ESTRUTURA ACUSATÓRIA DO PROCESSO
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário

I. O processo penal português tem uma estrutura basicamente acusatória, temperada com um princípio de investigação (32.º, § 5.º da Constituição e 340.º do CPP), que atribui ao tribunal o poder funcional de produzir todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. Não sendo, portanto, um processo assente em ónus probatório a cargo das «partes» e respetivas preclusões.
II. Produzir, apreciar e valorar livremente as provas é um processo intelectual complexo, mas ordenado, manifestando-se na articulação dos factos com as provas e estes com o direito, numa base racional e lógica, com os contributos das regras da experiência comum, só limitada pelos critérios legais (p. ex. em matéria de proibições de prova).
III. Há erro notório na apreciação da prova (410.º, § 2.º, al. c) CPP) quando da simples leitura do texto da sentença, se constata erro de raciocínio na apreciação das provas. Nomeadamente quando da conjugação das provas se retiram ilações que se revelam racional e logicamente arbitrárias, contraditórias ou patentemente violadoras das regras da experiência comum.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

a) No Juízo Local Criminal de …, do Tribunal Judicial da comarca de …, procedeu-se a julgamento em processo comum e Tribunal singular de AA, …, …, nascido a … de 1983, natural do …, residente na Rua de …, em …, a quem foi imputada a prática, como autor, de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, §1.º, al. b) e § 2.º, al. a) do Código Penal (CP).

Realizada a audiência de julgamento o Tribunal veio a proferir sentença, na qual absolveu o arguido da prática do crime pelo qual havia sido acusado, por se não terem provado os factos que dele seriam integradores.

Foi interposto recurso pelo Ministério Público e pela assistente, vindo este Tribunal da Relação a anular a decisão proferida por falta de fundamentação.

Em consequência baixaram os autos à 1.ª instância onde foi proferida nova sentença, igualmente absolutória e com os mesmos fundamentos.

Este Tribunal de Relação voltou a anular a sentença recorrida, por omissão de pronúncia relativamente a uma parte essencial do objeto do processo – concretamente da factualidade imputada pela acusação ao arguido - e respetiva motivação.

O Tribunal recorrido elaborou nova sentença.

b) Inconformado ainda com esta nova decisão recorreu a assistente, finalizando a sua motivação, com o que denomina «conclusões» (que em verdade o não são). As conclusões preconizadas pela lei (artigo 412.º CPP) devem, por boas razões, «ser concisas, precisas e claras (…)» (1). Não devendo, naturalmente, constituir uma «reprodução mais ou menos fiel do corpo motivador, mas devendo ser uma síntese essencial dos fundamentos do recurso»(2).

Não obstante, não se poderá dizer que se não compreendem os pontos e posição sustentada pela recorrente, e só por isso - tendo também em conta as já muitas (demais) delongas do processo - se aceitam tais «conclusões».

E são as seguintes:

«Nulidade da sentença

A. O Tribunal a quo optou por não se pronunciar, e ignorar, provas absolutamente essenciais para a ponderação dos factos.

B. Por norma os crimes de violência doméstica não têm testemunhas, nomeadamente, segundo um estudo da Associação de Apoio à Vítima, datado de 2018, 87% dos casos de violência doméstica ocorrem sem a presença de testemunhas.

C. Por essa razão, o Tribunal a quo vê-se obrigado a ter de construir um raciocínio lógico, com as provas de que dispõe, para poder tomar uma decisão justa e adequada ao caso concreto.

D. Contudo, o que se pode retirar da decisão do Tribunal a quo é que sem testemunhas nunca haverá condenação de nenhum arguido pelo crime de violência doméstica, ou seja, todas as mulheres/homens vítimas de violência doméstica que forem agredidos sem testemunhas, escusam de recorrer ao tribunais porque não haverá condenação, ou seja, 87% das vitimas de violência doméstica não podem recorrer os tribunais ou, se recorrerem, já sabem de antemão que não servirá para nada.

E. O Tribunal a quo, pela segunda vez, opta por ignorar provas essenciais, designadamente, volta a não se pronunciar sobre duas provas fundamentais neste caso: a porta do quarto arrombada e ensanguentada e a fotografia da agressão que o arguido imputou à ora Recorrente.

F. Relativamente à primeira, os Guardas da Guarda Nacional Republicana (GNR) que acorreram ao local, e que foram testemunhas no presente processo, confirmaram que a porta do quarto estava danificada e que tinha sido por arrombamento.

G. Aliás, chegou a ser referido pelo Guarda BB que foi usada a força necessária para partir o trinco da porta (audiência de julgamento de dia 10.01.2020, gravação entre o minuto 09:20 e 10:10).

H. Sobre esta prova fundamental para a construção de um raciocínio lógico, o Tribunal a quo optou por não fazer qualquer referência, ignorando-a por completo.

I.Assim, nos termos do disposto no artigo 379, n.º1, alínea c), do Cód.Proc.Penal, a sentença é nula visto que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre matéria que deveria ter pronunciado.

J. Relativamente à segunda questão – a fotografia da marca da agressão – sempre diremos que esta até é mais grave que a primeira porque o Tribunal a quo opta por escusar-se a avaliar devidamente esta prova.

K. Não é só a fotografia da perna da ora Recorrente que está em questão – são também as declarações dos Guardas da GNR ouvidos em audiência de julgamento, que confirmam que a perna tinha aquelas marcas.

L.Se por um lado, a fotografia poderia não ser taxativa por alguma razão, a verdade é que os Guardas da GNR que foram testemunhas, confirmaram as lesões na perna.

M. Mas mais, o Tribunal a quo não se pode escudar numa eventualidade como “a fotografia estar a preto e branco (…)” (itálico nosso).

N. No século xxi já poucas são as máquinas que tiram fotografias a preto e branco e, ainda para mais, a fotografia foi tirada com um telemóvel, o qual não tira fotografias a preto e branco.

O. Mais, nos autos encontra-se a fotografia a cores e, mesmo que não estivesse, o Tribunal a quo, salvo o devido respeito, deveria tomar todas as medidas para obter a fotografia a cores, designadamente, oficiar junto da GNR para que a fotografia fosse reproduzida a cores.

P. Contudo, o Tribunal a quo permitiu-se a não fazer nada disto – aliás, permitiu-se ignorar a existência desta fotografia, com um mero “está a preto e branco” (itálico nosso).

Q. Mas mais, caso não fosse possível, por qualquer razão, obter esta fotografia a cores, então o Tribunal a quo deveria ter atenção ao que foi dito por quem tirou a própria da fotografia, ou seja, os Guardas da GNR que foram testemunhas (audiência de julgamento de dia 10.01.2020, gravação entre o minuto 03:10 e 08:08 e 09:20 e 10:10).

R. Os próprios Guardas da GNR confirmam que a perna da ora Recorrente tinha marcas de agressão.

S. Como é que é possível o Tribunal a quo ignorar, pela segunda vez, esta prova e nem se pronunciar sobre o testemunho dos Guardas da GNR conjugados com a prova fotográfica?

T. Esta opção do Tribunal a quo, nos termos do disposto no artigo 340º e no artigo 379º, n.º 1, alínea c), do Cód. Proc. Penal, constitui uma nulidade da sentença.

U. Aliás, veja-se o que foi descrito no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06.04.2019, “O principio da investigação exige que o Tribunal se empenhe no apuramento da verdade material, não só atendendo a todos os meios de prova relevantes que os sujeitos processuais (principalmente, o Ministério Público e o arguido) lhe proponham, mas também independentemente dessa contribuição, ordenando, oficiosamente, a produção de todas as provas cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade e, portanto, que o habilitem a proferir uma sentença justa (…).” (itálico e sublinhado nossos).

V. Era, e é, uma obrigação clara doTribunal a quo pronunciar-se sobre as questões supra descritas e não ignorá-las como se não fizessem parte deste processo.

W. Mais grave, foi a segunda vez que o Tribunal a quo se eximiu de fazer uma apreciação devida das provas em apreço, o que é de uma gravidade extrema para a vítima em concreto, para as vítimas de violência doméstica em geral, mas também para o bom julgamento deste processo em particular.

X. Repete-se, as decisões dos tribunais não são importantes apenas para os processos sobre que versam – principalmente em processo penal, elas são de extrema relevância para minimizar o risco de voltarem a acontecer e de passar uma mensagem clara, por um lado, para as vitimas que podem encontrar nos tribunais um porto de abrigo seguro e justo e, por outro lado, para os criminosos que não gozam de uma impunibilidade quando perpetram os crimes.

Recurso da matéria de facto

Y. Se o ponto acima é claro que houve um erro do Tribunal a quo, a análise da matéria de facto e das provas exigiam, e exigem, uma apreciação cuidada, lógica e com sentido, que o Tribunal a quo, mais uma vez, salvo o devido respeito e na opinião da ora Recorrente, optou por não fazer.

Z. Vejamos o primeiro caso que, apesar de não ser relevante para a decisão de fundo do caso em apreço, é, sem dúvida alguma, sintomático desta opção tomada pelo Tribunal.

AA. Ponto 6. Dos Factos Provados:

“O arguido e assistente decidiram construir no monte uma casa de madeira com intenção de a arrendarem; as despesas de construção foram divididas por ambos; as despesas de manutenção foram assumidas pela assistente; era o arguido que geria as reservas e as receitas.” (itálico nosso).

BB. Ao longo da prestação de declarações da assistente, foi referido em todas as ocasiões que o monte era seu, tinha sido sua a decisão de construir uma casa de madeira para arrendar para fazer face ao investimento no monte, que as despesas de construção foram pagas por si na totalidade, que as despesas de manutenção, bem como as domésticas, eram pagas por si integralmente; que a gestão das reservas era feita entre ambos.

CC. Ao longo das declarações do arguido, este limitou-se apenas a negar que isto fosse verdade, sem nunca ter demonstrado de alguma maneira, ou explicado, porque contrariava a versão da assistente.

DD. Ao longo das declarações das testemunhas que acompanharam o processo de aquisição do monte e consequentes construções/modificações, CC, DD, EE, FF, sempre foi confirmado que as despesas de construção, de manutenção, bem como as domésticas, foram inteiramente pagas pela ora Recorrente.

EE. Contudo, ao arrepio de todas as regras processuais, o Tribunal a quo, vem dar este facto como provado.

