao seu dispor os mecanismos de reforço orçamental).

No caso vertente – como inequivocamente decorre do teor das decisões proferidas nesta matéria pelas instâncias –, os autos são omissos relativamente à finalidade das contas bancárias em causa, pelo que, mesmo à luz desta abordagem, sempre seria de concluir no sentido da inverificação de qualquer obstáculo legal à penhora.

Bem andou a Relação, pois, ao revogar o despacho da 1ª Instância que, invocando a sua impenhorabilidade, determinou o levantamento da penhora incidente sobre tais contas bancárias.

Com prejuízo da apreciação da segunda questão suscitada (sufragando-se, pelas razões expostas, a revogação do despacho da 1ª Instância, é irrelevante determinar se a questão da impenhorabilidade poderia por este último ter sido apreciada oficiosamente), improcede, pois, o recurso.
 
IV.

14. Em face do exposto, negando a revista, acorda-se em confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 21 de setembro de 2022




Mário Belo Morgado (Relator)

Júlio Manuel Vieira Gomes

Francisco Marcolino

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[1] Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.
[2] O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.
[3] Revista Caderno Virtual, AS IMUNIDADES DAS EMBAIXADAS E ORGANISMOS INTERNACIONAIS E SUA REPERCUSSÃO NA EXECUÇÃO TRABALHISTA, in https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/cadernovirtual/article/view/5368