FF. O Tribunal a quo tinha duas soluções simples – ou dava as declarações da assistente como provadas, caso estas merecessem credibilidade, que merecem tendo em consideração a longa explicação deste processo e a confirmação do mesmo pelas testemunhas; ou dava o facto como não provado por serem duas versões contraditórias.

GG. No entanto, o Tribunal a quo opta por uma terceira via – dá como provada a versão do arguido, sem que haja razão para tal, o que ilustra que o Tribunal a quo valorizou mais as declarações do arguido em detrimento das da assistente, ora Recorrente.

Por esta razão o facto n.º 6 dos factos provados deveria constar como facto não provado.

HH. Ponto 15. Dos Factos Provados:

“Em sequência de eventos não concretamente apurada, a assistente trancou-se no quarto com o bebé.” (itálico nosso).

II. Não se alcança como o Tribunal a quo, face às as declarações da assistente, considera referir que os eventos que levaram a assistente a trancar-se no quarto não foram apurados.

JJ. Na opinião da ora Recorrente, é óbvio que este facto deve ficar como provado porque a assistente trancou-se efectivamente no quarto mas os eventos que conduziram a essa situação foram claros.

KK. Conforme consta das declarações pormenorizadas da assistente (gravação com a referência 89521546, do dia 16 de Dezembro de 2019, compreendida entre os minutos 01:01:25 e 01.09.51) “ele voltou para o quarto, pôs-se a discutir comigo” “não consegui (resolver as coisas) e ele novamente voltava a ser agressivo comigo” “E pronto, eu tive uma ideia que ele me ia fazer qualquer coisa e tranquei-me no quarto.” (itálico nosso).

LL. Ora, a ora Recorrente trancou-se no quarto por medo. Repete-se, por medo.

MM. Os eventos foram apurados –a assistente sentiu que o arguido ia fazer alguma coisa, que veio a fazer, e trancou-se no quarto.

NN. E tinha toda a razão para isso – como se veio a verificar posteriormente – o arguido partiu um vidro com a própria mão, arrombou uma porta, atirou candeeiros e outros objectos ao ar e ao chão e ainda foi bater na ora Recorrente enquanto esta segurava o filho ao colo.

OO. Não se cogita, em face da prova produzida, como é que o Tribunal a quo consegue entender que os eventos que levaram a assistente a trancar-se no quarto não foram concretamente apurados?

PP. Claro que foram e estão à vista de qualquer pessoa que use o raciocínio lógico para retirar conclusões.

Assim, o facto 15 deve manter-se nos factos provados mas deve ser reescrito pois a assistente trancou-se no quarto porque sentiu que o arguido lhe ia fazer alguma coisa visto que estava agressivo consigo.

QQ. Ponto 22. Dos Factos Não Provados:

“Assim que viu a mensagem referida no facto provado 14., o arguido entrou no quarto onde estava a assistente e começou violentamente abrir e fechar portas e gavetas, donde retirava as suas roupas que enfiava num saco, o que fez com que a assistente tentasse acalmá-lo e que conversassem; o arguido não parava e saiu do quarto para atender um telefonema.”.

RR. Ora, este facto, que diz respeito a um comportamento concreto do arguido, foi confessado pelo próprio nas suas declarações.

SS. É que considerada a prova no seu conjunto – declarações da assistente e confissão do arguido, consegue-se não só alcançar que este facto aconteceu e provou-se, como se provou o acima mencionado quando a assistente se trancou no quarto por medo.

Assim, o facto 15. dos factos Não provados, deveria constar como facto provado.

TT. Pontos 24. e 25. Dos Factos Não Provados:

24.“O arguido voltou ao interior da habitação e, batendo com força à porta do quarto, dizia “abre-me a porta porque se não eu vou partir esta merda toda.”.

25. “Pelas 15h40, o arguido, voltando a socar a porta do quarto, arromboua, entrou e atirou um candeeiro ao ar.”

UU. Ora, se aqui se pode até compreender que o Tribunal a quo não dê como provado aquilo que o arguido disse (no ponto24.), a verdade é que não se consegue compreender como é que o Tribunal a quo não dá como provado que o arguido bateu com força à porta do quarto e a arrombou.

VV. É que vejamos, pelas declarações dos Guardas da GNR, pelas fotografias que servem de prova documental, resulta óbvio que só podia ser o arguido a bater com força na porta.

WW. A Guarda da GNR GG (gravação com a referência 89633151, concretamente entre o minuto 03:10 e 08:08) refere o seguinte:

“Sim, recordo-me que havia um candeeiro no chão do quarto”

XX. O Guarda da GNR BB (gravação de dia 10.01.2020, entre as 11h59 e as 12h12, concretamente entre o minuto 09:20 e 10:10) é referido o seguinte: “A porta se eu não estou enganado, era uma porta de correr e aquilo tinha um trinco e da maneira que estava danificado aquilo provavelmente foi ou através de um soco ou de um pontapé.” (itálico nosso).

“Ou um empurrão, provavelmente sim foi usada necessária na porta para fazer partir o trinco.”. (itálico nosso).

YY. Ora, estas declarações, conjugadas com as da assistente e corroboradas pelas provas fotográficas de fls. 32 a 34 juntas aos autos, conclui-se que a porta foi arrombada, tendo sido utilizada a força necessária para esse efeito e que o candeeiro foi atirado pelo ar.

ZZ. Sendo certo que a assistente e o arguido eram os únicos, à data, presentes no monte e, sendo certo que a assistente estava trancada por dentro do quarto, só resta concluir que foi o arguido que arrombou a porta.

AAA. Não é possível que tenha sido doutra maneira e, portanto, não se concebe como o Tribunal a quo possa ter ignorado este facto e esta convergência de factos para chegar a esta conclusão.

Assim, deveria ter ficado como facto provado que o arguido bateu com força à porta do quarto, ao ponto de a ter arrombado e que atirou um candeeiro pelo ar.

BBB. Ponto 26. Dos Factos Não Provados:

“A assistente refugiou-se na casa de banho do quarto, sentou-se em cima da sanita com filho ao colo e o arguido desferiu-lhe um murro na perna e disse repetidamente “Sua puta do caralho, se eu quiser entrar, entro. Pego fogo nesta merda, posso fazer o que eu quiser. Eu parto-te toda, sua puta do caralho. Vai-te foder, sua puta do caralho” e “Tens cinco dias para me dares seis mil euros, porque se não eu pego fogo a esta merda toda”.

CCC. Ora, este ponto tem de ser dividido em três partes, sendo que a primeira, e menos relevante, é de que pode compreender que o Tribunal a quo dê como não provado aquilo que o arguido disse, sendo certo que são expressões e exigências que o arguido também fez por mensagem escrita, via telemóvel pelo que merecem alguma credibilidade.

DDD. Quem escreve por mensagem aquilo que o arguido escreveu e que está perfeitamente documentado nos autos, aplicando um raciocínio lógico, num acto de fúria, é perfeitamente natural que também o tenha dito.

EEE. No entanto, já sabendo da “exigência” do Tribunal a quo, até se consegue compreender que não o dê como provado.

FFF. Outras questões bem diferentes são as seguintes – a primeira é o facto de a assistente ter o filho ao colo e, a segunda é o facto de o arguido ter desferido um murro na perna.

GGG. Começando pelo filho ao colo, a questão que qualquer pessoa deveria colocar nesta situação deveria ser – se o filho não estava ao colo, então estava aonde? Qual será a reacção natural de uma mãe, com um filho de 15 dias, quando sente medo? Quais serão as maiores probabilidades?

HHH. Pois… as respostas tornam-se óbvias - se o filho da assistente não estivesse ao seu colo, então, por princípio, estaria no berço.

III. Berço este que foi onde foi parar o candeeiro que o arguido atirou ao ar quando arrombou a porta do quarto.

JJJ. Caso o filho da assistente não estivesse ao seu colo, se calhar, conjugado com um processo de violência doméstica, estaria um processo por homicídio de uma criança com 15 dias de vida.

KKK. Importa relembrar que, tendo em consideração que a porta do quarto estava trancada, o arguido quando a arrombou não sabia onde estava a criança – se ao colo da mãe, se no berço.

LLL. É óbvio que a assistente, sentindo medo, não sentiu apenas por si, sentiu também pelo seu filho pelo que a reacção imediata foi segurar nele ao colo e esconder-se dentro do possível.

MMM. Foi o que fez – agarrou no filho ao colo e escondeu-se na casa de banho.

NNN. Estes detalhes foram inclusivamente confirmados pelas testemunhas porque foi dessa forma que a assistente descreveu a situação quando lhes ligou a pedir ajuda.

OOO. Mas uma vez, o Tribunal a quo optou por ignorar a conjugação dos factos, a experiência normal de uma vida e a lógica – o Tribunal a quo optou por ignorar a lógica.

Assim, a parte em que a assistente se sentou na sanita com o filho ao colo deveria constar como facto provado.

PPP. Relativamente à questão da agressão por parte do arguido à assistente.

QQQ. A assistente relata minuciosamente o decorrer dos acontecimentos, inclusivamente a agressão física propriamente dita; as testemunhas CC, DD, EE e os Guardas da GNR confirmam que viram as marcas na perna da assistente.

RRR. Inclusivamente, todas estas testemunhas disseram com precisão o local da perna onde se situava a marca.

SSS. Existe prova documental – fotografias – da marca da agressão na perna da assistente.

TTT. Existe uma declaração do hospital a confirmar a marca da agressão na perna da assistente.

UUU. Será que estas provas conjugadas não são suficientes para declarar este facto como provado?

VVV. O que é que um tribunal, qualquer que ele seja, precisa para dar como provado que houve uma agressão?

WWW. Testemunhas e fotografias não são provas suficientes? Seria necessária uma onfissão do arguido?

XXX. Todas as provas estão reunidas – testemunhas e prova documental (fotografias) – e as provas estão de acordo e confirmam o relato dos acontecimentos feito pela assistente.

Obviamente, que o facto de o arguido ter desferido um murro na perna da assistente tem, obrigatoriamente, de constar como facto provado.

DA PROVA QUE SE PRETENDE VER REAPRECIADA E DEVIDAMENTE CONJUGADA COM A EXPERIÊNCIA E NORMALIDADE

YYY. Aqui chegados, importa ter uma visão objectiva e concreta sobre os factos relatados e a prova constante dos autos, acrescida da que foi produzida nas várias audiências de julgamento.

ZZZ. Comecemos, e também terminaremos, por citar o Tribunal a quo “deve entender-se que se encontra demonstrada a realidade do facto desde que se atinja aquele grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamam para dar como exacto um determinado facto” (itálico nosso).

AAAA. O que o autor desta frase, o Professor Artur Anselmo de Castro, quer dizer é que um tribunal se basta, com vista à condenação de um arguido, não com uma certeza absoluta, mas com uma probabilidade tão forte que não resta outra alternativa do que dar como um facto tal possibilidade, ou seja, essa probabilidade deve ser sustentada em indícios, provas e demais meios que haja.

BBBB. Permitam-nos os Senhores Juízes Desembargadores de pedir que percorram este trilho lógico.

CCCC. Existiram várias discussões ao longo de uma relação, culminando numa no dia 15 de Setembro de 2018, na qual o arguido torna-se violento.

DDDD. A assistente, ora Recorrente, sente medo, por si e pelo seu filho, e tranca-se no quarto, segurando o seu filho ao colo.

EEEE. O arguido, impossibilitado de entrar no quarto, começa por partir um vidro de uma janela, fazendo um corte na mão e ficando ensanguentado.

FFFF. Posteriormente, desloca-se à porta do quarto e arromba-a, deixando o trinco partido e a porta com sangue.

GGGG. O arguido entra de rompante no quarto e atira com vários objectos ao ar, entre eles um candeeiro que cai no berço do filho.

HHHH. De seguida, em acto continuo, avança até ao local onde a assistente estava escondida com o seu filho ao colo e desfere um murro de mão fechada na sua perna.

IIII. Agora conjugaremos as provas disponíveis para ver se corroboram esta história.

JJJJ. Relativamente às várias discussões ao longo da relação, tanto assistente como arguido confirmaram que existiram, pelo que se encontra provado.

KKKK. Relativamente à discussão do dia 15 de Setembro de 2018, ocorrida no monte da assistente, tanto arguido como assistente confirmaram que existiu, pelo que se encontra provado.

LLLL. Relativamente à assistente ter sentido medo, por si e pelo filho, julgamos que fazendo um exame critico a priori, teremos todas as condições para dar como provado visto que foi inúmeras vezes confirmado pela assistente ao longo das suas declarações.

MMMM. Num exame critico a posteriori, tendo em consideração os acontecimentos seguintes, torna-se evidente que a assistente sentiu medo pelo seu filho, mas podemos deixar este passo para uma análise final.

NNNN. Relativamente ao facto de o arguido ter partido um vidro de uma janela e ter feito um corte na mão, ficando ensanguentado, julgamos que está mais do que provado pelas fotografias juntas aos autos da mão do arguido, pelas fotografias do vidro partido, pelas declarações dos Guardas da GNR que viram a mão ensanguentada e o vidro partido.

OOOO. Aliás, se faltassem provas, o próprio arguido confessou este facto.

PPPP. Relativamente ao facto de o arguido se ter deslocado à porta do quarto e a ter arrombado, tendo danificado o trinco e ensanguentado a porta, julgamos que é por de mais evidente visto que as fotografias da porta arrombada e ensanguentada estão juntas aos autos e o trinco danificado também está documentado por fotografia junta aos autos.

QQQQ. Além do mais, os próprios Guardas da GNR confirmaram que visualizaram a porta arrombada, o trinco danificado em resultado do arrombamento e a porta ensanguentada, pelo que este facto fica devidamente provado.

RRRR. Relativamente ao facto de o arguido ter entrado de rompante no quarto parece-nos pacifico visto que isso é uma consequência natural de quem arromba uma porta visto que não existem relatos de alguém ter arrombado uma porta e ter entrado com todas as cautelas, pelo que este facto fica devidamente provado.

SSSS. No que diz respeito ao arguido ter atirado vários objectos ao ar, entre eles um candeeiro que caiu no berço do filho, estão juntas aos autos fotografias do candeeiro no berço e no chão, além de que os Guardas da GNR descreveram exactamente este facto, pelo que o mesmo se encontra devidamente provado.

TTTT.Por fim, no que se refere ao arguido se ter dirigido à assistente e ter desferido um murro de mão fechada no interior da perna da assistente, sempre se dirá o seguinte.

UUUU. Que é facto que o arguido desferiu um murro na perna da assistente, não há qualquer margem para dúvidas.

VVVV. Vejamos, os Guardas da GNR viram, com os seus olhos, o ferimento na perna e descreveram o local exacto do ferimento em audiência de julgamento.

WWWW. Os Guardas da GNR fotografaram esse ferimento.

XXXX. A assistente foi ao hospital, tendo aí sido fotografada a sua perna e descrito o ferimento como um hematoma, ou seja, consistente com o desferimento de um golpe, encontrando-se junto aos autos as descrições médicas do ferimento na assistente, pelo que é prova mais que suficiente para dar tal facto como provado.

YYYY. Por último, e voltando um pouco atrás, é natural que a assistente tenha sentido medo, e com razão, e se tenha trancado no quarto e tentado esconder num local seguro com o seu filho ao colo, pelo que tal facto também ficaria devidamente provado.

ZZZZ. Conjugados todos estes factos, com todas estas provas, com todas as declarações e relatos dos acontecimentos, perguntamos, é mais provável que esta história tenha acontecido desta forma ou não?

AAAAA. Julgamos que só se poderá responder positivamente a esta pergunta.

BBBBB. E será tal probabilidade forte ao ponto de se tornar uma quase certeza ou mesmo uma certeza que a transforme em facto?

CCCCC. Pois, a resposta aqui volta a ser positiva.

DDDDD. Nada neste processo nos indica que a história se tenha passado doutra maneira.

EEEEE. Nada nos indica que haja qualquer falha nesta história – houve uma agressão e esta foi perpetrada pelo arguido. Não resta qualquer outra conclusão a retirar daqui.

FFFFF. É óbvio, é notório, é aquilo que a experiência e a normalidade das coisas nos indicam e, acima de tudo, foi feita toda a prova para que o arguido seja condenado pelo crime de violência doméstica agravado por ter sido cometido na presença de um menor.

GGGGG. Mas mais, ainda que se mantivesse alguma dúvida sobre a agressão propriamente dita, ou seja, sobre o desferimento de um murro na perna da assistente, sempre se diria que todos os actos anteriores – partir um vidro, cortando a mão, arrombar uma porta, danificando o trinco e ensanguentando a porta são, por si só, actos de violência doméstica pelo que o arguido já deveria ter sido condenado há muito, mais que não fosse, pela prática desses actos.

HHHHH. Finalizamos dizendo o seguinte – este caso não se trata de duas versões contraditórias – trata-se de uma versão sustentada em provas directas, indirectas e indiciárias contra uma versão que se limitou a negar os factos de que era acusado sem apresentar qualquer explicação para os acontecimentos descritos.

IIIII. Arriscamo-nos a afirmar que não existiram muitos casos de violência doméstica com tantas provas como este, excluindo evidentemente os que dispõe de prova testemunhal.

JJJJJ. Para os acontecimentos supra descritos, existem sempre provas para os corroborar e nenhuma indicação, superficial que seja, de que os acontecimentos tenham ocorrido doutra maneira ou por outra razão.

KKKKK.A Assistente adere integralmente às conclusões de recurso, que foram anteriormente apresentadas pelo Ministério Público, e que foram transcritas supra em sede destas Alegações.

LLLLL. O mesmo entendimento foi subscrito pelo Digníssimo Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Évora, quando em Parecer de 30 de Setembro de 2021 reiterou o seguinte:

“Acompanhamos, no geral, os recursos interpostos pelo Ministério Público e pela Assistente porque consentâneos com a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e absolutamente demonstrativos da errónea análise crítica efectuada pelo Tribunal a quo daquela mesma prova.

(…)

O Tribunal a quo valorou a prova produzida ao arrepio das regras da lógica do acontecer e da experiência comum, que o conduziu a uma decisão de absolvição absolutamente contrária à evidência que aquela mesma prova permitia e exigia, nomeadamente, tendo em conta o tipo de crime de que o arguido vinha acusado e da especial atenção que a análise crítica da prova impunha”.

E é por isso que, V. Exas, Senhores Juízes Desembargadores, que se requer que seja deferida a impugnação da sentença em questão, substituindo-a por uma decisão de condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica.

Termos em que, com o suprimento de Vossas Excelências a quanto alegado, deve ser dado provimento ao presente recurso e revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica nos termos do disposto no artigo 152º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, n.º 3, alínea a), do Código Penal, tendo as consequência necessárias previstas nos n.º 4, 5 e 6 do mesmo artigo do Código Penal, acrescendo ainda todas as consequências legais que V. Exas. entenderem por convenientes.

c) O Ministério Público não recorreu… mas apresentou-se a «responder» às alegações do assistente, para no essencial manifestar o seu acordo quanto à posição sustentada por aquela (3).

d) O arguido não apresentou qualquer resposta.

e) Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância declarou, no seu parecer, que o Tribunal recorrido não cumpriu completamente o ordenado por este Tribunal na pronúncia anterior, em termos de fundamentação dos juízos realizados, mantendo-se, assim, no essencial, os vícios assinalados à sentença no anterior acórdão desta Relação.

f) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, a assistente veio reiterar a sua já manifestada posição quanto à matéria do (seu) recurso.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 412.º, § 1.º CPP) (4).

O recurso da assistente suscita as seguintes questões, a conhecer pela ordem que decorre da conjugação das disposições contidas nos artigos 368.º e 369.º, por remissão do artigo 424.º, § 2.º, todos do CPP:

- nulidade da sentença por omissão de pronúncia (379.º, § 1.º. al. c) CPP);

- erro de julgamento da questão de facto (412.º, § 3.º CPP);

- erro de julgamento da questão de direito.

2. Na sentença recorrida o tribunal a quo deu como provado e como não provado o seguinte acervo factual, que motivou nos termos que a seguir se indicam:

«Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. O arguido e a vítima/assistente conheceram-se no dia ...de 2017, mantendo residência em casas separadas, ainda que o arguido pernoitasse muitas vezes em casa da assistente, em ..., lá fazendo as refeições e onde, pelo menos, mantinha alguns pertences.

2. No dia ...de 2017, o arguido pediu a assistente em casamento e esta aceitou e, poucos dias depois, renovaram a decisão de terem um filho.

3. Entre 14 e 15 de dezembro de 2017, a assistente fez uma viagem à ... e, durante o tempo que esteve ausente de casa, o arguido leu o seu diário, sem a sua autorização, o que gerou uma discussão entre ambos. Contudo, quando a assistente regressou a casa, fizeram as pazes.

4. No dia 07 de janeiro de 2018, a assistente percebeu que estava grávida e contou ao arguido que se mostrou feliz.

5. No dia 22 de janeiro de 2018, a assistente celebrou escritura de compra e venda do monte …, em …, que adquiriu com dinheiro que lhe foi doado pela mãe.

6. O arguido e a assistente decidiram construir no monte uma casa de madeira com intenção de a arrendarem; as despesas de construção foram divididas por ambos; as despesas de manutenção foram assumidas pela assistente; era o arguido que geria as reservas e as receitas.

7.. Em maio de 2018, passaram a viver juntos no monte alentejano, primeiro na casa de madeira, depois num anexo e, a partir de fins de julho/inícios de agosto, na casa principal.

8. No dia 12 de maio de 2018, no Monte de …., um dos cães da assistente mordeu a mão de HH, filha do arguido, e este deu uma chinelada no cão.

9. No dia 02 de agosto 2018, FF, amiga da assistente, disse-lhe que o arguido tinha enviado fotos e/ou vídeos de caráter íntimo para um amigo de nome II.

10.A assistente confrontou o arguido, tendo este enviado mensagens a FF.

11. No dia 4 de agosto de 2018, o cão da assistente mordeu a HH e o arguido deu-lhe uma chinelada e disse “um dia vai fazer pior ao nosso filho”.

12. Do relacionamento entre a assistente e o arguido resultou o nascimento de um filho, JJ, em … de 2018.

13. No dia 11 de setembro de 2018, o arguido disse à assistente que a sua irmã KK, o marido e os filhos iam visitá-los ao monte no fim de semana seguinte e ainda que iria a uma reunião da escola da filha, em Lisboa, no dia 14 de setembro de 2018. A assistente autorizou o arguido a levar o seu carro por uma noite.

14. No dia 15 de setembro de 2018, tendo o arguido chegado ao monte com a sua filha, e aguardando-se a chegada da irmã do arguido KK, marido e filhos desta, a assistente foi com o bebé para o quarto e enviou uma SMS ao arguido, dizendo que queria que toda a gente fosse embora, para poder fechar a casa e ir para Cascais, onde sabia que tinha o apoio e o conforto da família.

15. Em sequência de eventos não concretamente apurada, a assistente trancou-se no quarto com o bebé.

16. O arguido partido o vidro da janela do quarto, com o que se autoinfligiu um corte no pulso direito.

17. A assistente pediu ajuda por telefone à sua irmã LL, que lhe disse que ia chamar a GNR.

18. Chegou ao monte a irmã do arguido, bem como o respetivo marido e filhos, e a assistente manteve-se dentro do quarto.

19. A assistente telefonou a MM, habitante da aldeia que tinha um genro que era GNR, para lhe pedir que agilizasse o pedido de ajuda à polícia.

20. Nesse mesmo dia, a assistente acabou por abandonar o monte com o seu filho.

21. Ainda nesse dia, pelas 19h13, o arguido enviou a seguinte SMS à assistente: “Tens até amanhã para me pagar. Dinheiro que é meu sua ladra. Caso contrário vou ainda esta semana à câmara denunciar o que está feito na casa (acréscimo, anexo, churrasqueira, etc.). Só quero o meu dinheiro mas já vi que não és uma pessoa séria. Ficavas bem era nuns vídeos porno na net… pq é do teu nível. Não tenho paizinhos ricos como tu e esse dinheiro faz-me falta

22. No dia seguinte, 16 de setembro de 2018, o arguido enviou à assistente as seguintes SMSs: “Vais pagar.” e “Amanhã vou à polícia acusar-te de rapto do bebé. És uma pessoa completamente perturbada e vou exigir que te façam um teste psicológico pq quero a q aguarda do bebe”.

23. No dia 18 de setembro de 2018, continuou a enviar SMSs, como sejam: “Definitivamente és a mulher mais desequilibrada q conheci e por azar tive um filho ctg.” e “Coitado do JJ”.

24. No dia 21 de setembro de 2018, enviou ainda as seguintes mensagens: “Se soubesse q íamos msm acabar”, “Tinha pinado como deve de ser uma ultima vez”, “Sinto falta desse corpo”, “Podia estar aqui todo romântico” e “Mas morro de tesao por ti”.

25. Entre 2 e 11 de outubro de 2018 e entre 20 e 26 de outubro de 2018 reataram a relação, sendo que, após esta última data, não mais se relacionaram amorosamente.

26. O arguido exerce a profissão de… por conta de outrém.

27. É pago mediante as aulas que realiza – cerca de 25€ por aula - e trabalha com maior regularidade ou intensidade no verão.

28. Reside sozinho.

29. Tem três filhos, no que se inclui o filho em comum com a assistente, com o qual não tem mantido contato.

30. Frequentou o ensino superior na área de ….

31. Não possui antecedentes criminais registados.

▪ factos não provados

Da audiência de discussão e julgamento resultaram não provados os seguintes factos:

1. Em data não concretamente determinada, em pleno ato sexual, o arguido apertou com força o pescoço da assistente, causando-lhe dificuldade em respirar, ato que interrompeu quando ela lhe pediu que parasse.

2. Decidiram ter um filho, mas quando a assistente engravidou, em ... de 2017, o arguido exigiu-lhe que provocasse um aborto, dizendo-lhe que, se ela não o fizesse, a deixava e a obrigava a fazê-lo, pelo que a assistente acabou por realizar uma interrupção voluntária da gravidez em … de 2017.

3. Movido por ciúmes, o arguido começou a controlar a atividade do telemóvel da assistente, lendo as mensagens e questionando-a constantemente “se o estava a enganar” e, relativamente a cada homem de quem recebia qualquer contacto, “Já tiveste alguma coisa com ele?”, bem como avisando, em tom irónico, “Tu vê lá… quando fizeres as coisas, ao menos faz as coisas bem feitas”.

4. Numa ocasião, em data não determinada, mas poucos dias antes de 29 de setembro de 2017, à noite, o arguido saiu de casa e quando voltou a assistente não o ouviu a tocar à campainha e, em consequência, ele iniciou uma discussão e quis terminar a relação, o que aconteceu.

5. Em 29 de setembro de 2017, foram, na companhia de HH, filha do arguido, à data com … anos de idade, tomar café ao estabelecimento “…”, em …, e, em consequência da assistente ter tido uma conversa de circunstância, já no parque de estacionamento, com um conhecido do género masculino que por ali passou, o arguido ficou com ciúmes, manifestando-os com uma postura corporal fria e tensa.

6. Despediram-se e a assistente dirigiu-se para casa, apercebendo-se que o arguido a seguia, tendo-o deixado entrar, acompanhado da sua filha. Já no interior da habitação, quando a criança estava na casa de banho, ele começou a guardar algumas roupas suas num saco e a dizer “Eu não ando com miúdas como tu. Tu não prestas. És uma puta, não vales mesmo nada, sua puta” e, pedindo-lhe ela que não lhe falasse assim, ele agarrou-a por um braço e projetou-a para cima da cama.

7. Em 30 de setembro de 2017, o arguido pediu-lhe desculpas e a assistente aceitou o pedido.

8. Na ocasião referida no facto provado 3. a assistente tinha deixado o seu diário escondido, e, por telefone, o arguido acusou a assistente de não gostar dele, gerando uma discussão que deixou a assistente muito perturbada e não a deixou dormir naquela noite.

9. No dia 16 de fevereiro 2018, tiveram uma discussão por causa de ciúmes que o arguido sentiu relativamente ao empregado de uma loja, no seio da qual o arguido disse à assistente “Tu és meio …, pelo que podes fazer abortos mais tarde e eu não quero o bebé”, tendo o arguido deixado a assistente em casa desta, em ….

10. Dias depois, voltaram a fazer as pazes e foram viver para casa da assistente, em ….

11. No dia 28 de fevereiro de 2018, tiveram outra discussão em casa do arguido, no …; o arguido agarrou um braço da assistente e atirou-a para o chão, fazendo com que a assistente caísse desamparada e disse-lhe “ainda estamos a tempo para interromper a gravidez na …” e “põe-te a andar nas putas”.

12. Naquele momento, a assistente saiu; um ou dois dias mais tarde, fizeram as pazes.

13. Na ocasião referida no facto 8. o arguido bateu violenta e repetidamente no cão da assistente com uma havaiana.

14.Na ocasião referida no facto provado 11. o arguido agarrou o cão da assistente pela coleira, tentou-o arremessar contra um muro e disse, bem assim, “e se vai ficas desfigurado e eu jurote que o levo para o mato e que o mato às facadas”, acusando a assistente de proteger mais o cão que a filha dele e partindo, momentos depois, um candeeiro e atirando uma mesinha de cabeceira ao chão.

15. Nesta situação, perante os pedidos de calma da assistente, o arguido apenas dizia “eu parto esta merda toda, eu faço aquilo que quero”.

16. Nessa noite, o arguido e a filha foram dormir para uns anexos e, de noite, a assistente acordou e estava trancada dentro de casa; grávida de fim de gestação, saiu pela janela e confrontou o arguido com o facto de ter sido ele a trancá-la, o que o arguido negou.

17. Em resultado desta confrontação, discutiram, o arguido chamou a assistente de maluca, mas a assistente acabou por, cansada e depois de muito chorar, ir deitar-se ao lado do arguido, nos anexos, tendo-lhe ele dito “foda-se, vê lá se paras de chorar”.

18. De seguida, o arguido começou a manifestar intenção de ter relações sexuais e, colocando se em cima da assistente, praticaram coito vaginal, fazendo-lhe muita pressão na barriga e causando-lhe dores.

19. Na noite de 13 de setembro de 2018, o arguido e a assistente discutiram e o arguido saiu de casa, levando o carro da assistente.

20. No dia 14 de setembro de 2018 discutiram por telefone, quando o arguido disse à assistente que a filha lhe tinha pedido para ficar uns dias com ele e que por isso ou ficava em … ou a levava para o monte, ao que a assistente respondeu que precisava de descansar e que ele voltasse, mas sozinho; em resposta, o arguido disse à assistente que lhe entregaria o carro no dia seguinte e que a relação estava terminada.

21. No dia seguinte, 15 de setembro de 2018, o arguido levou a filha consigo para o monte; quando lá chegou, ignorou a assistente e informou-a que a irmã dele, KK, o marido e os filhos, iam passar o fim de semana com eles.

22. Assim que viu a mensagem referida no facto provado 14., o arguido entrou no quarto onde estava a assistente e começou a violentamente abrir e fechar portas e gavetas, donde retirava as suas roupas que enfiava num saco, o que fez com que a assistente tentasse acalmá-lo e que conversassem; o arguido não parava e saiu do quarto para atender um telefonema.

23. O arguido foi à janela dessa divisão, pelo lado exterior da casa, e, gritando, disse “abre-me a porta ou eu parto esta merda toda, e se eu quiser entrar eu entro”.

24. O arguido voltou ao interior da habitação e, batendo com força à porta do quarto, dizia “abre-me a porta porque se não eu vou partir esta merda toda”.

25. Pelas 15h40, o arguido, voltando a socar a porta do quarto, arrombou-a, entrou e atirou um candeeiro ao ar.

26. A assistente refugiou-se na casa de banho do quarto, sentou-se em cima da sanita com o filho ao colo e o arguido desferiu-lhe um murro na perna e disse repetidamente “Sua puta do caralho, se eu quiser entrar, entro. Pego fogo nesta merda, posso fazer o que eu quiser. Eu parto-te toda, sua puta do caralho. Vai-te foder, sua puta do caralho” e “Tens cinco dias para me dares seis mil euros, porque se não eu pego fogo a esta merda toda”.

27. O arguido saiu do interior da habitação para ir ter à piscina com a irmã, o cunhado e os sobrinhos e a assistente trancou-se novamente com o filho no quarto e assim aguardou pela chegada da GNR.

28. Entre 10 e 16 de maio 2019, o arguido, em marcha lenta, passou, por um número não determinado de vezes, em frente da residência da assistente, em …, conduzindo o automóvel de matrícula ….

29. Pelos comportamentos supra descritos, não obstante o arguido ter consciência que, pela relação de namoro, intimidade e análoga à dos cônjuges que manteve com a assistente, lhe competia um especial dever de respeito e cuidado por ela, quis e conseguiu atingir o seu bem-estar físico, moral, sexual e psicológico, com o propósito concretizado de humilhá-la e menosprezá-la e provocar-lhe medo, terror e intranquilidade e limitar a sua liberdade de autodeterminação, bem sabendo que ao fazê-lo na residência comum e, algumas das vezes, na presença da filha menor do próprio, HH, e do filho recém nascido comum, JJ. lhe causava perturbação e medo acrescidos e tornava os seus comportamentos ainda mais gravosos.

30. Agiu sempre o arguido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

▪ indicação e exame crítico da prova

A prova é apreciada, salvo quando a lei dispuser diferentemente, de acordo o princípio da “livre apreciação da prova” (artigo 127.º do Código de Processo Penal), princípio que é “direito constitucional concretizado”, que há-de traduzir-se numa valoração “racional”, “crítica”, “lógica”, cf., Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., UCE, pág. 329.

Dir-se-á que a prova, no mais essencial tem como finalidade produzir uma convicção no julgador, não de certeza absoluta, mas, pelo menos, de probabilidade forte, quanto à verificação ou ocorrência do fato afirmado, “deve entender-se que se encontra demonstrada a realidade do facto desde que se atinja aquele grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamam para dar como exato um determinado facto”, cf., Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, 4º Volume, Atlântida - Coimbra, 1968, pág. 106.

A decisão da matéria de facto reverte ao julgamento de factos, é efetivamente relevante sublinhar que nos movemos no domínio dos factos e não dos juízos de valor, das opiniões, dos estados de consciência, por natureza insondáveis, em suma, de tudo aquilo que não é suscetível de prova ou demostração inequívoca, para além da dúvida razoável.

Facto é, por inerência, um acontecimento do mundo exterior, não apenas na aceção comum do termo facto, mas inclusivamente sob o ponto de vista da sua relevância jurídica, não se devendo catalogar de factos os eventos do foro interno, aos quais apenas se pode chegar por conclusão ou inferência dos factos ou acontecimento externos; “Tanto os actos interiores como os exteriores são actos morais ou imorais, mas só os actos exteriores, ou acções, ou factos, são, do ponto de vista jurídico, lícitos ou ilícitos”, cf., Manuel Cavaleiro de Ferreira, in Lições de Direito Penal, Parte Geral I – II, Almedina, 2010, pág. 16.

Os factos constituem os dados objetivos do problema, como já tivemos a ocasião de assinalar nos aspetos gerais da fundamentação, e esta objetividade reflete-se no facto, ou seja, no que o facto é e no que ele em si mesmo representa, e, simultaneamente, no que representa a fundamentação da decisão da matéria de facto, “recondutível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e de controlo”, cf., Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, 1974, pág. 203.

A convicção do tribunal e as razões que, em concreto, determinaram a decisão da matéria de facto:

Os factos provados afiguram-se ao tribunal demonstrados em face das declarações do arguido (exaradas na ata de audiência de julgamento referência eletrónica 89521546), assinalando-se que o arguido negou os aspetos principais ou centrais da acusação pública.

Quanto ao teor das mensagens enviadas à assistente nos dias 15 a 21 de setembro, as mesmas mostram-se evidenciadas na prova documental da acusação pública, referimo-nos, pois, ao designado “relatório fotográfico de SMS trocadas entre 15 e 21/09/2018”.

O descrito no ponto 21. da acusação pública corrobora-se em face do depoimento de FF (depoimento exarado na ata de audiência de julgamento referência eletrónica 89633151 ou 2ª sessão), e, com efeito, em causa está apenas uma conversa, algo que a testemunha disse ou transmitiu á assistente.

Em audiência de julgamento foi produzida uma quantidade assinalável de prova testemunhal, mas essa quantidade não é correlativa à qualidade ou à substância dos depoimentos, falha-nos, geralmente, a razão de ciência, o conhecimento direto, quanto à matéria em que se procura o esclarecimento.

As testemunhas GG e BB (depoimentos exarados na ata de audiência de julgamento referência eletrónica 89633151 ou 2ª sessão), militares da GNR, deslocaram-se ao monte onde residiam o arguido e a assistente no dia 15 de setembro de 2018.

As testemunhas aperceberam-se de um clima de tensão, de nervosismo, o arguido apresentava um ferimento na mão, mas claramente não presenciaram agressões, físicas ou verbais, o seu conhecimento é posterior, circunstancial, aos factos.

A fotografia da perna da assistente, que se contempla na prova documental da acusação pública, cf., fls. 254, com a legenda “ferimentos na perna da vítima”, é uma fotografia que pouco, se não mesmo nada, esclarece o tribunal, possivelmente por ser a preto e branco, mas não são, de facto, visíveis ou ostensivos os referenciados “ferimentos

A testemunha MM (depoimentos exarados na ata de audiência de julgamento referência eletrónica 89633151 ou 2ª sessão) recebeu um telefonema da assistente, confirma-se, mas também não tendo presenciado nada de relevante – seja nessa ocasião seja noutra, segundo alcançamos do seu depoimento.

As testemunhas CC (mãe da assistente), LL e DD (irmãs da assistente) (depoimentos exarados na ata de audiência de julgamento referência eletrónica 89633151 ou 2ª sessão), produziram depoimentos que, fundamentalmente, denotam um conhecimento indireto, são expressão ou remetem para as declarações da assistente.

É claro que o depoimento destas testemunhas, pela relação familiar, particularmente próxima, que as une à assiste, sempre carece de uma ponderação particularmente prudente, mas independentemente disto, estas testemunhas também não diretamente assistiram ou presenciaram atos de violência, o seu conhecimento é fundamentalmente indireto, como já notado.

As testemunhas LL e DD aludiram nos seus depoimentos a ter visto a perna da assistente marcada ou qualquer coisa na perna.

Referências que se apresentam vagas, e, como já tivermos a ocasião de assinalar, a prova documental dos autos também não é particularmente esclarecedora.

Regista-se que serve de prova documental à acusação pública, bem assim, uma informação clínica do dia 16 de setembro de 2019, em que, no campo “diagnóstico de saúde”, é feita menção a “traumatismo de localização não especificada”, o que é inconclusivo, agrava a dúvida, seja quanto à lesão, como consequência, seja quanto à agressão propriamente dita, o facto sob averiguação.

Chegados a ponto temos, verdadeiramente, que os factos descritos na acusação pública, ressalvadas os aspetos inicialmente notados e que demos como provados, alicerçam-se nas declarações da assistente, e, com efeito, registamos que a assistente produziu declarações na generalidade corroborantes dos factos acusados (declarações exaradas nas atas de audiência de julgamento referência eletrónica 89521546 e 89633151).

Mas serão suficientes as declarações da assistente para demonstrar a realidade dos factos, para produzir, não neste julgador, em concreto, mas em qualquer pessoa, que fosse colocada no seu lugar, uma convicção próxima da certeza?

Estará em o tribunal em condições de afirmar que as declarações da assistente devem prevalecer sobre as declarações do arguido, ou se apresentam como mais credíveis do que as declarações do arguido?

Ambas estas questões merecem resposta negativa. As declarações do arguido e as declarações da assistente, em termos de valoração da prova, encontram-se rigorosamente em pé de igualdade, ambas obedecem ao princípio da livre apreciação da prova, ambos os declarantes possuem um interesse direto ou são diretamente visados na causa.

Se as analisarmos em concreto, vemos que as declarações do arguido e as declarações da assistente, na sua objetividade relatam versões dos factos ou realidades históricas passíveis de ocorrer no mundo real, não se apresentam patentemente ilógicas, absurdas ou incoerentes.

Mais do isso é importante não perder de vista que a credibilidade dos depoimentos/declarações sempre se assume por defeito, ou seja, assume-se credível o depoimento se essa credibilidade não for, fundadamente, posta em causa; dito ainda de outra forma, o tribunal não atesta que um depoimento é credível ou não credível com base numa opinião pessoal, não é em função do que a si, pessoalmente, lhe parece.

Também o julgamento, consabidamente, não parte do principio que os factos afirmados na acusação pública são verdadeiros e que são falsos os depoimentos ou declarações que com eles não coincidem; nem, correlativamente, que são verdadeiros os depoimentos ou declarações que coincidem com os factos afirmados; razão porque uns merecem crédito e outros não.

A convicção que aqui se procura, “a convicção da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável", cf., Germano Marques da Silva, citando a expressão de Figueiredo Dias, in Curso de Processo Penal II, Editorial Verbo, 2002, pág. 133, é fundamentalmente objetiva, e por isso dificilmente pode ser alcançada apenas com base em prova por declarações, um meio de prova onde particularmente predomina a subjetividade.

Menos ainda quando dois declarantes, que ocupam posições opostas na causa, se apresentam a declarar, também, em sentido antagónico entre si; a resposta do tribunal é necessariamente inconclusiva; a prova é, independentemente de uma questão de credibilidade, que é apenas a superfície da valoração da prova, simplesmente, insuficiente.

A dificuldade de prova que se apresenta quanto a factos que decorrem na intimidade da vida familiar, é uma dificuldade real, que pode ou não ser superada em concreto, mas ela em si mesmo não justifica, não pode justificar, menor exigência na comprovação judicial dos factos, se é justamente o constatar de uma dúvida, de uma incerteza, que pode ou não ser superada, como notado, mas dificilmente o será em sede de julgamento.

A factualidade provada, não constante da acusação pública, que tomámos em consideração para efeitos de determinação da sanção, têm por base as declarações do arguido e o certificado do registo criminal.

Nada mais acrescentou ou subtraiu à convicção do tribunal a prova produzida/examinada em audiência de julgamento não expressamente mencionada.

A matéria alegada na acusação pública não constante do acervo de factos provados/não provados foi considerada como conclusiva e/ou de direito.

Dando resposta às questões colocadas no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora (refª 6933522) (págs. 36-ss do douto acórdão):

“1) Ora se diz que a assistente produziu "declarações na generalidade corroborantes dos factos acusados ... ", ora se diz (contraditoriamente) que os factos provados se afiguraram ao tribunal "demonstrados em face das declarações do arguido" - que "negou os aspetos principais ou centrais da acusação" - ora se diz que " ... as declarações do arguido e as declarações da assistente, em termos de valoração da prova, encontram-se rigorosamente em pé de igualdade ... relatam versões dos factos ou realidades históricas passíveis de ocorrer no mundo real, não se apresentam patentemente ilógicas, absurdas ou incoerentes ... ".“

Com o devido respeito não há contradição, mas explicamos melhor. O acervo de factos provados reflete aquilo que o arguido reconheceu, ou seja, reflete as declarações do arguido, que nessa parte, e porque são consonantes com o texto do acusado, se podem considerar como confessórias. O mais resultou não provado porque o tribunal não se resolveu pela prevalência das declarações da assistente – corroborantes, apesar de tudo, daquela remanescente matéria não reconhecida pelo arguido ou que o arguido nega, ou seja, a matéria dada como não provada -, em detrimento das declarações do arguido.

Em termos probatórios a solução é, assim, simples; se se entender que merecem prevalência as declarações da assistente, deverá resultar provada essa matéria que demos como não provada; se se entender que não, deverá essa matéria resultar não provada que foi o que fizemos; o tribunal ficou no que se poderá designar de um non liquet entre umas e outras declarações, mas a dúvida tem que se resolver em benefício do acusado.

“(…)Desta fundamentação fica-se sem perceber porque razão o tribunal deu como provada a matéria de facto dada como provada e não provada a matéria de facto que deu como não provada;”

Já decorre da resposta à questão anterior, segundo se crê; o acervo de facto provados e não provados reflete o antagonismo; provado ficou aquilo que o arguido reconheceu, provado não ficou aquilo que o arguido não reconheceu (onde se regista uma dúvida que tem que se resolver em seu benefício).

“em que medida e relativamente a que factualidade concreta - dada como provada e não provada relevaram (ou não) as declarações da assistente e do arguido para o tribunal formar a sua convicção no sentido em que a formou e não noutro? o que disseram, que gestos ou atitudes assumiram que permitiram ao tribunal aferir da sua credibilidade (ou falta dela) relativamente àquilo que ambos disseram? em suma, em face da postura da assistente e do arguido, que - de acordo com a fundamentação - terão apresentado versões contraditórias e ambas possíveis porque razão optou por uma parte da versão que cada um apresentou em detrimento da outra?

O tribunal não tem um registo ipsis verbis do que disse o arguido e do que disse a assistente; para fazê-lo teria que proceder à transcrição dos depoimentos, o que julga que não será o que se tem em vista.

O tribunal quando escreveu a sua fundamentação assumiu, como sempre assume, que o conteúdo dos depoimentos, é conhecido de todos aqueles que participaram no julgamento, porque os escutaram, tal como o tribunal os escutou, e que, para além disso, também estão gravados e nada é mais fidedigno do que essa gravação; como acima se pode ver, a indicação da prova oral é feita com a indicação, entre parêntesis, do sítio onde o depoimento está exarado (que é como dizer gravado), dessa forma se pretendendo transportar o seu teor para a decisão.

Por vezes, e é nosso hábito fazê-lo, inserimos uma menção tabelar do género “todas as declarações/depoimentos aqui citados encontram-se integralmente exarados no suporte áudio da(s) ata(s) de audiência de julgamento aqui dispensando reprodução”, no caso, e por acaso, não o fizemos, mas é esse o sentido que atribuímos a essas indicações entre parêntesis, para que saiba a que concreto depoimento nos referimos e onde é que ele pode ser escutado/conhecido o seu conteúdo literal. Mas ainda assim, quanto ao conteúdo das declarações, esse essencial que registámos, é que as declarações do arguido negam os aspetos principiais da acusação pública, a parte da violência, digamos assim, para que se melhor se entenda; as declarações da assistente percorrem a matéria da acusação pública e na generalidade são corroborantes da mesma – julgamos que não poderemos ser mais claros do que isto.

Quanto aos gestos e atitudes de ambas as partes; ambos se afiguraram ao tribunal transmitir sentimentos genuínos, como dizer o contrário? O que nos falta neste processo é prova direta, para além daquela que consubstancia as declarações dos intervenientes, ou seja, uma visão de fora; daí a dificuldade que nós temos, colocando as declarações do arguido e da vítima em pé de igualdade, ou seja, fazendo uma análise o mais isenta e objetiva possível, em resolver essa dúvida de credibilidade, se assim a quisermos pôr.

Por isso é que ali escrevemos que o julgamento “não parte do principio que os factos afirmados na acusação pública são verdadeiros e que são falsos os depoimentos ou declarações que com eles não coincidem; nem, correlativamente, que são verdadeiros os depoimentos ou declarações que coincidem com os factos afirmados; razão porque uns merecem crédito e outros não” (sublinhámos; aqui refirmo-nos, justamente, ao crédito ou à credibilidade).

Porque ambas as declarações são motivadas e conseguem-se compreender, independentemente de ser verdadeiro ou falso o que relatam; o que acontece é que umas têm uma aparência de veracidade mais forte porque refletem o que está escrito na acusação pública, outras são aquelas que nos aparecem no julgamento, uma negação dos aspetos essenciais da imputação, o manifestar de perplexidade perante a imputação, o colocar em crise o crédito da imputação e das declarações da assistente.

Mas mais uma vez, o tribunal não optou por uma versão em detrimento da outra, simplesmente a matéria provada reflete aquela dimensão não contestada ou reconhecida pelo arguido e a matéria não provada a dúvida.

2) Relativamente aos depoimentos das testemunhas CC, LL, DD refere o tribunal que "produziram depoimentos que, fundamentalmente, denotam um conhecimento indireto, são expressão ou remetem para as declarações da assistente ... " (sic), mas não se diz nem esclarece o que disseram e o que viram - para além da "perna da assistente marcada" (o que é alguma coisa) e as circunstâncias em que a viram - de modo a que se perceba porque razão não relevaram tais depoimentos para a formação da convicção do tribunal (apenas porque reproduziram ou remeteram para as declarações da assistente?);”

Quanto ao teor ou conteúdo literal destes depoimentos renovamos o que já acima dissemos a respeito da prova por declarações.

Mas dando uma resposta clara e direta à questão colocada pela douta Relação, quanto ao que viram, pois pode responder-se pela negativa, isto é, o que não viram, o que não presenciam, e pelo que nós percecionamos não viram nem presenciaram atos de violência doméstica – e por isso no seu âmago eles são, efetivamente, de um conteúdo indireto, ou seja, expressam-nos o contato ou relacionamento com a assistente; Esta é a análise decisiva que nós fizemos e é aquela que melhor serve, dentro das nossas capacidades, para explicar a solução que alcançámos.

O tribunal notou a questão da perna marcada porque esse sim foi um aspeto que registámos como diretamente percecionado, ainda que com alguma vaguidade, ainda que de forma pouco contundente.

Essa menção, em todo o caso, pareceu-nos insuficiente, o que procurámos fundamentar não em termos meramente subjetivos, mas em algo de mais palpável, de mais concreto, e por isso dissemos, “Regista-se que serve de prova documental à acusação pública, bem assim, uma informação clínica do dia 16 de setembro de 2019, em que, no campo “diagnóstico de saúde”, é feita menção a “traumatismo de localização não especificada”, o que é inconclusivo, agrava a dúvida, seja quanto à lesão, como consequência, seja quanto à agressão propriamente dita, o facto sob averiguação”.

Não é que o tribunal não tenha valorado estes depoimentos, valorou-os sim, mas entendeu que eles não lhe permitem ultrapassar aquela dúvida, que julgamos que agora já se mostra suficientemente clara.

3) E outras provas foram juntas aos autos sobre as quais não há qualquer referência na fundamentação (veja-se, concretamente, o relatório fotográfico junto aos autos e circunstâncias em que foi elaborado pelo OPC) e quanto às testemunhas GG e BB dizse, em suma, que "não presenciaram agressões, fisicas ou verbais, o seu conhecimento é posterior, circunstancial ... ", sem que se esclareça que conhecimento é esse (ainda que posterior ou circunstancial), ou seja, sem que sejam analisadas criticamente, esclarecendo-se as circunstâncias em que foram chamadas ao local, o que viram/ouviram e/ou presenciaram para além do clima de tensão, de nervosismo e do ferimento que o arguido apresentava na mão) e que diligências fizeram.

O tribunal atentou no expediente elaborado pelo órgão de polícia criminal e por isso citou “a fotografia da perna da assistente, que se contempla na prova documental da acusação pública, cf., fls. 254, com a legenda “ferimentos na perna da vítima”, é uma fotografia que pouco, se não mesmo nada, esclarece o tribunal, possivelmente por ser a preto e branco, mas não são, de facto, visíveis ou ostensivos os referenciados “ferimentos”.

Essa fotografia é parte integrante do relatório fotográfico elaborado pelo órgão de polícia criminal, que, por sua vez, está anexo ao auto de notícia que consta duplicado no processo físico, mas que pode ver-se, desde logo, a fls. 3-ss do vol. I destes autos.

Existe também um aditamento que tem que ver quanto ao facto de o arguido passar à porta da casa da assistente, cf., fls. 494, facto que nós julgamos não provado, porque também se insere no antagonismo entre as declarações do arguido e da vítima.

Assim a demais prova documental dos autos, não citada, cai na menção, admitimos que tabelar, “Nada mais acrescentou ou subtraiu à convicção do tribunal a prova produzida/examinada em audiência de julgamento não expressamente mencionada” – o tribunal geralmente insere esta menção justamente para evitar qualquer omissão de pronúncia, porque sempre perpassamos os autos ao elaborar a sentença, e se não assinalamos é porque nos parece não se justificar a menção; fizemos esse exame novamente, agora, ao elaborar este texto e não detetámos elemento adicional que justifique registo.

Relativamente aos depoimentos das testemunhas GG e BB, como bem se alcança dos mesmos, as testemunhas deslocaram-se ao local, contataram com os intervenientes e constataram sinais que podem indiciar violência, é certo, o vidro partido, sangue na mãe do arguido, foram tiradas fotografias, e, em suma, deu-se início ao presente processo de violência doméstica; o citado auto de notícia retrata-nos, no fundo, estas diligências, mas no momento em que a GNR chega ao local, objetivamente, não estava a decorrer agressão ou violência.

Por exemplo, num ilícito de condução sem carta os militares autuantes geralmente percecionam o facto, ou seja, o exercício da condução; se não presenciaram essa prova (o auto, os seus depoimentos) geralmente se entenderá como insuficiente para prova desse facto

Mas neste caso, neste particular, o facto não foi presenciado, isto independentemente da notícia do crime e daquilo que foi colhido junto da vítima, que, mais uma vez, nos remete para as suas declarações; foi isto o que quisemos dizer quando nos referimos a conhecimento “posterior, circunstancial, aos factos”.

Esperamos que o raciocínio do tribunal, se não estava, se mostre agora claro, pois que o que buscámos foi justamente que fosse racional, e não uma mera impressão pessoal do julgador – a parte final da nossa fundamentação originária foi justamente nesse sentido, de deixar claro que assim decidíamos porque era a decisão que se impunha numa análise objetiva do problema.

***Reparação de nulidade - da factulidade do elemento subjetivo ou dolo do tipo imputado ao arguido***

A título de nota prévia permitimo-nos assinalar que na sentença que originariamente redigimos adotamos uma técnica - que entretanto abandonámos, por não ter merecido acolhimento na douta Relação - de reputarmos essa matéria subjetiva ou interna - que no caso se localiza no ponto 54. e 55. da acusação pública - de conclusiva ou de direito.

Diga-se que o nosso intuito foi sempre no sentido de elevar e não, como é evidente, de regredir na técnica jurídica, ainda que saiba que esta questão suscita sempre grande problemática porque está tão sedimentada na praxis judiciária que é difícil concebê-la noutros termos que não a da inserção na acusação do texto dir-se-á típico/usual de que o arguido agiu livre deliberada conscientemente, querendo e conseguindo maltratar a vítima e sabendo que a sua conduta era proibida e por lei ou formulação análoga.

No caso julgamos que a resposta que a douta Relação procura já está na sentença, porque não seria lógico/admissível, pelo menos eu meu modesto ver, que o tribunal dê-se como provado que o arguido quisesse atingir o bem estar físico, moral, sexual, psicológico da vítima sem atestar os factos, ou seja, a conduta do arguido de onde se pudessem revelar essas intenções, por via da presunção judicial; e também temos de ser claros neste tocante, ou os factos permitem ou não permitem essa conclusão e no caso o acervo de factos provados não permite.

Com efeito essa matéria, ou seja, os factos do dolo (insertos nos pontos 54 e 55 da acusação pública) não sendo em geral suscetíveis de apreensão direta, só poderiam ser atestados por mera presunção

No caso não há prova direta desse dolo criminoso, pois que o arguido, conforme se alcança das suas declarações, e já acima o deixamos expresso, não reconhece a violência doméstica.; muito dificilmente, pelo menos em nossa perceção, podem as condutas apuradas, - referimo-nos como é evidente, àquilo que está provada - ser enquadradas num mau trato típico da violência doméstica, e consequentemente, também não delas não podemos retirar essa correspondente vontade ou dolo típico da violência doméstica.

Por isso, parece-nos que o lógico e expetável é que, perante a solução que alcançámos quanto aos factos, dir-se-á, objetivos, ou seja, quanto aos eventos do mundo exterior, quanto àquilo que, de facto, se atestou como tendo acontecido, ou então, não se reuniu prova suficiente para atestar tenha acontecido, tal matéria contida nos pontos 54. e 55. resulte, necessariamente, não provada.

É que se nós não conseguimos enquadrar nessa matéria o crime de violência doméstica, - como adiante deixamos exposto na fundamentação jurídica - seria algo paradoxal afirmar que o arguido sabia que praticava um crime ou outra formulação semelhante, sabendo-se, ademais, que nos movemos numa matéria - trata-se da tutela de bens jurídicos pessoais, do bem jurídico mais nuclear da dignidade da pessoa humana - na qual não se concebe, sequer, um estado de desconhecimento da ilicitude; provada a conduta necessariamente e invariavelmente resulta provada a intenção ou dolo que se procura.

Mas, não se provando a conduta tipica, há um vazio, não se pode provar a intenção correspondente ou dolo do tipo, porque uma e outra coisa estão interligadas, estão quase como que numa relação simbiótica, um não existe sem o outro; assim, em reparação da nulidade levamos necessariamente à matéria de facto não provada os pontos 54. E 55., que passam a constar como pontos 29. E 30. da factualidade não provada.»

3. Apreciando

3.1. Da nulidade da sentença recorrida

A recorrente suscita a questão da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, tal como prevenindo no artigo 379.º, § 1.º, al. c) CPP, questão esta que é, ademais, de conhecimento oficioso, conforme decorre da conjugação das disposições dos artigos 368.º e 369.º, por remissão do artigo 424.º, § 2.º, todos do CPP. Já o afirmámos em anterior acórdão e reiteramos: a sentença penal não é (não deve ser) uma fiel serventuária da acusação, podendo o juiz proceder, «se necessário, e na extensão tida por necessária, ao aparo ou corte do que porventura em contrário e com carácter supérfluo provenha da acusação» (5), ou precisá-la num discurso mais claro quanto ao que possa não estar tão bem exposto, sem que isso constitua uma introdução de factos novos que traduzam alteração dos anteriores, isto é, sem que isso represente uma alteração relevante (substancial ou não substancial) dos factos.(6)

Sem prejuízo, tendo em consideração o modelo basicamente acusatório do processo penal português, que pressupõe que o objeto do processo (o «acontecimento histórico à luz da sua relevância jurídica» (7); ou o «pedaço de vida» (8) juridicamente relevante) é delimitado pela factualidade vertida no libelo (sendo este da competência de entidade diversa do Tribunal), impõe o princípio da identidade que lhe subjaz, que o Tribunal não possa deixar de se pronunciar sobre todos os factos que constituem esse objeto, sendo indubitável que o elemento subjetivo da infração é justamente um deles. No anterior acórdão, conhecendo desta mesma questão (nulidade da sentença por omissão de pronúncia), este Tribunal considerou existir esta nulidade por o Tribunal a quo não se ter pronunciado (nos factos provados ou nos factos não provados) relativamente a um facto essencial (respeitante ao elemento subjetivo do ilícito), narrado na acusação em termos genéricos, mas sobre o qual o Tribunal recorrido não podia deixar de se pronunciar, mesmo que reconfigurasse a redação vinda da acusação, para o ajustar à melhor técnica de o afirmar (como provado ou como não provado). Importa reconhecer que o facto em referência (proveniente do ponto 55. do libelo), consta agora do ponto 30. do acervo factológico julgado não provado. E, se bem que agregando (várias) considerações desnecessárias na respetiva motivação, a verdade é que ali se apresentam, em medida suficiente, as razões de assim se ter julgado. Assinala ainda a recorrente, como argumento para invocação desta mesma nulidade da sentença, o modo como o Tribunal recorrido valorou ou deixou de valorar as provas.

Importará, neste conspecto, deixar claro que a omissão de pronúncia se verifica quando o Tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (al. c) do § 1.º do artigo 379.º CPP), entendendo-se por «questão» o dissídio ou problema concreto a decidir e não já os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidas por qualquer dos sujeitos na defesa da sua pretensão. Não integra, pois, este vício a valoração concretamente efetuada das provas com referência aos factos que concretamente se imputam ao arguido. Porquanto a valoração da prova rege-se pelo princípio da livre apreciação, conforme prevê o artigo 127.º CPP, de acordo com o qual o Tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo. A discordância da recorrente nesta parte é legítima, mas integra a impugnação do julgamento da questão de facto (artigos 412.º, § 3.º e 127.º CPP), o que também faz.

Não se verifica, pois, a assinalada nulidade.

3.2. Do erro notório na apreciação da prova

Mesmo antes de avaliar os termos da impugnação de facto feita no recurso, impõe-se, por dever de ofício (9), conhecer dos vícios previstos no artigo 410.º CPP, por se surpreender erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, § 2.º, al. c) CPC).

Conforme dispõe a lei, este vício deverá resultar do próprio texto da decisão recorrida, reportado à lógica jurídica ao nível da matéria de facto, isto é, às circunstâncias que inviabilizam uma decisão logicamente correta e em conformidade com a lei (10). E por isso, para a sua verificação, o Tribunal de recurso prescinde da análise da prova concretamente produzida, atendo-se somente à conexão lógica do texto da decisão, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum.

Breve: a sentença revela que a avaliação da prova, ao invés de judiciosa, assentou numa base quase geométrica, que se poderá sintetizar do seguinte modo: - como no seu depoimento a assistente descreveu os acontecimentos de um modo que é incompatível com a versão do arguido e ambas são abstratamente plausíveis, anulam-se mutuamente («quando dois declarantes, que ocupam posições opostas na causa, se apresentam a declarar, também, em sentido antagónico entre si; a resposta do tribunal é necessariamente inconclusiva; a prova é, independentemente de uma questão de credibilidade, que é apenas a superfície da valoração da prova, simplesmente, insuficiente»; - como, para além da assistente e do arguido, ninguém presenciou os alegados atos de violência do arguido sobre a assistente (diz-se que não há prova direta da sua verificação), não se fez prova; - como os depoimentos das testemunhas mãe e irmãs da assistente têm essa ligação biológica com esta, são pouco credíveis; - e como o seu conhecimento dos acontecimentos foi, a mais disso, indireto, não releva; - a testemunha MM descreve o teor de conversa com a assistente na ocasião da aflição daquela, mas como nada viu (não estava lá), o depoimento não releva; - o mesmo se passa com as demais testemunhas, incluindo os militares da GNR que se deslocaram ao local dos supostos acontecimentos ilícitos. Como a nada assistiram nada há para valorar. Em resultado: prova-se (no essencial) apenas o que o arguido confessou! Importa começar por lembrar que sob os auspícios dos princípios do acusatório e da investigação (32.º, § 5.º da Constituição e 340.º do CPP) o processo penal português não é um processo de partes, nem de ónus probatório a cargo das «partes» sob pena de preclusão. Daí que apenas por o arguido e a assistente terem versões diferentes sobre os acontecimentos e serem ambas abstratamente plausíveis, não se pode concluir pela existência de um non liquet. Nessas concretas circunstâncias emerge a necessidade de um esforço de alcançar a verdade (artigo 340.º CPP), o qual, em verdade não se exerceu. Sendo por isso incorreto, nessa circunstância, firmar um juízo insuperável de incerteza. O raciocínio realizado deixaria impunes inúmeros crimes graves, como a maioria das violações (praticados normalmente sem testemunhas e sem deixar vestígios biológicos que permitam identificar ou confirmar o agressor). Produzir, apreciar e valorar livremente as provas, tal como o preconiza a lei (artigos 127.º e 340.º CPP) é muito mais do que foi feito. Trata-se, deveras, d’«um trabalho d’intelligencia d’uma ordem mais elevada», por «carece[r] de maior somma de regras» para chegar à verdade. (11) Claro está que a livre convicção do juiz não se confunde com a convicção íntima, caprichosa, emotiva ou preconceituosa. Porque é um processo intelectual ordenado, que manifesta e articula os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência comum. Seguramente não é um processo «mecânico», mas racional, lógico, só limitado pelos critérios legais (p. ex. em matéria de proibições de prova) e passível de motivação e de controlo.

Breve: é um processo judicioso. Assentando, como referido, em critérios racionais e lógicos, tal não significa, porém – muito longe disso -, que a formação da convicção seja (deva ser) inteiramente objetiva, já que esta é indissociável da pessoa do juiz concreto que a aprecia. Para a formação da convicção «desempenha um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis – v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova – e mesmo puramente emocionais» (12). Já Alberto dos Reis (13) ensinava, a propósito da livre apreciação da prova, em processo civil que «o que está na base do conceito é o princípio da libertação do juiz das regras severas e inexoráveis da prova legal, sem que, no entanto, se queira atribuir-lhe o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas (….) O sistema da prova livre não exclui, e antes pressupõe, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica». (14) Apreciar e conjugar a prova é, em verdade, um dever que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana (artigos 1.º e 2.º da Constituição). É, em suma: uma «liberdade de acordo com um dever», de que o processo penal moderno não pode prescindir. Os exemplos simplificados de ponderação (meramente) geométrica que acima se alinharam, acerca do modo como a prova foi apreciada, extraem-se da motivação da sentença recorrida, quando nela se perscrutem as razões pelas quais os factos que constituem o objeto do processo foram julgados provados ou não provados. Surpreende-se, deveras, uma ponderação deficitária e pouco criteriosa das provas, que dispensou o esforço exigível de conjugação de todos os meios probatórios disponíveis (provas diretas e indiretas (15): concretamente a ponderação da credibilidade das declarações do arguido face à sua própria circunstância e perante os termos do depoimento da assistente (não na sua assinalada dimensão geométrica - mas judicial) e os destes com os das testemunhas (todas); e de toda essa prova declaratória com os exames, com o que se vê nas fotografias e o que consta dos outros documentos indicados como prova no processo. O mais grave é que tal não sucedeu apenas relativamente a um facto ou um pequeno punhado de factos conexos, o que na apreciação em recurso o Tribunal da Relação sempre poderia corrigir (artigo 426.º, § 1.º, 1ª parte CPP). Do que se trata é afinal de um defeito congénito da sentença, que afeta toda a matéria fáctica na parte não confessada pelo arguido (ou corroborada por testemunha com conhecimento direto – como sucedeu quanto ao ponto 21, pela testemunha FF). Dada esta dimensão fica comprometida toda a decisão, por erro notório na apreciação da prova. Este vício da decisão, que a lei prevê no artigo 410.º, § 2.º, al. c) CPP), reporta-se justamente a uma deficiência no apuramento da matéria de facto, que se depreende da conexão lógica do texto da mesma. Verifica-se quando da simples leitura do texto da sentença se constata erro de raciocínio na apreciação das provas. O que sucede p. ex. quando as provas revelam claramente um sentido contrário à ilação delas tirada pelo Tribunal, ou quando, como é aqui o caso, as ilações se revelam racional e logicamente arbitrárias, contraditórias ou patentemente violadora das regras da experiência comum. (16) A ampla dimensão assinalada ao vício torna insuscetível o suprimento em recurso, por ser manifesta a impossibilidade que a segunda instância se substitua, por inteiro (sem oralidade e imediação), ao Tribunal recorrido. A causa terá de ser julgada outra vez. Conhecem-se todos os ónus que tal acarreta. Mas não há outra alternativa. E com isso fica prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas no recurso, devendo em consequência baixar o processo à 1.ª instância, para novo julgamento, relativamente à totalidade do objeto do processo, nos termos previstos no artigo 426.º CPP, a realizar necessariamente por outro juiz, atendendo-se ao disposto nos artigos 40.º, § 1.º. al. c) e 426.º-A do CPP.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, determinamos:

1. Por o acórdão recorrido padecer do vício do erro notório na apreciação da prova, previsto na al. c), do § 2.º, do artigo 410.º CPP, o reenvio do processo para novo julgamento, com consideração do estatuído nos artigos 426.º, § 1.º, 426.º-A e 40.º, § 1.º, al. c) CPP.

2. Sem tributação.

Évora, 13 de setembro de 2022

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Clara Figueiredo (1.ª adjunta)

Fernanda Palma (2.ª adjunta)

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1 Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. III, Do Procedimento - Marcha do Processo, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 335.

2 Sérgio Gonçalves Poças, Processo penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, revista Julgar n.º 10, 2010, pp.23.

3 Evidentemente que não se pode entender ter «resposta» como constituindo «o recurso» que não foi interposto, sob pena de fraude à lei (artigo 413.º CPP) e subversão do princípio do processo equitativo (artigo 20.º, § 4.º da Constituição e 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e as regras atinentes à intervenção dos sujeitos para exercerem os seus direitos e deveres processuais. O Ministério Público pode, naturalmente, pronunciar-se sobre as questões concretamente suscitadas pela assistente; mas não pode legitimamente aditar novos temas e/ou fundamentos.

4 Cf. acórdão do STJ n.º 7/95, de 19/10/1995 (Fixação de Jurisprudência), publicado no DR, I-A, de 28/12/1995.

5 Cf. Acórdão de 2/6/2005, proc. 7177/04, Cons. Pereira Madeira, disponível em www.dgsi.pt referência 05P1441.

6 Veja-se neste sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Lisboa, Verbo, vol. III, 2.ª edição, pp. 273.

7 Assim, Henrique Salinas, Os limites Objetivos do ne bis in idem e a Estrutura Acusatória do Processo penal Português, Universidade Católica Portuguesa Editora, 2014, pp. 221.

8 Jorge de Figueiredo Dias, Extradição e non bis in idem», Parecer, DJ, 1995, tomo I, pp. 219; e. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Almedina, 1992, pp. 96 e 144.

9 Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, 4.ª ed., 2011, Universidade Católica Editora, pp. 1079. Ver tb. acórdão do STJ de 9jan2019, proc. 142/12.0GCSCD-A.S2, www.dgsi.pt/jstj)

10 Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6out2010, proc. 936/08.JAPRT, de que foi relator o Cons. Henriques Gaspar.

11 Francisco Neves e Castro, 1880, p. 47

12 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, Coimbra Editora, p. 205.

13 CPC Anot., vol. III, ed. 1981, p. 245.

14 Neste mesmo sentido pode ver-se Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, ed. 1981, pp. 297 ss.); e também Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, ed. 1993, pp. 111 ss.). O mesmo tem vindo igualmente a ser sublinhado pela jurisprudência (cf. acórdão STJ, de 18/1/2001, proc. 3105/00 – www.dgsi.pt).

15 A prova indireta não só é válida no processo penal como é muitas vezes imprescindível. Sobre a provi indireta em direito processual: Vaz Serra, BMJ n.º 110, Provas (Direito Probatório Material), pp. 180 a 198; Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol. II, pp. 289; Acórdãos n.ºs 391/2015, de 12 de agosto e 521/2018, de 17 de outubro: www.tribunalconstitucional.pt ; Guide on Article 6 of the European Convention on Human Roghts (2018), em: www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_6_criminal_ENG.pdf ; acórdão do Tribuna da Relação de Évora, de 17/12/2020, no proc. 45/19.7peevr, Des. Gomes de Sousa, www.dgsi.pt ; Susana Aires de Sousa, Prova Indireta e Dever Acrescido de Fundamentação da Sentença Penal, Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Universidade Católica Editora, Vol. IV, pp. 2753 ss.; Alberto Augusto Vicente Ruço, Prova Indiciária – Por que razão um facto é um indício de outro facto ou base de uma presunção?, 2013, Gráfica Almondina.

16 Sobre este vício de conhecimento oficioso, com as características que se deixaram expostas, pronuncia-se proficientemente Pereira Madeira, Código de Processo Penal comentado, 2021, 3.ª ed., Almedina, pp. 1293; mas também Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, pp. 61 e ss. Pode ainda ver-se, por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2mar2016, proc. 81/12.4GCBNV.L1.S1 (citado por Pereira Madeira no referido Código comentado).